
Aos doze anos, Eduardo García já era uma lenda nos corredores de San Adrian, a escola mais prestigiada da cidade. No entanto, não era por feitos admiráveis, nem de longe; era temido, e ele fazia questão de alimentar essa reputação. Alto para a idade, com o cabelo loiro sempre perfeitamente penteado e uns olhos azuis que à primeira vista podiam parecer encantadores, mas que logo revelavam a sua frieza e cálculo, o seu uniforme impecável e os sapatos de couro lustrados refletiam o padrão de luxo em que sempre havia vivido. Filho único de Juan García, um dos empresários mais ricos e influentes do país, Eduardo cresceu sem jamais ouvir a palavra “não”, e isso transformou-o num pequeno tirano.
Os professores não ousavam contradizê-lo, o pessoal tratava-o com extremo cuidado — afinal, quem arriscaria perder o emprego irritando o filho do homem que financiava metade da escola? Caminhava pelos corredores como um rei, distribuindo apelidos humilhantes, arrancando risos forçados dos seus seguidores e transformando o dia de qualquer criança desprevenida num pesadelo. Roubar almoços, rasgar cadernos, trancar colegas na casa de banho ou simplesmente humilhar alguém por prazer eram práticas comuns para ele.
— Vejamos quem será o desafortunado de hoje.
Murmurou Eduardo, passeando o olhar pelo pátio da escola, enquanto mascava uma pastilha elástica com desdém. Foi então que a viu. Marisa estava ali, sentada num banco perto das árvores, sozinha, alheia a tudo o que a rodeava. O seu cabelo castanho-escuro caía numa trança simples e a sua roupa, embora limpa e bem cuidada, era modesta. Os seus ténis estavam algo gastos, a mochila remendada num canto. Tudo nela gritava humildade. Mas não era isso que mais o incomodava. O que o fez franzir o sobrolho foi a sua postura. Ao contrário de qualquer estudante novo, Marisa não parecia ansiosa por ser aceite, nem preocupada em evitar olhares. Estava simplesmente tranquila, completamente à vontade na sua própria presença. E isso fez o sangue de Eduardo ferver.
Sem pensar duas vezes, marchou na direção dela, o seu grupo de seguidores logo atrás, à espera do espetáculo.
— Olá, novata.
Chamou-a, parando ao lado dela e cruzando os braços. Marisa levantou o olhar e observou-o. Os seus olhos eram calmos, serenos, mas Eduardo não gostou do que viu. Estava habituado a ver medo nos olhos das crianças que intimidava, ou pelo menos desconforto. Mas Marisa… ela parecia inabalável.
— Posso ajudar-te?
Perguntou ela, arqueando ligeiramente uma sobrancelha. O seu tom não era agressivo nem defensivo, apenas natural. Eduardo forçou um sorriso, inclinando-se ligeiramente na direção dela.
— Só queria dar-te as boas-vindas. Afinal, sou uma espécie de figura importante por aqui.
Marisa piscou, como se processasse as suas palavras. Depois, inclinou a cabeça.
— Ah, já vejo. Então és o típico menino rico e valentão que pensa que pode mandar em todos.
O grupo à sua volta conteve a respiração. Eduardo sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha, que rapidamente se transformou em ira. Abriu a boca para responder, mas Marisa já tinha voltado a olhar para o seu livro, como se ele não fosse mais do que um aborrecimento passageiro, como se ele não importasse. Aquilo foi um golpe. Nunca em toda a sua vida alguém o tinha tratado com tanto desprezo. Estava habituado a ser temido, respeitado, admirado, mas ignorado? Isso era inaceitável.
— Vais aprender a respeitar-me, Marisa.
Murmurou Eduardo, com os punhos cerrados, antes de se afastar. Enquanto se afastava, sentia o ardor da humilhação a queimá-lo por dentro. O seu grupo estava em silêncio, sem saber se deviam troçar da situação ou fingir que nada tinha acontecido. Mas Eduardo sabia o que fazer. Iria ensinar a Marisa uma lição que jamais esqueceria. Ela nunca mais o ignoraria, e ele faria questão disso.
Eduardo passou a noite em claro, a dar voltas na cama, sentindo o sangue ferver cada vez que a cena do dia anterior voltava à sua mente. Ele, Eduardo, tinha sido ignorado – não insultado, não confrontado, ignorado. Nunca em toda a sua vida alguém se atreveu a tratá-lo como se fosse irrelevante, como se não fosse mais do que um miúdo qualquer.
Acordou com um propósito ardente no peito: destruir Marisa.
Na manhã seguinte, mal prestou atenção às aulas. A sua mente estava demasiado ocupada a planear cada detalhe do que faria no recreio. Não queria apenas pôr Marisa no seu lugar, queria que ela se arrependesse de ter cruzado o seu caminho. Ela tinha de entender que havia regras ali, que ele era quem decidia o que acontecia naquela escola, que ninguém podia desafiá-lo e sair ileso.
O tempo arrastou-se como uma tortura até que, finalmente, a campainha tocou, anunciando o recreio. Eduardo já sabia exatamente como atacaria. Viu-a sentada sozinha sob a grande árvore do pátio, a saborear tranquilamente uma sanduíche embrulhada em plástico. À sua volta, a escola vibrava com conversas e risos, mas ela permanecia serena, absorta em si mesma, sem demonstrar a mínima ansiedade ou insegurança. E isso enfureceu-o ainda mais. Ela não deveria estar tranquila. Deveria estar a evitar os seus olhares, encolhida nalgum canto, a rezar para que ele não a notasse. Mas ali estava ela, como se nada tivesse acontecido.
— Isto acaba agora. Ah, olá, Marisa!
Chamou Eduardo, alto o suficiente para garantir que dezenas de cabeças se virassem para eles. A menina levantou o olhar, mastigando com calma antes de responder. A simplicidade no seu tom irritou-o. Queria que a voz dela saísse trémula, que o seu olhar refletisse dúvida, mas não. Ela apenas o olhava como se estivesse a falar com qualquer um.
— Não vou perder tempo com rodeios. Sabes, estivemos a falar de ti há pouco. A menina nova, sem amigos, sem graça e sem dinheiro.
As palavras cortaram o ar. Alguns alunos entreolharam-se, desconfortáveis, enquanto outros riam nervosamente, seguindo a corrente. Marisa não respondeu, apenas deu mais uma dentada na sanduíche. Eduardo forçou uma gargalhada e abanou a cabeça.
— Mas olha, eu entendo. Deve ser difícil vir para uma escola como esta. Quer dizer, aqui temos certos padrões.
Deu um passo em frente e, num movimento rápido, arrancou-lhe a sanduíche das mãos. Segurou-a entre os dedos como se fosse algo repugnante.
— Que nojo! Tu comes mesmo isto? Parece comida para cães!
As risadas explodiram à sua volta. Marisa permaneceu imóvel. Os seus olhos fixaram-se nele por um breve instante, sem ira, sem vergonha, apenas um olhar sereno, como se Eduardo não tivesse importância. Sentiu o coração acelerar. Precisava de mais, de algo que a destruísse.
Abaixando-se, agarrou a mochila dela e, num só movimento, virou-a, derramando todo o seu conteúdo no chão: cadernos velhos, um estojo gasto, lápis pequenos, quase acabados. Chutou um dos livros para longe e fingiu surpresa.
— Olhem para isto! Parece que tirou as suas coisas do lixo!
As gargalhadas ecoaram pelo pátio. O grupinho à volta ria alto, apontando, a murmurar. Era este o momento. Agora Marisa deveria encolher-se, baixar a cabeça, conter as lágrimas. Mas não. Marisa respirou fundo e, com calma, abaixou-se para apanhar as suas coisas. Eduardo sentiu que lhe faltava o ar. Não chorou, não gritou, não implorou. Simplesmente o ignorou. E essa foi a pior afronta de todas.
Apertou os punhos, o seu rosto a começar a arder de fúria.
— Oh, olha para mim quando te falo!
Rosnou, chutando os livros novamente. Marisa levantou finalmente o rosto. Os seus olhos encontraram os dele, mas não havia medo neles. Havia pena. A boca de Eduardo abriu-se, mas nada saiu. O seu peito subia e descia rapidamente, como se o ar tivesse desaparecido.
— Isso faz-te sentir melhor?
Perguntou ela, com um sorriso tranquilo. Eduardo sentiu o sangue gelar. As vozes à sua volta tornaram-se distantes. Era como se o mundo inteiro tivesse parado. Tinha de ir embora, agora. Virou-se e afastou-se sem dizer uma palavra, o coração a martelar-lhe no peito. Escutava as risadas no fundo, sentia os olhares de confusão dos seus amigos, mas nada disso importava. A única coisa que importava era que Marisa o tinha derrotado, e ele não permitiria que isso voltasse a acontecer.
O ódio fervia dentro de Eduardo. Marisa tinha de pagar. Desde o dia em que o desafiou, sentia como se algo estivesse fora do lugar, como se o equilíbrio natural do seu mundo tivesse sido rompido. Tentava ignorar as risadinhas disfarçadas nos corredores, os olhares que os seus colegas trocavam quando ele passava. Mas o pior de tudo era a forma como ela continuava a agir como se nada tivesse acontecido. Não se escondia, não evitava os lugares que Eduardo e o seu grupo costumavam dominar, não demonstrava o menor medo de cruzar-se com ele, como faziam os outros. Era como se, simplesmente, ele não lhe importasse. E isso devorava-o por dentro. Tinha de a esmagar. Tinha de demonstrar que ainda tinha o controlo.
A manhã passou lentamente, cada segundo a arrastar-se como se o universo pusesse à prova a sua paciência, mas finalmente a campainha tocou. Era agora. Eduardo já tinha o cenário perfeito montado na sua cabeça. Não queria apenas intimidá-la, queria fazer dela um exemplo, mostrar a todos que ninguém, absolutamente ninguém, podia desafiá-lo e sair ileso.
Os corredores estavam cheios. Os alunos caminhavam em direção ao pátio, mas Eduardo só tinha um objetivo. E então, viu-a. Marisa caminhava tranquilamente pelo corredor lateral, segurando alguns cadernos contra o peito. A sua expressão era serena, como sempre. Movia-se com uma tranquilidade irritante, como se não houvesse absolutamente nada no mundo que a pudesse afetar.
Eduardo sentiu um nó de fúria no estômago. Ela tinha de aprender. Sem hesitar, avançou.
— Olá, novata.
A sua voz soou forte, cortando o murmúrio do corredor. Marisa parou lentamente, levantou o olhar para ele. Os seus olhos eram calmos, como se estivesse a avaliar algo trivial, sem pressa.
— Eduardo.
Disse o seu nome sem hesitar, sem medo. Ele cerrou os dentes. Ela nunca vacilava.
— Continuas a achar que és melhor do que todos?
Disse, cruzando os braços e forçando um sorriso frio. Marisa inclinou levemente a cabeça.
— Não. Mas tu, claramente, sim.
O sangue de Eduardo ferveu. Os alunos à volta começaram a prestar atenção, formando um círculo subtil. Sabiam o que estava para vir. Ele não deixaria isto passar.
— Olha só, a menina humilde tem coragem.
Deu um passo em frente.
— Mas a coragem não serve de nada se não sabes qual é o teu lugar.
E então, antes que ela pudesse reagir, empurrou-a. Os cadernos de Marisa deslizaram dos seus braços, caindo no chão com um baque seco. A multidão murmurou. Marisa suspirou, não de medo, nem de raiva, apenas de cansaço. Abaixou-se para apanhar os seus cadernos. Eduardo viu o vermelho. Essa calma, essa calma era pior do que qualquer insulto. Ela estava a ignorar a sua provocação outra vez.
Apertou os punhos.
— Estou a falar contigo!
Rosnou e, sem pensar, empurrou-a de novo, com mais força. Mas desta vez, algo diferente aconteceu. Marisa não caiu. Com um movimento fluído e preciso, ela girou ligeiramente o corpo, absorvendo a força do empurrão sem esforço. O seu pé deslizou para trás, equilibrando o impacto de maneira quase natural.
— O quê?
O murmúrio na multidão cresceu. Todos perceberam. Sentiu os olhares. O seu peito subia e descia com força. Isto não estava a sair como planeado. A raiva toldou-lhe o juízo. Não pensou, apenas agiu. Avançou para a empurrar de novo, desta vez decidido a fazê-la cair no chão. Queria vê-la com pó na roupa, ver no seu olhar o medo que ela ocultava tão bem.
Mas então, o mundo inverteu-se. Antes que pudesse reagir, algo agarrou o seu pulso e puxou-o para a frente. O seu corpo foi lançado para o lado com velocidade e, num segundo aterrador, sentiu o peso do seu próprio ímpeto voltar-se contra si. E então, bateu no chão.
O impacto percorreu-lhe as costas. Piscou, atordoado, tentando perceber o que acabara de acontecer. Todo o pátio estava em silêncio. E então, compreendeu. Marisa estava de pé ao seu lado, impecável, intacta. Ele, Eduardo, estava no chão.
O tempo pareceu parar. As pessoas à sua volta estavam de boca aberta, algumas com as mãos na boca, outras a conter risadinhas nervosas, incapazes de acreditar no que acabavam de ver. Eduardo tentou levantar-se rapidamente, mas Marisa já tinha dado um passo atrás, a observá-lo. O seu rosto continuava calmo, não havia orgulho, nem troça, nem provocação, apenas certeza. Ela sabia que ele não era uma ameaça, e isso foi pior do que qualquer golpe que ele poderia ter recebido.
Pôs-se de pé com esforço, sentindo o rosto a arder de vergonha. Mas antes que pudesse dizer algo, Marisa abaixou-se, apanhou o último dos seus cadernos, virou-lhe as costas e simplesmente afastou-se. Sem medo, sem dúvidas, sem se preocupar com ele. Eduardo ficou ali, ofegante, sentindo o sabor amargo da derrota na sua boca. Nunca tinha perdido antes.
O silêncio após a derrota de Eduardo foi tão absoluto que, por um momento, parecia que o mundo tinha parado de girar. Todos no pátio de San Adrian ficaram congelados, incapazes de reagir. O tirano da escola tinha sido derrotado, e derrubado com tal facilidade que parecia nunca ter tido qualquer poder real.
E então, como uma pedra lançada a um lago, o impacto começou a expandir-se. Os murmúrios, os risos, a troça. Cada gargalhada era como um prego a perfurar a pele de Eduardo. O pior de tudo foi o vídeo do confronto, que se espalhou como fogo, registando cada segundo da sua humilhação. Nas salas de aula, nos corredores, nos telemóveis, o vídeo estava em todo o lado.
— Viste isso? Todos estão a falar!
Para Eduardo, aquilo foi o inferno. Os olhares que antes eram de medo agora continham algo muito pior: troça.
— Ó Eduardo, já te inscreveste em aulas de defesa pessoal?
Troçava um aluno.
— Talvez devesses pedir uns conselhos à Marisa!
E as risadas à sua volta eram ensurdecedoras. Eduardo queria esmagá-los a todos, mas não podia. Tinha perdido, e agora todos sabiam que ele podia perder.
O golpe final chegou sob a forma de um telefonema. O diretor da escola ligou para Juan, o pai de Eduardo. O destino do rapaz ficou selado.
— O meu filho derrotado? Ridicularizado? Não, isso não faz sentido. Um García não perde.
O empresário saiu do trabalho imediatamente. Juan era um homem que resolvia problemas, e agora estava a ir para San Adrian para resolver o maior problema de todos: o seu próprio filho. O rugido do seu carro de luxo ressoou na entrada da escola.
Eduardo estava no final do corredor, e engoliu em seco ao ver o pai aproximar-se. Juan passou por ele sem dizer uma palavra e dirigiu-se diretamente para a secretaria. Todos sabiam que aquela conversa era para decidir o destino de Eduardo.
Mas a conversa não era para exigir a expulsão de Marisa, nem para encobrir o incidente. A porta abriu-se, e Juan saiu com passos calculados, os olhos afiados, mas serenos. Não disse uma palavra ao filho, apenas fez um gesto com a mão, ordenando-lhe que o seguisse. Eduardo obedeceu, perplexo. O seu pai estava a dirigir-se para o pátio, onde Marisa estava sentada, lendo um livro.
Juan parou à frente dela e Marisa levantou o olhar, a sua expressão inalterada.
— Tu és Marisa?
Perguntou Juan, com a sua voz profunda.
— Sim.
— Obrigado.
O pátio ficou em silêncio. Até Eduardo ficou sem fôlego. O seu pai estava a agradecer à miúda que o tinha humilhado!
— Poderias tê-lo magoado, mas não o fizeste. Derrubaste-o com precisão, sem violência desnecessária. E o mais importante, não usaste a tua força para humilhar ninguém depois. Isso diz muito sobre ti. O meu filho precisa de aprender uma lição que eu não lhe ensinei. E quero que sejas tu a ensiná-la.
A confusão de Eduardo transformou-se em pura indignação.
— O quê? Queres que eu treine com esta… esta miúda?
Juan olhou para ele severamente.
— Sim. Quero que aprendas disciplina, que entendas o que significa o respeito, o que é a verdadeira força e que deixes de ser um miúdo mimado e arrogante.
Marisa, por sua vez, fechou o livro e cruzou os braços.
— E se eu disser que não quero?
Perguntou, olhando diretamente para Juan.
— Podes dizer que não, mas acho que gostas de desafios. E pelo que vejo, o Eduardo é um desafio difícil.
Marisa olhou para Eduardo, sem mostrar satisfação nem orgulho, apenas uma avaliação silenciosa. Ele odiava ser analisado como se fosse um caso perdido.
— O que é que eu ganho com isto?
Perguntou Marisa.
— A oportunidade de ensinar a um rapaz arrogante que a força não se trata do medo que provoca, mas do respeito que constrói.
Marisa sorriu de lado.
— De acordo. Eu aceito.
Eduardo sentiu que o mundo desmoronava à sua volta. O seu pai não estava a pedir; estava a ordenar.
— Não me desiludas, Eduardo. E pela primeira vez na tua vida, escuta.
Eduardo viu o seu pai afastar-se, sentindo-se esmagado pela realidade. Já não era o rei da escola, já não era intocável. E agora estava prestes a ser treinado pela única pessoa de quem queria fugir.
Marisa pegou no seu livro novamente e levantou-se.
— Vemo-nos amanhã, García.
Disse, antes de sair do pátio com a sua mesma tranquilidade de sempre.
A manhã seguinte chegou demasiado depressa. Eduardo não tinha conseguido dormir. A ideia de ser treinado por Marisa era insuportável. Mas ali estava ele, no ginásio da escola, a cruzar os braços, tentando fingir que não sentia o peso do olhar dela. Ela estava à sua frente, vestida com roupa desportiva simples, a sua mesma expressão inabalável.
— Estás pronto?
Perguntou Marisa, inclinando levemente a cabeça.
— Para quê? Para aprender a cair de novo? Porque nisso sim, tu és muito boa.
Marisa sorriu de lado.
— Curioso, porque da última vez que caímos, foste tu quem ficou no chão. Vamos estabelecer algumas regras.
— Regras? Claro, porque eu vou definitivamente ouvir o que tu dizes.
— Primeira: se quiseres aprender alguma coisa, vais ter de fechar a boca e prestar atenção. Segunda: se achares que vais ganhar isto com pura força bruta, vais frustrar-te muito rapidamente. E terceira… Se desistires, vais demonstrar a todos que és tão fraco como eu já sei que és.
Eduardo sentiu algo a romper-se dentro dele.
— Repete isso. Fraco?
— Fraco.
Isso foi suficiente. Atirou-se na direção dela, tentando empurrá-la, mas antes que pudesse sequer levantar os braços, sentiu o seu próprio peso desequilibrar-se. Num piscar de olhos, estava de costas no chão outra vez. A dor não foi o pior. O pior foi aperceber-se de que Marisa nem sequer tinha tido de se esforçar para o derrubar.
— Queres tentar de novo, ou vais continuar a fingir que não precisas disto?
O treino começou sem cerimónias. Marisa não deixou espaço para birras ou desculpas. Era prática, técnica, suor. Eduardo, para sua surpresa, estava a ter dificuldades. Sempre pensou que a força significava superioridade, mas Marisa estava a provar o contrário.
— Estás a desperdiçar a tua energia.
Dizia ela, esquivando-se com facilidade a um golpe mal dado.
— Isto não faz sentido!
Rosnou Eduardo, batendo no chão com o punho.
— Faz sentido. Só que tu não queres admitir.
Os dias passaram assim: frustração, quedas, suor. Mas pouco a pouco, Eduardo começou a notar algo. Marisa não estava a tentar humilhá-lo. Não se ria dos seus erros. Apenas o corrigia com paciência, à espera que ele aprendesse. E, contra a sua vontade, começou a respeitá-la.
O treino tornou-se uma rotina. Ele já não chegava com má atitude. O seu corpo começou a habituar-se aos movimentos, a sua mente a entender que a verdadeira força não vinha da violência, mas do controlo.
— Estás a melhorar.
Disse Marisa uma tarde.
— Claro, sou bom em tudo o que faço.
Marisa riu.
— Não eras, mas agora estás a aprender.
Eduardo abriu a boca para responder com outra troça, mas apercebeu-se de que estava a sorrir. Começava a gostar daquilo. A hostilidade entre eles começou a desvanecer-se.
— Por que fazes isto?
Perguntou Eduardo, uma noite.
— Fazer o quê? Treinar, lutar?
— Tu és boa nisto, mas não usas para te impores.
— Porque a força não se trata de derrubar os outros. Trata-se de levantares-te quando mais ninguém pode ajudar-te.
Eduardo sentiu algo estranho com aquelas palavras. Nunca tinha pensado nisso daquela forma. Naquele momento, apercebeu-se de que Marisa era diferente de qualquer pessoa que tinha conhecido e que, pela primeira vez na sua vida, queria mudar. Não pelos outros, mas por ele mesmo.
A sua reputação em San Adrian tinha mudado. O medo dissipou-se, e ele, surpreendentemente, não sentia falta dele. O sol brilhava quando Eduardo saiu do ginásio, suado, sentindo-se mais rápido, mais fluido. Finalmente, começava a entender: lutar não se tratava de ganhar, tratava-se de não precisar de lutar.
No pátio, começou o caos. Dois rapazes estavam prestes a envolver-se numa briga. Antes, teria apenas assistido, talvez incentivado, mas agora, simplesmente, não podia permitir.
— Ei, já chega!
A sua voz soou firme, autoritária, mas sem agressividade. Os dois rapazes viraram-se.
— Sai daqui, Eduardo. Isto não é assunto teu.
Rosnou o mais velho.
— Não tem de ser assim.
— Ah, sim? E o que vais fazer? Vais atirá-lo ao chão como aquela miúda te fez a ti?
Eduardo não vacilou. Sentiu a fúria formar-se dentro dele, mas conteve-a.
— Não, porque eu já não sou essa pessoa.
O rapaz piscou, confuso. A multidão, que antes esperava uma briga, esperava um desfecho diferente. O rapaz mais velho bufou e recuou. Desistiu.
Eduardo não precisava de público. Não precisava de lutar. Foi então que sentiu um olhar sobre ele. Levantou os olhos e encontrou Marisa de pé, sob uma das árvores, a observá-lo. Quando os seus olhares se cruzaram, ela sorriu. Não disse nada. Não era necessário. Naquele instante, Eduardo soube que tinha conseguido. Não porque tinha vencido alguém, mas porque soube quando não lutar.
Mais tarde, Marisa sentou-se ao seu lado no banco.
— Então, como te sentes?
Perguntou, com um sorriso divertido.
— Diferente.
Pensou por um momento. Antes, a ideia de perder o seu poder ter-lhe-ia parecido aterrorizante.
— Diferente bom.
Marisa deu-lhe um pequeno toque no ombro, satisfeita.
— Sabia que tinhas salvação.
Eduardo revirou os olhos.
— Não exageres. Continuo a ser incrível.
Marisa riu alto e, pela primeira vez em muito tempo, Eduardo sentiu-se feliz. Porque finalmente tinha entendido. Ser forte não era ser temido; era saber quando não lutar. E naquele dia, Eduardo soube que nunca mais voltaria a ser quem era antes.