Bem-vindos mais uma vez ao Contos de Época, onde as histórias de amor verdadeiro e segundas oportunidades ganham vida. Hoje trago para vocês um relato que nos transporta ao ano de 1888, aos caminhos empoirados do recôncavo baiano, onde uma jovem enfrentou o abandono mais cruel em seu momento de maior vulnerabilidade.
Mas quando tudo parecia perdido, quando a solidão e a vergonha ameaçavam destruí-la, um homem honrado lhe ofereceu algo que ela nunca esperou: dignidade, proteção e a promessa de um novo começo. Esta é a história de Clarice, uma mulher que descobriu que o amor verdadeiro não sempre chega de onde esperamos, mas de onde mais precisamos.
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Era uma tarde tranquila de 1888 e na pequena casa ao final da rua das flores, Clarice Almeida terminava de bordar os últimos detalhes de uma toalha de altar encomendada pela igreja de Nossa Senhora da Purificação. Seus dedos se moviam com a precisão que só anos de prática podem dar, e seus olhos verdes se concentravam em cada ponto com a dedicação que a havia tornado uma das rendeiras mais requisitadas de toda a região.
A almofada de Bilros descansava em seu colo, os fios de linho irlandês entrelaçando-se em padrões delicados que pareciam surgir como por magia sob suas mãos hábeis. Clarice tinha 23 anos e um semblante de traços delicados, emoldurado por cabelos castanhos ondulados que levava presos em um coque simples, preso com pentes de tartaruga que haviam sido de sua mãe.
Não era uma beleza deslumbrante daquelas que viravam cabeças nas procissões, mas havia nela uma doçura natural, uma bondade que transparecia em seu olhar e na forma gentil como sorria. Sua pele clara, ligeiramente rosada pelo calor da tarde baiana, contrastava com o vestido azul marinho de algodão que usava, simples, mas impecavelmente limpo e bem cuidado.
Era órfan desde os 15 anos, quando a febre amarela havia devastado a região, levando seus pais com poucos dias de diferença. Meu pai, Joaquim Almeida, era carpinteiro naval no porto de Cachoeira e sua mãe, dona Inês, bordadeira como ela. Desde então, Clarice havia vivido com sua tia Benedita, irmã mais velha de seu pai, que a havia acolhido com amor maternal, e lhe ensinara os segredos das rendas de Bilro, que as mulheres portuguesas do recôncavo guardavam como tesouro.
Tia Benedita havia morrido há um ano e meio, deixando Clarice verdadeiramente sozinha no mundo. A perda havia sido devastadora. Benedita era tudo o que lhe restava de família, sua única conexão com o passado, seu único refúgio. Durante meses, Clarice havia chorado sua ausência cada noite, aferrando-se às memórias, como a um salvavidas que a impedisse de afundar no oceano de solidão que a cercava. A pequena casa onde vivia era alugada ao Senr.
Gonçalves, dono de uma venda na praça, e o aluguel consumia boa parte do que ganhava com suas rendas e bordados. Clariss trabalhava desde antes do amanhecer até bem entrar à noite. Seus dedos sempre ocupados, sua almofada de birros nunca descansando. Era difícil, exaustivo, mas ao menos era dela. Ao menos tinha um propósito.
Ao menos não dependia da caridade alheia. E então havia chegado Fernando. Dr. Fernando Augusto Ribeiro era o filho do comendador Augusto Ribeiro, um dos comerciantes mais prósperos da Bahia, exportador de açúcar e fumo para a Europa. Aos 29 anos, Fernando era um homem de aparência distinta, cabelos louros, que herdara da mãe francesa, olhos claros e porte refinado.
havia estudado direito em Recife e retornado a Santo Amaro havia 2 anos, trazendo consigo os modos polidos da capital e uma reputação de homem culto e promissor. Havia conhecido Clarice na Igreja de Nossa Senhora da Purificação numa missa dominical há 8 meses. Ela estava entregando ao padre Sebastião uma toalha de altar que havia bordado como promessa.
E Fernando, que assistia a missa ao lado de sua mãe, dona Eugênia, havia ficado impressionado com a delicadeza do trabalho. Aproximara-se após a missa, apresentara-se com cortesia impecável e perguntara se ela aceitaria fazer o enxoval completo para sua irmã mais nova, que se casaria em breve. Clarice não podia acreditar. Um homem de sua posição, filho do comendador, interessado em seu trabalho. Mas Fernando não parara por aí.
Voltara à casa dela para discutir os detalhes do enxoval. Depois voltara para ver o progresso, depois apenas para conversar. sempre acompanhado por um escravo, sempre respeitoso, sempre dentro dos limites da propriedade. Lentamente, o que começara como uma relação de cliente e artesã transformara-se em algo mais.
Fernando falava com ela sobre poesia, sobre os livros que lia, sobre suas ambições de se tornar promotor público. Trazia-lhe pequenos presentes, um livro de poemas, uma caixa de bombons de cacau da fazenda Vitória, um lenço de seda que, segundo ele, combinaria perfeitamente com seus olhos verdes. Clarice havia se enamorado.
Como não se enamorar? Fernando representava tudo o que ela havia perdido, segurança, companhia, a promessa de não estar mais sozinha. Representava um futuro que ia além da solidão de sua pequena casa, além das noites intermináveis de trabalho, além da incerteza de cada mês ao tentar juntar dinheiro suficiente para o aluguel.
Quando Fernando lhe pedira em casamento seis meses atrás, numa tarde chuvosa de outubro, Clarice havia chorado de alegria. Ele se ajoelhara diante dela, segurara suas mãos calejadas pelo trabalho e dissera: “Clarice, sei que não tenho fortuna para lhe oferecer como outros homens de minha posição poderiam ter, mas tenho um coração que bate somente por você.
quer me fazer o homem mais feliz desta província e aceitar ser minha esposa? Ela havia aceitado com o coração transbordando. O noivado fora anunciado na igreja, embora de forma discreta. Dona Eugênia, mãe de Fernando, não estivera presente, alegando uma indisposição, mas Fernando assegurara a Clarice que sua mãe apenas precisava de tempo para se acostumar com a ideia.
O comendador tampouco havia aparecido, mas Fernando explicara que ele estava viajando a negócios em Salvador. A cerimônia estava marcada para o final de maio, em apenas cinco semanas. Clarice já havia começado a costurar seu próprio vestido de noiva.
Um trabalho delicado em linho branco, com rendas de birro que ela mesma fazia. Cada ponto uma oração de gratidão e esperança. E então, três meses atrás havia acontecido algo que mudaria tudo. Fora numa noite quente de janeiro, após a festa de São Sebastião, na fazenda do Sampaio, vizinhos do Comendador.
Fernando havia insistido que Clarice o acompanhasse, dizendo que era hora de ela começar a ser apresentada à sociedade como sua futura esposa. A festa havia sido magnífica, com lanternas japonesas iluminando os jardins, músicos tocando modinhas e valsas, mesas fartas com iguarias, vatapá, moqueca, cocadas, bolos de tapioca.
Clarice sentira-se deslocada entre as senhoras de vestidos de seda francesa e joias cintilantes. Mas Fernando permanecera ao seu lado a noite toda, atencioso e orgulhoso. Haviam bebido champanhe, trazido da Europa. Haviam dançado sob as estrelas, haviam rido. Quando a festa terminara, já passava da meia-noite. Fernando oferecera-se para acompanhá-la até em casa em sua charrete.
A noite estava morna, perfumada pelo cheiro de jasmim e pelos ventos que vinham da baía de todos os santos. A lua cheia iluminava os canaviais que se estendiam ao longo da estrada. Ao chegarem à casa de Clarice, Fernando descera da charrete e ajudara-a a descer, mas não soltar a sua mão. Seus olhos claros brilhavam sob a luz da lua e havia algo diferente em seu olhar, algo intenso que Clarice nunca vira antes.
“Clarice”, ele murmurara, puxando-a para mais perto. “Faltam apenas alguns meses para sermos marido e mulher. Alguns meses que parecem uma eternidade quando estou ao seu lado. Ela sentira o coração acelerar, sentira o calor subir por suas faces. Fernando, não devemos. Já somos prometidos um ao outro. Ele continuara. Sua voz rouca persuas.
Diante de Deus e dos homens, não há nada de errado em antecedermos o que em breve será nosso direito, nosso dever sagrado como esposos. Clarice, ingênua e apaixonada, acreditara nele. Acreditara porque queria acreditar, porque precisava acreditar, porque Fernando era seu futuro, sua salvação, sua única esperança de não morrer sozinha e esquecida como tantas mulheres sem família que ela conhecera.
Naquela noite, sob a luz da lua baiana, Clarice havia se entregado a ele. Havia cruzado a linha que a sociedade traçava entre as mulheres respeitáveis e as outras, mas fizera-o com amor, com confiança, convencida de que estavam unidos para sempre. Agora, três meses depois, Clarice sabia que estava grávida. Os sinais eram inconfundíveis, as náuseas que a assaltavam todas as manhãs, obrigando-a a correr para o quintal para vomitar as escondidas, o atraso de seu ciclo menstrual já na terceira lua, a sensibilidade em seus seios que doíam ao
menor toque, a tontura súbita que a acometera ontem na feira, fazendo-a quase desmaiar diante da barraca de frutas de seu Matias, havia contado a Fernando Há duas semanas, num domingo após a missa. Esperara que ele se alegrasse, que adelantasse a cerimônia. Em vez disso, ele empalidecera como se tivesse visto um fantasma.
Seus olhos claros, normalmente tão calorosos, haviam ficado frios, distantes. “Tem certeza?”, ele perguntara. E havia medo em sua voz. Sim”. Clarice respondera, confusa com sua reação. “Mas, Fernando, isso é maravilhoso. Vamos ser pais. Podemos casar já na próxima semana?” E não. Ele a interrompera bruscamente.
“Não conte a ninguém. Ninguém pode saber. Espere até depois do casamento.” Claro, embora algo na reação de Fernando a deixasse inquieta, uma pontada de medo que ela tentava sufocar. Ele não viera visitá-la desde então. Enviara mensagens através de seu escravo Tobias, dizendo que estava ocupado com assuntos urgentes do comendador, que viajara a Salvador, que retornaria em breve. Mas hoje, finalmente, ele estava vindo.
Tobias aparecera pela manhã com um bilhete. Preciso falar contigo. Irei à tua casa às 5 horas sozinho, Fernando. Clarice olhou para o relógio de parede que havia sido de tia Benedita. Eram 4:45. Seu coração batia acelerado, uma mistura de ansiedade e esperança. Talvez Fernando viesse para adelantar a data do casamento.
Talvez quisesse finalmente apresentá-la formalmente à sua família. Talvez a porta se abriu sem que ela precisasse atender e Fernando entrou. Mas não era o Fernando que ela conhecia. Este homem que entrava em sua casa tinha o rosto tenso, pálido, suor na testa. Apesar da brisa fresca da tarde.
Suas mãos tremiam ligeiramente e ele evitava olhá-la diretamente nos olhos. Fernando Clarice disse, deixando a almofada de birros de lado e levantando-se. Que bom que você preciso falar com você. Ele a interrompeu, fechando a porta atrás de si, com força excessiva. O tom de sua voz fez algo gelado percorrer a espinha de Clarice. Ela sentiu as pernas fraquearem, mas permaneceu de pé, as mãos entrelaçadas à frente do corpo numa tentativa de esconder o tremor.
Estou ouvindo ela disse, sua voz mais firme do que esperava. Fernando caminhou até a janela, olhando para a rua sem realmente ver. O silêncio se alongou, pesado, sufocante como o ar antes de uma tempestade tropical. “Meu pai,” Ele começou finalmente, ainda sem olhá-la, arranjou meu casamento com outra mulher. As palavras caíram sobre Clarice como um jarro de água fria.
Ela piscou confusa, não podia ter ouvido direito. O quê? Fernando finalmente se virou para encará-la, e em seus olhos ela viu algo que a fez sentir náuseas mais fortes que aquelas da gravidez. Culpa, medo e, pior que tudo, covardia. a filha do Barão de São Francisco. Ele continuou, as palavras saindo apressadas agora, como se quanto mais rápido falasse, menos dolorosas elas se tornassem.
O barão é o maior produtor de açúcar do recôncavo. Meu pai leva meses negociando esta aliança. A fusão dos negócios, as terras, os engenhos é um império, Clarice. Eu não sabia nada até a semana passada, quando meu pai me chamou a Salvador e me apresentou o contrato. Clarice sentiu o chão se mover sob seus pés. Mas nós estamos prometidos”, ela disse, sua voz quebrando.
“Vamos nos casar em cinco semanas. Há anúncio na igreja. Ah, eu sei.” Fernando a interrompeu, passando as mãos pelo cabelo louro num gesto de frustração. “Eu sei, mas meu pai é inflexível. diz que este casamento é essencial para o futuro da família, que é meu dever, que se eu recusar, ele me deserdará completamente.
Perderei tudo, Clarice. Tudo e eu? A voz de Clarice subiu, a dor transformando-se em algo mais agudo, mais desesperado. O que acontece comigo? Com as promessas que você me fez? Fernando recuou um passo como se temesse que ela o tocasse. Eu eu vou providenciar dinheiro o suficiente para que você possa se estabelecer em Salvador ou em Recife. Começar uma nova vida.
Ninguém lá conhecerá sua história. Clarice olhou para ele com uma mistura de descrença e horror crescentes. Dinheiro. Você acha que dinheiro resolve isto? É o melhor que posso fazer. Ele murmurou, e até sua voz parecia menor agora, encolhida. E então Clarice se lembrou. O bebê, o filho que crescia dentro dela, o filho deste homem que agora a olhava, como se ela fosse um problema inconveniente a ser resolvido com algumas moedas de ouro.
“Fernando”, ela disse, sua voz mais firme agora, alimentada pela necessidade de proteger aquela vida minúscula. Estou grávida. Você se lembra? Estou esperando seu filho. O rosto de Fernando contorceu-se em algo entre horror e pânico. Ele deu mais um passo para trás, como se ela fosse contagiosa. Você não pode ter esse bebê.
As palavras pairaram no ar, obscenas em sua crueldade casual. O quê? Clarice sussurrou. Você precisa se livrar dele. Fernando disse sua voz baixa, mas firme agora, tomando uma decisão. Existem mulheres que sabem fazer essas coisas, parteiras que que resolvem esses problemas. Eu pagarei. Pagarei bem para que seja feito com segurança. Clarice sentiu Billy subir em sua garganta.
Instintivamente, suas mãos foram para o ventre ainda plano, protegendo. Você está me pedindo para matar nosso filho? Não é um filho ainda, Fernando respondeu rapidamente. É apenas É apenas um problema que pode ser resolvido. Clarice, seja sensata. Como você vai criar uma criança sozinha, sem marido, sem família, sem meios? O bebê terá uma vida miserável. E você será completamente ostracizada pela sociedade.
A sociedade que você tanto preza, Clarice disse. E havia amargura em sua voz agora, uma dureza que ela não sabia que possuía. A sociedade que é mais importante para você do que eu, do que nosso filho. Fernando apertou os lábios. Não torne isso mais difícil do que já é para você. Clariss respondeu: “Não torne isso mais difícil para você”.
Ele tirou uma bolsa de couro do bolsinho interno de seu palitó e a colocou sobre a mesa ao lado da almofada de Bilrus. O som das moedas de ouro batendo contra a madeira ecoou obscenamente alto na pequena sala. Há ouro suficiente aqui para você viver confortavelmente por um ano?”, ele disse, “Talvez dois, se for cuidadosa, use para pagar pela pela solução e depois use para recomeçar em outro lugar onde ninguém a conheça.
” Clarice olhou para a bolsa como se fosse uma serpente venenosa. “Saia da minha casa!” Fernando piscou surpreso. Clarice, seja razoável. Saia! Ela gritou e a força em sua voz o fez recuar. saia da minha casa agora, antes que eu esqueça que fui criada para ser uma senhora e jogue essa bolsa em seu rosto.
Fernando a olhou por um longo momento e Clarice viu passar em seus olhos um lampejo de algo que poderia ter sido arrependimento. Mas então ele endureceu a expressão, pegou a bolsa da mesa, deixou-a cair no chão aos pés dela e saiu sem olhar para trás. A porta se fechou e Clarice ficou sozinha. Por um longo momento, ela apenas ficou de pé, olhando fixamente para a porta fechada, incapaz de processar o que havia acabado de acontecer.
Então, suas pernas cederam e ela caiu de joelhos no chão de tábuas, um soluço rasgando sua garganta. Chorou. Chorou como não chorava desde a morte de tia Benedita. chorou pela ingenuidade que a havia feito acreditar que um homem como Fernando Ribeiro pudesse realmente amá-la. Chorou pelo futuro que havia imaginado e que agora jazia em pedaços a seus pés, como porcelana quebrada.
Chorou pela criança inocente que crescia em seu ventre, já condenada pela sociedade antes mesmo de nascer. Quando as lágrimas finalmente cessaram, a noite havia caído sobre Santo Amaro. Clarice ficou sentada no chão, abraçando os joelhos, olhando para a bolsa de ouro que Fernando havia deixado. Podia ouvi-la, as moedas te lintando suavemente cada vez que a brisa da noite entrava pela janela.
O preço de seu silêncio, o preço de sua dor, o preço de uma vida. Ela pensou na sugestão de Fernando, nas mulheres que sabiam fazer essas coisas. Conhecia uma, na verdade, tia Eduarda, que morava na beira do rio, numa cabana isolada, diziam que ela tinha conhecimento de ervas, de chás, que podiam resolver problemas de moças em apuros.
Mas enquanto Clarice pensava nisso, suas mãos inconscientemente se moveram para cobrir seu ventre. dentro dela, tão pequeno que ainda não podia ser visto, havia uma vida, seu filho, parte dela. Como poderia? Não. Não importava o que Fernando dissesse, não importava o que a sociedade pensasse. Ela não faria isso, não podia. Lentamente, Clarice se levantou.
Seus olhos caíram sobre a almofada de Bilros, sobre a toalha de altar, que estava quase terminada. Quanto tempo ainda teria antes que sua barriga começasse a aparecer? Dois meses, três? precisava trabalhar, precisava economizar cada centavo, porque quando a verdade se tornasse impossível de esconder, perderia tudo. Nos dias que se seguiram, Clarice tentou manter uma aparência de normalidade.
Acordava antes do amanhecer, trabalhava em suas rendas, entregava encomendas, mas já podia sentir as mudanças, as olhadas suspeitas de dona Mariquinha, sua vizinha, quando vomitava no quintal pela manhã, os olhares especulativos de algumas senhoras na igreja no domingo. E então, duas semanas depois da conversa com Fernando, a bomba explodiu. Dona Eli, a rendeira viúva que havia sido amiga de tia Benedita e a única verdadeira amiga que Clarice tinha, apareceu em sua porta numa manhã de sábado, o rosto grave.
“Clarice”, ela disse, “sem preâmbulos. Preciso te contar algo. É sobre Fernando Ribeiro. O estômago de Clarice se contraiu. O que foi?” Ele se casou ontem em Salvador com a filha do Barão de São Francisco. Foi uma cerimônia enorme na Catedral Basílica com o arcebispo e toda a alta sociedade baiana. E já estão espalhando, Clarice.
Estão dizendo que você tentou forçá-lo a um casamento usando artimanhas que quando não conseguiu espalhou mentiras sobre ele. Clarice sentiu o mundo girar. Fernando não apenas a abandonara, ele estava destruindo sua reputação, garantindo que ninguém acreditasse em sua versão da história. Tem mais. Dona Eulália continuou pegando as mãos de Clarice.
O padre Sebastião anunciou ontem após a missa que teu noivado com Fernando foi dissolvido por incompatibilidade de circunstâncias e pediu que os fiéis rezassem por tua redenção de caminhos equivocados. Clarice fechou os olhos. A igreja, o padre Sebastião, que ela conhecia desde criança, que havia batizado ela e seus pais até ele se voltara contra ela. Há mais uma coisa, dona Eulália disse, e sua voz estava cheia de dor. O Senr.
Gonçalves passou aqui mais cedo. Disse que está despejando você. Deu prazo de uma semana para que desocupe a casa. disse que não pode manter em suas propriedades alguém de moral questionável. Foi o golpe final. Clarice sentiu seus joelhos cederem, mas dona Eulália assegurou. Vem comigo. A mulher mais velha disse firmemente. Vem ficar na minha casa.
Não é grande, mas há espaço para você. Clarice queria agradecer, queria aceitar, mas as palavras não saíam. Apenas acenou com a cabeça lágrimas silenciosas rolando por suas faces. Naquela semana, Clarice mudou-se para a pequena casa de dona Eulália, levando apenas sua almofada de Brus, algumas roupas e os poucos pertences que havia herdado de sua família.
A bolsa de ouro de Fernando permaneceu escondida sob uma tábua solta do chão de sua antiga casa. Ela não queria aquele dinheiro, não queria nada que viesse dele, mas a mudança de casa não deteve os rumores. Eles se espalharam pela vila como fogo em canvial seco. Clarice, a costureira órfã que havia seduzido o Dr.
Fernando Ribeiro, filho do comendador, tentando prendê-lo num casamento. Clarice, que havia inventado mentiras quando ele, homem honrado que era, percebera sua verdadeira natureza e terminara o noivado. As encomendas secaram. As senhoras da sociedade, que antes encomendavam seus enxovais e toalhas, agora cruzavam a rua quando haviam. Na igreja, no domingo seguinte, um círculo de vazio se formou ao seu redor no banco.
Ninguém se sentava perto dela, ninguém a cumprimentava. Após a missa, quando Clarice se aproximou para falar com o padre Sebastião sobre uma toalha de altar que ele havia encomendado, o padre a olhou com frieza. “Senhorita Almeida”, ele disse, sua voz ecoando no adro da igreja. Seria mais apropriado que a senhorita buscasse primeiro a penitência por seus pecados antes de buscar trabalho na casa de Deus. A igreja não precisa mais de seus serviços. Foi como um tapa na cara.
Clarice sentiu todas as pessoas ao redor olhando, sussurrando, julgando. Sentiu a vergonha queimar suas faces, descer por seu pescoço. Mas mais forte que a vergonha era a raiva, uma raiva justa que borbulhava em seu peito. Meus pecados, padre, ela ouviu se dizer. Sua voz tremendo, mas clara. O pecado de acreditar nas promessas de um homem, o pecado de amar alguém que jurou me amar de volta.
O padre Sebastião franziu o senho. A senhorita esquece seu lugar. Vá agora, antes que eu precise pedir que a removam. Clarice saiu da igreja de cabeça erguida, mas assim que virou a esquina, longe dos olhares, desmoronou contra uma parede, soluçando. Estava sozinha, completamente sozinha, sem família, sem amigos além de dona Eulália, sem trabalho, sem reputação.
Em três meses, talvez quatro, sua barriga começaria a crescer. E então até dona Eulália, por mais bondosa que fosse, teria que pedir que ela fosse embora para proteger sua própria reputação. Naquela noite, Clarice caminhou até a beira do rio Paraguaçu, que cortava Santo Amaro com suas águas escuras e profundas.
A lua estava cheia, refletindo na superfície como prata líquida. Era bonito, pacífico, seria tão fácil. Apenas alguns passos para dentro da água, deixar que a correnteza a levasse. Acabar com a dor, com a vergonha, com o medo do futuro. Seu filho nunca nasceria para sofrer o estigma de ser bastardo.
Ela nunca teria que ver nos olhos das pessoas o julgamento, o desdém. Clarice deu um passo em direção à água, depois outro. A água fria lambeu seus tornozelos, molhando a barra de sua saia. Mais um passo e estava até os joelhos. Menina, o que você pensa que está fazendo? A voz grave e preocupada a fez parar.
Clarice se virou e viu uma mulher negra, robusta, de idade indefinida, parada na margem. Usava um turbante vermelho e um vestido simples de chita. Seus olhos, mesmo na escuridão, brilhavam com uma intensidade que parecia ver através dela. “Saia daí agora”, a mulher ordenou. Sua voz deixando claro que não era um pedido. Clarice obedeceu automaticamente, saindo da água com as pernas trêmulas.
A mulher a observou, depois suspirou profundamente. “Nhá, Josefa!”, ela se apresentou. E você deve ser a moça de quem todos estão falando, Clarice Almeida. Clarice acenou com a cabeça, incapaz de falar. Venha. Josefa disse, pegando seu braço com firmeza surpreendente: “Vou te fazer um chá e você vai me contar tudo e depois vamos ver o que pode ser feito”.
E assim, na pequena cabana de Nhá Josefa, antiga escrava liberta, que agora ganhava a vida como cozinheira e quituteira, Clarice contou tudo. Falou pela primeira vez sobre Fernando, sobre as promessas, sobre a noite de janeiro, sobre o bebê, sobre o abandono. Nhá, Josa, ouviu tudo em silêncio, seus olhos sábios nunca deixando o rosto de Clarice. Quando ela terminou, a mulher mais velha suspirou.
Ess menino de cabelo amarelo vai ter o que merece mais cedo ou mais tarde. Ela disse, o que fazemos de ruim volta para nós. Sempre volta. Mas agora o que importa é você e essa criança. Você tem dinheiro? Clarice hesitou, depois acenou que sim. Há uma bolsa que ele deixou, mas eu não quero besteira. A Josefa a interrompeu.
É o mínimo que ele devia fazer. Você vai precisar desse dinheiro. Mas não pode ficar aqui, menina. As línguas venenosas dessa vila vão te destruir antes mesmo do bebê nascer. Eu sei. Clarice sussurrou. Mas para onde eu vou? Minha Josefa ficou em silêncio por um longo momento, pensando. Então seus olhos se iluminaram. Tem um lugar, ela disse lentamente.
Mais para o interior, o engenho São Teodoro pertence ao coronel Teodoro Vasques de Albuquerque. Ele é viúvo, tem uma menina pequena. Dizem que ele libertou todos os escravos dele antes mesmo da lei Áurea. É um homem justo pelo que ouvi. Talvez, talvez ele precise de alguém para cuidar da casa, para ensinar a menina a fazer rendas e bordados.
Senhoras sempre precisam aprender essas artes. Era uma esperança frágil, mas era uma esperança. Clar-se a ela como um náufrago, a um pedaço de madeira. “Você acha que ele me aceitaria?”, ela perguntou, “Sabendo, sabendo da minha situação?” Homens do interior não ligam tanto para fofocas da vilaha Josefa disse. E se você for apresentada por alguém de confiança, deixa comigo. Tenho uma prima que trabalha lá na cozinha.
Vou mandar uma carta com você. Nos três dias seguintes, Clarice se preparou, reuniu seus poucos pertences, despediu-se de dona Eulália com promessas de escrever, foi buscar a maldita bolsa de ouro que Fernando deixara. E numa manhã de maio, com sete meses de gravidez ainda não visível sob suas roupas largas, Clarice Almeida subiu numa carroça que a levaria pelo interior do recôncavo em direção ao Engenho São Teodoro, em direção ao desconhecido, em direção, embora ela ainda não soubesse, ao homem que mudaria sua vida para sempre. Se você está gostando desta história,
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Clarice segurava-se firme na lateral de madeira, sentindo cada solavanco reverberar em seu corpo já cansado. Ao seu lado, o carroceiro, seu Damião, um homem negro de cabelos brancos e rosto marcado pelo sol, mantinha silêncio respeitoso, apenas assobiando baixinho uma modinha enquanto guiava os bois. haviam partido de Santo Amaro ao raiar do dia, quando a névoa ainda cobria o rio Paraguaçu como um sudário de algodão.
Agora, duas horas depois, o sol já queimava alto no céu azul intenso, sem uma nuvem sequer para oferecer alívio. Maio era assim no recôncavo, quente, seco, poeirento, aguardando as chuvas de junho que trariam vida nova aos canaviais. Clarice ajeitou o chale sobre os ombros, mais por hábito que por necessidade, no calor escaldante. Levava consigo apenas uma trouxa de roupas, sua preciosa almofada de burros cuidadosamente envolta em pano de algodão, e a carta de recomendação de Iná Josefa para sua prima, tia Rosa, que trabalhava no Engenho São Teodoro. A bolsa de ouro de Fernando estava escondida numa bolsinha de couro presa à
cintura sob as camadas de saias. Eram 30 moedas de ouro. O preço de Judas, pensara Clarice amargamente ao contá-las. À medida que se afastavam de Santo Amaro, Clarice sentia um misto de alívio e terror. Alívio por deixar para trás os olhares julgadores, os sussurros maldosos, a humilhação constante, terror pelo desconhecido que a ruardava.
E se o coronel Teodoro não a aceitasse? E se tia Rosa não conseguisse convencê-lo? Para onde iria então com três meses de gravidez e uma reputação destruída? Ali na frente, moça seu Damião apontou com o queixo para uma elevação no horizonte. Já dá para ver as chaminéis do engenho. O São Teodoro é um dos maiores da região.
Dizem que o coronel é homem justo, que libertou seus cativos antes mesmo da princesa assinar a lei. Coisa rara por essas bandas. Clarice assentiu, tentando enxergar através da poeira. Aos poucos, conforme se aproximavam, a paisagem se revelou. O engenho São Teodoro era de fato impressionante. A casa grande erguia-se no topo de uma colina suave, um casarão colonial de dois andares, paredes caiadas de branco imaculado, janelas altas com venezianas azuis, telhado de barro vermelho.
Uma varanda ampla cercava toda a frente da construção, sustentada por colunas grossas de pedra. Ao redor do casarão estendia-se um complexo impressionante. Amoenda a vapor com sua chaminé de tijolos, a casa de purgar, onde o açúcar era refinado, os depósitos, a capela com sua torre cineira, as antigas cenzalas agora transformadas em casas para os trabalhadores livres, e além, até onde a vista alcançava, os canaviais ondulando sob o vento como um mar verde dourado.
Mas o que mais chamou a atenção de Clarice foi o jardim. Mesmo de longe podia ver a profusão de cores, hibiscos vermelhos, jasmins brancos, rosezeiras que certamente haviam sido trazidas da Europa, palmeiras imperiais ladeando a alameda de entrada. Alguém cuidava daquele jardim com amor.
Alguém que, apesar de viver num engenho, valorizava a beleza. O coronel mandou plantar esse jardim todo depois que a esposa morreu. Seu Damião comentou como se lesse seus pensamentos. Dizem que era o lugar favorito de dona Amélia, que Deus a tenha. Morreu de tísica, coitada, 3 anos já. O coronel nunca mais foi o mesmo. A carroça seguiu pela alameda de entrada, ladeada pelas palmeiras imperiais, que se erguiam como sentinelas verdes.
Trabalhadores nos canaviais ao redor paravam para observar a passagem, rostos negros e mulatos brilhando de suor o sol inclemente. Clarice notou que todos pareciam bem alimentados, suas roupas remendadas, mas limpas. tão diferente das histórias que ouvia sobre outros engenhos, onde exescravos trabalhavam em condições apenas marginalmente melhores que na época do cativeiro.
A carroça parou em frente a uma escadaria de pedra que levava à varanda principal. Clarice desceu com ajuda de seu Damião, suas pernas trêmulas após horas de viagem. mal havia recuperado o equilíbrio quando uma porta lateral se abriu e uma mulher negra, alta e robusta, de idade, que poderia ser 50 ou 70 anos, emergiu secando as mãos num avental branco.
Nhá Josefa mandou avisar que você vinha. A mulher disse, sem preâmblos, seus olhos examinando Clarice de cima a baixo, com a precisão de quem avalia mercadoria no mercado. Sou Rosa, cozinheira daqui, prima da Josefa. Muito prazer, dona Rosa. Clarice fez uma reverência respeitosa. Sou Clarice Almeida. Sua prima foi muito bondosa em Sei tudo.
Rosa a interrompeu, não indicadamente, mas de forma que deixava claro que não havia tempo para formalidades excessivas. Josefa me escreveu: “Sei da sua situação. Sei do menino de cabelo amarelo que te prometeu casamento e depois fugiu como rato. Sei do bebê que você carrega”. Clarice sentiu o sangue drenar de seu rosto.
Eu Calma, menina, Rosa disse, sua voz suavizando um pouco. Não estou julgando. Já vi muita coisa nessa vida, coisas piores que uma moça enganada por homem sem palavra. Mas preciso que você entenda uma coisa. O coronel não sabe, ninguém aqui sabe por enquanto. Eu não tenho intenção de mentir, Clarice disse rapidamente. Se o coronel perguntar, ele não vai perguntar.
Rosa disse firmemente. Homens nunca perguntam essas coisas. O que precisamos é encontrar uma posição para você aqui, algo que justifique sua presença. Você sabe fazer rendas, bordados? Sim, sorra. Aprendi com minha tia, que aprendeu com mulheres portuguesas. Rosa a sentiu satisfeita. Bom, assim Helena precisa aprender essas artes. Tem 8 anos já e não sabe fazer nenhum ponto direito.
A falecida dona Amélia ia começar a ensiná-la, mas enfim. Você pode ser a professora dela, ensinar rendas, bordados, boas maneiras de senhora. Em troca tem casa, comida e um pequeno salário. Era mais do que Clarissa esperava, muito mais. “Eu aceitaria com gratidão”, ela disse, sentindo lágrimas picar em seus olhos. “Mas e quando? Quando meu estado ficar visível?” Rosa olhou para a barriga ainda plana de Clarice, escondida sob as camadas de saias. Estamos em maio, tem três meses.
Você disse? Sim. Então, mais dois, três meses até começar a aparecer de verdade. Tempo suficiente para você provar seu valor aqui. Tempo suficiente para o coronel ver que você é trabalhadora, honesta, boa com a menina. Aí, quando chegar a hora, a gente vê o que fazer. Não era um plano, era apenas um adiamento do inevitável.
Mas Clarice não estava em posição de escolher. “Obrigada”, ela sussurrou. “Não me agradeça ainda”, Rosa disse sec. “Vem, vou te mostrar seu quarto e depois te levar para conhecer a Sinzinha”. O quarto que Rosa mostrou a Clarice ficava no segundo andar do casarão, num corredor de quartos de hóspedes que claramente não eram usados há anos.
Era pequeno, mas limpo, com uma cama de ferro, uma cômoda, uma cadeira e uma janela que dava para os jardins. Simples, mas infinitamente melhor que o canto apertado que ocupava na casa de dona Eulália. Descanse um pouco, Rosa instruiu. Lave a poeira da viagem. Depois do almoço te levo para conhecer a menina.
O coronel está nos canaviais, só volta no fim da tarde. Quando Rosa saiu, Clarice finalmente permitiu se desmoronar na cama. Seu corpo inteiro doía da viagem, mas mais que isso, sua alma doía. Doía de tudo que havia perdido, de tudo que nunca teria. chorou silenciosamente, o rosto enterrado no travesseiro que cheirava a alfazema, até que o cansaço a venceu e ela caiu num sono agitado. Acordou com batidas suaves na porta.
A luz que entrava pela janela havia mudado de ângulo. Devia ser meio da tarde. Clarice se levantou apressadamente, alisou a saia amarrotada, prendeu os cabelos que haviam se soltado durante o sono. “Entre!”, ela chamou. Rosa abriu a porta, trazendo uma bacia de água fresca e toalhas limpas para você se refrescar.
Depois desce paraa sala de costura. É no final do corredor à esquerda. Assimzinha te espera lá. Clarice se lavou rapidamente, trocou o vestido empoeirado da viagem por outro azul escuro com gola branca que havia sido de tia Benedita. prendeu os cabelos em um coque severo, beliscou as bochechas para trazer um pouco de cor e desceu.
A sala de costura era um cômodo luminoso, com janelas amplas que davam para o jardim, mas o que realmente a definiu foram os detalhes. Uma poltrona de leitura perto da janela, uma estante com livros, uma grande mesa de trabalho coberta com tecidos, linhas, agulhas. E numa cadeira pequena, sentada, muito ereta, com as mãos cruzadas no colo, estava uma menina, Helena Vasques de Albuquer, que tinha 8 anos, mas parecia mais nova, pequena e delicada como uma boneca de porcelana.
Cabelos louros e lisos caíam por suas costas, presos apenas por uma fita azul. Olhos azuis do mesmo tom do céu da Baia observavam Clarice com uma mistura de curiosidade e apreensão. Usava um vestido rosa claro, impecavelmente limpo, mas claramente feito por mãos menos habilidosas. As costuras eram irregulares, o acabamento descuidado. “Helena”, Rosa disse suavemente, entrando atrás de Clarice.
“Esta é a senhorita Clarice Almeida. Ela vai te ensinar a fazer rendas e bordados, como sua mamãe fazia. A menina piscou e Clarice viu seus olhos se encherem de lágrimas antes que ela as piscasse de volta. Como mamãe? Ela repetiu. Sua voz tão suave que mal se ouvia. Clarice sentiu seu coração apertar. reconhecia aquela dor nos olhos da criança, a dor da perda, da ausência que nunca se preenche completamente.
Ela mesma conhecia bem aquela dor. “Sim”, Clarice disse, ajoelhando-se para ficar na altura dos olhos da menina. “Ouvi dizer que sua mamãe era muito talentosa com a agulha. Gostaria de aprender? Assim, você pode fazer coisas bonitas como ela fazia”.
Helena a estudou por um longo momento, aqueles olhos azuis parecendo ver muito além da superfície. Então, lentamente acenou que sim. Bom, Clarissu, então vamos começar. Você trouxe sua almofada de Bilros? A menina pareceu confusa. O que é isso? Clarice sentiu um aperto. Dona Amélia não havia tido tempo de ensinar sua filha antes de morrer. É uma almofada especial que usamos para fazer rendas, mas não se preocupe, vou ensinar tudo desde o começo.
Hoje, que tal começarmos com algo mais simples? Um bordado básico? Nas horas que se seguiram, Clarissa ensinou Helena os pontos básicos de bordado. A menina era atenta, concentrada, seus dedos pequenos lutando para dominar a agulha. Cometia erros, ficava frustrada, mas não desistia. E lentamente, muito lentamente, começou a falar.
falou sobre sua mãe, sobre como ela costumava costurar naquela mesma sala cantando baixinho, sobre como seu pai ficara silencioso após a morte dela, como ele trabalhava do amanhecer ao anoitecer nos canaviais, como parecia estar sempre ausente, mesmo quando presente, sobre como era solitária naquela casa grande, com apenas Rosa e os outros empregados para companhia.
E Clarice ouviu, realmente ouviu, reconhecendo em cada palavra a solidão que ela mesma conhecia tão bem. Quando o sol começou a se pôr, tingindo o céu de laranja e rosa, havia um entendimento tácito entre elas, duas almas solitárias que se reconheciam. “Senrita Clarice?” Helena perguntou quando começavam a guardar os materiais. “Sim, querida.
Você vai ficar, não vai embora como a outra professora? Clarice sentiu um nó na garganta. “Vou ficar o máximo que puder”, ela prometeu e rezou para que fosse verdade. Foi então que ouviram passos pesados no corredor, passos de botas masculinas, firmes, decididos. Helena se impertigou imediatamente, suas mãos indo nervosamente para alisar a saia. “É papai”, ela sussurrou.
A porta se abriu e, pela primeira vez Clarice viu o coronel Teodoro Vasques de Albuquerque. Ele era alto, devia ter mais de seis palmos com ombros largos de quem trabalha à terra. Apesar dos 42 anos, mantinha-se esguio e forte, cabelos escuros com fios prateados nas têmporas, curtos e ligeiramente despendeados.
Olhos castanho escuros, profundos, que transmitiam inteligência e algo mais. Cansaço, talvez tristeza antiga. Usava roupas de trabalho, calças de brm, camisa branca com mangas arregaçadas, mostrando antebraços musculosos bronzeados pelo sol, botas de couro gastas. Não era bonito no sentido convencional, mas havia algo em sua presença que prendia a atenção.
Porte aristocrático, mas sem arrogância, autoridade natural, mas temperada com algo que parecia bondade. Seus olhos foram primeiro para a filha Helena”, ele disse, e sua voz era grave, educada, mas havia nela uma distância que Clarice percebeu que a menina também sentia pelo modo como ela se encolheu ligeiramente. “Papai”, Helena respondeu baixinho.
Só então os olhos do coronel se voltaram para Clarice. Ela se levantou rapidamente, alisando a saia num gesto nervoso. “Senhor”, ela fez uma reverência. Rosa apareceu na porta como se tivesse estado esperando do lado de fora. Coronel, esta é a senrita Clarice Almeida, a rendeira que comentei ontem, se lembra? Para ensinar assim. Os olhos de Teodoro estudaram Clarice por um momento que pareceu se estender por uma eternidade.
Ela forçou-se a manter o olhar firme, a não demonstrar o nervosismo que roía seu estômago. “Senorita Almeida”, ele finalmente disse, inclinando a cabeça numa cortesia formal. Rosa mencionou que a senhora vem de Santo Amaro? Sim, senhor. E tenho experiência com ensino.
Clarice hesitou apenas uma fração de segundo. Ensinei algumas meninas em Santo Amar o Senhor. Rendas de birro, bordados finos, trabalhos em linho. Não era exatamente mentira. Ela havia ensinado à filha de dona Eulália alguns pontos básicos. Teodoro a sentiu lentamente. Helena, ele se dirigiu à filha. O que acha da senhorita Clarice? A menina piscou claramente surpresa que sua opinião fosse solicitada.
Ela é gentil, papai, e sabe muito sobre bordados. Ela hesitou, depois continuou numa torrente de palavras. E ela não grita quando erro, nem fica impaciente como a outra professora. E ela diz que vou aprender a fazer rendas como mamãe fazia. E entendo. Teodoro a interrompeu suavemente e havia o fantasma de um sorriso em seus lábios.
Então olhou para Clarice novamente. Parece que a senhora causou boa impressão, senrita Almeida. Rosa já lhe explicou os termos. Sim, senhor. Então, bem-vinda ao Engenho São Teodoro. Espero que sua estadia seja proveitosa. Era uma formalidade, Clarice sabia, mas havia nelas uma cortesia genuína que a surpreendeu.
Ele não fizera perguntas invasivas sobre seu passado, não questionara porque uma rendeira de Santo Amaro viria trabalhar num engenho isolado. simplesmente aceitara a presença dela baseado na recomendação de Rosa e na aprovação de sua filha. “Obrigada, senhor”, Clarice disse, “O alívio em sua voz era genuíno.” Teodoro acenou brevemente e saiu, seus passos pesados ecoando pelo corredor.
Mas antes de sair completamente, Clarice o ouviu dizer algo a rosa no corredor. Sua voz baixa, mas ainda audível. Ela parece muito jovem e frágil. Certifique-se de que não trabalha demais e que se alimenta adequadamente. Palavras simples, mas que revelavam uma bondade que Clarice não esperava encontrar.
Não depois de Fernando, não depois de toda a crueldade que experimentara. Aquela noite, durante o jantar servido na cozinha, o coronel jantava sozinho na sala de jantar formal, Clarice conheceu o resto da pequena equipe do engenho. Além de Rosa, havia Benedito, o capataz, um homem mulato de 40 anos, músculos marcados pelo trabalho pesado que gerenciava os trabalhadores nos canaviais.
Havia Joaquina, jovem negra de 16 anos, que ajudava na limpeza da casa. E havia Zé do Carmo, velho negro de cabelos brancos, que cuidava dos cavalos e da manutenção geral. Todos a trataram com cortesia cautelosa, curiosos sobre a moça branca de Santo Amaro, que viera ensinar assim ainha. Clarice respondeu às perguntas que faziam sobre sua cidade, sobre seu trabalho com rendas, mas desviou hábilmente de qualquer coisa mais pessoal.
Apenas Rosa, quando as ajudava a lavar a louça após o jantar, disse baixinho: “Você se saiu bem hoje. A menina gostou de você e o coronel?” Bem, ele é homem de poucas palavras, mas quando ele diz que confia em alguém, é verdade. Ele não confia em mim. Clarice corrigiu suavemente. Ele mal me conhece. Não, Rosa concordou, mas ele confia em mim e eu confio na minha prima.
E Josefa confia em você. É uma corrente, entende? Aqui no Engenho, a confiança funciona assim. Clar sentiu sentindo o peso da responsabilidade. Não podia decepcionar aquela gente. Não podia provar que a confiança depositada nela era equivocada. Os dias que se seguiram estabeleceram uma rotina. Clarice acordava com o canto dos galos, quando o céu ainda estava tingido de rosa.
Tomava café na cozinha com rosa, café forte e escuro, tapioca com coco, frutas colhidas do pomar. Depois subia para a sala de costura onde Helena a esperava, sempre pontual, sempre ansiosa para aprender. As manhãs eram dedicadas às lições. Clarice ensinou Helena primeiro os pontos básicos de bordado, ponto cheio, ponto atrás, ponto de aste.
A menina absorvia tudo como esponja seca absorve água, seus dedos pequenos ganhando destreza a cada dia. E enquanto bordavam, conversavam. Helena falava sobre sua mãe, sobre as histórias que ela contava, sobre como cantava enquanto costurava. falava sobre seu pai, sobre como ele havia mudado após a morte de dona Amélia, tornando-se mais silencioso, mais distante.
“Às vezes, a menina confessou numa manhã, sinto que ele se esqueceu de mim, que está tão ocupado com o trabalho que não percebe que estou aqui.” Clarice sentiu o coração apertar. Ele não se esqueceu de você, querida. Mas a dor de perder alguém que amamos às vezes faz as pessoas se fecharem.
É a maneira delas de protegerem o coração. É assim que você se sente? Helena perguntou com a franqueza das crianças. Você também perdeu alguém que amava? Clarice hesitou, depois assentiu lentamente. Sim, perdi meus pais quando era mais velha que você, mas ainda jovem. E perdi minha tia, que me criou há pouco tempo. E você se fechou também? Por um tempo, sim.
Mas então percebi que me fechar só fazia a dor piorar, que às vezes abrir o coração novamente, mesmo com medo, é a única maneira de seguir em frente. Helena pensou sobre isso, seus dedos continuando a bordar mecanicamente. “Vou dizer isso ao papai”, ela declarou finalmente. “Talvez, Clarice sugeriu suavemente.
Você possa apenas mostrar a ele. Às vezes as ações falam mais alto que as palavras. Nas tardes, quando o calor ficava insuportável, faziam uma pausa. Helena ia descansar em seu quarto e Clarice trabalhava em suas próprias rendas, pois Rosa lhe dera permissão para aceitar encomendas particulares e manter o dinheiro.
Algumas das fazendas vizinhas, ao saberem que havia uma rendeira talentosa no São Teodoro, começaram a encomendar toalhas de altar. enxovais, toalhas de mesa. Clarice trabalhava febrilmente nessas peças, sabendo que precisava economizar cada centavo, porque mais cedo ou mais tarde teria que deixar aquele lugar e quando deixasse precisaria ter recursos suficientes para sobreviver até até o quê? Até o bebê nascer e depois.
Ela não permitia que esses pensamentos a consumissem durante o dia, mas à noite, sozinha em seu quarto, eles a assaltavam sem piedade. Sua barriga começava a arredondar muito sutilmente, ainda invisível sob as roupas largas, mas ela sabia. Sentia o bebê, uma presença constante, um lembrete vivo de seu pecado aos olhos da sociedade.
Às vezes, no escuro da noite, Clarice colocava as mãos sobre a barriga e chorava silenciosamente. Chorava por Fernando, não porque o amava ainda. Aquele amor havia morrido na noite em que ele a abandonara, mas por tudo que ele representara, segurança, futuro, um lugar na sociedade. Chorava pelo bebê que crescia dentro dela, pela vida difícil que a criança enfrentaria, e chorava por si mesma pela ingenuidade que a levara até ali.
pela manhã, enxugava as lágrimas, vestia-se, prendia os cabelos e descia para mais um dia de trabalho, mais um dia de fingir que tudo estava bem, mais um dia de viver uma mentira por omissão. Foi numa tarde de final de maio, três semanas após sua chegada ao engenho, que tudo quase desmoronou.
Clarissa estava na sala de costura com Helena, ensinando-a a fazer rendas de Bilru pela primeira vez. A menina estava fascinada, observando como os birros dançavam entre os dedos de Clarice, os fios se entrelaçando em padrões delicados. “É como mágica”, Helena sussurrou maravilhada. Clarice riu. Não é mágica, querida, é prática. Anos e anos de prática. Mas você vai aprender.
Já está se saindo tão bem com os bordados. Foi então que ouviram vozes no andar de baixo, vozes femininas, agudas, aristocráticas. Rosa apareceu na porta, o rosto tenso. Visitas. A esposa do coronel Leôcio Sampaio e a filha dela querem conhecer a nova professora da Sinhazinha. Clarice sentiu o estômago afundar.
Visitas da sociedade. Senhoras que fariam perguntas, que a examinariam. que poderiam reconhecê-la se tivessem conexões em Santo Amaro, mas não havia escolha. Recusar-se a recebê-las seria uma ofensa grave. “Vou descer”, ela disse, alisando a saia, verificando se o cabelo estava no lugar. Na sala de visitas, duas mulheres esperavam.
Dona Margarida Sampaio era uma senhora de 50 e poucos anos, robusta, vestida em seda cinza escura, apropriada para uma viúva. Clarice depois saberia que ela havia perdido um filho anos atrás e ainda guardava luto. Tinha um rosto bondoso, olhos castanhos inteligentes e um porte que falava de anos de experiência, gerenciando uma grande propriedade.
Sua filha, Carolina, era alguns anos mais velha que Clarice, talvez 26 ou 27. Bonita de uma forma convencional, cabelos negros presos em tranças elaboradas, vestido verde esmeralda, que certamente viera de Salvador ou mesmo da Europa. Seus olhos, porém, eram frios, calculistas, examinando Clarice da cabeça aos pés com o tipo de olhar que avalia e julga em segundos.
Senrita Almeida. Dona Margarida se levantou estendendo a mão. Que prazer conhecê-la, finalmente. Rosa nos falou de você. Clarice fez uma reverência respeitosa. O prazer é meu, senhora. Senhorita Carolina. A jovem disse com um aceno de cabeça mínimo, mal tocando os dedos de Clarice quando ela estendeu a mão. Sentaram-se e Rosa serviu café e sequilhos. A conversa começou de forma cort.
Perguntas sobre como Clarice estava se adaptando ao engenho, como Helena progredia nas lições. Mas então Carolina, com a sutileza de uma cobra prestes a dar o bote, perguntou: “E de onde você disse que veio, senhorita Almeida?” Santo Amaro? Sim, senhorita. Interessante. Tenho primas lá.
As irmãs Tavares conhece? Clarice? sentiu o suor frio escorrer por suas costas. As irmãs Tavares eram justamente aquelas que haviam liderado o ostracismo contra ela na igreja. Conheço de vista, senhorita. Santo Amaro não é uma vila grande. E sua família? Seus pais falecidos, senhorita, há anos. Que tragédia.
Dona Margarida interveio e havia genuína compaixão em sua voz. E não tem outros parentes? Não, senhora. Era só eu e minha tia, que também faleceu recentemente. “Então deve ter sido muito difícil para você”, a senhora disse suavemente, “ficar completamente sozinha”. Havia algo no tom de dona Margarida que fez Clarice olhar para ela mais atentamente.
E no olhar que a mulher mais velha lhe dirigiu, Clarice viu compreensão. Não julgamento, mas compreensão, como se ela soubesse, ou ao menos suspeitasse que havia mais na história de Clarice do que estava sendo dito. “Foi difícil, sim, senhora”, Clarice admitiu baixinho. Carolina, porém, não estava satisfeita. E por que deixar Santo Amaro para vir trabalhar num engenho tão isolado? Certamente haveria mais oportunidades numa vila maior. A armadilha estava armada.
Se Clarice dissesse que queria fugir de rumores, estaria admitindo que havia rumores. Se dissesse que precisava do trabalho, soaria suspeito. Por que uma rendeira talentosa precisaria ir tão longe? Foi dona Margarida quem a salvou. Carolina, que pergunta indiscreta. A senorita Almeida não deve satisfação das suas escolhas de vida a ninguém.
Se ela escolheu vir trabalhar aqui, certamente teve suas razões e essas razões são assunto dela. Carolina ficou vermelha, mas recuou. Claro, mamãe. Não quis ofender. O resto da visita passou em segurança, embora Clarice sentisse os olhos de Carolina sobre ela, especulativos, suspeitosos.
Quando as senhoras finalmente partiram, Clarice subiu para seu quarto e permitiu-se tremer. Aquela noite, Rosa bateu à sua porta. “Não se preocupe com a menina Sampaio”, ela disse sem preâmbulos. Ela é invejosa desde que nasceu e tem interesse no coronel. Sempre teve, desde antes da morte de dona Amélia, se quer saber a verdade. Por isso não gosta de nenhuma mulher que apareça aqui.
Ela suspeita de mim, Clarice disse baixinho. Ela suspeita de todo mundo. Rosa respondeu. Mas dona Margarida não é assim. Aquela senhora tem coração bom e olho clínico também. Se ela desconfiou de algo, não vai espalhar. Não é do tipo. Clarice queria acreditar nisso. Precisava acreditar. Mas naquela noite, pela primeira vez em semanas, os pesadelos voltaram.
Sonhou com Fernando com seu casamento na catedral de Salvador. Sonhou com as irmãs Tavares apontando dedos acusadores. Sonhou com sua barriga crescendo e crescendo até que todos pudessem ver. até que não houvesse mais como esconder. Acordou em suor frio, as mãos protetoras sobre o ventre que começava a arredondar.
Quanto tempo mais teria? Junho estava chegando. Julho viria em seguida. Em agosto certamente não conseguiria mais esconder. E então o quê? Clarice não tinha resposta. Apenas o medo constante e corrosivo de que tudo que havia conseguido construir ali, a frágil segurança, a amizade de Helena, o respeito dos empregados, seria destruído quando a verdade viesse à tona, porque a verdade sempre vinha à tona. Era apenas uma questão de tempo.
Junho chegou ao recôncavo, trazendo consigo as primeiras chuvas da estação. Eram chuvas tropicais, violentas e súbitas, que caíam do céu cinzento como cortinas d’água, encharcando os canaviais e transformando as estradas de terra em rios de lama vermelha. E depois passavam tão rapidamente quanto vinham, deixando o ar perfumado e lavado, o sol rompendo entre as nuvens dispersas, como se nada houvesse acontecido.
Clarice estava no Engenho São Teodoro há seis semanas e naquele tempo havia acontecido algo que ela não esperava. Começara a sentir-se em casa. Era estranho, quase perturbador, como aquele lugar, tão diferente de tudo que conhecera em Santo Amaro, havia se tornado seu refúgio. Talvez fosse a rotina reconfortante. Acordar com o canto dos galos, tomar café com rosa na cozinha cheirosa, subir para a sala de costura onde Helena a esperava com ansiedade mal contida, as tardes tranquilas, trabalhando em suas rendas, enquanto ouvia o zum distante da
moenda a vapor, ou talvez fosse as pessoas. Rosa com sua sabedoria prática e sua proteção discreta. Benedito, que sempre a cumprimentava com respeito quando havia nos jardins. Joaquina, que começara a lhe pedir conselhos sobre bordados para seu próprio enxoval, a menina estava prometida a um rapaz de uma fazenda vizinha. E Helena.
Ah, Helena! A menina havia florescido nas últimas semanas como uma flor que finalmente recebe sol após longa sombra. Seus olhos azuis, antes tão tristes, agora brilhavam com curiosidade e alegria. Ela ria, um som cristalino e puro que ecoava pela casa grande, fazendo até Rosa sorrir.
E falava incessantemente, compensando anos de silêncio, contando histórias, fazendo perguntas, compartilhando sonhos. Quando eu crescer, ela declarara numa manhã enquanto lutava com um ponto particularmente difícil. Quero fazer rendas tão bonitas quanto as suas, senorita Clarice, e vou fazer um vestido inteiro de renda para meu casamento como as princesas da Europa.
Clarice rira, mas seu riso tinha um toque de melancolia, porque sabia que não estaria ali para ver Helena crescer, para vê-la se tornar a jovem dama. que prometia ser. Em poucas semanas, talvez dois meses no máximo, sua barriga estaria grande demais para esconder e então teria que partir. A gravidez avançava inexoravelmente.
Clarice estava agora com 4 meses e meio. Sua cintura havia engrossado o suficiente para que ela tivesse que ajustar suas saias, soltando costuras e adicionando painéis de tecido. Seus seios estavam maiores, mais sensíveis. E pela manhã, as náuseas ainda a assaltavam ocasionalmente, embora não tão violentamente quanto antes. Ela havia começado a sentir o bebê se mover.
Pequenos tremores no início, como borboletas batendo asas dentro dela. Agora eram chutes definitivos, principalmente à noite quando se deitava. Uma vida crescendo, florescendo, completamente alheia ao escândalo que sua existência causaria. Clarice mantinha suas roupas cada vez mais largas, usava chales mesmo no calor e rezava para que ninguém notasse.
Rosa sabia, é claro, e Clarice suspeitava que tia Josefa, em suas cartas ocasionais, mantinha Rosa informada sobre quanto tempo Clarice ainda poderia manter o segredo. Mas os outros, o coronel Teodoro Vasques de Albuquerque, permanecia um enigma para Clarice. seis semanas que estivera ali, ela o vira apenas em momentos breves e formais. Ele trabalhava nos canaviais desde o amanhecer até o anoitecer, supervisionando pessoalmente a colheita, verificando a qualidade do açúcar na casa de Purgar, negociando com compradores que vinham de Salvador. Quando estava em casa, jantava sozinho
em seu escritório, revisando livros de contabilidade, escrevendo cartas comerciais. Raramente via a Helena, apenas para desejar-lhe boa noite quando a menina já estava de camisola, pronta para dormir. E nesses momentos, Clarice via a dor em seus olhos, a maneira como ele olhava para a filha, como se visse através dela para alguém que não estava mais ali. Ele se parece tanto com mamãe.
Helena havia sussurrado uma noite após seu pai sair de seu quarto. Papai diz que tem os olhos dela, o cabelo dela. Acha que por isso ele não consegue me olhar muito tempo? Porque dói demais. Clarice abraçara a menina sem palavras para confortar aquela dor tão profunda e tão injusta.
Mas nas últimas semanas algo começara a mudar. Pequenas coisas quase imperceptíveis. Teodoro começara a jantar na sala de jantar ao invés de se trancar no escritório. Não falava muito, mas estava presente. E às vezes Clarice o via parado na porta da sala de costura, observando Helena trabalhar em seus bordados, um olhar indecifravo, normalmente austero.
Uma vez ele havia entrado na sala quando Helena estava mostrando orgulhosamente a Clarice uma toalha de mão que havia terminado. Seu primeiro trabalho completo. Papai, olha! A menina exclamara. Fiz sozinha. Bem, quase sozinha. A senrita Clarice me ajudou com os cantos, mas o resto foi tudo eu. Teodoro pegara a toalha, examinando os pontos cuidadosamente. Está muito bem feito, ele dissera finalmente.
E havia surpresa genuína em sua voz. Sua mãe ficaria orgulhosa. Helena brilhara como o sol e Clarice, observando a cena, sentira algo apertar em seu peito. Aquele homem amava sua filha desesperadamente. Isso era óbvio em cada olhar, em cada palavra cuidadosa. Mas a dor da perda o havia fechado. Transformara-o numa versão diminuída de si mesmo. Não era diferente de Helena percebera Clarice.
pai e filha, ambos presos em prisões separadas de luto, incapazes de alcançar um ao outro através das barras de sua dor. Foi numa tarde de sexta-feira, quando nuvens pesadas se acumulavam no horizonte, prometendo tempestade, que tudo mudou.
Clarissa estava na sala de costura com Helena, trabalhando numa toalha de altar encomendada pela capela do engenho. A menina estava do outro lado da mesa praticando rendas de birro. Seus dedos ainda eram desajeitados com os birros, mas ela persistia com determinação admirável. “Senhorita Clarice”, Helena perguntou de repente. “Você já amou alguém?” A pergunta pegou Clarice desprevenida.
Ela olhou para a menina, viu seus olhos azuis fixos nela com curiosidade inocente. Por que pergunta isso, querida? Helena deu de ombros. Rosa estava contando para Joaquina ontem que o rapaz dela, o Bastião, veio pedir a mão dela ao pai e elas estavam falando sobre amor, sobre como saber quando é amor verdadeiro.
E eu fiquei pensando, como é que a gente sabe? Clarice pousou sua almofada de Bilros, considerando cuidadosamente suas palavras. “Eu pensei que sabia”, ela disse finalmente. “Pensei que amava alguém, mas descobri que o que sentia era era mais necessidade que amor. Necessidade de não estar sozinha, de ter alguém, não é a mesma coisa.” “E amor verdadeiro, como é amor verdadeiro?” Clarice disse lentamente: “É quando você quer o bem da pessoa, mesmo que isso não inclua você.
É quando você aceita a pessoa com todas as suas falhas. É quando ela hesitou. É quando você escolhe amar todos os dias, mesmo quando é difícil, como papai e mamãe. Helena disse com convicção. Rosa diz que eles se amavam muito, que papai nunca olhou para outra mulher depois que conheceu mamãe. Deve ter sido um amor muito especial. É por isso que ele está tão triste. A menina continuou sua voz ficando pequena.
Porque amor verdadeiro não desaparece só porque a pessoa morre. E às vezes eu fico com raiva da mamãe por ter ido embora e deixado o papai tão sozinho. Mas então me sinto mal por estar com raiva. Porque ela não escolheu morrer. Escolheu. Clarice se levantou e foi até Helena, ajoelhando-se ao lado de sua cadeira.
Não, querida, sua mãe não escolheu e você tem todo o direito de sentir raiva e tristeza. e qualquer coisa que sinta. Mas sabe o que eu acho? Acho que sua mãe ficaria triste de ver você e seu pai tão fechados na dor. Acho que ela gostaria que vocês vivessem, que fossem felizes, que se amassem um ao outro. Helena abraçou Clarice repentinamente com força. Eu te amo, senhorita Clarice.

Ela sussurrou. Você me faz lembrar dela, sabia? Não no jeito de parecer, mas no jeito de fazer eu me sentir segura. Clarice sentiu lágrimas queimar em seus olhos. Abraçou a menina de volta, inalando o cheiro de sabonete de rosa em seus cabelos louros. “Eu também te amo, Helena”, ela sussurrou de volta. Mais do que você imagina. E era verdade.
Em seis semanas, aquela menina havia preenchido um espaço no coração de Clarice, que ela nem sabia que existia. Helena não era filha dela, nunca seria. Mas o amor que sentia era tão real, tão profundo quanto qualquer amor maternal poderia ser. Foi nesse momento que a tempestade chegou. Começou com um vento súbito que fez as janelas baterem e as cortinas voarem.
Depois vieram os raios, iluminando o céu escuro com luz branca e cegante. E então a chuva, não em gotas, mas em torrentes, como se os céus tivessem se aberto completamente. Helena correu para a janela fascinada. Olha como está forte. Clarice se juntou a ela, observando a chuva transformar o mundo exterior num borrão cinzento.
Os jardins desapareceram sob o dilúvio. Os canaviais, ao longe eram apenas sombras indistintas. Era bonito e aterrorizante ao mesmo tempo. Então, ouviram gritos lá embaixo, vozes masculinas, urgentes, assustadas. Clarice e Helena correram para o corredor e desceram as escadas.
Na entrada principal, Benedito estava encharcado até os ossos, água escorrendo de suas roupas e formando poças no chão de mármore. Rosa estava com ele, seu rosto grave. “O que aconteceu?”, Clarice perguntou. Benedito olhou para ela e havia pânico real em seus olhos. É o coronel. O muro de contenção do reservatório rachou com a chuva.
Ele foi verificar sozinho, mandou o resto de nós voltar, mas faz meia hora e ele não volta. E o rio está subindo rápido com essa chuva toda. Meu Deus! Rosa murmurou. Helena agarrou a mão de Clarice, seus olhos arregalados de medo. Papai, nós vamos lá. Clarice se ouviu dizer antes mesmo de pensar. Onde fica o reservatório? Moça, você não pode ir com esse tempo. Benedito protestou.
É perigoso. E deixar o coronel lá sozinho. Enquanto perdemos tempo discutindo, ele pode estar ferido. Pode estar. Ela não terminou a frase não na frente de Helena. Onde fica? Benedito hesitou, depois suspirou. Nos fundos da propriedade, perto do rio. Mas eu vou. Você, Rosa interrompeu. Vai reunir os outros homens e ir pelo caminho principal com lanternas e cordas.
A senorita Clarice pode cortar pelo jardim e chegar mais rápido. Ela é menor, mais leve, e dois grupos procurando é melhor que um. Não era lógica sensata e todos sabiam. Mas Rosa olhou diretamente para Clarice e havia algo em seus olhos que dizia: “Eu sei porque você está fazendo isso. Eu sei que você ama esse homem, mesmo que não tenha percebido ainda.
” E Clarice percebeu que era verdade. Em algum momento nas últimas semanas, entre vislumbres dele no jantar, entre as raras ocasiões em que trocavam palavras corteses, entre as histórias que Helena contava sobre ele, Clarice havia começado a amá-lo. Não como amara Fernando, aquele amor fora desesperado, necessitado, construído sobre areia. Isto era diferente.
Era respeito, admiração, uma ternura suave que crescera sem que ela percebesse. “Me mostre o caminho”, ela disse a Benedito. 5 minutos depois, Clarice estava correndo sob a chuva torrencial, completamente encharcada, seu vestido pesado de água grudando em suas pernas. Benedito havia indicado a direção antes de ir reunir os outros.
através do jardim, passando pelo pomar, seguindo o muro de pedra até o reservatório. A chuva era tão forte que Clarice mal conseguia enxergar a poucos metros à frente. Seus pés escorregavam na grama molhada, galhos de árvores fustigavam seu rosto. Mas ela continuou impulsionada por um medo visceral que não conseguia nomear. Finalmente viu o reservatório. Era uma grande estrutura de pedra.
construída para coletar água da chuva para a irrigação. E sim, um longo rasgão corria pelo muro de contenção, água jorrando através dele como de uma ferida aberta. Coronel! Ela gritou, sua voz mal audível sobre o rugido da chuva e do rio próximo. Coronel Teodoro! Nada, apenas o som da tempestade. Clarice se aproximou do muro, olhando ao redor desesperadamente, e então o viu.
Teodoro estava no pé da estrutura, meio escondido por pedras caídas. estava consciente, mas claramente ferido. Uma viga de madeira havia caído sobre sua perna, prendendo-o. Tentava se libertar, mas a viga era pesada demais e a água subia ao seu redor rapidamente, já chegando à sua cintura. Coronel! Clariss gritou correndo até ele.
Ele levantou a cabeça surpresa estampada em seu rosto ensanguentado. Um corte na testa sangrava profusamente, o sangue misturando-se com a água da chuva. Senrita Almeida, o que você não deveria estar aqui. É perigoso. Clarissou-o, ajoelhando-se na água já alta e tentando levantar a viga. Não se mexeu. Ajude-me, ela gritou. Empurre enquanto eu levanto.
Juntos tensionaram contra a viga. Os músculos de Clarice gritavam de esforço, seu vestido encharcado, tornando cada movimento mais difícil. Mas finalmente, finalmente a viga se mexeu o suficiente para que Teodoro pudesse puxar a perna para fora. Ele gemeu de dor, mas conseguiu ficar de pé, apoiando-se pesadamente em Clarice. “Minha perna”, ele ofegou. “Acho que está quebrada.
” “Precisamos sair daqui”, Clarice disse, olhando ao redor. A água continuava subindo. Em breve, aquela área inteira estaria inundada. Consegue andar se eu apoiar? Vou ter que conseguir”, ele disse através de dentes cerrados. Lentamente, dolorosamente, começaram a se mover. Teodoro era pesado, muito mais pesado que Clarice, e cada passo era agonia para ele.
Mas ela aguentou, colocando o braço dele sobre seus ombros, sua própria mão segurando firme sua cintura, meio carregando, meio arrastando ele para longe do reservatório. Haviam percorrido talvez 50 m quando Teodoro tropeçou. Ambos caíram na lama, Clarice debaixo dele. Por um momento, ficaram assim, ofegantes, exaustos. “Desculpe”, ele murmurou. “Não consigo minha perna.
” “Não importa”, Clarice disse, tentando se levantar. “Vamos tentar de novo. Benedito está vindo com os outros, só precisamos chegar.” Foi então que sentiu uma dor aguda, repentina, atravessando seu abdômen como uma faca. Clarice ofegou suas mãos indo instintivamente para a barriga. Não, não agora, por favor, Deus, não agora, senorita Almeida. A voz de Teodoro estava tensa de preocupação.
Está ferida? Não. Ela mentiu, lutando contra a dor. Estou bem. Vamos. Precisamos continuar. Mas ao se levantar, sentiu algo quente escorrer por suas pernas. Olhou para baixo e viu, mesmo na pouca luz e através da chuva, o vermelho diluindo-se na água e na lama. Sangue. O mundo começou a girar.
Clarice ouviu Teodoro gritar seu nome como se viesse de muito longe. Sentiu braços fortes assegurando antes que caísse completamente e então tudo ficou preto. Quando despertou, estava seca e quente. Não na chuva, não na lama. Estava numa cama macia, coberta por lençóis de linho que cheiravam a alfazema. Luz suave de Lampião iluminava o quarto.
Não seu quarto, percebeu confusamente, mas um muito maior, mais luxuoso. Virou a cabeça e viu Rosa sentada numa cadeira ao lado da cama, tricotando. Quando a mulher mais velha percebeu que Clarice estava acordada, colocou o tricô de lado imediatamente. “Bem-vinda de volta”, ela disse suavemente. Você nos deu um susto terrível. O quê? Onde? A voz de Clarice saiu rouca.
Você está no quarto de hóspedes principal. Benedito e os outros homens os encontraram. Trouxeram você e o coronel de volta. Isso foi às 6 horas. 6 horas. Clarice tentou sentar-se e imediatamente sentiu a dor em seu abdômen. Suas mãos foram para a barriga. O bebê ainda está lá. Rosa disse gentilmente: “Tia Mariana, a parteira da fazenda Sampaio, veio examinar você.
Disse que você teve um sangramento por causa do esforço, mas que o bebê está firme. Você precisa de repouso absoluto por pelo menos uma semana.” Nada de se levantar, nada de trabalhar. Lágrimas de alívio escorreram pelo rosto de Clarice. O bebê estava bem, apesar de tudo, estava bem. “E o coronel?”, ela perguntou. Rosa ficou séria, perna quebrada. Tia Mariana a imobilizou.
Ele vai ficar semanas sem andar direito e tem um corte feio na testa que vai deixar cicatriz, mas está vivo, graças a você. Ele sabe. Clarice sussurrou. Sobre o bebê. Rosa hesitou e aquela hesitação disse tudo. Quando tia Mariana te examinou, o coronel estava no quarto ao lado. Ele insistiu em saber seu estado, já que você havia desmaiado tentando salvá-lo. Tia Mariana teve que contar.
Não havia escolha. Clarice fechou os olhos. Então era isso, estava acabado. Assim que pudesse andar teria que partir, deixar Helena, deixar este lugar que se tornara seu lar, deixar Ele quer falar com você. Rosa disse. Quando você estiver pronta. Disse que é importante. Eu sei o que ele vai dizer. Clarice murmurou.
Que preciso ir embora, que uma mulher na minha condição não pode ficar aqui. Não pode ensinar sua filha. Talvez, Rosa disse, mas havia algo em sua voz que Clarice não conseguia decifrar. Ou talvez não. O coronel é um homem justo e você salvou a vida dele, menina. Isso conta para alguma coisa. Dois dias se passaram antes que Clarice estivesse forte o suficiente para receber visitas além de Rosa.
Helena vinha à porta três vezes ao dia, mas Rosa não a deixava entrar. dizendo que Clarice precisava descansar. Clarice podia ouvir a voz da menina, ansiosa, preocupada, implorando para ver sua professora. Partia o coração de Clarice e não poder confortá-la. Na terceira manhã, Rosa entrou com um vestido limpo.
Arrume-se, ela disse. O coronel vem vê-la dentro de uma hora. Clarice sentiu o estômago apertar de nervosismo, mas a sentiu, deixando Rosa ajudá-la a se vestir, pentear seus cabelos, tornar-se apresentável. Quando Teodoro entrou, mancando pesadamente, apoiado em muletas que Benedito havia improvisado, Clarice estava sentada numa poltrona perto da janela, as mãos cruzadas no colo para esconder o tremor.
Ele parecia exausto, círculos escuros sob, uma bandagem branca na testa, onde o corte havia sido, mas estava limpo, barbeado, vestido apropriadamente, apesar da perna enfaixada. Sentou-se com dificuldade na cadeira oposta à dela, as muletas apoiadas contra a parede. Por um longo momento, apenas se olharam. Foi Teodoro quem falou primeiro.
Você salvou minha vida, ele disse sem preâmbulos. Arriscou a sua própria e a do Ele hesitou, a da criança que carrega para me salvar. Por quê? Clarice não esperava a pergunta. Eu não pensei, senhor. Apenas sabia que precisava ajudar. Rosa me contou. Ele continuou como se ela não tivesse falado. Contou sobre Santo Amaro, sobre o homem que a prometeu casamento e depois a abandonou quando descobriu que estava grávida.
sobre como a sociedade virou as costas para você, sobre como perdeu tudo. Vergonha queimou o rosto de Clarice. Ela baixou os olhos, incapaz de suportar seu olhar. Senrita Almeida, Clarice, olhe para mim, por favor. Relutantemente, ela levantou os olhos.
Não há vergonha no que aconteceu com você, Teodoro disse firmemente. A vergonha é toda do homem que a enganou. que quebrou suas promessas. Você foi vítima, não pecadora. Lágrimas queimaram os olhos de Clarice. A sociedade não vê assim, Senhor. Eu não sou a sociedade, ele disse. E então, para a surpresa completa de Clarice, ele se inclinou para a frente, ignorando a dor óbvia que o movimento causava.
Clarice, nas últimas semanas observei você com minha filha. Vi como ela floresceu sob seus cuidados, como voltou a sorrir, a rir. Vi você transformar uma menina triste e fechada na criança alegre que ela deveria ser. E anteontem vi você arriscar sua vida e a de seu bebê para salvar a minha. Ele fez uma pausa, parecendo escolher cuidadosamente suas próximas palavras.
Sou viúvo há 3 anos. Nesse tempo, tornei-me uma sombra de quem era. Trabalhava para não pensar, para não sentir. Negligenciei minha filha porque vê-la doía demais. Ela se parece tanto com sua mãe, mas você você me mostrou que ainda há vida a ser vivida, que ainda há alegria a ser encontrada, mesmo em meio à dor.
Clarice não sabia onde aquilo ia dar, mas seu coração batia tão forte que ela tinha certeza que ele podia ouvi-lo. “Você está sozinha?”, Teodoro disse: “Sem família, sem futuro certo, com uma criança para criar numa sociedade que a julgará cruelmente. Eu estou sozinho também, afogando-me em luto e trabalho com uma filha que precisa de uma mãe.” Ele fez uma pausa e quando falou novamente, sua voz era firme, decidida. “Case-se comigo, Clarice.
” O mundo parou. Clarice olhou para ele chocada demais para processar as palavras. Eu sei ele continuou rapidamente. Que não nos conhecemos bem. Eu sei que você não me ama. Como poderia? Mas posso oferecer a você o que precisa. Proteção, respeitabilidade, um lar para você e seu bebê. E você pode oferecer a mim o que preciso.
Uma mãe para Helena, companhia. um propósito além do trabalho. Senhor, eu, Clarice começou, mas as palavras se perderam. Pense nisso ele disse, levantando-se com esforço. Não precisa responder agora. Mas Clariss, entenda, não é caridade. É uma proposta mutuamente benéfica. Você me salvou.
Deixe-me salvar você de volta. E com isso ele pegou suas muletas e saiu, deixando Clarice sozinha, com pensamentos que rodopeiavam como folhas num vendaval. A noite caiu sobre o engenho São Teodoro como um manto de veludo negro salpicado de estrelas. Clarissona perto da janela, olhando sem ver para os jardins banhados pelo luar.
A proposta de Teodoro ecoava em sua mente cada palavra gravada em sua memória, como se tivesse sido esculpida em pedra. Case-se comigo, Clarice. Três palavras simples que mudavam tudo. Rosa havia trazido o jantar numa bandeja, caldo de galinha com inhame, pão fresco, doce de coco. Mas Clarice mal havia tocado.
Como poderia comer quando seu mundo inteiro havia virado de cabeça para baixo? Era uma solução. Seria tola em não reconhecer isso. Casada com o coronel Teodoro Vasques de Albuquerque, ela teria tudo que perdera: respeitabilidade, segurança, um lar. Seu bebê nasceria legítimo aos olhos da sociedade, carregaria um nome respeitado.
E Helena, Helena teria a mãe que tanto precisava. Mas seria justo, justo com Teodoro, que merecia mais que um casamento de conveniência com uma mulher arruinada? Justo com Helena, que merecia uma mãe verdadeira, não uma impostora? Justo consigo mesma condenar-se a um casamento sem amor por pura necessidade, exceto que não era completamente sem amor, era.
Clarice podia se enganar sobre muitas coisas, mas não sobre o que sentia quando pensava em Teodoro. Respeito. Sim, gratidão, certamente, mas também aquele aperto no peito quando o via de longe nos canaviais, aquele calor quando seus olhos se encontravam brevemente no corredor, aquela sensação de segurança quando ele falara com ela, firme e gentil.
Não era o amor desesperado e necessitado que sentira por Fernando. Era algo mais profundo, mais sólido, como a diferença entre areia movediça e rocha firme. Mas Teodoro não a amava. Havia sido honesto sobre isso. A proposta era prática, uma solução mutuamente benéfica. Ele ainda amava a sua falecida esposa. Qualquer um podia ver isso no modo como evitava entrar na sala de costura.
que havia sido dela, no modo como seus olhos ficavam distantes quando Helena mencionava a mãe. Clarissa estava tão perdida em pensamentos que não ouviu a batida suave na porta. Apenas quando Rosa entrou trazendo chá fresco, ela se sobressaltou. Não dormiu nada, não é? Rosa disse, não como pergunta, mas como constatação.
Colocou a bandeja numa mesinha e serviu o chá forte, perfumado com capim santo, adoçado com rapadura. Beba, vai ajudar a acalmar. Clarice obedeceu, sentindo o líquido quente descendo por sua garganta. Rosa, ela disse finalmente, o que você faria no meu lugar? A mulher mais velha sentou-se na outra cadeira. suas mãos calejadas, segurando sua própria xícara de chá. Eu suspirou. Menina, eu fui escrava até três anos atrás.
Nasci escrava, cresci escrava, pensei que morreria escrava. Não tinha escolhas, não tinha nada que fosse meu, nem meu próprio corpo. Então, quando o coronel nos libertou, antes mesmo da princesa assinar aquela lei, sabe o que foi? Foi como nascer de novo. Ela fez uma pausa bebendo seu chá. O coronel é um homem bom, não perfeito.
Nenhum homem é, mas bom, justo. Quando a febre levou meu filho anos atrás, ainda no tempo do cativeiro, ele chamou médico de Salvador. Pagou do próprio bolso, não adiantou. Meu menino se foi igual, mas ele tentou. Quantos senhores fariam isso? Clarice sentiu lágrimas queimar em seus olhos.
Não sabia que Rosa havia perdido um filho. O que estou dizendo? Rosa continuou. É que aquele homem ali honra suas palavras. Se ele diz que vai cuidar de você e do seu bebê, vai. Se diz que vai dar nome e proteção, vai dar. A pergunta não é se você pode confiar nele, é se você consegue viver num casamento sem paixão.
Mas havia paixão no seu casamento? Clarice perguntou suavemente. Rosa sorriu, um sorriso triste, mas doce. Havia. Meu Jeremias, que Deus o tenha, era um homem de fogo. Me amou desde o dia que me viu, com 15 anos, nova na fazenda. brigou com o feitor para poder casar comigo e quando a febre o levou 10 anos atrás, pensei que morreria também de dor.
Ela limpou os olhos com o avental. Mas sabe o que aprendi? Que amor de paixão queima forte e rápido. Amor de respeito, de parceria, de escolha diária. Esse cresce devagar, mas dura. E às vezes, menina, o segundo tipo de amor é mais forte que o primeiro. Clarice pensou sobre isso enquanto Rosa saía silenciosamente. Amor que cresce devagar.
Amor construído sobre fundação sólida, ao invés de paixão tempestuosa. Seria possível? Ela e Teodoro poderiam construir algo real, algo verdadeiro, mesmo começando de um arranjo prático? Só havia um jeito de descobrir. Na manhã seguinte, quando Rosa veio verificar como ela estava, Clariss: “Diga ao coronel que aceito.
Aceito me casar com ele. Se Rosa ficou surpresa, não demonstrou. Apenas a sentiu, um pequeno sorriso tocando seus lábios. Vou avisar. Ele vai querer falar com você. Teodoro veio uma hora depois, ainda mancando, mas sem as muletas desta vez, apenas uma bengala de madeira escura.
Sentou-se com cuidado e Clarice percebeu que ele estava nervoso. Suas mãos apertavam o cabo da bengala com força desnecessária. Rosa disse que você aceita. Ele começou. Sim. Clarice confirmou, mantendo sua voz firme. Mas tenho condições. Ele ergueu uma sobrancelha surpreso. Condições? Sim. Clarissou fundo.
Primeira, Helena precisa saber a verdade sobre o bebê, sobre tudo. Não quero começar nossa vida familiar com mentiras. Teodoro assentiu lentamente. Concordo. E segunda, segunda, este casamento pode começar como arranjo, mas eu gostaria, gostaria de tentar fazer dele algo real. Com tempo, se você estiver disposto. Algo mudou na expressão de Teodoro. Seus olhos, normalmente tão guardados, se suavizaram.
Eu também gostaria disso, ele disse baixinho. Minha primeira esposa, Amélia, eu a amei profundamente. Quando a perdi, pensei que nunca mais sentiria nada além de dor. Mas você, você trouxe vida de volta a esta casa, trouxe alegria de volta à minha filha e eu gostaria de ter a chance de conhecê-la melhor, de construir algo verdadeiro entre nós.
Então, estamos de acordo. Clarice disse. sentindo algo quente e esperançoso florescer em seu peito. “Estamos”, Teodoro confirmou. Hesitou, depois estendeu a mão. “Parceiros.” Clarice colocou sua mão na dele. Sua palma era calejada do trabalho, grande o suficiente para envolver completamente a dela. “Parceiros?”, ela concordou.
Naquela tarde, Rosa ajudou Clarice a descer para a sala de estar, onde Helena aguardava. claramente confusa sobre porque havia sido chamada. A menina correu para Clarice assim que a viu. Senhorita Clarice, está melhor? Rosa não me deixava vê-la e eu estava tão preocupada. E Estou bem, querida. Clarice a interrompeu gentilmente, sentando-se no sofá e puxando Helena para sentar-se ao seu lado.
Teodoro sentou-se na poltrona oposta, sua perna enfaixada estendida. Helena, ele começou, sua voz séria, mas gentil. Precisamos conversar com você sobre algo importante. A menina olhou de um para o outro, seus olhos azuis arregalados. Estou em apuros? Não, meu amor, Clarice disse rapidamente. Não é nada disso.
É que seu pai e eu temos novidades para você. Vamos nos casar, Teodoro disse sem rodeios. A senhorita Clarice concordou em ser minha esposa e sua mãe. Helena piscou, depois piscou de novo. Seu rosto passou por uma série de expressões, surpresa, confusão e, então, para a alegria de Clarice, pura e radiante felicidade. “Sério?”, ela quase gritou.
“Sério mesmo?” “Sério?”, Clarice confirmou, sorrindo. “Mas isso é maravilhoso!”, Helena, exclamou, jogando os braços ao redor do pescoço de Clarice. É a melhor notícia do mundo inteiro. Você vai morar aqui para sempre. Vai ser minha mãe de verdade. Teodoro limpou a garganta. Helena, há mais uma coisa que você precisa saber.
A menina se afastou de Clarice, ainda sorrindo. O que, papai? A senhorita Clarice. Clarice está esperando um bebê. Você vai ter um irmãozinho ou irmãzinha? Helena processou isso por um momento. Como a prima Luía teve, ela ficou com a barriga grande e depois nasceu o bebê Tomás? Exatamente assim. Teodoro confirmou. Para a surpresa de ambos os adultos, Helena apenas encolheu os ombros.
Está bem. Vou gostar de ter um irmãozinho. Posso ensinar ele a abordar quando crescer? Clarice riu, lágrimas de alívio nos olhos. Pode sim, querida. Mas Helena, Teodoro continuou claramente determinado a ser completamente honesto. Precisa entender que algumas pessoas podem dizer coisas maldosas sobre isso.
Podem dizer que o bebê que não é apropriado. Você precisa estar preparada. Helena franziu semo pensativa, depois olhou diretamente para o pai com uma seriedade além de seus 8 anos. Papai, uma vez você me disse que o que as pessoas dizem importa menos que o que sabemos ser verdade em nossos corações. Isso ainda vale? Teodoro piscou claramente pego de surpresa.
Sim, sim, ainda vale. Então não me importo com o que as pessoas dizem, Helena declarou. Vou ter uma mãe e um irmãozinho, é tudo que importa. E com a simplicidade das crianças, ela havia aceito completamente aquilo que a sociedade adulta acharia escandaloso. Os preparativos para o casamento começaram imediatamente.
Teodoro queria casar o mais rápido possível, parcialmente para estabelecer a legitimidade do bebê, parcialmente porque, como ele disse, sem rodeios, não vejo sentido em adiar o inevitável, mas primeiro precisavam da aprovação da igreja. O padre Sebastião foi convocado ao engenho três dias depois.
Era um homem de seus 60 anos, cabelos brancos, rosto marcado pelo sol inclemente do recôncavo. Havia sido padre em Santo Amaro por décadas, antes de ser transferido para a pequena capela do distrito, onde ficava o engenho. Quando Rosa o conduziu ao escritório de Teodoro, onde Clarice esperava nervosamente, o padre a reconheceu imediatamente.
Senhorita Almeida”, ele disse, “avia surpresa genuína em sua voz. Não esperava encontrá-la aqui. Padre Clarice fez uma reverência, seu estômago apertado. Teodoro gesticulou para as cadeiras. Padre Sebastião, obrigado por vir. Como deve imaginar, preciso discutir um assunto delicado com o senhor.
O padre sentou-se, seus olhos indo de Teodoro para Clarice com crescente compreensão. Imagino que sim. Desejo me casar com a senrita Almeida, Teodoro disse diretamente. O mais rápido possível. Preciso que o senhor realize a cerimônia. O padre Sebastião juntou as pontas dos dedos, sua expressão cuidadosamente neutra.
Coronel, com todo respeito, estou ciente da situação da senhorita. Há rumores mesmo aqui, longe de Santo Amaro. Rumores, Teodoro disse friamente, de um homem sem honra que a abandonou após prometer casamento. Rumores de uma sociedade cruel que preferiu julgar a vítima ao invés do perpetrador. Ainda assim, o padre começou.
A igreja tem certas a igreja, Teodoro o interrompeu, sua voz ganhando um tom de aço. Ensina misericórdia, ensina perdão. Ensina que Cristo himself defendeu a mulher apanhada em adultério, dizendo: “Quem estiver sem pecado, que atire a primeira pedra”. Ou o Senhor discorda dos ensinamentos de Cristo? O padre ficou vermelho. Claro que não discordo, mas então o senhor realizará o casamento, Teodoro disse.
E não era um pedido. Ou preciso lembrar o senhor de que esta capela foi construída com recursos da minha família, que o salário do senhor venha em parte das doações deste engenho, que a reforma do telhado no ano passado foi paga do meu bolso. Clarissa engasgou, chocada com a dureza. Teodoro. Mas o coronel ergueu a mão, seus olhos nunca deixando o padre. Não estou ameaçando, padre, estou lembrando.
Nunca pedi nada em troca da minha generosidade para com a igreja, mas agora estou pedindo. Uma cerimônia simples, discreta, é tudo que quero. O padre Sebastião ficou em silêncio por um longo momento. Quando falou, sua voz era mais suave. E o bebê será meu filho, Teodoro disse firmemente.
Em todos os aspectos que importam, levará meu nome, terá minha proteção, meu amor. O padre olhou para Clarice. E você, minha filha, está certa disso? Não está sendo coagida? Não, padre, Clarice disse, encontrando sua voz. Estou certa. O coronel me ofereceu bondade quando o mundo me mostrou crueldade. Ofereceu honra quando fui deshonrada. Ele é um homem bom e serei afortunada em ser sua esposa.
Algo mudou na expressão do padre. Talvez fosse a sinceridade em sua voz. Talvez fosse a firmeza com que Teodoro a defendera. Ou talvez, pensou Clarice, fosse simplesmente que até padres podem ter momentos de compaixão verdadeira. Muito bem, ele disse. Finalmente, realizarei a cerimônia, mas haverá condições.
Clarice deve fazer confissão, deve demonstrar arrependimento verdadeiro. Arrependimento por quê? Teodoro perguntou perigosamente. Por ter confiado, por ter amado? Arrependimento? O padre disse cuidadosamente, por relações fora do sacramento do matrimônio. São as regras da igreja, coronel, não minhas. Clarice colocou a mão no braço de Teodoro, sentindo atenção em seus músculos.
Está bem”, ela disse baixinho. “Farei a confissão.” Teodoro olhou para ela e ela viu protesto em seus olhos, mas assentiu lentamente. A confissão foi no dia seguinte, na pequena capela do engenho. Era uma construção linda, paredes caiadas de branco, teto abobado, pintado com cenas bíblicas desbotadas, um altar de madeira entalhada, imagens de santos em seus nichos, cheirava a incenso e cera de vela.
Clarice ajoelhou-se no confessionário, suas mãos tremendo enquanto fazia o sinal da cruz. Perdoe-me, padre, porque pequei. Contou tudo. Fernando, as promessas, a noite de janeiro, a gravidez, o abandono. E sim, disse que lamentava. Lamentava ter sido ingênua, lamentava ter confiado. Lamentava ter entregado algo tão precioso a alguém tão indigno, mas não lamentava o bebê.
Isso ela se recusou a dizer. O padre Sebastião deu-lhe sua penitência, três rosários, doação para os pobres e a promessa de ser esposa fiel e virtuosa. Clarice aceitou tudo. Quando saiu da capela, Teodoro a esperava sob a sombra de um jambeiro. Aproximou-se mancando, apoiando-se na bengala. Está bem? Ele perguntou. Estou, ela disse. E era verdade. Sentia-se leve.
como se um peso tivesse sido tirado de seus ombros. “O padre marcou a cerimônia para sábado próximo.” Teodoro disse: “Será pequena, apenas família próxima e pessoas do engenho. Espero que esteja bem.” “Está perfeito,” Clarice disse. Ele hesitou depois. Há algo que preciso lhe dar. Do bolso de sua camisa, tirou um pequeno estojo de veludo.
Abriu, revelando um anel, ouro simples, desgastado pelo tempo, com uma pequena esmeralda encrustada. “Era de minha avó”, ele explicou. “E depois de minha mãe? Amélia nunca usou. Ela tinha as próprias joias de família, mas eu gostaria, se você aceitar, que fosse seu. Clarice olhou para o anel, sentindo emoção apertar sua garganta. É lindo.
Posso? Teodoro perguntou, tirando o anel do estojo. Ela estendeu a mão e ele deslizou o anel em seu dedo. Ficou perfeito, como se tivesse sido feito para ela. “Obrigada”, ela sussurrou. Não. Ele disse suavemente. Obrigado a você por me dar uma segunda chance de ter uma família. Nos dias que se seguiram, o engenho fervilhava de preparativos.
Rosa comandava tudo com eficiência militar, limpando a capela, preparando o banquete, organizando flores dos jardins. Joaquina e outras mulheres do engenho costuravam toalhas novas para as mesas. Benedito e os homens preparavam porcos para assar, montavam tendas nos jardins para acomodar os convidados e Clarice, com ajuda de Rosa e Helena, trabalhava em seu vestido de noiva.
Não seria branco. Ela não tinha esse direito e ambas sabiam disso. Em vez disso, era azul celeste, a cor do céu da Baia, feito de algodão fino com sobreposição de organza. A saia era simples, mas elegante, e o corpete, ah, o corpete era a obra prima.
Clarice bordara a mão cada centímetro dele, flores tropicais em fios de seda, hibiscos, jasmins rosas. Helena a havia ajudado, seus pontinhos infantis misturados aos profissionais de Clarice, tornando o vestido ainda mais especial. É o vestido mais bonito do mundo,” Helena” declarou quando ficou pronto. “Você vai ser a noiva mais linda”.
Mas enquanto os preparativos avançavam, Clarice sabia que nem tudo seria fácil. As notícias se espalharam, é claro. No recôncavo, novidades viajavam mais rápido que cavalos. Duas noites antes do casamento, houve visitantes. Dona Margarida Sampaio chegou com sua filha Carolina.
Mas ao contrário da visita anterior, desta vez não havia cortesia fingida nos olhos de Carolina. Coronel, Carolina disse assim que foram recebidos na sala de visitas. Certamente o senhor não vai realmente se casar com ela. Teodoro, que estava de pé perto da lareira, endireitou-se com minha noiva, a senrita Almeida? Sim, vou. No sábado. Mas ela está grávida.
Carolina exclamou como se Teodoro não soubesse. Grávida de outro homem é um escândalo. O único escândalo, Teodoro disse friamente. Foi o modo como ela foi tratada pelo homem que a enganou e pela sociedade que a julgou. Carolina. Dona Margarida interveio suavemente. Talvez devêssemos não, mamãe. A jovem a interrompeu.
Alguém precisa fazer o coronel ver razão. Ele está jogando fora sua reputação, o nome de sua família, tudo. E por quê? Por uma uma cuidado, Teodoro disse. E havia perigo real em sua voz. Muito cuidado com a próxima palavra que escolher. Clarice, que estava sentada quieta no sofá, levantou-se. Talvez eu deva me retirar. Não. Teodoro disse firmemente.
Você fica. Esta é sua casa agora. Estas pessoas são nossas visitantes. Dona Margarida levantou-se também, colocando a mão no braço da filha. Coronel, peço desculpas pelo comportamento de Carolina. Ela está preocupada com sua felicidade. Está preocupada, Teodoro disse, seus olhos indo para Carolina, porque tinha esperanças de se tornar senhora deste engenho.
Esperanças que nunca foram correspondidas, nem encorajadas. Carolina ficou branca, depois vermelha. Como ousa? Ouso, Teodoro disse, porque é minha casa e minha vida. E escolhi compartilhá-la com Clarice. Se isso ofende, as portas estão abertas para sua saída. Foi dona Margarida quem salvou a situação. Soltou um suspiro longo, depois olhou diretamente para Clarice.
Senrita Almeida, posso falar francamente? Por favor, Clarice disse, sua voz mais firme do que se sentia. Vi muita coisa em minha vida. Perdi um filho. Criei esta aqui sozinha depois que meu marido morreu. Sei como a sociedade pode ser cruel, especialmente com mulheres. E sei também quando um homem está fazendo a escolha certa. Ela olhou para Teodoro. O coronel é meu vizinho há 20 anos.
Viu casar-se com Amélia, viu sofrer quando ela morreu e nestes últimos três anos viu definhar como planta sem sol. Mas estas últimas semanas, desde que a senhorita chegou, vi vida retornar aos olhos dele. Vi Helena feliz novamente. Voltou-se para Clarice. Então, senhorita, seja bem-vinda à família e saiba que tem pelo menos uma aliada entre a sociedade local.
Estendeu a mão e Clarice a apertou, sentindo lágrimas queimar em seus olhos. Mamãe! Carolina protestou. Chega, Carolina. Dona Margarida disse firmemente: “Vamos para casa e você vai pensar muito sobre gentileza e compaixão”. Quando partiram, Teodoro se aproximou de Clarice. “Sinto muito por isso. Não precisa pedir desculpas”, Clarice disse. Ela não disse nada que eu não esperasse ouvir.
Ainda assim, ele disse, pegando sua mão, a que usava o anel de esmeralda. Você não merece ser tratada assim e prometo, enquanto eu viver, ninguém a tratará com desrespeito em minha presença. Era uma promessa feroz, quase violenta em sua intensidade.
E Clarice percebeu que Teodoro Vasques de Albuquerque era um homem que mantinha suas promessas. Sábado amanheceu claro e dourado. Clarice acordou com borboletas no estômago, nervosismo misturado com algo que poderia ser esperança. Rosa a ajudou a se vestir, prendendo cada botão do vestido azul celeste, arrumando seus cabelos em tranças elaboradas, entrelaçadas com flores de jasmim do jardim.
Não havia vé, outra concessão à sua situação, mas havia uma pequena coroa de flores que Helena insistira em fazer. Está linda! Helena disse, seus olhos brilhando. Papai vai achar que você é uma princesa! A cerimônia foi ao meio-dia, quando o sol estava alto, mas a brisa do mar trazia alívio do calor. A capela estava cheia, não da alta sociedade do recôncavo, mas dos trabalhadores do engenho, dos vizinhos próximos, das pessoas simples que conheciam Teodoro como homem justo.

Benedito a conduziu até o altar, fazendo o papel de pai que ela não tinha. Suas mãos tremiam enquanto caminhava pelo corredor estreito, mas então viu Teodoro esperando. Ele usava seu melhor terno, preto, formal, com colete de seda cinza. Havia barbeado, penteado seus cabelos, parecia imponente, aristocrático, mas o que prendeu Clarice foram seus olhos.
Neles ela viu não julgamento, não piedade, mas algo que poderia com o tempo transformar-se em amor. A cerimônia foi breve. O padre Sebastião conduziu os votos tradicionais. Teodoro respondeu com voz firme: “Clarice, com voz tremendo apenas ligeiramente. Aceita este homem como seu legítimo esposo para amá-lo e respeitá-lo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte o separe.
Aceito.” Aceita esta mulher como sua legítima esposa para amá-la e respeitá-la na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte o separe? Aceito. Trocaram anéis. O dela já estava em seu dedo, mas Teodoro havia encomendado um para si, ouro simples e forte.
Depois o padre disse: “Pelo poder que me foi conferido pela Santa Igreja, eu os declaro marido e mulher. O que Deus uniu não separe o homem. E então Teodoro se inclinou e a beijou. Foi casto, breve, respeitoso, mas suficiente para fazer o coração de Clarice acelerar. Quando se viraram para os convidados, havia aplausos e gritos de alegria. Helena correu para abraçá-los.
Rosa chorava discretamente. Benedito sorria amplamente e lá fora, nas árvores do jardim, os pássaros cantavam como se celebrassem. Também a festa que se seguiu foi alegre e barulhenta. Mesas montadas nos jardins gemiam sob o peso da comida. Porco assado, galinha ensopada, farofa, pirão, arroz de coco, cocadas, bolos de tapioca. Havia música.
Violeiros tocando modinhas, lundos, até alguns batuques discretos que faziam os mais velhos sorrirem com nostalgia. Clarice e Teodoro se sentaram à mesa principal, recebendo os cumprimentos dos convidados. A maioria foi gentil, sincera. Alguns foram cautelosos, mas educados, e alguns, muito poucos, foram frios, mas não importava.
Porque quando Clarice olhou ao redor, viu alegria genuína nos rostos das pessoas. Viu Helena radiante dançando com Joaquina. Viu Rosa distribuindo comida com satisfação maternal. Viu trabalhadores do engenho celebrando com seus patrões como família, não como servos. E viu Teodoro ao seu lado, seu marido agora, olhando para ela com algo que poderia, apenas poderia ser o começo de algo precioso.
Quando o sol começou a se pôr, pintando o céu de laranja e rosa e dourado, Teodoro ofereceu sua mão. “Dançamos?” Clarice aceitou, deixando-se ser guiada para o espaço improvisado de dança. Seus movimentos eram cuidadosos. A perna dele ainda não estava completamente curada, mas enquanto dançavam lentamente sob o céu em chamas, Clarice sentiu pela primeira vez em meses que talvez, apenas talvez, tudo ficaria bem. Feliz? Teodoro perguntou baixinho. Sim, Clarice respondeu.
Estou feliz. E era verdade. Contra todas as probabilidades, contra tudo que a sociedade dizia, ela era feliz. tinha um marido honrado, uma filha amorosa, um lar e a promessa de um futuro que, embora incerto, era cheio de possibilidades. Quando a noite caiu completamente e as estrelas emergiram, brilhando como diamantes em veludo negro, Clarice olhou para cima e fez uma prece silenciosa de gratidão.
E em algum lugar, ela gostava de pensar, almas bondosas sorriam. tia Benedita, seus pais, talvez até dona Amélia, que certamente estaria feliz de ver sua filha amada novamente. A jornada estava apenas começando, mas pela primeira vez, desde que Fernando a abandonara, Clarice não tinha medo do futuro.
O casamento foi realizado, mas como será a vida de casados? O amor verdadeiro florescerá? Não perca a próxima cena da história. Deixe seu like, inscreva-se e comente o que achou desta cerimônia emocionante. Os primeiros dias de casamento foram estranhos e delicados, como aprender a dançar uma música que nenhum dos dois conhecia completamente.
Clarice mudou-se para o quarto principal do casarão, o antigo quarto de Teodoro e Amélia. Era amplo e luminoso, com janelas altas que davam para os jardins, uma cama enorme de jacarandá entalhado, cômodas de madeira nobre e um grande espelho em moldura dourada. Havia ainda vestígios de Amélia, um pente de prata na penteadeira, um chale de seda dobrado sobre uma cadeira, um livro de poesias em francês na mesinha de cabeceira.
Na primeira noite, Clarice ficou parada no centro do quarto, incerta. Teodoro entrou mancando, sua bengala batendo no chão de tábuas e percebeu sua hesitação. As coisas de Amélia, ele disse baixinho. Deveria tê-las removido. Foi insensível da minha parte. Não, Clarice disse rapidamente.
Ela foi sua esposa, mãe de Helena, tem todo o direito de estar aqui. Teodoro a olhou por um longo momento. Você é generosa demais. Não sou, Clarice respondeu honestamente. Apenas sei que não estou tentando substituí-la. Estou tentando ser algo diferente, algo meu. Algo mudou na expressão de Teodoro. Ele se aproximou lentamente até ficar diante dela.
“Obrigado”, disse suavemente por entender isso. Houve um momento de tensão, ambos conscientes da cama grande atrás deles, das expectativas que vinham com o casamento. “Mas então Teodoro deu um passo atrás. Minha perna ainda está doendo, ele disse. E Clarice percebeu que era uma desculpa gentil. E você está grávida, cansada da celebração.
Podemos podemos tomar nosso tempo. Não há pressa. Alívio e algo que poderia ser decepção se misturaram no peito de Clarice. “Obrigada”, ela sussurrou. Naquela noite dormiram em lados opostos da grande cama um abismo de lençóis de linho entre eles. Mas era um começo. Os dias estabeleceram uma nova rotina.
Clarice acordava cedo, como sempre, mas agora encontrava Teodoro já vestido tomando café na sala de jantar. Comiam juntos. Ele lia correspondências, ela bordava em silêncio o companheiro. Depois ele ia para os canaviais e ela para a sala de costura com Helena. As tardes eram dedicadas a aprender a gerenciar a casa. Rosa a ensinou os segredos da cozinha baiana, como fazer vatapá que não talha o ponto certo da cocada, o tempero perfeito para a moqueca.
Ensinou-a também a lidar com os empregados, com os fornecedores, com as mil pequenas decisões que uma senhora de engenho precisava tomar. “Você está se saindo bem?” Rosa disse uma tarde enquanto revisavam as contas da semana. “Dona Amélia levou meses para aprender tudo isso. Você está pegando em semanas.
” Tive uma boa professora”, Clarice respondeu com um sorriso. As noites eram o momento mais íntimo. Após o jantar, quando Helena já estava dormindo, Clarice e Teodoro se sentavam na biblioteca, ele em sua poltrona favorita de couro, ela no sofá próximo e conversavam sobre tudo e nada, sobre os livros que ele lia, sobre as rendas que ela fazia, sobre o engenho, sobre política, sobre o mundo em transformação ao redor deles.
A abolição vai mudar tudo”, Teodoro disse numa dessas noites, olhando para o fogo na lareira. Alguns engenhos já estão falindo. Sem mão de obra escrava não conseguem competir. Mas eu acho, espero que seja uma mudança necessária, uma dívida que esta nação precisa pagar. Você libertou seus escravos antes da lei. Clarice comentou.
Rosa me contou porê. Ele ficou em silêncio por um longo momento, porque olhava para eles e via pessoas, não propriedade, pessoas com sonhos, medos, famílias. Como eu poderia continuar mantendo-os em cativeiro e ainda me olhar no espelho? Era nesses momentos que Clarice sentia coração se expandir.
Este homem que a sociedade via apenas como fazendeiro austero, tinha profundidade que poucos percebiam. E lentamente, noite após noite, o abismo na cama foi diminuindo. Primeiro acordavam mais próximos, o calor dos corpos buscando um ao outro inconscientemente durante o sono. Depois começaram a se desejar boa noite com beijos castos na bochecha.
Depois, beijos nos lábios, breves, mas cheios de promessas. Foi numa noite de lua cheia, duas semanas após o casamento, que tudo mudou. Clarice estava grávida de seis meses agora. Sua barriga era redonda e óbvia, o bebê chutando constantemente. Ela estava na cama, vestida em sua camisola de algodão, lendo a luz do lampião. Quando Teodoro entrou, ele parou na porta, olhando para ela, e havia algo diferente em seus olhos, algo quente e suave.
“Posso?”, ele perguntou, apontando para a cadeira ao lado da cama. Claro. Ele sentou-se, seus olhos indo para a barriga arredondada dela. Posso, posso sentir? Clarice sentiu calor subir por suas bochechas, mas a sentiu. Pegou a mão dele e a colocou sobre sua barriga, exatamente onde o bebê estava chutando. Teodoro o ofegou quando sentiu o movimento. “Ele é forte”, disse maravilhado.
“Ou ela”, Clarice corrigiu com um sorriso. “Ou ela, ele concordou. Seus olhos encontraram os dela. Clarice, eu sei que este casamento começou como arranjo, mas eu gostaria, se você estiver disposta, gostaria de tentar fazer dele algo mais. O coração de Clarice acelerou. Eu também gostaria. Bises, posso beijá-la? Ele perguntou sua voz rouca.
De verdade? Em resposta, Clarice puxou-o para mais perto. O beijo foi diferente dos outros, não casto, não breve. Era profundo, explorando, cheio de promessas e possibilidades. Quando se separaram, ambos estavam sem fôlego. Clarice! Teodoro sussurrou contra seus lábios. Você está grávida? Não quero machucá-la ou ao bebê. Não vai, ela assegurou, puxando-o de volta.
Rosa disse que é seguro se formos cuidadosos. E foram cuidados. Deodoro. Tratou-a como porcelana preciosa, cada toque reverente, cada beijo adorador. E quando finalmente se tornaram marido e mulher em todos os sentidos, foi com ternura e respeito que fez Clarice chorar. Depois, deitados entrelaçados, Teodoro acariciava seus cabelos.
Não me arrependo”, ele disse suavemente. “De nada. Você trouxe luz de volta à minha vida e você me salvou.” Clarice respondeu: “Quando eu não tinha esperança, você me ofereceu tudo.” Dormiram juntos pela primeira vez, sem abismos, sem barreiras. E Clarice sentiu pela primeira vez que talvez, apenas talvez este casamento pudesse se tornar o que ela ousara sonhar.
Os meses seguintes passaram em felicidade crescente. A barriga de Clarice crescia e com ela o amor entre ela e Teodoro. Ele tornara-se atencioso ao extremo, insistindo que ela descansasse, trazendo-lhe travesseiros extras, lendo para ela a noite, quando estava cansada demais para segurar o próprio livro. Helena estava encantada com a perspectiva de ser irmã mais velha.
Passava horas conversando com a barriga de Clarice, contando histórias ao bebê ainda não nascido, cantando canções de ninar que Rosa lhe ensinara. Você acha que ele vai gostar de mim?”, ela perguntou preocupada uma tarde. “Ela vai amar você?” Clarice corrigiu gentilmente. Como eu amo! E era verdade.
Clarice amava Helena como se fosse sua própria filha. E Helena, que nunca havia chamado Clarice de mãe antes do casamento, agora o fazia naturalmente, sem pensar. Foi em agosto, quando o calor do recôncavo estava no auge e as chuvas haviam cessado temporariamente que as contrações começaram. Clarice estava na sala de costura com Helena quando sentiu a primeira.
Não era exatamente dor, mas um aperto, uma tensão que percorria seu abdômen como uma onda. parou de bordar esperando. Senhorita mãe Helena corrigiu-se. Está bem? Estou. Clarice começou, mas então veio outra contração mais forte. Na verdade, querida, acho que você deveria chamar Rosa. Helena correu para buscar a cozinheira. Rosa chegou, tomou uma olhada em Clarice e imediatamente assumiu o controle.
Joaquina, mande Benedito buscar tia Mariana imediatamente e mande alguém avisar o coronel nos canaviais. As próximas horas foram um borrão. Clarice foi levada para o quarto, onde Rosa e Joaquina a ajudaram a se deitar. As contrações ficavam mais fortes, mais frequentes. Ela tentava ser corajosa, mas o medo a consumia.
E se algo desse errado? E se perdesse o bebê? E seodoro apareceu suado do trabalho e da cavalgada apressada de volta. Ajoelhou-se ao lado da cama, pegando sua mão. “Estou aqui”, ele disse firmemente. “Não vou a lugar nenhum. Tia Mariana chegou uma hora depois, uma mulher negra de seus 50 anos, ex-escrava que havia aprendido as artes de parteira com sua própria mãe, que por sua vez aprendera com a mãe dela numa linhagem que se estendia de volta à África.
Suas mãos eram firmes e gentis quando examinou Clarice. “Tudo está bem”, ela anunciou. “Mas vai demorar ainda? Primeiro os bebês sempre demoram. Senhor coronel, o senhor precisa sair. Parto não é lugar para homens.” “Não.” Teodoro disse teimosamente: “Fico! Tia Mariana ergueu uma sobrancelha, mas não discutiu. Então, fique longe do caminho e seja útil. Segure a mão dela quando precisar. A tarde deu lugar à noite.
A dor ficava mais intensa a cada hora. Clarice gritava durante as contrações piores, apertando a mão de Teodoro com força suficiente para machucar. Mas ele nunca reclamou, nunca se afastou, apenas ficou ali murmurando encorajamentos. limpando seu rosto com pano úmido, sendo a âncora que ela precisava. “Não consigo.
” Clarice chorou em certo ponto. “Não consigo mais.” “Pode sim, Teodoro” disse firmemente. Você é a mulher mais forte que conheço. Salvou minha vida durante uma tempestade. Enfrentou toda a sociedade de cabeça erguida. Pode fazer isso? E ela podia, tinha que poder. Foi quando o relógio marcava meia-noite que tia Mariana finalmente disse: “Está na hora.
Na próxima contração quero que empurre com toda sua força.” Clarice empurrou e empurrou. empurrou-o até achar que se partiria ao meio. E então, de repente houve alívio e um choro forte, indignado, vivo. É um menino, tia Mariana anunciou erguendo a criança. Um menino lindo e saudável.
Clarice desmoronou de volta nos travesseiros, exausta, mas exultante. Tia Mariana limpou o bebê rapidamente, cortou o cordão, envolveu-o em panos limpos e então o colocou nos braços de Clarice. Ele era perfeito, pequeno, mas robusto, com tufos de cabelo escuro, pele rosada, mãos minúsculas que se agarravam ao ar. Seus olhos, impossíveis de dizer a cor ainda, piscavam na luz do lampião.
“Olá, meu amor”, Clarice sussurrou, lágrimas escorrendo por seu rosto. “Olá, meu filho.” Teodoro estava ao lado dela, olhando para o bebê com expressão de puro assombro. “Posso?”, Ele perguntou hesitante. Clarice transferiu o bebê para os braços de Teodoro com cuidado e viu algo quebrar em seu marido, quebrar e se reconstruir em algo novo.
Lágrimas corriam abertamente por seu rosto enquanto olhava para a criança. “Bem-vindo, pequeno”, ele murmurou. “Bem-vindo à nossa família.” “Como vamos chamá-lo?”, Clarice perguntou. Haviam discutido nomes, mas nunca decidido definitivamente. Teodoro olhou para ela, depois para o bebê, depois de volta para ela.
Joaquim, ele disse, Joaquim Teodoro de Albuquerque, se você concordar. Joaquim era o nome do seu pai, não era? Clarice sentiu nova onda de lágrimas. Que ele se lembrasse desse detalhe, que quisesse honrar sua família. Sim, ela sussurrou. É perfeito. Os dias que se seguiram ao nascimento foram de alegria e adaptação. Joaquim era um bebê bom.
chorava quando tinha fome ou estava molhado, mas geralmente era calmo. Clarice amamentava-o, maravilhada com a sensação, com o instinto que tomava conta dela. Helena estava apaixonada pelo irmão mais novo. Passava horas sentada ao lado do berço cantando para ele, fazendo caretas para fazê-lo sorrir.
E quando Joaquinha agarrava o dedo com sua mãozinha minúscula, Helena brilhava de orgulho. “Ele me conhece”, ela declarava. “Ele sabe que sou a irmã dele.” Teodoro era um pai devotado. Levantava-se de noite quando Joaquim chorava, trocava fraldas sem reclamar, embalava o bebê quando Clarissa estava cansada demais.
E quando segurava o menino, havia tal ternura em seus olhos que ninguém jamais questionaria que aquele era seu filho em todos os sentidos que importavam. O batizado foi marcado para quando Joaquim tivesse um mês. Seria uma celebração grande. Teodoro insistira nisso. Queria que todos vissem, que todos soubessem que este era seu filho legítimo e amado.
Mas dois dias antes do batizado, houve visitantes inesperados. Clarice estava na sala de estar amamentando Joaquim quando Rosa apareceu na porta com expressão grave. Tem gente aqui para ver o coronel”, ela disse, “do santo Amaro, o comendador Ribeiro e o filho dele.” Clarice sentiu o sangue gelar nas veias.
“Fernando, Fernando estava ali. Onde estão?”, ela perguntou sua voz surpreendentemente firme. “Sala de visitas. O coronel foi recebê-los. Disse para você ficar aqui.” Mas Clarice não podia ficar. Não. Quando Fernando estava em sua casa. falando com seu marido, terminou de amamentar Joaquim rapidamente, passou-o para a rosa, ajeitou o vestido e desceu. Parou na porta da sala de visitas.
Fernando estava lá, elegante como sempre, em terno cinza, chapéu na mão, mas havia algo diferente nele. Parecia mais velho, cansado e infeliz. Ao lado dele estava um homem mais velho que só poderia ser o comendador. Cabelos grisalhos, bigode espesso, porte aristocrático. E Teodoro estava de pé diante deles, seus braços cruzados, expressão fria como gelo.
“Simplesmente queremos vê-la”, o comendador estava dizendo. “Assegurar-nos de que está bem tratada. Minha esposa, Teodoro disse, ênfase deliberada na palavra, está perfeitamente bem obrigado e não vejo razão para que precisem assegurar-se de nada. Foi então que Fernando a viu na porta. Seu rosto empalideceu. Clarice, todos se viraram.
Deodoro moveu-se imediatamente para o lado dela, seu braço indo protetoramente ao redor de sua cintura. Senhorita, senhora de Albuquerque. Fernando corrigiu-se e havia dor em sua voz. Você está bem? Estou perfeitamente bem, Clarice disse, sua voz fria. Obrigada pela preocupação, Dr. Ribeiro, embora tarde demais. O comendador limpou a garganta.
Senhora, vim porque tomei conhecimento da situação, de como meu filho a tratou. e vim oferecer compensação, apoio financeiro para a criança. “Não preciso de sua compensação”, Clarice disse firmemente. “Meu filho tem pai, um pai que o ama e o reconhece. Um pai que é mais homem do que seu filho jamais será.” Fernando recuou como se tivesse sido esbofeteado.
Clarice, eu, desculpa, sei que não significa nada agora, mas me arrependo. Todos os dias me arrependo. Seu arrependimento, Teodoro disse friamente. Não interessa. O que interessa é que minha esposa e meu filho estão bem, felizes e não precisam de vocês. Sugiro que partam agora, por favor.
Fernando disse, ignorando o pai que tentava puxá-lo em direção à porta. Só quero vê-lo, ver o bebê uma vez. Não, Clarice disse. Você perdeu esse direito quando me abandonou. Joaquim é filho de Teodoro. Apenas de Teodoro. Joaquim, Fernando, repetiu, o nome saindo como um gemido. Você deu a ele o nome do seu pai. Dei Clarice confirmou. nome do meu marido, Joaquim Teodoro de Albuquerque. Ele vai crescer sabendo quem é seu pai e não é você.
Fernando fechou os olhos, lágrimas escapando. Meu casamento, a mulher do Barão, foi anulado dois meses depois da cerimônia. Ela me traía com outro e agora estou sozinho. E você? E eu estou feliz. Clarice terminou. Tenho marido que me ama, filhos que me amam. Uma vida boa. Tudo que você me tirou, Deus me devolveu multiplicado. Então, vá, Fernando, vá e não volte.
O comendador finalmente conseguiu arrastar o filho para a saída. Teodoro os acompanhou até a porta principal, certificando-se de que partiam. Quando voltou, encontrou Clarice tremendo. Puxou-a para seus braços imediatamente. Está bem? Quer que eu vá atrás deles? que os impeça de não. Clarice disse, enterrando o rosto em seu peito.
Não, só me abrace. E ele abraçou forte e firme até que o tremor passasse. Naquela noite, depois que Joaquim estava dormindo e Helena também, Clarice e Teodoro se deitaram juntos na grande cama. Estava com medo. Ela admitiu na escuridão. Medo de que vê-lo de novo fizesse tudo voltar. A dor, a vergonha, tudo. E voltou? Teodoro perguntou suavemente.
Não Clarice disse surpresa ao perceber que era verdade. Olhei para ele e não senti nada, nem amor, nem ódio, apenas nada, como olhar para um estranho. Porque ele é um estranho, Teodoro disse, você não é mais a mulher que ele conheceu. Você cresceu, ficou mais forte e ele ele hesitou. Ele perdeu tudo que poderia ter tido.
Clarice se virou para encará-lo na penumbra. Você me ama de verdade? Amo! Teodoro disse sem hesitação. Não sei quando aconteceu. Talvez quando você arriscou sua vida para salvar a minha. Talvez quando vi você com Helena pela primeira vez trazendo alegria de volta aos olhos dela. Talvez foi crescendo lentamente sem eu perceber.
Mas sim, Clarice. Amo você profundamente. Eu também te amo. Ela sussurrou. Amo você e Helena e Joaquim e esta vida que construímos juntos. Ele a beijou então profundo e longo. E quando fizeram amor naquela noite, foi diferente de todas as outras vezes. Foi uma celebração, uma afirmação, um compromisso renovado.
O batizado de Joaquim foi no domingo seguinte. A capela estava lotada. Todo o engenho presente, fazendeiros vizinhos, até algumas famílias de Santo Amaro que haviam feito a viagem. Joaquim usava o vestido de batizado que Clarice havia passado meses bordando. Linho branco com rendas delicadas, cada ponto feito com amor.
Era tão lindo que várias senhoras comentaram que deveria ser guardado como herança de família. Dona Margarida e o coronel Leôcio foram os padrinhos. Escolha estratégica de Teodoro para mostrar à sociedade que famílias respeitadas apoiavam o casamento. Seguraram Joaquim durante a cerimônia, prometendo guiá-lo na fé. Quando o padre Sebastião derramou água benta na cabeça de Joaquim, o bebê não chorou, apenas piscou, seus olhos escuros focando no rosto do padre, como se entendesse a solenidade do momento.
Joaquim Teodoro de Albuquerque. O padre entonou: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” E estava feito. Aos olhos de Deus e dos homens, Joaquim era legítimo, reconhecido, abençoado. A festa, após o batizado, foi gloriosa.
Mesas gemendo sob comida, música enchendo o ar, crianças correndo pelos jardins. E no centro de tudo, Clarice e Teodoro, com Joaquim nos braços, Helena ao lado, uma família verdadeira. Carolina Sampaio apareceu brevemente, cumprimentou friamente e partiu cedo, mas não importava, porque a maioria das pessoas estava ali celebrando genuinamente, aceitando esta família não convencional, que havia nascido da dor, mas florescera no amor.
Quando a noite caiu e os convidados começaram a partir, Teodoro encontrou Clarice na varanda embalando Joaquim, que havia acabado de adormecer. Feliz?”, ele perguntou, repetindo a pergunta que fizera no dia do casamento. “Mais feliz do que jamais imaginei ser possível”, Clarice respondeu honestamente.
Helena apareceu sonolenta, arrastando sua boneca. “Posso dormir com vocês hoje?”, ela perguntou. “Como fazíamos quando eu era pequena e mamãe Amélia ainda estava aqui?” Clarice e Teodoro trocaram um olhar. Depois Clarice sorriu. Claro, querida. Vamos todos dormir juntos, uma família. Naquela noite, na grande cama de Jacarandá, quatro pessoas dormiram abraçadas.
Teodoro com um braço ao redor de Clarice, outro segurando Helena. Clarice com Joaquim no berço ao lado da cama, um braço estendido para tocar levemente a criança. Helena, aninhada entre eles, finalmente completa, finalmente em paz. E se Amélia podia ver do céu, Clarice gostava de pensar que ela sorria porque sua filha era amada. Seu marido havia encontrado felicidade novamente e a família continuava.
Do lado de fora, o recôncavo dormia sob estrelas brilhantes. Os canaviais sussurravam na brisa noturna e dentro do engenho São Teodoro, onde uma vez houvera apenas dor e perda, agora havia amor, esperança e a promessa de futuros ainda mais brilhantes. Os anos passaram como páginas virando num livro bem amado, cada uma preciosa, cada uma deixando sua marca.
Joaquim cresceu forte e saudável, um menino alegre, de riso fácil e curiosidade insaciável. Aos dois anos, já corria atrás de Helena por toda a casa grande, seus passinhos desajeitados, fazendo Rosa rir e avisar para tomarem cuidado. Tinha os cabelos escuros de Clarice, mas os olhos, ah, os olhos eram castanho escuros como os de Teodoro, e aquilo era uma fonte constante de alegria secreta para ambos, como se o destino estivesse dizendo que este menino realmente pertencia àquela família.
E então veio Maria Amélia. Dois anos após o nascimento de Joaquim, numa tarde chuvosa de abril, Clarice deu à luz uma menina. Foi um parto mais fácil que o primeiro. Tia Mariana disse que sempre era assim com o segundo filho. A bebê nasceu chorando forte, já demonstrando a personalidade vibrante que definiria sua vida. Quando Teodoro a viu pela primeira vez, lágrimas escorreram por seu rosto.
“Ela se parece com ela”, ele sussurrou. “Com Amélia, os mesmos olhos, o mesmo cabelo. Clarice pegou sua mão, apertando-a. Quer que chamemos de outro nome?” “Não, Teodoro” disse firmemente. Quero honrá-la. Quero que nossa filha carregue o nome dela e saiba que foi amada por duas mães, uma que partiu cedo demais e outra que chegou quando mais precisávamos.
Então batizaram a menina de Maria Amélia de Albuquerque. Helena estava encantada de ter uma irmãzinha e Joaquim, com seus dois anos, olhava para o bebê com fascínio confuso, tocando suas mãozinhas minúsculas com dedos exploradores. A vida no engenho São Teodoro floresceu sob a administração conjunta de Teodoro e Clarice.
O engenho prosperou mesmo enquanto outros lutavam na transição pós abolição. Teodoro tratava os trabalhadores livres com respeito e pagava salários justos e, em troca, recebia lealdade e trabalho árduo. Clarice implementou mudanças próprias, estabeleceu uma escola pequena no engenho, onde os filhos dos trabalhadores aprendiam a ler, escrever e fazer contas.
Rosa era a professora usando as habilidades que havia aprendido secretamente anos atrás, quando ainda era escrava. Educação, Clarice dizia, é a verdadeira libertação. E aos sábados reunia as meninas do engenho e das fazendas vizinhas na sala de costura, ensinando-as as artes de rendeira que sua própria tia lhe ensinara.
Algumas dessas meninas viriam a se tornar rendeiras talentosas, sustentando suas famílias com o ofício. Mas nem tudo eram dias ensolarados. Houve desafios. Em 1891, uma seca terrível atingiu o recôncavo. Os canaviais murcharam sob o sol impiedoso. O rio baixou a níveis perigosos. Famílias passavam fome. Teodoro abriu os armazéns do engenho, distribuindo comida aos necessitados, mesmo sabendo que isso significava prejuízo.
Clarice organizou as mulheres para fazer roupas e cobertores, preparar remédios de ervas. Não podemos assistir pessoas sofrerem quando temos meios de ajudar, Teodoro disse quando alguns vizinhos fazendeiros o criticaram por sua generosidade excessiva. A seca passou eventualmente e aqueles que o engenho havia ajudado nunca esqueceram.
Em 1894 veio Pedro, outro menino nascido com os pulmões fortes e vontade férrea. Era o mais parecido com Teodoro, não apenas na aparência, mas no temperamento. Sério mesmo, bebê, observador, ponderado. Com três filhos agora, a casa grande estava constantemente cheia de vida. Risos, choros, brigas infantis, reconciliações.
Helena, agora com 14 anos, era uma segunda mãe para os menores, cuidando deles com dedicação que fazia o coração de Clarice transbordar de orgulho. “Você vai ser uma mãe maravilhosa algum dia”, Clarice disse uma vez, observando Helena embalar Maria Amélia para dormir. Helena sorriu, um sorriso que não era mais de criança, mas de jovem mulher.
“Aprendi com a melhor mãe”, ela respondeu simplesmente. E Clarice chorou porque Helena nunca, nenhuma vez fizera distinção entre ela e Amélia. Ambas eram suas mães, ambas amadas igualmente. Os anos 1890 trouxeram mudanças para o Brasil. A monarquia caiu. A República foi proclamada. Notícias chegavam pelo telégrafo de tumultos em Salvador, de mudanças no governo, de nova constituição.
“O mundo está mudando”, Teodoro dizia lendo os jornais na biblioteca, “e precisamos mudar com ele.” investiu em modernização do engenho, uma nova moenda a vapor, mais eficiente, técnicas agrícolas importadas da Luisiana e mais controverso, começou a processar o açúcar em estágios mais avançados antes de exportar, agregando valor. Nem todos os vizinhos aprovavam.
Está esquecendo as tradições, alguns diziam. Mas Teodoro estava certo. O engenho prosperou quando outros estagnaram. E Clarice também mudava. Não era mais a moça assustada que chegara grávida e desesperada. Era senhora de engenho, respeitada, admirada. Quando falava nas reuniões de senhoras da região, era ouvida. Quando organizava bazares beneficentes, eram sucessos absolutos.
Até Carolina Sampaio eventualmente engoliu seu orgulho e veio pedir conselhos sobre como administrar a própria fazenda após a morte do pai. “Você sempre foi mais forte que eu imaginava”, Carolina admitiu numa tarde de chá. “Perdoe meu comportamento de anos atrás. Era inveja pura e simples. Clarice aceitou o pedido de desculpas com graça, porque sabia que guardar rancor apenas envenenaria sua própria felicidade.
Em 1898, Helena se casou. O noivo era Antônio Carlos Barreto, filho de um comerciante de Salvador. Bom moço, educado, apaixonado por Helena desde que a vira numa missa na capital. O casamento foi na capela do engenho. Uma cerimônia linda, com flores enchendo cada canto, música preenchendo o ar. E foi Clarice quem fez o vestido de noiva de Helena.
Meses de trabalho, cada ponto uma oração de amor, renda de birro cobrindo o corpete, pérolas minúsculas costuradas à mão, uma caludda que fluía como água. Quando Helena desceu o corredor de braço com Teodoro, não havia olho seco na capela. E quando Teodoro a entregou a Antônio, sussurrando algo ao ouvido do genro que fez o jovem assentir solenemente, Clarice viu finalmente a paz completa no rosto de seu marido.
Ele havia cumprido sua promessa a Amélia. Havia criado a filha deles com amor. Vira a tornar-se uma mulher linda e gentil. Dera ar em casamento a um homem bom. Ela teria ficado orgulhosa. Clarice sussurrou para ele enquanto dançavam na festa. Eu sei. Teodoro respondeu, puxando-a mais perto. E você também deveria estar.
Helena é tanto sua filha quanto minha, em todos os sentidos que importam. Um ano depois, Helena deu à luz o primeiro neto, um menino que chamaram de Teodoro Júnior. Ver Teodoro segurar aquele bebê, ver a continuação da linhagem foi um dos momentos mais felizes da vida de Clarice. Joaquim cresceu forte e determinado.
Aos 8 anos, declarou que queria ser médico, como aquele doutor que veio de Salvador quando Maria Amélia ficou doente. explicou. Quero ajudar pessoas. Clarice e Teodoro trocaram olhares, médico, a profissão que Fernando havia pretendido, mas nunca verdadeiramente honrado. E agora seu filho, não de sangue de Fernando, mas em todos os outros sentidos, queria seguir esse caminho.
Então, vamos garantir que você receba a melhor educação possível, Teodoro prometeu e cumpriu. Quando Joaquim completou 16 anos, foi enviado para estudar em Salvador, depois em Recife, finalmente na faculdade de medicina. As cartas que mandava para casa eram cheias de entusiasmo, de descobertas, de determinação. Maria Amélia revelou-se uma força da natureza.
Linda como a mãe, impetuosa como o pai, com vontade de ferro toda sua, recusou-se a ser confinada aos papéis tradicionais femininos. Queria aprender a administração do engenho. Queria entender números e negócios. Deixe-a. Clarice aconselhou quando Teodoro expressou preocupação. O mundo está mudando. Nossas filhas precisam estar preparadas. Pedro era o mais sossegado dos três, mas também o mais observador.
Amava a terra, os canaviais, os ritmos da natureza. “Vou cuidar do engenho quando crescer”, ele declarou aos 10 anos. “Vou fazer com que continue prosperando”. E Teodoro sorriu, sabendo que havia pelo menos um filho que seguiria seus passos. Os anos 1900 trouxeram mais mudanças. Eletricidade chegou ao recôncavo. Estradas melhoraram. Salvador crescia, modernizava-se.
O mundo ficava menor, mais conectado. Mas também havia sombras, notícias de guerra na Europa, tensões políticas no Brasil, doenças que os médicos ainda não sabiam curar completamente. Em 1903, Rosa adoeceu. Pneumonia, disseram os médicos. Estava velha. seu corpo cansado de décadas de trabalho árduo. Clarice cuidou dela pessoalmente, sentando-se à cabeceira dia e noite, segurando sua mão.
“Você foi mais que amiga”, Clarice sussurrou. “Foi mãe, irmã, tudo. Não sei o que faria sem você.” Rosa sorriu fracamente. Você ficaria bem. Sempre foi mais forte do que pensava. Mas me prometa uma coisa e continue, continue ensinando as meninas, continue cuidando das pessoas daqui.
Continue sendo a luz que trouxe a este lugar. Prometo. Rosa morreu pacificamente três dias depois, cercada pela família do engenho que a amava. foi enterrada no pequeno cemitério ao lado da capela, com uma cerimônia que celebrou sua vida, sua força, seu legado. E Clarice manteve sua promessa, expandiu a escola, adicionou mais turmas.
Começou um programa onde mulheres jovens podiam aprender não apenas costura, mas também administração básica, como ler contratos, como gerenciar dinheiro. Independência, ela dizia às alunas, vem de conhecimento. Ninguém pode tirar de vocês o que sabem. Em 1907, Joaquim retornou formado médico. Foi uma celebração enorme, o primeiro médico da família de Albuquerque. Estabeleceu consultório em Salvador, mas vinha ao engenho regularmente para atender os trabalhadores e suas famílias gratuitamente. Aprendi com vocês. Ele disse aos pais.
Que privilégio vem com responsabilidade que aqueles que têm mais devem ajudar os que têm menos. Teodoro e Clarice choraram de orgulho. Em 1910, Maria Amélia chocou a sociedade casando-se com um professor, não fazendeiro, não comerciante, mas um professor de escola pública.
Ele é o homem mais inteligente e bondoso que conheço. Ela defendeu quando algumas senhoras criticaram. E vou me casar com ele, mesmo que toda a Bahia desaprove. Clarice e Teodoro não desaprovaram. apoiaram completamente porque haviam criado seus filhos para seguir o coração, não as convenções sociais. Pedro assumiu papel cada vez maior na administração do engenho.
Tinha talento natural para agricultura, para negócios. Sob sua orientação, o engenho diversificou, adicionando criação de gado, plantação de cacau, até uma pequena fábrica de rapadura. Em 1913, 25 anos após o casamento, Teodoro e Clarice celebraram suas bodas de prata. A festa foi grandiosa. Filhos, netos, amigos, trabalhadores do engenho, fazendeiros vizinhos, todos vieram celebrar. A capela foi decorada com flores brancas e prata.
As mesas estavam carregadas com as comidas tradicionais do recôncavo. Música encheu o ar. Agora, não apenas violões e tambores, mas uma pequena orquestra trazida de Salvador. Helena veio com seus três filhos, Joaquim com sua noiva, uma professora inteligente e doce. Maria Amélia grávida de seu primeiro filho.
Pedro com planos para expandir ainda mais o engenho. Mas o momento mais emocionante veio quando, no meio da celebração, houve uma comoção na entrada. Então, para choque de todos, apareceu um homem de cabelos grisalhos, curvado pelos anos, apoiado numa bengala. Fernando, um silêncio caiu sobre a festa. Todos sabiam a história.
Havia se tornado lenda local, o amor que nascera da dor, a redenção que seguira. Teodoro deu um passo à frente, protetor, mas Clarice colocou a mão em seu braço. “Deixe-me”, ela disse suavemente. Aproximou-se de Fernando. Ele parecia ter envelhecido décadas em 25 anos.
Seu rosto estava marcado, seus olhos vazios de tudo, exceto arrependimento. “Clarice”, ele disse, sua voz rouca. Eu não tinha direito de vir, eu sei, mas precisava, precisava ver, ver se você estava feliz. Clarice olhou para ele. Este homem que uma vez fora tudo, que depois fora nada e sentiu apenas compaixão. Estou feliz, Fernando, ela disse gentilmente. Muito feliz.
Tenho marido maravilhoso, filhos abençoados, netos lindos, uma vida cheia de amor e propósito. Tudo que você me tirou, Deus me devolveu multiplicado. Fernando fechou os olhos, lágrimas escapando. Eu perdi tudo. Meu casamento ruiu. Meu pai me repudiou quando minhas indiscrições se tornaram públicas. Estou sozinho, pobre, sem nada. Sinto muito”, Clarice disse, e era sincera. “Mas isso foi suas escolhas, não meu problema. Eu sei.
Eu só queria que você soubesse que me arrependo. Todos os dias me arrependo.” Clarsa sentiu. Aceito suas desculpas e o perdoo. Fernando, não por você, mas por mim, porque guardar raiva só envenenaria minha própria felicidade. Mas perdoar não significa esquecer, não significa que você tem lugar em minha vida.
Então, vá, vá em paz, mas vá. Fernando a olhou uma última vez, depois a sentiu, virou-se para partir, mas Clarice o chamou de volta. Espere. Ela gesticulou para Joaquim, que estava observando tudo com olhos arregalados. Joaquim, vem aqui. O jovem médico se aproximou, alto e forte, a imagem da dignidade. Fernando Clarice disse claramente para que todos ouvissem.
Este é meu filho, Joaquim Teodoro de Albuquerque, médico formado, homem de honra, filho do melhor pai que uma criança poderia ter. Fernando olhou para Joaquim e algo quebrou em seu rosto, porque ali estava tudo que ele poderia ter tido, tudo que jogara fora. Senhor, Joaquim disse com cortesia fria. Minha mãe teve a gentileza de perdoá-lo.
Eu também, mas sugiro que parta agora, antes de perturbar ainda mais esta celebração. E todos observaram em silêncio, enquanto sua figura curvada desaparecia pela Alameda. Então, Teodoro estava ali puxando Clarice para seus braços. “Você está bem?” Estou”, ela disse, “Era verdade. Ver Fernando novamente não havia trazido dor, não havia trazido raiva, apenas confirmação de que ela havia feito as escolhas certas, que sua vida era exatamente como deveria ser.
” A festa continuou com alegria renovada e quando o sol começou a se pôr, pintando o céu de dourado e rosa, Teodoro levou Clarice para o banco no jardim, o mesmo banco onde haviam passado tantas tardes nos anos anteriores. “25 anos”, ele disse pegando sua mão. “25 anos desde que fiz a melhor decisão da minha vida.” “Casar-se comigo?”, Clarice perguntou com um sorriso.
Casar-me com você? Ele confirmou. Você transformou minha vida, Clarice. Trouxe-me de volta da escuridão. Deu-me não apenas um filho, mas três. Não apenas uma esposa, mas uma parceira, amiga, amor. Você tornou este engenho não apenas um lugar de trabalho, mas um lar. Você me salvou”, Clarice disse suavemente. “Quando eu estava perdida, sozinha, grávida e sem esperança, você estendeu a mão.
Ofereceu-me dignidade quando o mundo me oferecia apenas vergonha. Deu-me amor quando eu achava que nunca mais seria amada.” “Lembra?” Teodoro? Disse, “daquela noite na tempestade, quando você veio me salvar? Lembro. Lembra do que eu disse depois quando propus casamento? Clarice fechou os olhos à memória clara, como se fosse ontem.
Você disse: “Você me ofereceu tudo que eu precisava, uma segunda oportunidade, um propósito, amor. Deixe-me salvar você de volta.” E deixou, Teodoro disse, puxando-a mais perto. E em 25 anos construímos algo lindo, uma família, um legado, amor que vai além de nós, que continua em nossos filhos e netos. Sentaram em silêncio por um momento, observando o sol descer sobre os canaviais que haviam testemunhado tanto: dor e alegria, perda e ganho, morte e vida.
Você se arrepende?”, Clarice perguntou de repente. “De ter casado comigo, de ter assumido Joaquim como seu.” Teodoro a olhou como se ela tivesse enlouquecido. Arrepender, Clarice. Estes 25 anos foram os mais felizes da minha vida. Amei Amélia. sempre amarei a memória dela, mas você me ensinou que o coração pode amar mais de uma vez, de formas diferentes, mas igualmente profundas.
Joaquim é meu filho em todos os sentidos que importam e eu escolheria você. Escolheria esta vida mil vezes de novo. Lágrimas escorriam pelo rosto de Clarice. “Agora eu também”, ela sussurrou, “mil vezes.” Ele a beijou então sob o céu em chamas, cercados pelo som de música e riso de sua família, celebrando dentro da casa.
E aquele beijo continha tudo, gratidão, amor, promessas cumpridas e ainda a cumprir. Quando se separaram, Clarice apoiou a cabeça em seu ombro. Estou cansada, ela admitiu. Estes anos foram bons, mas longos e às vezes sinto o peso deles. Eu também, Teodoro admitiu. Mas olhe o que construímos. Olhe o que deixaremos para trás.
Uma família forte, uma terra próspera, pessoas educadas e livres, um legado de bondade. Acha que seremos lembrados? Clarice perguntou. Quando formos, acha que as pessoas se lembrarão de nós? As pessoas certas vão, Teodoro disse, os que ajudamos, os que amamos, e nossos filhos vão se lembrar e contar aos filhos deles.
A história de como amor verdadeiro nasce às vezes das circunstâncias mais improváveis. Como segundas chances, são dádivas preciosas. Como escolha é mais forte que destino. Do interior da casa ouviram Helena chamando. Mamãe, papai, venham. Vamos fazer o brinde. Teodoro se levantou, estendendo a mão para Clarice. Ela aceitou, deixando-se ser puxada de pé.
Juntos caminharam de volta para a casa cheia de luz e amor e família. Na sala principal, todos estavam reunidos, filhos, netos, amigos. Helena ergueu uma taça de champanhe. Um brinde, ela começou, sua voz emocionada, aos melhores pais que uma filha poderia ter.
Vocês nos ensinaram que família não é apenas sangue, é amor, escolha, compromisso. Que segundas chances são presentes divinos? Que bondade é mais importante que convenção, que amor verdadeiro conquista tudo. Aos meus pais, Joaquim juntou-se, erguendo sua própria taça, que me ensinaram que honra não vem de nascimento, mas de caráter.
Que ser homem significa proteger os fracos, defender os injustiçados, amar incondicionalmente. A mamãe e papai, Maria Amélia gritou, que me ensinaram que mulheres podem ser fortes, que podemos escolher nossos próprios caminhos, que amor não conhece limites. Aos melhores avós, os netos gritaram em couro e então todos, família, amigos, trabalhadores, ergueram suas taças.
A Teodoro e Clarice, 25 anos de amor e luz, Clarice e Teodoro se olharam, mãos entrelaçadas e beberam. E naquele momento, cercados por todos que amavam, sabiam que suas vidas haviam valido a pena, que cada dificuldade, cada dor, cada desafio havia levado a isto, a este momento perfeito de alegria completa.
A noite avançou, a música tocou, as pessoas dançaram, histórias foram contadas e recontadas. E quando finalmente todos partiram ou se recolheram, Clarice e Teodoro ficaram sozinhos mais uma vez na grande cama de Jacarandá, onde haviam dormido por 25 anos, onde haviam concebido filhos, compartilhado sonhos, consolado medos, celebrado alegrias.
Eles se deitaram juntos. Estou sozinha e grávida. Clarice citou suavemente as palavras que haviam começado tudo. Mas você disse: “Chega”. Teodoro completou, puxando-a para seus braços. A partir de hoje você será minha esposa e nunca mais estará sozinha. “E nunca estive?” Clarice sussurrou. Desde aquele dia, nunca mais estive sozinha.
Dormiram assim entrelaçados, enquanto o recôncavo descansava sob estrelas eternas. Os canaviais sussurravam suas canções antigas. O engenho respirava vivo e próspero. E dentro daquele quarto, dois corações batiam em sincronia perfeita. dois corações que haviam encontrado um ao outro quando mais precisavam, que haviam construído algo lindo das cinzas da dor.
Porque às vezes as maiores bênçãos vêm quando menos esperamos e o amor verdadeiro não se mede pelas circunstâncias de seu começo, mas pela força de sua permanência. E no final, o que importa não é como a jornada começou, mas onde terminou. em amor, em alegria, em legado que continua através das gerações.
Esta foi a história de Clarice e Teodoro, de dor transformada em beleza, de desespero florescendo em esperança, de escolhas que mudaram destinos. E em algum lugar, em algum lugar além do que podemos ver, almas bondosas sorriem. Tia Benedita, orgulhosa, Amélia, em paz, sabendo que sua família está completa.
E talvez até Fernando, finalmente encontrando perdão e desejando que aqueles que ele prejudicou encontrem toda a felicidade que ele nunca pôde. O sol nasceria amanhã sobre o engenho São Teodoro, como nascera por 25 anos, e a vida continuaria. uma geração após a outra, carregando consigo as lições aprendidas, o amor compartilhado, o legado construído. Porque no fim isto é tudo que qualquer um de nós pode esperar, ser lembrado com amor, ter vivido com propósito, ter feito diferença nas vidas que tocamos.
E Clarice e Teodoro haviam feito exatamente isso. Obrigado por acompanhar esta jornada emocionante de Clarice e Teodoro através de contos de época. Se esta história tocou seu coração, deixe seu like, compartilhe e nos conte nos comentários qual foi seu momento favorito.
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