Escolha o escravo que você quer, querida. Eu quero aquele de olhos azuis e musculoso”, disse assim. Ah, era outubro de 1854 e a praça central de Tiradentes, Minas Gerais, fervilhava com atividade incomum mesmo para dia de feira. Um leilão de escravizados estava acontecendo.
Evento que atraía fazendeiros de toda a região, homens com dinheiro e necessidade de mão de obra barata para trabalhar em suas propriedades produtivas de café e gado. O sol batia implacável sobre as pedras irregulares da praça colonial, sobre as igrejas barrocas que dominavam a paisagem, sobre as pessoas que se aglomeravam ao redor do palanque de madeira, onde seres humanos eram exibidos e vendidos como gado.
O coronel Vicente de Paula tinha 58 anos e era um dos fazendeiros mais ricos e poderosos da região. Sua propriedade, a fazenda Recanto Verde, estendia-se por centenas de alqueires nas montanhas ao redor de Tiradentes, produzindo café de alta qualidade que era exportado até para a Europa.

Era homem grande e grosseiro, com barriga proeminente que esticava os coletes caros, rosto sempre vermelho de quem bebia demais, mãos grandes que usava livremente para bater em quem o desagradava, fossem escravizados, empregados livres ou sua própria esposa. Vicente de Paula tinha reputação de ser dos fazendeiros mais cruéis da região, aplicando punições severas por ofensas mínimas, trabalhando pessoas até literalmente morrerem de exaustão, não demonstrando misericórdia ou compaixão por ninguém.
Ao seu lado estava sua esposa, dona Feliciana de Paula, mulher de 32 anos, que parecia ter 50. Ela fora bonita uma vez, mas 14 anos de casamento com Vicente haviam apagado qualquer vestígio daquela beleza. Seu rosto era marcado por linhas profundas de tensão constante, olhos castanhos que já haviam sido brilhantes agora.
eram opacos e sempre ligeiramente assustados, corpo magro demais, porque frequentemente estava nervosa demais para comer adequadamente. Feliciana usava vestido caro de seda verde, luvas brancas, sombrinha para proteger do sol toda a aparência externa de senhora rica e respeitada.
Mas por baixo das mangas compridas havia hematomas em vários estágios de cicatrização, marcas de dedos onde Vicente a agarrara com força desnecessária, queimaduras de charuto que ele apagara em seu braço quando estava bêbado e irritado. Ela havia aprendido ao longo de 14 anos a ser invisível tanto quanto possível, a concordar com tudo que Vicente dizia, a nunca contradizê-lo ou questioná-lo, a manter cabeça baixa e voz mais baixa ainda.
Casara-se com ele aos 18 anos, arranjamento feito por seu pai, que queria unir propriedades e fortalecer posição social da família. Ninguém perguntou à Feliciana o que ela queria. Ninguém se importou que Vicente era 40 anos mais velho, que tinha reputação de violência, que já enterrara duas esposas anteriores em circunstâncias que algumas pessoas sussurravam serem suspeitas.
Ela era mulher e mulheres naquela época e lugar não tinham escolha sobre seus próprios destinos. Os primeiros anos de casamento foram pesadelo que Feliciana tentava não revisitar, mesmo em pensamentos. Vicente era cruel de formas que ela nem imaginara possíveis.
Batia nela regularmente, às vezes por razões que ele considerava legítimas como comida não estar exatamente como ele queria. às vezes simplesmente porque estava bêbado e irritado, e ela era alvo conveniente. Forçava-se sobre ela brutalmente, não como marido com esposa, mas como homem, tomando o que considerava sua propriedade.
Humilhava-a em público e privado, chamava-a de inútil, porque não conseguira dar-lhe filhos. Embora a Feliciana suspeitasse que culpa era dele ou resultado dos abortos espontâneos causados por suas surras. Ela pensar em fugir incontáveis vezes. Mas para onde? Sua própria família não a acolheria de volta. Considerariam escândalo ela deixar marido.
Diriam que era dever dela suportar e obedecer. Igreja pregava que casamento era sagrado e indissolúvel, que esposas deviam submeter-se aos maridos em todas coisas. Lei dava a Vicente direitos quase absolutos sobre ela. Ela era propriedade dele quase tanto quanto os escravizados que possuía. Então, Feliciana existia em estado de resignação desesperada, sobrevivendo dia após dia, sem esperança de que algo melhorasse, mas também coragem de acabar com o próprio sofrimento de forma mais permanente.
Era contexto daquele dia na praça de Tiradentes, quando Vicente decidiu comprar mais escravizados para expandir produção de café na fazenda Recanto Verde. Ele trouxera Feliciana, não por generosidade, mas por capricho, decidindo que ela deveria escolher um dos escravizados como se fosse presente.
“Escolha o escravo que você quer, querida”, disse ele com voz que pingava falsa generosidade. “Você reclama que precisa de mais ajuda na casa grande. Escolha um que sirva para trabalhos domésticos, alguém forte que possa carregar coisas pesadas.” Feliciana olhou para palanque, onde aproximadamente 20 pessoas estavam sendo leiloadas, homens, mulheres, algumas crianças, todos nus ou seminus, para que compradores pudessem inspecionar mercadoria.
Ela sentia náusea olhando aquilo, náusea de participar em sistema tão desumano, mas não tinha escolha. Vicente esperava que ela escolhesse e contradizer Vicente trazia consequências dolorosas. Seus olhos varreram as pessoas no palanque, cada uma com expressão de resignação ou medo ou raiva contida, cada uma pessoa completa, com histórias e sonhos e humanidade que sistema tentava negar. E então ela o viu.
Homem de aproximadamente 25 anos, alto e incrivelmente musculoso, de anos de trabalho forçado, pele negra que brilhava sob sol forte. Mas o que prendeu a atenção de Feliciana foram seus olhos azuis como céu claro, cor impossível, surpreendente, que contrastava dramaticamente com sua pele escura. Era combinação rara, resultado de algum ancestral europeu em linhagem que incluía principalmente africanos, genética manifestando-se de forma inesperada.
Aqueles olhos a olharam de volta através da praça e Feliciana sentiu algo que não sentia há anos. Talvez nunca havia sentido. Conexão instantânea e inexplicável. Aquele, disse ela, apontando antes que pudesse reconsiderar, aquele de olhos azuis e musculoso. Vicente olhou, avaliou, assentiu com aprovação. “Boa escolha”, disse ele.
“Parece forte, vai ser útil. Vou comprá-lo para você. O leilão procedeu, Vicente fazendo lances contra outros interessados, eventualmente ganhando por preço alto, que refletia tanto a qualidade óbvia do homem, quanto raridade de sua aparência distintiva. Transação foi concluída. Papéis assinados e aquele homem de olhos azuis agora pertencia oficialmente ao coronel Vicente de Paula, designado para servir na Casagrande sob supervisão de dona Feliciana. Foi apenas mais tarde quando retornaram à fazenda Recanto Verde e Novo Escravizado. Foi registrado
nos livros da propriedade que Feliciana soube seu nome. Luís disse ele quando perguntado, voz profunda e calma. Meu nome é Luís. Vicente. Grunil, desinteressado em nomes, vendo apenas ferramenta nova para ser usada. Mas Feliciana repetiu o nome silenciosamente, Luís, sentindo estranha intimidade em conhecer esse detalhe pessoal sobre homem que continuava a dominá-la, pensamentos de formas que não compreendia completamente.
Luís foi instalado em pequeno quarto nos fundos da Casagre. espaço que era marginalmente melhor que semalas, onde maioria dos escravizados da fazenda vivia, mas ainda era espaço de serviçal, não de pessoa livre. Suas tarefas incluíam trabalho pesado na Casa Grande, carregar móveis quando Feliciana redecorava, trazer água do poço, lenha para fogões e lareiras, qualquer coisa que exigisse força física. Mas Vicente logo descobriu que Luís tinha outras habilidades.
Também sabia ler e escrever rudimentarmente, algo raro entre escravizados, ensinado por senhor anterior, que o usara como ajudante de escritório antes de falir e ter que vender seus escravizados. Vicente começou a usá-lo ocasionalmente para tarefas de escritório, quando tinha correspondências para enviar ou contas para calcular.
Nos primeiros dias após chegada de Luís, Feliciana tentou manter distância profissional adequada entre senhora e escravizado. Ela dava ordens brevemente, não fazia conversas desnecessárias, tratava-o como trataria qualquer outro serviçal, mas era difícil, quase impossível, porque sentia aqueles olhos azuis sobre ela frequentemente, não de forma desrespeitosa ou laciva, mas com curiosidade gentil, com algo que parecia ser preocupação quando via hematomas novos que ela tentava esconder com reconhecimento silencioso. de sofrimento compartilhado, mesmo que
em formas diferentes. Foi três semanas após chegada de Luís que tudo mudou irrevogavelmente. Vicente voltara de dia nos campos de café, particularmente bêbado e irritado, porque produção estava abaixo de suas expectativas irrealistas. Ele entrou na casa grande gritando, procurando alguém para culpar, para punir, para descontar suas frustrações.
Feliciana tentou acalmá-lo, erro que deveria ter sabido evitar, mas palavras suaves apenas irritaram-no mais. Ele a esbofeteou com força suficiente para derrubá-la, depois chutou-a quando caiu, gritando insultos que ela ouvira tantas vezes que quase nem registrava mais. Luís estava no corredor próximo, carregando lenha para a lareira.
ouviu impacto, ouviu grito abafado de dor de Feliciana, ouviu insultos de Vicente. Alguma coisa nele, algo que décadas de escravidão não conseguiram completamente suprimir, reagiu. Ele largou lenha e entrou na sala, vendo Feliciana no chão, vicente sobre ela, com mão levantada para bater novamente. Senhor, disse Luís, voz controlada, mas com urgência subjacente, preciso de sua ajuda urgente no escritório.
Chegou o mensageiro do Rio de Janeiro com carta urgente sobre carregamento de café. Era mentira completa. Não havia mensageiro ou carta, mas funcionou porque Vicente era suficientemente vaidoso sobre seus negócios para ser distraído por potencial problema importante. Ele parou no meio do gesto, olhou para Luís com irritação, mas também interesse. Mensageiro.
Que mensageiro? Vou ver isso. Ele saiu cambaleando, esquecendo temporariamente Feliciana na sua ansiedade sobre negócios. Luís estendeu mão para ajudar Feliciana a se levantar. Ela olhou para aquela mão grande e calejada de trabalho. Hesitou apenas momento antes de aceitá-la. Ele a puxou gentilmente para pé, apoiou-a quando ela cambaleou, ainda tonta do golpe.
“Siná está machucada”, disse ele suavemente. “Deixe-me trazer água fria para o inchaço.” Feliciana tocou seu próprio rosto, sentindo onde ficaria a hematoma, e a sentiu mutamente. Lágrimas queimavam seus olhos, não tanto de dor física, quanto de humilhação, de mais uma vez ser espancada, de mais uma vez ser tratada como menos que humana.
Luís voltou rapidamente com bacia de água fria e pano limpo, hesitou, depois disse: “Posso?” Feliciana assentiu novamente e ele gentilmente pressionou o pano frio contra seu rosto inchado. O toque era tão cuidadoso, tão diferente de qualquer toque que ela recebera de Vicente, que Feliciana começou a chorar de verdade, soluços sacudindo seus ombros.
Luís não disse nada, apenas continuou segurando pano frio, presença silenciosa de compaixão que Feliciana não experimentara em anos. Obrigada, sussurrou ela quando finalmente conseguiu controlar choro. Você não precisava intervir. Poderia ter sido perigoso para você. Luís deu pequeno sorriso triste. Algumas coisas valem risco. Sim. Ah. Ver alguém sendo machucado e não fazer nada.
Isso mata parte da alma. Prefiro arriscar punição que perder mais da minha humanidade. Feliciana olhou para ele com novo entendimento. Aquele homem, este escravo que sociedade dizia não ter direitos ou valor além de sua força física, tinha mais nobreza e coragem moral que a maioria dos homens livres que ela conhecia. A partir daquele dia, algo mudou entre Feliciana e Luís.
Não foi romântico imediatamente, mas foi conexão profunda que crescia cada dia. Eles começaram a conversar mais quando Vicente não estava por perto. Conversas que começavam sobre tarefas domésticas, mas gradualmente se aprofundavam. Luís contava sobre sua vida antes de ser vendido para Vicente, sobre ter nascido em fazenda no interior de São Paulo, sobre mãe que o ensinara a ler usando Bíblia escondida, sobre sonhos de liberdade que mantinha vivos mesmo quando pareciam impossíveis. Feliciana, por sua vez, encontrava-se compartilhando coisas que nunca dissera
a ninguém sobre solidão de seu casamento, sobre medo constante que vivia, sobre pessoa que costumava ser antes de 14 anos de abuso a transformarem em sombra. Vicente notou que sua esposa parecia menos tensa. O casionalmente até sorria quando pensava que ele não estava olhando. Ele atribuiu isso a finalmente ter ajuda adequada na Casagre.
nunca suspeitando que havia algo mais profundo acontecendo. Sua arrogância e narcisismo o cegavam para a possibilidade de que sua esposa pudesse encontrar conforto em escravizado, alguém que ele via como completamente inferior e incapaz de despertar qualquer interesse romântico. Mas Feliciana estava lenta e inexoravelmente apaixonando-se por Luís.
Não era apenas gratidão por sua intervenção naquele dia, embora aquilo tivesse sido catalisador. Era tudo sobre ele, sua gentileza consistente, sua inteligência que sistema tentava negar, sua força, não apenas física, mas emocional e espiritual, a forma como tratava todos com respeito, mesmo quando não recebia o mesmo em troca, como mantinha dignidade em circunstâncias projetadas para roubá-la.
Luís via Feliciana não como propriedade ou objeto de uso, como Vicente fazia, mas como pessoa completa, com pensamentos e sentimentos e valor intrínseco. E Luís, apesar de todos os riscos que reconhecia claramente, estava apaixonando-se por Feliciana. Também via sua força escondida sob submissão forçada.
via bondade que sobrevivera anos de crueldade. Via beleza não física, embora ela fosse bonita para ele, mas beleza de alma que resistira a tentativas de esmagá-la. Viia mulher que tratava escravizados da casa grande com humanidade rara entre senhores, que secretamente desviava comida extra para eles, que intercedia com Vicente quando podia, para prevenir punições mais severas.
Foi seis meses após chegada de Luiz em abril de 1855, que beijaram pela primeira vez. Vicente estava fora por três dias visitando outra propriedade, negociando compra de mais terras. Feliciana e Luís estavam no jardim aos fundos da Casa Grande, onde ela mantinha pequena horta de ervas medicinais. Ela estava ensinando-o sobre diferentes plantas e seus usos, compartilhando conhecimento que aprendera de curandeira na infância.
Seus dedos se tocaram acidentalmente, quando ambos alcançaram mesma planta ao mesmo tempo, e eletricidade passou entre eles. Eles se olharam, momentos se estendendo, tensão acumulada de meses finalmente atingindo o ponto de ruptura. Feliciana, sussurrou Luiz, usando seu nome ao invés de Siná pela primeira vez. Eu sei que é impossível, sei que é perigoso, mas preciso dizer: “Eu te amo.
Te amo de formas que me assustam, de formas que poderiam nos destruir ambos, mas não posso mais fingir que não sinto.” Feliciana sentiu lágrimas encher em seus olhos. Eu também te amo, Luís. Deus me perdoe. Sei que é pecado. Sei que estou casada.
Sei todas razões pelas quais não deveria, mas amo você mais que tem as consequências. Eles se beijaram então gentilmente no início, depois com paixão crescente de pessoas que negaram a si mesmas por tempo demais. Foi primeiro beijo de verdadeiro afeto que Feliciana recebera em sua vida. primeiro toque que não era tomado, mas dado livremente, mutuamente.
E para Luís foi momento de ver Feliciana não como siná inacessível, mas como mulher que o amava, que escolhia ele, apesar de todosos obstáculos impossíveis. Nos meses seguintes, eles roubavam momentos quando podiam, cuidadosos para nunca despertar suspeitas de Vicente ou dos outros empregados da casa. encontravam-se no jardim tarde da noite, no celeiro, quando sabiam que estaria vazio em quarto de Luís em raras ocasiões, quando tinham certeza de que ninguém os veria.
Não era apenas físico, embora houvesse isso também, expressão natural de amor entre dois adultos. Era a conexão emocional profunda, conversas que duravam horas, sonhos compartilhados sobre vida, que poderiam ter se mundo fosse diferente, conforto de simplesmente estar na presença um do outro.
Feliciana florescia sob amor de Luís de formas que surpreendiam a si mesma. Ela começou a se reconhecer no espelho novamente, vendo flashes da mulher que costumava ser antes de Vicente esmagar seu espírito. Ela ria, algo que não fizera genuinamente em anos. encontrava coragem para pequenas resistências contra Vicente, nada que o enfurecesse, a ponto de violência extrema, mas suficiente para manter alguma dignidade própria, e começou a pensar, pela primeira vez em 14 anos, que talvez houvesse forma de escapar daquela prisão que seu casamento se tornara. Foi Luís quem finalmente
sugeriu o que ambos vinham pensando, mas não ousavam verbalizar. Nós podemos fugir”, disse ele em noite quente de dezembro, quando estavam escondidos no celeiro. “Sei que é aterradoramente arriscado. Sei que chances de sucesso são pequenas, mas Feliciana, não posso continuar vendo você ser machucada. Não posso continuar sendo escravo dele.
Prefiro morrer tentando ser livre que viver em segurança sob correntes.” Feliciana olhou para aquele homem que amava mais que sua própria vida. Mas para onde iríamos? Você é escravizado. Eu sou casada. Ele tem direitos legais sobre ambos. Toda lei está do lado dele. Luís pegou suas mãos. Existem quilombos, comunidades de escravizados fugidos nas montanhas.
Ouvi falar de um não muito longe daqui, lugar onde podemos estar seguros. Não será vida de luxo, será dura, mas seremos livres. livres para amar abertamente, para viver com dignidade. Feliciana sentiu medo paralisante e excitação desesperada simultaneamente.
Fugir significava abandonar tudo que conhecia, toda segurança material, mesmo que vinda com preço terrível, arriscar captura que resultaria em morte para Luí, e, provavelmente prisão ou internação em instituição para insanos para ela. Mas olhando nos olhos azuis de Luís, vendo amor e esperança ali, ela soube que a escolha já estava feita. “Sim”, disse ela firmemente. “Vamos fugir! Juntos. Aconteça o que acontecer, juntos.
Planejamento levou dois meses cuidadosos. Eles precisavam de dinheiro, comida, conhecimento de rotas. Momento certo quando Vicente estaria suficientemente distraído para não notar a ausência imediata. Feliciana vendeu discretamente algumas joias menores, peças que Vicente não notaria faltando através de intermediário em cidade.
Luís coletou informações de outros escravizados sobre localização aproximada do quilombo, quais trilhas tomar, como evitar patrulhas de capitães do mato. A noite escolhida foi em fevereiro de 1856, quase 2 anos após chegada de Luís à fazenda Recanto Verde. Vicente estava particularmente bêbado após jantar pesado, desmaiado em sua cama, roncando tão alto que podia ser ouvido em quartos distantes.
Feliciana juntou pequena mala com roupas práticas, escondeu dinheiro em bolsos secretos, deixou carta breve sobre a escrivaninha de Vicente, explicando apenas que estava partindo e que não tentasse procurá-la. Ela encontrou Luís esperando nas sombras perto dos estábulos. Ele tinha dois cavalos prontos, os melhores e mais rápidos da fazenda.
Escolha deliberada que garantiria que poderiam cobrir distância rapidamente, mas também era roubo que aumentaria fúria de Vicente. Eles montaram e cavalgaram para a noite escura, deixando fazenda Recanto Verde e tudo que ela representava para trás. As semanas seguintes foram de viagem constante e medo perpétuo. Eles sabiam que Vicente teria descoberto fuga ao amanhecer, que teria enviado capitães do mato para caçá-los, que recompensa por captura de Luís seria substancial, e que humilhação de esposa fugir com escravizado faria Vicente particularmente determinado a
encontrá-los. Viajavam principalmente à noite, escondiam-se durante o dia, evitavam estradas principais, confiavam em gentileza ocasional de pessoas que simpatizavam com fugitivos ou que eram suficientemente indiferentes para não fazer perguntas. Gabriel, contato que Luís fizera antes de fugir, encontrou-os em ponto combinado e guiou-os pelas trilhas tortuosas nas montanhas até o quilombo.
Era a comunidade de aproximadamente 40 pessoas, escravizados, fugidos de várias fazendas da região, que haviam construído vida própria em local escondido, cercado por floresta densa. tinham casas simples, mais sólidas, plantações de subsistência, sistema de vigilância para alertar sobre aproximação de invasores. O líder do quilombo, homem chamado Benedito, que escapara da escravidão 15 anos antes, olhou Feliciana com ceticismo inicial.
Mulher branca em quilombo era complicação, potencial de traição ou de atrair atenção indesejada. Mas vendo forma como Luí e Feliciana olhavam um para outro, ouvindo a história deles contada honestamente, Benedito suavizou. Vocês podem ficar, disse ele finalmente. Mas entendam que aqui todos trabalham, todos contribuem. Não há senhores ou escravos aqui.

Somos todos iguais. E se trouxerem perigo para a comunidade, terão que partir. Feliciana e Luís concordaram com todas as condições. Nos meses e anos seguintes, construíram vida no quilombo, que era completamente diferente de qualquer coisa que Feliciana vivenciara.
Ela, mulher que nunca trabalhara fisicamente antes, aprendeu a plantar, colher, cozinhar em fogões rústicos, costurar roupas, fazer sabão. Suas mãos desenvolveram calos. Costas doíam de trabalho duro, mas ela nunca reclamou, porque pela primeira vez em sua vida era livre. Livre de medo constante, livre de violência, livre para amar abertamente.
Luís trabalhava ao lado de outros homens do quilombo, caçando, plantando, construindo, defendendo comunidade de ocasionais ataques de capitães do mato. Ele era respeitado por sua força e inteligência. contribuía não apenas fisicamente, mas ajudando a manter registros rudimentares da comunidade, ensinando outros a ler e escrever. E toda noite voltava para a casa simples que compartilhava com Feliciana, onde eram apenas Luís e Feliciana, homem e mulher que se amavam, não escravo e senhora, não fugitivos, apenas eles mesmos. Eles nunca se casaram
oficialmente porque casamento de Feliciana com Vicente ainda era válido legalmente e porque no quilombo tais formalidades importavam menos que compromisso real, mas eram casados em todos sentidos significativos, construindo vida juntos, enfrentando dificuldades como parceiros, celebrando pequenas alegrias que vida simples, mas livre proporcionava. Feliciana engravidou dois anos após chegada ao quilombo.
Foi gravidez aterrorizante porque recursos médicos eram limitados, mas também alegre porque era filho de amor, escolhido e desejado, ao invés de resultado de violência conjugal, como as gravidezes anteriores que perdera tinham sido. Carteira do quilombo, mulher experiente chamada Joana, guiou-a através de parto difícil e Feliciana deu à luz menina saudável que tinha pele acobreada, mistura perfeita de seus pais e olhos que gradualmente ficaram azuis como os de Luís.
Chamaram-na esperança, porque era exatamente isso que representava, esperança de futuro melhor, prova de que amor podia florescer, mesmo em circunstâncias mais impossíveis. Benedito abençoou a criança em cerimônia simples, mas comovente, e toda a comunidade celebrou, vendo naquela menina símbolo de que vida no quilombo era não apenas sobrevivência, mas possibilidade de verdadeira vida com família e alegria.
Nos anos seguintes, duas crianças mais nasceram. menino que chamaram de Luís Júnior e outra menina que chamaram de liberdade. Feliciana, que nunca conseguira levar gravidez a termo durante casamento com Vicente devido às surras, descobriu que, em ambiente de amor e sem violência, seu corpo podia fazer o que era natural.
Ela floresceu como mãe de formas que nunca imaginara possíveis. Vicente nunca parou completamente de procurar. Ocasionalmente, durante primeiros anos, patrulhas chegavam perto do quilombo, forçando todos a se esconder mais fundo na floresta até perigo passar, mas com tempo buscas diminuíram.
Vicente eventualmente casou-se pela quarta vez, mulher jovem que esperava lhe dar herdeiros que Feliciana nunca dera. Ele morreu 10 anos após fuga de Feliciana em 1866, de ataque cardíaco massivo aos 68 anos, levando seus ódios e crueldades para túmulo. Lei Áurea foi promulgada em 1888, 33 anos após Feliciana e Luís fugirem para Quilombo.
Para a comunidade que já vivia livre, foi validação oficial de vida que construíram através de coragem e trabalho duro. Alguns membros do quilombo escolheram sair, integrar-se em sociedade mais ampla, agora que podiam fazer isso legalmente. Mas muitos, incluindo Feliciana e Luís, escolheram ficar, tendo construído comunidade e vida que amavam ali. Feliciana viveu até 72 anos, morrendo em 1894.
Em seus últimos dias, cercada por Luís e seus três filhos adultos e sete netos, ela refletia sobre vida que vivera. Havia começado em luxo, mas prisão, sofrendo abusos terríveis de marido cruel. Havia encontrado amor em lugar menos esperado, com um homem que sociedade dizia ser inferior, mas que demonstrara ser mais nobre que qualquer homem livre que conhecera.
havia cometido pecado aos olhos da igreja e da sociedade, adultério e fuga, traição de votos matrimoniais. Deus não aprova traição. Ela sabia disso. Ensinamentos de sua infância católica ainda ecoavam mesmo após décadas longe da igreja. Escrituras eram claras sobre santidade do casamento, sobre obediência que esposas deviam aos maridos, sobre pecado de adultério.
Padre que a casara com Vicente dissera que votos eram para sempre, que nada, exceto morte, poderia dissolvê-los, que seu dever era suportar qualquer sofrimento com paciência de mártir cristã. Mas olhando para Luís, para rosto marcado por décadas de trabalho duro, mas ainda belo para ela, olhando para filhos e netos que nunca teriam existido se ela permanecesse com Vicente, olhando para a vida que construíram juntos, baseada em amor e respeito mútuo, Feliciana não conseguia se arrepender.
Talvez Deus não aprovasse traição, mas talvez Deus também não aprovasse homem espancar esposa até ela desejar morte. Talvez Deus não aprovasse sistema que escravizava pessoas baseado em cor de pele. Talvez misericórdia de Deus fosse mais ampla que regras rígidas que homens criavam em seu nome.
“Eu escolhi amor”, sussurrou ela para Luís em seus últimos momentos. Escolhi dignidade sobre submissão à crueldade. Escolhi vida verdadeira sobre existência vazia. Se isso é pecado, então sou pecadora. Mas vivi, Luís, pela primeira vez na minha vida. Realmente vivi. Luís segurou sua mão, lágrimas escorrendo por rosto envelhecido.
Você me salvou tanto quanto eu salvei você, disse. Ele me deu razão para acreditar que amor era possível. que não éramos só definidos pelos papéis que sociedade nos forçava. Você é mulher mais corajosa que conheci, Feliciana, e eu te amarei além desta vida, em qualquer coisa que venha depois. Feliciana morreu naquela noite pacificamente, cercada por amor.
Luís a seguiu apenas seis meses depois, coração quebrado por perda de parceira de 40 anos. foram enterrados lado a lado em cemitério simples do quilombo, sob árvores que haviam plantado décadas antes, que agora proporcionavam sombra sobre lugares de descanso. A história deles foi contada e recontada através de gerações de descendentes. Esperança, Luís Júnior e Liberdade.
Todos viveram vidas longas, casaram, tiveram filhos próprios, passaram adiante história de como seus pais desafiaram todas regras para estar juntos. História cresceu e mudou com cada recontada, detalhes sendo adicionados ou perdidos, mas essência permanecendo, amor que floresceu contra todas probabilidades, coragem de escolher felicidade sobre segurança, família construída, não apesar, mas por causa de desafiar normas sociais injustas. Não era história simples.
Moralmente, Feliciana havia quebrado votos matrimoniais. pecado grave em sociedade profundamente católica. Ela fugira com escravizado, roubando propriedade valiosa de marido, crime sob leis da época. Ela vivera em adultério por décadas, nunca verdadeiramente livre de casamento legal com Vicente enquanto ele vivia.
E Luís, embora não tendo feito votos que quebrou, certamente violou cada expectativa de comportamento apropriado para escravizado, seduzindo esposa de Senhor, fugindo, levando propriedade valiosa. Mas contexto importava. Feliciana não havia escolhido Vicente. Fora forçada naquele casamento por pai que via apenas vantagem financeira. Sofrera anos de abuso que sociedade e igreja diziam ser dever suportar.
encontrar em Luís não apenas escape, mas amor verdadeiro, primeira pessoa em sua vida, que a tratava como ser humano com valor intrínseco. E Luís, nascido em escravidão, sem escolha ou controle sobre próprio destino, encontrarem Feliciana, não apenas amante, mas parceira, que o via como igual, como homem com direito à dignidade e amor.
Sua fuga e vida posterior desafiavam fundamentos de sociedade baseada em escravidão e em poder absoluto de homens sobre esposas. Provavam que escravizados não eram propriedade contente, mas pessoas desesperadas por liberdade. Provavam que mulheres não aceitariam abuso infinitamente se houvesse alternativa. Provavam que amor podia cruzar linhas de raça e classe que sociedade insistia a serem intransponíveis.
eram perigosos, não porque eram violentos, mas porque eram vivos, porque seu sucesso em construir vida feliz, fora de estruturas opressivas, sugeria que aquelas estruturas não eram naturais ou inevitáveis, mas construções humanas que podiam ser desafiadas e destruídas. E talvez no final seja isso que a história de Feliciana e Luís realmente ensina.
Não que traição é aceitável ou que votos não importam, mas que há situações onde sobrevivência física e espiritual exige escolhas que sociedade condena. Que há momentos quando obedecer regras significa morrer por dentro e desobedecer significa finalmente viver. que amor verdadeiro, quando encontrado, vale riscos que são necessários para protegê-lo.
Deus pode não aprovar traição, mas as tradições religiosas também ensinam sobre misericórdia, sobre compaixão, sobre entender contexto de ações humanas. Feliciana não traiu Vicente por capricho ou luxúria casual. Ela escolheu Luiz após anos de sofrimento insuportável. após encontrar nele primeira gentileza e respeito que experimentara, não justifica completamente em termos de doutrina rígida, mas adiciona humanidade e compreensão à situação, que não é preta ou branca, mas profundamente cinza.
A história de Feliciana e Luís permanece relevante gerações depois, porque toca em questões eternas. Como equilibramos compromissos que fizemos com necessidade de proteger nossa própria vida e dignidade? Onde está linha entre dever sacrificial e martírio desnecessário? Quando é aceitável quebrar regras que são elas mesmas injustas? Como navegamos entre absolutos morais e realidades complexas de vidas humanas vividas em circunstâncias imperfeitas? Não há respostas fáceis.
E história de Feliciana e Luís não pretende oferecer nenhuma, mas oferece exemplo de duas pessoas que enfrentaram escolhas impossíveis e escolheram amor, dignidade e vida sobre conformidade com o sistema que as destruiria. escolheram ser condenadas por sociedade, mas vivas em sentido real, ao invés de serem aprovadas, mas mortas por dentro.
E construíram algo belo a partir daquela escolha. Família que durou gerações, amor que sobreviveu todas dificuldades, legado de coragem que inspirou descendentes. Assim termina a história de como Siná escolheu escravo de olhos azuis e musculoso em leilão em tiradentes. Como aquela escolha aparentemente simples desencadeou o amor que desafiou todas regras, como fugiram juntos para construir vida livre? Como criaram família contra todas probabilidades, história complicada moralmente, impossível de categorizar simplesmente como certa ou errada, mas profundamente humana em sua complexidade,
profundamente real em seu reconhecimento de que às vezes sobreviver e amar exigem coragem de desafiar até mesmo as regras mais sagradas da sociedade. que Feliciana e Luís descansem em paz juntos na morte como na vida, tendo encontrado um ao outro quando mais precisavam, tendo construído algo belo e duradouro a partir de amor que mundo dizia ser impossível, tendo provado que coragem e compromisso podem criar família e felicidade, mesmo em circunstâncias mais improváveis. M.