A noite abafada de 1838. A lua cheia iluminava os canaviais de uma fazenda no Recôncavo Baiano, e um silêncio pesado cobria a Casa Grande como um manto de vergonha. Dentro daquelas paredes de pedra e cal, um segredo sombrio rasgava a alma de um jovem chamado Domingos.
Domingos era um negro alto e forte, de uns trinta anos, que trabalhava na Casa Grande desde menino. Sua mãe, Zefa, havia ficado para trás numa fazenda distante, e ele jamais a vira outra vez. Na casa dos Albuquerque, ele aprendera a ler às escondidas com a menina Isaura, que lhe ensinara as letras antes de partir. O Coronel Jacinto de Albuquerque era um homem de trato duro, mas justo. Sua esposa, a Sinhá Mariana, porém, era criatura de outra índole. Ela viera do Rio de Janeiro, moça linda de olhos de felino, e sentia o peso do tédio e da solidão naquela fazenda.
Foi na ausência do Coronel, em longas viagens de negócio, que Mariana começou a reparar em Domingos. No suor que lhe escorria pelo peito, nos músculos que se desenhavam sob a pele escura, nasceu nela um desejo proibido por todas as leis. Uma noite de lua cheia, quando o Coronel estava há quinze dias fora, Mariana mandou chamá-lo à Casa Grande, sob o pretexto de consertar uma janela.
Domingos subiu as escadas com o coração apertado, porque sabia que não havia janela quebrada. Quando entrou no quarto da Sinhá, ela estava de camisola branca, e o ar cheirava a vinho do Porto.

“Domingos, conserte essa janela para mim,” disse ela com voz macia.
Ele se aproximou, fingindo examinar a fechadura, as mãos a tremer. Foi quando sentiu a mão dela tocar-lhe as costas, os dedos subindo devagar pela sua camisa.
“Sinhá, isso não está certo,” murmurou ele, a voz rouca de terror.
Mariana riu baixinho, um riso que era ao mesmo tempo doce e cruel.
“Quem é você para dizer o que é certo, Domingos? Você é meu, assim como tudo nessa fazenda é meu.”
Ele se virou então e viu nos olhos dela uma mistura de desejo e poder que lhe gelou o sangue, porque entendeu naquele momento que não tinha escolha. Se recusasse, poderia ser açoitado, vendido, morto.
Naquela noite, Domingos fez o que ela mandou, e enquanto a possuía, ele sentiu que estava perdendo um pedaço da sua alma. Não havia prazer, só vergonha e nojo de si próprio. Mariana, porém, sentiu prazer, a embriaguez de ter dobrado aquele homem forte à sua vontade.
Depois daquela primeira noite, ela o chamou outras vezes, sempre quando o Coronel estava fora. Domingos ia porque não tinha alternativa, mas cada vez que subia aquelas escadas, sentia que morria um pouco por dentro. Na senzala, os escravos perceberam o tormento, mas o silêncio era a lei.
O pior veio quando o Coronel Jacinto voltou. A Sinhá continuou chamando Domingos, mas com mais cuidado. Domingos vivia em pânico constante. Ele pensou em fugir, mas sabia que seria caçado e chicoteado até que a carne abrisse. Numa dessas noites, na varanda da Casa Grande, ele pediu aos ancestrais que lhe dessem força. Foi quando ouviu a voz de Joaquim do Rosário, um escravo velho e sábio, que cuidava dos cavalos.
“Meu filho, eu sei o que está te acontecendo e sei que você não tem culpa, mas precisa ter cuidado porque tempestade grande está vindo.”
Três semanas depois, a Sinhá Mariana descobriu que estava grávida. Embora o Coronel acreditasse que o filho fosse dele, Mariana sabia que aquela criança poderia nascer com traços que denunciariam tudo. O medo a consumiu. Ela parou de chamar Domingos, passou a evitá-lo e pensou em vendê-lo para longe.
O alívio de Domingos durou pouco. Uma tarde, o Coronel Jacinto o chamou ao escritório.
“Domingos,” disse o Coronel com voz fria. “Me contaram umas histórias sobre você e minha esposa.”
Domingos sentiu o chão sumir. Ele sabia que qualquer palavra seria sua sentença de morte. Ficou calado.
“Eu vou te dar uma chance de falar a verdade, Domingos. E dependendo do que você disser, eu decido o que fazer contigo.”
Foi então que Domingos, num lampejo de coragem nascido do desespero, decidiu contar tudo. Contou como a Sinhá o chamava, como ele não podia recusar, como sofria a cada noite. As lágrimas desciam pelo seu rosto. Trinta anos de dor e humilhação saíram em palavras entrecortadas.
O Coronel Jacinto ouviu tudo em silêncio, o rosto ficando cada vez mais vermelho, as mãos apertando o chicote com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Quando Domingos terminou, houve um silêncio que pareceu durar uma eternidade. Depois, o Coronel disse apenas:
“Saia daqui, vá para a senzala e não saia de lá até eu decidir o que fazer.”
Naquela noite, a fazenda inteira ficou em silêncio tenso. Todos sabiam que uma tempestade estava se formando na Casa Grande. Ouviram-se gritos, pratos se quebraram, portas bateram, e de madrugada, um tiro ecoou pela fazenda.
De manhã cedo, o capataz veio à senzala e mandou Domingos se preparar. Disse que o Coronel ia vendê-lo para um comprador de escravos que estava de passagem. Um homem que levava negros para as charqueadas do sul, onde a vida era ainda mais dura. Era a vingança do Coronel: proteger Mariana e a honra da fazenda, descartando o homem que a Sinhá havia violado.
Domingos juntou suas poucas coisas: o livro que Isaura lhe dera, a imagem de Nossa Senhora, e se despediu dos companheiros. Joaquim do Rosário apenas disse:
“Que os ancestrais te acompanhem, meu filho, onde quer que você vá.”
Antes de partir, Domingos olhou uma última vez para a Casa Grande e viu a Sinhá Mariana na janela do quarto, a mão no ventre já levemente arredondado, os olhos vermelhos de choro. Naquele momento, ele não sentiu ódio nem pena dela. Sentiu apenas um vazio imenso, porque entendeu que ambos eram vítimas de um sistema cruel que transformava seres humanos em objetos. A criança que ela carregava era a última marca da violência do Coronel.

A viagem durou três semanas. A charqueada, no Rio Grande do Sul, era o inferno na terra. O ar cheirava a sangue e sal, e o trabalho era tão brutal que os homens duravam poucos anos. Domingos foi vendido para um estancieiro chamado Dom Rodrigo Tavares.
Nos primeiros dias, Domingos achou que não ia aguentar. Mas Antônio Bento, outro escravo forte vendido na mesma leva, não o deixava desistir.
“O dia que eu parar de pensar em liberdade,” dizia Antônio, “é o dia que vou deixar de ser homem para virar só uma peça de trabalho. E isso eu não aceito. Prefiro morrer tentando.”
As palavras de Antônio plantaram uma semente em Domingos.
Com o tempo, o frio rigoroso do sul chegou. Foi nesse tempo que ele conheceu uma escrava chamada Rosa, uma mulher de uns 25 anos, que trabalhava na cozinha da Casa Grande. Rosa, intuitiva e gentil, começou a separar as melhores sobras de comida para ele, pequenos gestos de carinho que faziam Domingos sentir que ainda havia bondade no mundo.
Uma noite, sentados perto do fogo, Rosa perguntou suavemente:
“O que te machucou tanto, Domingos? O que te arrancou a alegria dos olhos?”
E então, pela primeira vez desde que saíra de Vassouras, ele contou tudo. Contou sobre a Sinhá Mariana, sobre as noites de vergonha e dor, sobre a criança que talvez tivesse nascido com seus traços. As lágrimas desciam pelo seu rosto.
Rosa ouviu em silêncio.
“Você não tem culpa, Domingos. Você foi violado, assim como muitas mulheres são violadas pelos senhores. E isso não te faz menos homem. Isso só mostra como esse sistema é podre e cruel.”
As palavras de Rosa foram como bálsamo na alma ferida de Domingos. Pela primeira vez, alguém entendia que ele tinha sido vítima. A partir daquela noite, nasceu entre eles um sentimento verdadeiro e puro, diferente de tudo que ele tinha vivido. Eles se amaram pela primeira vez numa noite de lua nova, escondidos num canto da senzala, e foi a primeira vez na vida que Domingos sentiu que estava fazendo amor de verdade, sem medo, sem vergonha.
O amor entre Domingos e Rosa cresceu como planta bem regada. Mas Antônio Bento tinha outros planos: a fuga. Ele sabia de um quilombo nas serras, o Quilombo do Arroio Negro.
“Vem com a gente, Domingos,” dizia Antônio. “A Rosa pode vir também. Lá vocês podem casar e ter filhos livres.”
Dividido entre o medo e a vontade de ser livre com Rosa, Domingos conversou com ela.
“A gente tem que tentar,” disse Rosa com voz firme. “Porque se não tentar, a gente vai morrer aqui mesmo, um pouquinho a cada dia, até não sobrar nada da gente.”
Foi assim que Domingos se juntou ao plano de fuga. Eles marcaram para a noite de lua nova do mês seguinte. Doze escravos se encontraram perto do curral. Caminharam a noite toda, e no terceiro dia, os cães farejadores encontraram o rasto do grupo.
O ataque veio de surpresa. Começou um tiroteio violento. Domingos viu quando uma bala acertou Antônio no peito. Ele quis voltar, mas Rosa o puxou pelo braço.
“Ele já morreu, Domingos. A gente tem que correr ou vai morrer também.”
Eles correram pela mata como animais perseguidos. Quando acharam que iam ser pegos, encontraram uma gruta escondida atrás de uma cortina de cipós. Ficaram escondidos ali por dois dias.
Ao saírem, famintos e exaustos, Rosa teve a ideia:
“A gente não vai pro quilombo, a gente vai pra cidade. A gente se mistura com os negros livres e forros, arranja trabalho e tenta comprar nossa liberdade de outro jeito.”
Levou quase duas semanas até chegarem em Porto Alegre. Na cidade, eles se misturaram com a população urbana. Domingos conseguiu trabalho num armazém. Rosa trabalhou lavando roupa. Durante três anos, viveram escondidos à vista de todos, sempre com medo.
Nesse tempo, Rosa engravidou. Quando o filho nasceu, eles o chamaram de Antônio, em homenagem ao amigo que morrera lutando. Criar aquela criança deu um novo sentido pra vida de Domingos. Ele trabalhava dobrado para juntar dinheiro.
Até que, finalmente, depois de cinco anos na cidade, eles conseguiram uma carta de alforria falsa através de um escrivão corrupto. Eram documentos falsos, mas era tudo o que tinham entre eles e as correntes.
Com os papéis na mão, eles foram mais longe ainda: atravessaram a fronteira e foram para o Uruguai, onde a escravidão havia sido abolida. Em Montevidéu, finalmente puderam respirar aliviados.
Domingos trabalhou como estivador no porto. Rosa vendia quitutes na rua. Eles criaram o pequeno Antônio e mais dois filhos que nasceram depois, todos livres, todos com o sobrenome que eles mesmos escolheram: Liberdade.
Domingos Liberdade nunca mais esqueceu as noites de vergonha na fazenda dos Albuquerque, a dureza das charqueadas, a bala que matou Antônio Bento. Mas também não deixou que essas memórias o destruíssem. Ele transformou a dor em força, em amor pela família que construiu.
Às vezes, nas noites calmas de Montevidéu, ele contava para os filhos sobre o Brasil que deixara para trás, sobre a luta pela liberdade, e sempre terminava dizendo:
“Vocês nasceram livres, meus filhos, mas nunca esqueçam que essa liberdade custou sangue, suor e lágrimas de muitos que vieram antes, e vocês têm obrigação de honrar essa memória vivendo com dignidade.”
Rosa via-o ao lado, segurando a mão do marido, e sabia que, apesar de todas as cicatrizes que carregavam na alma, eles tinham vencido, porque estavam juntos, livres e com filhos que nunca saberiam o que era usar correntes.