No ano de 1865, quando o império de Maximiliano de Habsburgo começava a desmoronar-se sob o peso da resistência republicana, existia nos arredores de Guadalajara uma pequena povoação chamada San Miguel de los Remedios. Era um lugar onde as casas de adobe se estendiam em fileiras irregulares, conectadas por trilhos poeirentos que serpenteavam entre cactos e mesquites.
O ar sempre carregava o aroma do copal queimado nas igrejas e o som distante dos sinos que marcavam as horas de uma vida que decorria lenta, quase imutável. Numa dessas casas, construída com muros grossos de barro e telhada com telhas vermelhas que o tempo tinha escurecido, vivia a família Hernández Morales.
Joaquín Hernández, um homem de 42 anos de idade, trabalhava como carpinteiro nas oficinas próximas da praça principal. A sua esposa, María Dolores Morales, dedicava-se a costurar roupas para as famílias mais abastadas da vila. Tinham cinco filhos, mas era a mais pequena, Carmen Hernández Morales, de 18 anos de idade, quem tinha trazido à família uma preocupação constante desde o seu nascimento.

Carmen tinha chegado ao mundo com o que as parteiras da região chamavam o mal dos ossos quebrados. Os seus membros pareciam frágeis como ramos secos e qualquer movimento brusco podia resultar em fraturas que demoravam meses a sarar. Os médicos locais, poucos e com conhecimentos limitados, tinham declarado a sua condição como incurável.
Alguns sugeriam que era um castigo divino, outros falavam de sangue herdado de gerações anteriores. O certo era que Carmen, apesar da sua condição, tinha crescido até se converter numa jovem de notável inteligência e beleza, com olhos profundamente escuros que pareciam guardar segredos que o seu corpo frágil não podia expressar.
A casa dos Hernández estava localizada na Calle Real, uma artéria que conectava o centro de San Miguel com os caminhos que levavam às fazendas açucareiras do vale. Era uma construção modesta mas sólida, com um pátio central onde María Dolores cultivava ervas medicinais e flores de sempasúchil. Os quartos distribuíam-se à volta deste espaço e o mais pequeno, onde dormia Carmen, dava para o norte, recebendo apenas umas horas de luz solar direta durante o dia.
Durante os primeiros meses de 1865, a situação económica da família tinha começado a deteriorar-se. A guerra entre republicanos e imperialistas tinha afetado o comércio local e as encomendas de carpintaria de Joaquín tinham-se tornado escassas. María Dolores tentava compensar cosendo dia e noite, mas os pagamentos eram cada vez mais irregulares.
Os gastos médicos de Carmen, embora limitados pela falta de tratamentos eficazes, continuavam a ser uma carga constante. As medicinas que aliviavam a sua dor, principalmente preparados de ópio e extratos de ervas, deviam ser compradas na farmácia da vila a preços cada vez mais elevados.
Foi neste contexto de desespero económico que chegou a San Miguel de los Remedios o Dr. Aurelio Mendoza Castillo. Tratava-se de um homem de aproximadamente 50 anos de idade, de compleição robusta e cabelo grisalho, que vestia sempre fatos escuros e carregava uma bengala com punho de prata. Tinha chegado da Cidade do México, segundo ele próprio contava, fugindo dos distúrbios políticos que abalavam a capital.
Trazia consigo cartas de recomendação assinadas por médicos de prestígio, documentos que atestavam a sua experiência no tratamento de doenças raras e degenerativas. O Dr. Mendoza estabeleceu o seu consultório numa casa grande que tinha pertencido a uma família de comerciantes prósperos localizada na praça principal em frente à igreja paroquial.
Era uma construção de dois andares, com varandas de ferro forjado e uma porta principal de madeira maciça que permanecia fechada a maior parte do tempo. Nas janelas do andar superior, de onde o doutor atendia os seus pacientes, havia sempre cortinas corridas que impediam ver o interior. Os habitantes da vila depressa começaram a referir-se ao lugar como a casa do doutor forasteiro, embora nunca de maneira depreciativa, pois a presença de um médico educado na capital representava um luxo que San Miguel nunca tinha tido.
Nas primeiras semanas depois da sua chegada, o Dr. Mendoza dedicou-se a estabelecer relações com as famílias mais influentes da vila. Atendia gratuitamente os filhos dos comerciantes prósperos e oferecia consultas a preços reduzidos para aqueles casos que considerava de interesse científico. A sua fama cresceu rapidamente quando conseguiu curar a filha do presidente da câmara de uma febre persistente que tinha desafiado os curandeiros locais durante meses.
A notícia do seu sucesso espalhou-se por toda a vila e depressa começaram a chegar pacientes de povoações vizinhas. Foi María Dolores quem primeiro ouviu falar das habilidades especiais do Dr. Mendoza para tratar doenças consideradas incuráveis. Uma vizinha, cujo filho tinha sido tratado com sucesso pelo médico, comentou-lhe que o doutor tinha mencionado ter experiência particular com malformações ósseas e debilidades congénitas. A esperança, essa sensação que a família tinha aprendido a suprimir durante os 18 anos de vida de Carmen, começou a renascer no coração da mãe.
A consulta inicial teve lugar numa terça-feira de julho, quando o calor do verão convertia as ruas de San Miguel em rios de pó incandescente. Joaquín e María Dolores levaram Carmen ao consultório do Dr. Mendoza, carregando-a numa cadeira de madeira especialmente concebida para evitar movimentos que pudessem danificar os seus ossos frágeis. A sala de espera era ampla e fresca, decorada com livros médicos encadernados em couro e estranhos instrumentos que brilhavam sob a luz que se filtrava pelas janelas.
O doutor Mendoza recebeu a família com uma cortesia que raiava a solenidade. Examinou Carmen durante mais de duas horas, apalpando cuidadosamente os seus membros, medindo as proporções do seu crânio e tirando notas detalhadas num caderno de capas pretas. As suas perguntas eram precisas e técnicas.
Queria saber sobre a história médica de ambos os ramos familiares, sobre os sintomas específicos que Carmen tinha apresentado desde a infância, sobre as fraturas mais graves que tinha sofrido e como tinham sarado. Ao finalizar o exame, o Dr. Mendoza dirigiu-se aos pais com uma expressão grave mas esperançosa.
Explicou que a condição de Carmen era efetivamente rara, mas que tinha tido experiência tratando casos semelhantes em hospitais europeus durante os seus estudos de aperfeiçoamento em Paris. Mencionou tratamentos experimentais que envolviam a aplicação de metais específicos sobre os ossos, terapias de imersão em soluções minerais e o uso de aparelhos mecânicos concebidos para fortalecer gradualmente o sistema ósseo.
No entanto, advertiu que o tratamento seria longo, complexo e requereria que Carmen permanecesse sob o seu cuidado direto durante períodos extensos. Os procedimentos eram delicados e necessitavam de supervisão constante, monitorização noturna e ajustes diários nas medicações. Seria impossível realizar o tratamento mediante visitas esporádicas ao consultório.
Carmen teria que viver na casa do doutor durante o tempo que durasse o processo de cura, que poderia estender-se entre 6 meses e 2 anos dependendo de como o seu organismo respondesse. A proposta do doutor Mendoza incluía não somente o tratamento médico, mas também que Carmen recebesse educação formal durante a sua estadia.
O médico assegurou que tinha conhecimentos em letras, matemática e até idiomas estrangeiros, habilidades que poderiam ser de grande valor para o futuro da jovem. Esta oferta educativa era particularmente atrativa para uma família que jamais tinha podido custear a educação dos seus filhos para lá das lições básicas dadas pelo pároco local.
O custo do tratamento, no entanto, representava uma soma que estava completamente fora do alcance económico da família Hernández. O Dr. Mendoza pediu 500 pesos como pagamento inicial, mais 100 pesos mensais durante todo o período de tratamento. Para colocar esta quantidade em perspetiva, o salário anual de Joaquín como carpinteiro não superava os 200 pesos nos melhores anos.
A família teria que vender a sua casa, as suas ferramentas de trabalho e possivelmente contrair dívidas que os acompanhariam durante décadas. Foi então que o Dr. Mendoza propôs uma alternativa que, segundo ele, tinha utilizado noutros casos semelhantes quando as famílias não podiam custear os tratamentos. Carmen poderia trabalhar na sua casa como assistente durante os anos posteriores à sua cura.
Ajudando com tarefas administrativas, o cuidado de outros pacientes e a organização da sua biblioteca médica. Seria uma forma de pagamento diferido que permitiria à família aceder ao tratamento sem arruinar-se financeiramente. Carmen receberia alimentação, alojamento e educação contínua, enquanto o seu trabalho compensaria gradualmente o custo da sua cura.
A decisão não foi imediata. Joaquín e María Dolores solicitaram tempo para consultar com outros membros da família e refletir sobre a proposta. Durante as semanas seguintes, a casa dos Hernández converteu-se em cenário de longas conversas noturnas, onde se debatiam as vantagens e riscos de confiar a vida de Carmen a um médico que, apesar das suas credenciais, continuava a ser um forasteiro na vila.
Os irmãos mais velhos de Carmen tinham opiniões divididas. Pedro, o mais velho, de 26 anos de idade, trabalhava como comerciante no mercado local e acreditava que a família deveria tentar reunir o dinheiro necessário para um tratamento convencional, embora isto implicasse anos de sacrifício económico.
Luis, de 24 anos de idade, que tinha aprendido o ofício de carpinteiro junto ao seu pai, considerava que a proposta do doutor era a única oportunidade real que Carmen tinha de melhorar a sua condição. Ana, de 22 anos de idade, a irmã que mais tempo passava a cuidar de Carmen, era quem demonstrava maior inquietação sobre a ideia de separá-la da família durante tanto tempo.
Tinha notado que Carmen, apesar da sua fragilidade física, era emocionalmente dependente da rotina familiar e do cuidado constante que recebia em casa. A ideia de que vivesse com estranhos, por mais qualificados que fossem, gerava-lhe uma ansiedade que não conseguia explicar com palavras. José, o segundo filho de 20 anos de idade, tinha herdado o temperamento prático do seu pai e via na proposta do doutor uma solução que beneficiava todos os membros da família.
Se Carmen se curasse e ainda recebesse educação avançada, poderia ter um futuro próspero que compensaria os anos de doença. Além disso, a ausência dos gastos médicos constantes permitiria à família estabilizar a sua situação económica. Carmen mesma participou nestas discussões familiares com uma maturidade que superava os seus 18 anos de idade.
A sua condição tinha-a obrigado a desenvolver uma perspetiva sobre a vida que combinava resignação e esperança em proporções cuidadosamente equilibradas. Entendia que o tratamento proposto pelo Dr. Mendoza representava possivelmente a sua única oportunidade de experimentar uma vida sem as limitações constantes que tinha conhecido desde a infância.
Durante este período de deliberação, o Dr. Mendoza visitou a casa dos Hernández em duas ocasiões. Na primeira visita trouxe consigo livros médicos com ilustrações detalhadas de casos semelhantes ao de Carmen, mostrando os resultados bem-sucedidos que tinha obtido com os seus tratamentos experimentais.
As imagens mostravam radiografias, um procedimento que poucos habitantes de San Miguel conheciam, onde se podia observar a progressiva força que adquiriam os ossos submetidos às suas terapias. A segunda visita do doutor teve lugar num domingo à tarde quando toda a família estava reunida no pátio depois da missa dominical. Nesta ocasião o médico comportou-se de maneira mais informal, conversando sobre temas gerais e demonstrando um conhecimento surpreendente sobre a história local e as tradições da vila. Esta familiaridade com a cultura regional tranquilizou parcialmente as preocupações dos pais sobre confiar a sua filha a um completo forasteiro.
O doutor também aproveitou esta visita para examinar novamente Carmen, mas desta vez na presença de toda a família, explicando cada passo da sua avaliação médica. Salientou como as fraturas anteriores tinham sarado de maneira deficiente, criando deformidades que limitavam o movimento e força da jovem.
Descreveu, com termos técnicos, mas compreensíveis, como os seus tratamentos poderiam corrigir gradualmente estas imperfeições e fortalecer o sistema ósseo completo. Ao finalizar agosto de 1865, depois de semanas de consideração, a família Hernández tomou a decisão de aceitar a proposta do Dr. Mendoza.
A escolha final foi influenciada por vários fatores. A deteriorada situação económica familiar, a falta de alternativas médicas locais, as credenciais aparentemente sólidas do doutor e sobretudo a esperança de que Carmen pudesse finalmente ter uma vida normal. Os preparativos para a mudança de Carmen para a casa do doutor começaram imediatamente.
María Dolores preparou um baú com os pertences pessoais da sua filha, roupa cuidadosamente cosida, alguns livros de orações, um terço que tinha pertencido à sua avó materna e uma pequena imagem da Virgem de Guadalupe talhada em madeira. Carmen também levou consigo um caderno onde tinha escrito poemas e reflexões durante os longos períodos de repouso que a sua condição requeria. O Dr. Mendoza forneceu instruções específicas sobre como Carmen devia preparar-se para o início do tratamento.
Durante os dias prévios devia seguir uma dieta especial rica em leite e ovos, evitar qualquer esforço físico e tomar preparados de ervas que, segundo ele, fortaleceriam o seu organismo para os procedimentos que viriam. Também solicitou que lhe trouxessem todos os registos médicos disponíveis, incluindo as notas das parteiras que tinham assistido ao seu nascimento e qualquer documento que detalhasse as fraturas e tratamentos prévios.
A despedida teve lugar numa tarde de setembro, quando as primeiras chuvas do outono tinham refrescado o ambiente e enchido o ar com o aroma a terra húmida. Toda a família acompanhou Carmen até à casa do Dr. Mendoza, carregando os seus pertences numa carroça emprestada por Pedro.
O percurso da Calle Real até à praça principal demorou apenas uns minutos. Mas para a família representou uma separação que sentiam como permanente, embora todos esperassem que fosse temporária. O Dr. Mendoza recebeu Carmen com formalidade profissional, mas também com uma calidez que tranquilizou parcialmente os pais. Mostrou-lhes o quarto que tinha preparado para ela no andar superior da casa.
Um espaço amplo e bem ventilado, com uma cama especialmente concebida para proporcionar o suporte necessário para a sua condição óssea. O quarto tinha uma janela que dava para a praça, de onde Carmen poderia observar a vida quotidiana da vila e sentir-se conectada com a comunidade.
Os primeiros dias de Carmen na casa do doutor Mendoza decorreram segundo a rotina estabelecida. As manhãs começavam cedo com um pequeno-almoço especial preparado segundo as indicações médicas do doutor. Depois vinham as sessões de tratamento, que inicialmente consistiam principalmente em banhos em soluções minerais e a aplicação de unguentos nas áreas onde as fraturas prévias tinham deixado deformidades.
O doutor tinha explicado que o processo de cura seria gradual e que os primeiros resultados visíveis não apareceriam senão depois de várias semanas. Durante este período inicial, Carmen também começou a receber lições educativas. O Dr. Mendoza demonstrou ser efetivamente um homem educado, com conhecimentos em literatura, história e matemática que superavam consideravelmente a educação média disponível em San Miguel de los Remedios.
As tardes eram dedicadas a exercícios de fortalecimento muito suaves, concebidos especificamente para a condição de Carmen. Estes consistiam principalmente em movimentos controlados dos membros, sempre sob a supervisão direta do doutor, quem monitorizava qualquer sinal de dor ou fadiga.
Carmen também ajudava com tarefas administrativas simples como organizar os livros médicos do doutor e copiar notas em caligrafia cuidadosa. Aos domingos Carmen recebia visitas da sua família. María Dolores chegava sempre carregada de comida caseira e notícias do lar, enquanto Joaquín aproveitava estas visitas para conversar com o doutor sobre o progresso do tratamento.
Durante estas reuniões familiares, Carmen parecia animada e otimista, relatando melhorias no seu nível de energia e descrevendo os conhecimentos que estava a adquirir durante as suas lições educativas. No entanto, foi durante a terceira semana de outubro quando María Dolores notou a primeira mudança preocupante no comportamento da sua filha.
Carmen tinha começado a falar menos durante as visitas familiares. Respondia às perguntas de maneira mais breve e parecia evitar o contacto visual direto. Quando María Dolores perguntou se se sentia bem, Carmen assegurou que o tratamento avançava segundo o esperado, mas a sua mãe detetou uma tensão na sua voz que não tinha estado presente em visitas anteriores. O Dr. Mendoza explicou estes câmbios como parte normal do processo de adaptação.
Segundo ele, os tratamentos intensivos frequentemente causavam fadiga emocional temporária e era comum que os pacientes passassem por períodos de introspeção e menor sociabilidade. Assegurou que esta fase era transitória e que Carmen recuperaria a sua personalidade habitual assim que o seu organismo se acostumasse completamente aos procedimentos médicos.
Durante o mês de novembro, as visitas familiares tornaram-se menos frequentes. O Dr. Mendoza explicou que Carmen tinha entrado numa fase crítica do tratamento, onde a exposição a emoções fortes podia interferir com o processo de cura.
As visitas foram reduzidas a uma por semana e estas deviam ser breves, de não mais de uma hora de duração. Além disso, o doutor solicitou que as visitas fossem individuais, já que a presença de múltiplos familiares podia resultar excessivamente estimulante para Carmen. María Dolores foi a única que manteve as visitas semanais regulares.
Durante estas reuniões notou que Carmen tinha perdido peso de maneira notável e que a sua pele tinha adquirido uma palidez que não podia atribuir-se unicamente à falta de exposição solar. Quando perguntou sobre estes câmbios físicos, o Dr. Mendoza atribuiu-os aos efeitos secundários temporários das medicinas especializadas que Carmen estava a tomar para fortalecer o seu sistema ósseo.
As respostas do doutor eram sempre tecnicamente convincentes, cheias de termos médicos que María Dolores não podia compreender completamente, mas que soavam autoritários e profissionais. Mencionava processos de reestruturação óssea, realinhamento calcário e reconfiguração do tecido conjuntivo como explicações para os câmbios que a família observava em Carmen.
Foi durante a segunda semana de dezembro quando Joaquín insistiu em acompanhar a sua esposa numa visita para avaliar pessoalmente o progresso do tratamento. O Dr. Mendoza mostrou certa reticência inicial, argumentando que a presença do Pai podia ser emocionalmente perturbadora para Carmen no seu estado atual de tratamento.
No entanto, perante a insistência de Joaquín, acedeu a permitir uma visita conjunta de duração limitada. Durante esta visita, Joaquín notou vários detalhes que aumentaram a sua inquietação sobre a situação de Carmen. A sua filha parecia não somente mais magra e pálida, mas também mais reservada emocionalmente.
Respondia às perguntas com frases curtas e parecia constantemente consciente da presença do Dr. Mendoza, olhando-o antes de responder qualquer pergunta, como se procurasse aprovação para as suas palavras. Quando Joaquín perguntou especificamente sobre os progressos médicos, Carmen descreveu os tratamentos em termos vagos e gerais, mencionando exercícios especiais e medicinas novas, mas sem proporcionar detalhes concretos sobre os procedimentos ou resultados.
Esta falta de especificidade contrastava notavelmente com a personalidade naturalmente curiosa e detalhista que Carmen tinha demonstrado durante toda a sua vida. O Dr. Mendoza interveio frequentemente durante a conversação complementando ou clarificando as respostas de Carmen, de maneiras que, embora parecessem ser úteis, também limitavam a comunicação direta entre pai e filha.
Explicou que os pacientes em tratamento intensivo frequentemente tinham dificuldades para descrever tecnicamente os procedimentos médicos complexos e que era normal que dependessem dos seus médicos para explicar os processos de cura. Ao finalizar a visita, quando Joaquín e María Dolores se preparavam para se ir embora, Carmen acompanhou-os até à porta principal.
Foi neste momento, quando o doutor Mendoza se tinha retirado momentaneamente para procurar alguns papéis, que Carmen sussurrou rapidamente aos seus pais que tudo estava bem, mas que sentia muitas saudades da sua casa. O seu tom tinha uma urgência que os seus pais não puderam interpretar claramente, mas que os deixou com uma sensação de inquietação que persistiu durante dias.

Os dias seguintes a esta visita foram marcados por conversas frequentes entre Joaquín e María Dolores sobre o que tinham observado. Ambos partilhavam a sensação de que algo não estava completamente bem, mas também não podiam identificar problemas específicos que justificassem intervir no tratamento médico.
Carmen tinha dito que se sentia bem. O doutor tinha proporcionado explicações racionais para todos os câmbios observados e os sintomas físicos podiam efetivamente ser parte normal de um tratamento médico intensivo. Durante as seguintes duas semanas, as visitas familiares foram suspensas completamente. O Dr. Mendoza enviou uma mensagem explicando que Carmen tinha contraído uma febre menor que requeria isolamento temporário para evitar complicações. Assegurou que se tratava de uma reação comum durante as fases avançadas do tratamento ósseo, quando o organismo se ajustava às novas medicações e que Carmen se recuperaria completamente em poucos dias.
Esta suspensão de visitas estendeu-se muito para lá dos poucos dias prometidos inicialmente. Cada vez que Joaquín ou María Dolores se apresentavam na casa do doutor para perguntar sobre Carmen, recebiam explicações sobre complicações menores que requeriam extensão do período de isolamento.
O doutor mencionava riscos de contágio, necessidade de repouso absoluto ou fases delicadas do tratamento que não podiam ser interrompidas. Foi Ana, a irmã de Carmen, quem primeiro expressou abertamente as suas suspeitas sobre a situação. Durante uma reunião familiar, no início de janeiro de 1866, argumentou que as explicações do doutor se tinham tornado cada vez mais vagas e que o período de isolamento era excessivamente longo para qualquer febre menor.
Propôs que a família deveria insistir em ver Carmen, independentemente das objeções médicas do Dr. Mendoza. Pedro, o irmão mais velho, partilhava estas preocupações, mas argumentava que desafiar abertamente um médico sem evidência concreta de problemas podia ter consequências negativas. Se o doutor Mendoza era efetivamente competente e honesto, uma confrontação hostil por parte da família podia resultar na suspensão do tratamento, perdendo assim a única oportunidade de cura que Carmen tinha tido.
O dilema familiar intensificou-se quando José, durante uma visita ao mercado local, escutou comentários vagos de outros habitantes da vila sobre ruídos estranhos que se escutavam ocasionalmente na casa do Dr. Mendoza durante as noites. Estes comentários eram imprecisos e podiam ter explicações inocentes, mas acrescentavam uma dimensão adicional de inquietação às preocupações familiares existentes.
Ruídos estranhos foram mencionados pela primeira vez por Esperanza Villanueva, uma mulher de 60 anos de idade que vivia numa casa localizada diagonalmente em frente à praça principal. Esperanza tinha fama na vila pelos seus hábitos de observação meticulosa e a sua tendência a notar detalhes que outros passavam por alto.
Segundo os seus relatos, durante algumas noites tinha escutado sons que descrevia como lamentos prolongados provenientes do andar superior da casa do doutor. Estes relatos foram corroborados parcialmente por Tomás Aguilar, o sineiro da igreja paroquial, quem durante as suas rondas noturnas para tocar os sinos das horas, tinha notado luzes que se acendiam e apagavam irregularmente nas janelas do segundo andar da casa do doutor.
Tomás explicou que as luzes pareciam mover-se de quarto em quarto a horas incomuns, geralmente entre as 2 e as 4 da madrugada. No entanto, estes testemunhos não eram conclusivos. Os sons noturnos podiam explicar-se como parte de tratamentos médicos que requeriam atenção durante todas as horas do dia e as luzes irregulares podiam indicar simplesmente que o doutor mantinha um horário de trabalho não convencional para monitorizar a sua paciente.
Além disso, tanto Esperanza como Tomás admitiam que as suas observações eram fragmentárias e que podiam estar a interpretar incorretamente sons e luzes que tinham explicações completamente ordinárias. Foi Luis quem propôs uma solução que equilibrava a necessidade de verificar o bem-estar de Carmen com o respeito pela autoridade médica do Dr. Mendoza.
Sugeriu que a família solicitasse uma reunião formal com o doutor para discutir o progresso do tratamento e estabelecer um cronograma específico para a retoma de visitas familiares regulares. Esta aproximação permitiria avaliar a situação sem parecer confrontacional ou desconfiada. A reunião foi programada para uma terça-feira de fevereiro no consultório do Dr. Mendoza.
Assistiram Joaquín, María Dolores e Pedro como representantes da família. O doutor recebeu-os com a sua cortesia habitual, mas María Dolores notou uma tensão no seu comportamento que não tinha estado presente em encontros anteriores. As suas respostas às perguntas familiares eram corretas, mas pareciam ensaiadas, como se tivesse antecipado as inquietações que lhe apresentariam.
Quando Joaquín solicitou ver Carmen durante a reunião, o doutor explicou que ela estava a dormir sob os efeitos de sedativos necessários para um procedimento médico realizado nessa mesma manhã. Assegurou que despertá-la prematuramente podia interferir com o processo de recuperação e propôs programar uma visita para a semana seguinte, quando Carmen tivesse tido tempo suficiente para recuperar completamente.
O doutor também aproveitou a reunião para informar sobre o progresso significativo que Carmen tinha alcançado durante as últimas semanas. Segundo os seus relatórios, as estruturas ósseas da jovem tinham começado a mostrar sinais de fortalecimento e as deformidades causadas por fraturas anteriores estavam a responder positivamente aos tratamentos especializados.
Mencionou que o processo tinha alcançado uma fase onde os resultados começariam a ser visivelmente evidentes, mas que qualquer interrupção prematura podia reverter os avanços alcançados. Estas notícias otimistas foram recebidas com alívio pela família, mas também com uma cautela que tinham desenvolvido durante os meses de separação.
Pedro perguntou especificamente sobre o cronograma estimado para a finalização do tratamento e o doutor respondeu que baseando-se no progresso atual esperava que Carmen pudesse regressar ao seu lar antes do final do ano, possivelmente durante o outono de 1866. A visita programada para a semana seguinte foi adiada novamente devido ao que o doutor descreveu como uma recaída temporal no progresso de Carmen.
Explicou que estes retrocessos eram comuns em tratamentos experimentais e que requeriam ajustes imediatos nos procedimentos médicos. Assegurou que a situação se estabilizaria rapidamente, mas que precisava de concentração completa para fazer os ajustes necessários sem distrações externas. Durante o mês de março, a comunicação entre a família e o Dr. Mendoza tornou-se cada vez mais esporádica.
As consultas sobre o estado de Carmen eram respondidas com notas escritas, enviadas através de mensageiros, já que o doutor afirmava estar demasiado ocupado com o tratamento intensivo para receber visitas pessoais. Estas notas continuavam a ser otimistas sobre o progresso médico, mas proporcionavam cada vez menos detalhes específicos sobre os procedimentos ou o estado emocional de Carmen.
Foi Ana quem tomou a iniciativa de procurar informação adicional através de canais alternativos. Começou a frequentar o mercado local em horários específicos para escutar conversas sobre a casa do Dr. Mendoza e estabeleceu conversas casuais com vendedores e compradores que passavam regularmente em frente à praça principal. Os seus esforços por recolher informação foram discretos mas sistemáticos.
Através destas investigações informais, Ana descobriu que vários habitantes da vila tinham notado mudanças nos padrões de atividade na casa do doutor. Mercedes Rojas, uma vendedora de flores que instalava a sua banca na praça durante as manhãs, tinha observado que as cortinas do andar superior permaneciam fechadas constantemente, mesmo durante as horas de maior luz solar.
Esta observação contrastava com os primeiros meses depois da chegada de Carmen, quando as janelas se abriam regularmente para ventilação. Adicionalmente, Rosario Delgado, quem fornecia pão fresco às casas abastadas da vila, reportou que as suas entregas à casa do doutor tinham mudado significativamente. Durante os primeiros meses do tratamento de Carmen, o doutor ordenava pão suficiente para duas pessoas, mas desde janeiro tinha reduzido os seus pedidos a quantidades que pareciam apropriadas para uma só pessoa. Quando Rosario perguntou casualmente sobre esta mudança, o doutor explicou que Carmen tinha desenvolvido intolerâncias alimentares temporárias que requeriam uma dieta muito específica.
Estes fragmentos de informação, embora não conclusivos individualmente, começaram a formar um padrão que aumentava as preocupações familiares. A ausência total de visitas, a falta de comunicação direta com Carmen e as observações dos vizinhos sobre mudanças na rotina da casa criavam um conjunto de circunstâncias que a família já não podia ignorar. Durante os primeiros dias de abril, Joaquín tomou a decisão de confrontar diretamente o Dr. Mendoza, exigindo ver a sua filha sem mais demoras.
Acompanhado por Pedro e Luis, apresentou-se na casa do doutor durante uma tarde chuvosa, quando as ruas de San Miguel estavam praticamente desertas. O doutor inicialmente recusou-se a recebê-los enviando através da sua porta uma mensagem explicando que Carmen estava a passar por uma crise médica que requeria isolamento absoluto.
A resposta do doutor provocou uma reação que tinha estado a gerar-se durante meses. Joaquín, normalmente um homem de temperamento moderado, levantou a voz exigindo provas do bem-estar da sua filha. Pedro apoiou o seu pai argumentando que 6 meses sem contacto direto era uma situação inaceitável, independentemente das justificações médicas.
A confrontação atraiu a atenção de vários vizinhos que se aproximaram para observar o desenvolvimento da situação. Foi neste momento de tensão quando o Dr. Mendoza finalmente abriu a porta, mas a sua aparência tinha mudado notavelmente desde os últimos encontros. Tinha perdido peso.
A sua roupa parecia desleixada e os seus olhos mostravam uma fadiga que sugeria noites sem dormir. As suas primeiras palavras foram para lamentar profundamente informar que Carmen tinha falecido três semanas atrás devido a complicações súbitas relacionadas com a sua condição óssea congénita. O silêncio que se seguiu a esta revelação foi total.
O doutor explicou que a morte tinha sido repentina, causada por uma fratura interna nas costelas que tinha perfurado os pulmões sem sintomas externos evidentes. Segundo o seu relato, tinha tentado salvar Carmen mediante procedimentos de emergência, mas a fragilidade extrema do seu sistema ósseo tinha tornado impossível qualquer intervenção cirúrgica eficaz. María Dolores, quem tinha chegado a correr ao escutar as vozes elevadas na praça, colapsou ao receber a notícia.
O doutor explicou que tinha adiado informar a família porque tinha estado a realizar estudos postmortem para compreender melhor as causas do falecimento e proporcionar respostas específicas sobre o que tinha corrido mal durante o tratamento. As perguntas sobre o paradeiro do corpo de Carmen foram respondidas com explicações sobre a necessidade de cremação imediata devido a riscos de contágio associados com as medicinas experimentais que tinha estado a receber.
O doutor assegurou que tinha seguido todos os protocolos médicos apropriados e que tinha documentação detalhada sobre os procedimentos realizados tanto durante o tratamento como depois do falecimento. No entanto, a família exigiu ver esta documentação e obter uma segunda opinião médica sobre as causas de morte. O Dr. Mendoza acedeu a proporcionar todos os registos médicos, mas explicou que os documentos estavam no seu consultório privado e que necessitaria de tempo para os organizar apropriadamente. Programou uma reunião para o dia seguinte, onde apresentaria todos os detalhes médicos e responderia qualquer pergunta que a família pudesse ter.
Essa noite a família Hernández não dormiu. A casa na Calle Real encheu-se de vizinhos e familiares estendidos que chegaram para oferecer condolências e apoio. No entanto, as conversações estavam dominadas por perguntas sem resposta sobre as circunstâncias da morte de Carmen e a demora em informar a família. Vários vizinhos expressaram as suas próprias suspeitas sobre o Dr. Mendoza, mencionando comportamentos que tinham notado, mas que não tinham considerado significativos até agora.
A reunião programada para o dia seguinte nunca teve lugar. Durante as primeiras horas da madrugada, vários habitantes da vila notaram atividade incomum na casa do doutor Mendoza. Observaram-se luzes em movimento e sons que sugeriam que alguém estava a carregar objetos pesados. Ao amanhecer, quando Joaquín e os seus filhos se apresentaram para a reunião acordada, encontraram a casa completamente vazia. O Dr.
Aurelio Mendoza Castillo tinha desaparecido durante a noite, levando consigo todos os seus pertences, documentos médicos e qualquer evidência sobre o tratamento de Carmen. Os quartos estavam completamente despojados, sem móveis, livros ou instrumentos médicos. Até as cortinas tinham sido removidas, deixando as janelas nuas e a casa com um eco oco que amplificava os passos dos investigadores.
A busca de evidências na casa vazia revelou alguns detalhes perturbadores. No quarto do andar superior que supostamente tinha sido ocupado por Carmen, Pedro descobriu manchas no chão de madeira que pareciam ter sido limpas recentemente, mas que ainda mostravam descoloração. No pátio traseiro, Luis encontrou restos de cinzas que poderiam ter sido resultado da queima de papéis, roupa ou outros materiais orgânicos.
As autoridades locais, limitadas nos seus recursos e experiência com casos desta natureza, iniciaram uma investigação que depressa demonstrou ser inadequada para as circunstâncias. O presidente da câmara, quem tinha sido tratado com sucesso pelo Dr. Mendoza, mostrava-se reticente a aceitar acusações graves contra um médico que tinha proporcionado serviços valiosos à vila.
A falta de um corpo, documentos médicos ou testemunhas diretas tornava extremamente difícil proceder com ações legais específicas. Durante as semanas seguintes, a investigação revelou que as credenciais do Dr. Mendoza eram impossíveis de verificar. As cartas de recomendação que tinha apresentado ao chegar à vila continham assinaturas que não coincidiam com os médicos mencionados e as instituições europeias que supostamente atestavam a sua experiência não tinham registos da sua existência.
Até o seu nome podia ter sido falso, já que não se encontraram registos oficiais de um Dr. Aurelio Mendoza Castillo nos arquivos médicos da Cidade do México. A busca do doutor estendeu-se a povoações vizinhas, mas foi infrutífera. Parecia ter-se desvanecido completamente, possivelmente utilizando documentos de identidade alternativos para continuar a sua fuga para destinos desconhecidos.
Alguns relatórios não confirmados sugeriam que um homem de aparência similar tinha sido visto em cidades distantes, mas nenhum destes avistamentos pôde ser verificado de maneira conclusiva. Para a família Hernández, a perda de Carmen complicou-se com a ausência de respostas sobre as circunstâncias da sua morte.
A falta de um corpo para sepultar apropriadamente acrescentava uma dimensão adicional de dor ao seu luto. María Dolores desenvolveu uma depressão severa que a manteve confinada à sua casa durante meses, enquanto Joaquín se tornou obsessivo na sua busca de informação sobre o paradeiro do Dr. Mendoza. Os irmãos de Carmen reagiram de maneiras diferentes ao trauma familiar.
Pedro abandonou San Miguel de los Remedios permanentemente, mudando-se para Guadalajara, onde tentou esquecer os eventos que tinham destruído a sua família. Luis voltou-se para o álcool como escape do sentimento de culpa por ter apoiado a decisão de confiar Carmen ao doutor. Ana desenvolveu uma desconfiança profunda em relação a qualquer autoridade médica que persistiria durante toda a sua vida.
Em 1868, 3 anos depois do desaparecimento de Carmen, um comerciante itinerante que visitava San Miguel de los Remedios mencionou ter escutado histórias semelhantes em vilas de Michoacán e Guanajuato. Relatos sobre médicos forasteiros que chegavam com credenciais impressionantes, ofereciam tratamentos experimentais para doenças incuráveis e desapareciam depois de períodos prolongados com pacientes jovens. No entanto, estas histórias eram vagas e, de segunda mão, impossíveis de verificar ou conectar definitivamente com o caso de Carmen.

Os registos oficiais da vila arquivaram o caso como desaparecimento não resolvido em 1869. As autoridades regionais tinham determinado que sem evidência física do crime ou a localização dos envolvidos, não era possível continuar a investigação ativa.
O expediente foi armazenado nos arquivos municipais, onde permaneceu sem ser consultado durante décadas. A casa que tinha ocupado o Dr. Mendoza permaneceu vazia durante anos. O seu proprietário original tinha morrido durante a guerra e os seus herdeiros viviam em cidades distantes. Os habitantes da vila começaram a evitar a praça principal durante as noites e circularam rumores sobre ruídos inexplicáveis que ocasionalmente se escutavam no edifício abandonado.
No entanto, estes rumores nunca foram investigados formalmente. Em 1893, durante renovações do edifício municipal, trabalhadores encontraram uma coleção de documentos que tinham sido esquecidos num sótão húmido. Entre estes papéis encontrava-se uma carta sem data escrita na caligrafia cuidadosa que a família Hernández tinha aprendido a reconhecer como a de Carmen.
A carta estava dirigida aos seus pais e descrevia brevemente a sua situação na casa do doutor, mencionando tratamentos que não coincidiam com as descrições médicas que tinham recebido. A carta sugeria que Carmen tinha tentado comunicar com a sua família, mas que as suas mensagens tinham sido intercetadas.
Descrevia procedimentos dolorosos que se realizavam sem o seu consentimento e expressava medo sobre as verdadeiras intenções do Dr. Mendoza. No entanto, a carta estava incompleta e danificada pela humidade, tornando impossível determinar quando tinha sido escrita ou como tinha chegado aos arquivos municipais.
Para então, a maioria dos membros originais da família Hernández tinham falecido ou tinham-se mudado para longe de San Miguel de los Remedios. Joaquín tinha morrido em 1882, levando consigo a obsessão por encontrar respostas sobre o destino de Carmen. María Dolores tinha-o seguido dois anos depois, sem nunca ter superado completamente a perda da sua filha mais nova.
O descobrimento da carta renovou brevemente o interesse no caso, mas as autoridades de 1893 tinham ainda menos recursos para investigar eventos ocorridos quase três décadas atrás. A carta foi arquivada junto com os documentos originais do caso e o expediente foi transferido para os arquivos estatais onde desapareceu entre milhares de casos não resolvidos da época.
Em 1967, durante um projeto de digitalização de arquivos históricos, um estudante de história da Universidade de Guadalajara redescobriu o caso de Carmen Hernández Morales. A sua tese de licenciatura documentou as similaridades entre este caso e outros relatórios de médicos fraudulentos que tinham operado no México durante o século XIX.
No entanto, a investigação académica não pôde chegar a conclusões definitivas sobre o que realmente tinha ocorrido em San Miguel de los Remedios. A tese foi arquivada na Biblioteca Universitária e raramente consultada por outros investigadores. O caso de Carmen converteu-se numa nota de rodapé em estudos mais amplos sobre medicina rural e crime organizado durante o período pós-independência mexicano.
Os detalhes específicos do seu desaparecimento foram gradualmente esquecidos, sobrevivendo unicamente em arquivos académicos especializados. Hoje em dia, San Miguel de los Remedios cresceu até se converter num subúrbio de Guadalajara. A praça principal foi remodelada múltiplas vezes e a casa onde viveu o Dr. Mendoza foi demolida nos anos 50 para construir um edifício comercial moderno.
Não resta evidência física dos eventos que ocorreram ali durante o ano de 1865. A Calle Real onde vivia a família Hernández ainda existe, mas mudou completamente. As casas de adobe foram substituídas por construções de betão e os trilhos poeirentos converteram-se em ruas pavimentadas.
Os habitantes atuais da área desconhecem completamente a história de Carmen e a sua família e não há marcadores históricos que comemorem os eventos do século XIX. No entanto, ocasionalmente, residentes de idade avançada mencionam histórias familiares sobre uma jovem que desapareceu há muito tempo sob circunstâncias misteriosas.
Estes relatos são vagos e frequentemente contraditórios, misturando elementos da história real com décadas de transformação oral e embelezamento narrativo. O verdadeiro destino de Carmen Hernández Morales permanece desconhecido. Não existem evidências que confirmem a sua morte, a sua sobrevivência ou as circunstâncias específicas do que lhe ocorreu durante os meses que passou sob o cuidado do doutor Mendoza.
O caso representa um dos muitos mistérios não resolvidos da história mexicana do século XIX, quando a falta de comunicações eficazes e sistemas legais limitados permitiam que crimes desta natureza ocorressem sem consequências para os perpetradores. A família que confiou a sua filha doente, a um forasteiro que prometia cura, nunca recebeu as respostas que procurava.
Carmen simplesmente desapareceu, levando consigo qualquer testemunho sobre o que realmente experimentou durante os seus últimos meses de vida. A sua história sobrevive unicamente em documentos arquivados e na memória fragmentária de eventos que nenhuma testemunha viva pode confirmar completamente. E talvez em algum lugar, em arquivos ainda não descobertos ou em testemunhos que nunca foram registados oficialmente, permaneçam as respostas que a família Hernández nunca pôde encontrar.