
Valéria tinha apenas oito anos quando se tornou a última criança do orfanato São Gabriel, não por escolha, mas porque cada família que chegava à procura de um filho partia com um sorriso que não era o dela. Da sua pequena cama ao lado da janela, observava as malas serem feitas, uma e outra vez. Escutava os passos apressados nos corredores, as despedidas sussurradas, as promessas de cartas que nunca chegavam. E quando o silêncio se apoderava do edifício ao cair da noite, Valéria segurava nas suas pequenas mãos uma fotografia desfocada de uma mulher desconhecida. Não sabia quem era. Encontrara-a debaixo da sua almofada no dia em que completara cinco anos, como se alguém lhe tivesse querido presentear com um pedaço de história que ela não conseguia compreender.
Os olhos daquela mulher, a preto e branco, olhavam para ela com uma ternura que Valéria reconhecia, mas não conseguia decifrar. As irmãs do orfanato diziam-lhe que tinha aparecido numa madrugada de inverno, embrulhada numa manta azul-celeste com as suas iniciais bordadas, VM, Valéria Mendoza. Mas nenhum apelido era verdadeiramente seu; haviam-no inventado para lhe dar identidade nos papéis. Cada manhã, ao acordar, o seu primeiro pensamento era o mesmo: Hoje a minha mãe virá. Cada tarde, quando as sombras se alongavam pelo chão de madeira velha, sussurrava: Amanhã será o dia. E cada noite, antes de fechar os olhos, tocava suavemente o rosto da fotografia e perguntava em silêncio: Onde é que estás?
O que Valéria não sabia era que a quarenta quilómetros de distância, numa pequena aldeia rodeada de montanhas, uma mulher de cabelo grisalho e mãos trémulas segurava a mesma fotografia, uma cópia perfeita, e também sussurrava nomes ao vento a cada madrugada. Branca Esperança Morales tinha completado setenta anos, mas a sua memória permanecia presa àquele dezembro de 1945, quando teve de entregar a sua filha recém-nascida porque a pobreza lhe havia roubado até à esperança. Desde então, não passara um único dia sem que procurasse em cada rosto jovem os traços da menina que não pôde criar.
Tentara regressar ao orfanato três anos depois, quando conseguiu um emprego estável numa fábrica têxtil. Mas o edifício estava vazio. As irmãs disseram-lhe que os arquivos se tinham perdido num incêndio, que não havia maneira de localizar as crianças que tinham sido recolocadas noutras instituições. Branca chorou durante meses, mas nunca desistiu. Todos os domingos, depois da missa, visitava orfanatos, escolas, centros comunitários. Mostrava a fotografia de si mesma quando tinha vinte e dois anos e perguntava: — Viram uma menina que se pareça com esta mulher? A resposta era sempre a mesma: um sorriso compassivo e um silêncio que doía mais do que as palavras. Mas Branca tinha algo que Valéria ainda não compreendia: a certeza inexplicável de uma mãe. Sabia, com aquela intuição que transcende a lógica, que a sua filha estava viva, que respirava o mesmo ar e que talvez, em algum lugar, também a estivesse a procurar. O que nenhuma das duas sabia era que o destino já havia começado a tecer os fios do seu reencontro, pacientemente, ao longo de quatro décadas.
Valéria completou dezoito anos numa terça-feira chuvosa de abril. As irmãs do orfanato entregaram-lhe uma pequena mala, cem pesos, um certificado de educação básica e a morada de uma pensão onde poderia ficar até conseguir trabalho.
— Que Deus te abençoe, filha — disseram-lhe.
Mas Valéria já não esperava bênçãos; esperava respostas. Instalou-se num quarto estreito da pensão Santa Rosa, no bairro mais antigo da cidade. Trabalhava seis dias por semana a limpar escritórios de madrugada e, aos domingos, lavava roupa alheia no pátio de Dona Carmen, uma viúva que lhe tinha ganho afeto. Mas Valéria não era como as outras jovens da sua idade. Não falava de namorados, nem de bailes, nem de sonhos de casar. O seu mundo interior estava construído em torno de uma pergunta constante: Por que me abandonaram?
Desenvolvera uma rotina quase obsessiva. Todas as tardes, depois do trabalho, caminhava por diferentes bairros da cidade. Não sabia exatamente o que procurava, mas algo no seu íntimo lhe dizia que reconheceria a resposta quando a visse. Observava as mulheres mais velhas nos mercados, nas praças, nas portas das igrejas. Procurava um olhar, um gesto, algo que lhe dissesse: Sou eu, estive à tua procura. A fotografia desfocada vivia agora na sua mesinha de cabeceira, encostada a um copo de água. Todas as manhãs lhe dava os bons-dias e todas as noites lhe contava como tinha sido o seu dia. Era a sua única família.
Enquanto isso, a quarenta quilómetros de distância, Branca transformara a sua pequena casa num santuário de busca. As paredes estavam cobertas de mapas da região, listas de orfanatos, números de telefone de assistentes sociais reformadas e recortes de jornais sobre reencontros familiares. Todos os anos, religiosamente, ela tomava o autocarro para diferentes vilas e cidades. Levava sempre o mesmo saco de pano gasto com cópias da fotografia e uma descrição escrita à mão: Procuro a minha filha, nascida a 15 de abril de 1945, entregue ao orfanato São Gabriel. Cabelo castanho-escuro, olhos verdes, pequena pinta no ombro direito. Os anos haviam prateado completamente o seu cabelo e marcado rugas profundas à volta dos olhos, mas a sua determinação permanecia intacta. Tinha poupado cada peso durante décadas para financiar esta busca que parecia infinita.
Na sua mesa da cozinha, Branca tinha três cadernos cheios de moradas, nomes e pistas que nunca levavam a lado nenhum. Mas também tinha algo mais: cartas. Centenas de cartas escritas à mão dirigidas à Minha querida Valéria. Eram cartas que nunca enviou porque não sabia para onde as enviar. Cartas onde lhe contava sobre a infância que nunca partilharam, sobre aniversários que celebrava sozinha, sobre Natais em que punha um prato extra na mesa, por via das dúvidas. Minha linda menina, começava sempre, Hoje fazes quinze anos e eu estou a cozer o teu bolo favorito, embora eu não saiba qual é o teu bolo favorito. Imagino que gostas de chocolate porque eu gostava na tua idade.
Em dezembro de 1945, o mundo de Branca Esperança Morales desmoronou-se como um castelo de cartas. O seu marido, Eduardo, abandonou-a quando ela estava grávida de oito meses. Deixou uma nota sobre a mesa da cozinha: Não estou pronto para ser pai, perdoa-me. Junto à nota, deixara trinta pesos e a sua aliança de casamento. Branca não chorou naquele dia. Não tinha tempo para lágrimas. Trabalhou até ao último dia de gravidez, limpando escadas e lavando roupa com a barriga tão grande que mal conseguia baixar-se.
Valéria nasceu num domingo ao amanhecer, no hospital público. Branca segurou-a nos braços durante exatamente quatro horas e vinte minutos, o tempo suficiente para memorizar cada detalhe: os olhos cor de esmeralda, a diminuta pinta no ombro direito, a forma das suas mãos pequenas e perfeitas.
— Eu amo-te — sussurrou-lhe, enquanto lhe dava o peito pela primeira e última vez. — Eu amo-te mais do que jamais poderás imaginar. E um dia, quando fores mais velha, vais entender que tudo o que eu faço é para que tenhas uma vida melhor do que aquela que eu posso dar-te.
A assistente social do hospital chamava-se Elena Rosario. Tinha olhos bondosos, mas voz firme. Branca, não tens rendimentos estáveis, não tens família para te apoiar. Vives num quarto que não é teu. Esta menina precisa de uma oportunidade real. O orfanato São Gabriel é uma boa instituição. Antes de entregar Valéria, Branca fez algo que mudaria para sempre o curso das suas vidas. Pegou na única fotografia que tinha de si mesma, um retrato que fizera no dia do seu casamento, e partiu-a ao meio. Uma metade colocou junto ao seu bebé na manta; a outra metade ficou consigo. Assim, pensou, um dia poderemos juntar as duas partes. Ela não sabia que aquela fotografia chegaria anos depois às mãos de Valéria, que a conservaria sem entender que era a metade de um coração partido.
Branca tentou visitar a sua filha em segredo durante os primeiros três anos. Ficava junto à grade do orfanato aos domingos à tarde e observava as crianças a brincar no pátio. Reconhecia Valéria imediatamente. Era a mais pequena, a mais silenciosa, a que olhava sempre para a rua, como se estivesse à espera de alguém. Um dia, prometia a si mesma, quando tiver um trabalho melhor e uma casa própria, voltarei por ti. Mas quando finalmente conseguiu estabilidade económica, o orfanato tinha fechado e os arquivos tinham-se perdido no incêndio.
Em 1985, Valéria completou quarenta anos. Era uma segunda-feira cinzenta, um daqueles dias em que a cidade parecia vestida de nostalgia. Passara de limpar escritórios a trabalhar como costureira numa pequena oficina têxtil do bairro. Tinha mãos hábeis e um olhar preciso para os detalhes, mas o seu coração continuava a viver no mesmo lugar: na busca de respostas que nunca chegavam.
Dona Carmen, que já tinha setenta anos, tentou confortá-la: — Já é hora de parares de procurar fantasmas e começares a viver a tua própria vida.
Mas Valéria não podia explicar que não se tratava de fantasmas; tratava-se de uma necessidade visceral, como a necessidade de respirar. Não podia construir uma vida própria sobre a base de uma história incompleta.
Nessa tarde, como fazia todos os anos no seu aniversário, Valéria tomou o autocarro para os arredores da cidade. Visitou uma pequena aldeia chamada San Isidro. Sentou-se num banco da praça, a observar as mulheres mais velhas que regressavam da missa. Uma idosa parou em frente a ela e disse: — Desculpe, menina, não será você da família Morales? Tem uma semelhança incrível com uma rapariga que conheci há anos. Valéria sentiu o coração parar, mas quando pediu mais detalhes, a idosa negou com a cabeça: — Não, não. Vendo-a melhor, confundi-me. Perdão por a incomodar.
Enquanto Valéria regressava à cidade no último autocarro da noite, sem saber porquê, Branca acordava de um sonho extraordinário. Sonhara com uma mulher jovem, sentada sozinha na praça de San Isidro. A mulher tinha olhos verdes e chorava em silêncio. No sonho, Branca aproximava-se e dizia-lhe: Eu estive à tua procura a vida toda.
Branca acordou com o coração acelerado. Embora o sonho se tenha tornado vago, ele desencadeou uma nova urgência. Decidiu fazer algo que nunca tinha feito: colocar um anúncio no jornal local. Procuro a minha filha, nascida a 15 de abril de 1945, entregue ao orfanato São Gabriel. Cabelo castanho, olhos verdes. O seu nome é Valéria. Se és tu ou se conheces alguém que possa ser, por favor, comunica com Branca Esperança Morales. Telefone 47892.
O anúncio foi publicado num domingo. Nessa mesma noite, Valéria teve o sonho mais vívido da sua vida. Estava a caminhar por um caminho rodeado de girassóis. No fim, estava uma mulher mais velha com cabelo prateado, segurando a outra metade da sua fotografia. No dia seguinte, Valéria comprou o jornal. Passou as páginas distraidamente, e então viu-o. Procuro a minha filha, nascida a 15 de abril de 1945. As suas mãos começaram a tremer. A data de nascimento estava correta. O orfanato estava correto. O nome: O seu nome é Valéria.
O jornal caiu no chão. Valéria ficou sentada, imóvel. Alguém a tinha estado a procurar. Alguém sabia o seu nome. Alguém a tinha estado a esperar durante quarenta anos.
Valéria demorou três dias a ganhar coragem para fazer aquela chamada. Três dias a imaginar todos os desfechos possíveis. Na quinta-feira à tarde, do telefone público da esquina, marcou o 47892.
— Alô.
A voz era de uma mulher mais velha, suave, mas firme.
— Senhora Branca Morales?
— Sim, sou eu. Com quem falo?
Valéria fechou os olhos. Todo o seu mundo cabia nas seguintes palavras: — O meu nome é Valéria. Nasci a 15 de abril de 1945 e creio… creio que a senhora é a minha mãe.
O silêncio que se seguiu durou apenas cinco segundos, mas pareceram cinco anos. Depois, Branca começou a chorar.
— Meu Deus — sussurrou. — Meu Deus, minha menina, minha linda menina, eu encontrei-te. Finalmente encontrei-te.
— A senhora encontrou-me? — perguntou Valéria, com a voz trémula.
— Eu estive à tua procura todos os dias da minha vida, meu amor. Todos os dias desde que tinhas quatro horas de vida.
— Podemos… podemos ver-nos? — sussurrou Valéria.
— Sim, minha menina, sim, por favor. Amanhã, onde tu quiseres.
Combinaram encontrar-se no dia seguinte na praça central da cidade, em frente à fonte dos peixes dourados. Branca levaria um cravo branco na mão direita. Valéria levaria a fotografia desfocada.
— Como é que te vou reconhecer? — perguntou Branca.
— Não se preocupe — respondeu Valéria, com uma estranha certeza. — As mães reconhecem sempre as suas filhas.
O dia seguinte amanheceu límpido, com aquele tipo de luz dourada que faz com que tudo pareça uma promessa cumprida. Valéria chegou à praça às 14h30, meia hora antes do combinado. A cada mulher idosa que passava, o seu coração acelerava. Às 14h55, viu uma mulher mais velha a aproximar-se lentamente pelo caminho principal da praça. Usava um vestido azul-marinho simples e na mão direita segurava um cravo branco. Mas não foi o cravo que fez Valéria saber, sem margem para dúvidas, que aquela era a sua mãe.
Branca chegou exatamente às três em ponto. Valéria reconheceu-a de imediato, não pela semelhança física, mas pela maneira como parou quando a viu, pela forma como o seu rosto se iluminou com uma mistura de alegria e dor tão profundas que pareciam sagradas, e pela forma como levantou uma mão trémula em direção à boca e sussurrou algo que Valéria não conseguiu ouvir, mas entendeu perfeitamente: É a minha menina.
Aproximaram-se lentamente, como se temessem que o momento fosse tão frágil que pudesse partir-se com um movimento brusco.
— Valéria… mãe… — A palavra saiu dos seus lábios sem que Valéria a pudesse deter. Quarenta anos à espera de dizer aquela palavra, e agora fluía tão naturalmente como respirar.
Branca tirou da sua bolsa a metade de uma fotografia que guardara durante quarenta anos. Com as mãos trémulas, mostrou-a a Valéria. — Eu parti-a em duas no dia em que te entreguei. Pensei que um dia poderíamos juntá-las.
Valéria tirou a sua fotografia desfocada. Quando as juntaram sobre a mesa de pedra da fonte, formaram a imagem completa de uma mulher jovem a sorrir no dia do seu casamento.
— Eras tu — sussurrou Valéria. — Sempre foste tu.
Abraçaram-se pela primeira vez desde que Valéria tinha quatro horas e vinte minutos de vida. Foi um abraço que continha quatro décadas de ausência, de aniversários perdidos, de noites de insónia a perguntarem uma pela outra. Um abraço que curava feridas que nenhuma das duas sabia que tinha.
— Procurei-te todos os dias da minha vida — disse Branca, enquanto lhe acariciava o rosto com os dedos trémulos. — Todos os dias, meu amor. Mesmo quando não sabia como te encontrar, o meu coração procurava-te.
— Eu também — confessou Valéria. — Não sabia que te procurava, mas algo em mim sempre soube que faltava alguém.
Foi então que Branca lhe contou a história completa. Falou-lhe do homem que a tinha abandonado, da família que a expulsou por vergonha, dos meses a viver em quartos alugados, lavando roupa alheia para poder comer.
— O dia em que nasceste — sussurrou Branca. — Eu tive-te nos braços durante quatro horas. Contei-te todos os contos que sabia… E prometi-te que um dia, quando fosse suficientemente forte para cuidar de ti, voltaria.
Branca tirou da sua bolsa um envelope amarelado, gasto pelos anos. — Durante quarenta anos, todos os meses, eu separei dinheiro para ti. Dinheiro que nunca te pude dar, mas que guardei como se fosses aparecer a qualquer momento. Está tudo aqui. Cada peso que eu teria gasto nos teus aniversários, nos teus materiais escolares, nos teus primeiros sapatos de salto.
— Por que puseste o anúncio no jornal precisamente agora? — perguntou Valéria.
Branca sorriu com tristeza. — Porque o médico me disse que o meu coração está cansado. E eu não podia ir-me embora deste mundo sem tentar uma última vez, sem te dizer que foste a coisa mais linda que me aconteceu na vida.
— Tenho uma casa pequena — disse Branca, finalmente. — E um quarto que sempre mantive pronto para ti. Tem uma janela que dá para o jardim onde eu cultivo cravos brancos. Gostarias? Gostarias de vir comigo?
Valéria olhou para aquela mulher que tinha sido a sua mãe desde antes de nascer.
— Sim, mãe. Quero ir para casa contigo.
Caminharam de braço dado pelas ruas da cidade, enquanto o pôr do sol as banhava com luz dourada. Duas mulheres que tinham esperado quarenta anos para regressarem a casa juntas. Naquela noite, Valéria dormiu pela primeira vez no quarto que a sua mãe mantivera pronto durante quatro décadas. Nas paredes, havia desenhos de todas as idades que Branca imaginara para ela. E sobre a mesa de cabeceira, uma nota que dizia: Bem-vinda a casa, minha linda menina. Que os teus sonhos esta noite sejam tão doces como todos os que tive contigo durante estes anos. Pela primeira vez na sua vida, Valéria soube exatamente quem era e de onde vinha. Era a filha de Branca Morales, a mulher que nunca a deixou de amar, nem por um único dia, e que lhe tinha ensinado que o amor de mãe não conhece o tempo; só conhece o caminho de regresso a casa.