
As filhas gêmeas de um milionário começam a perder peso misteriosamente dia após dia, entrando em um estado chocante e nenhum médico consegue descobrir o que está acontecendo. Mas, em uma tarde, quando o pai das meninas chega mais cedo do trabalho e percebe a esposa colocando algo estranho na comida das gêmeas, ele entra em pânico ao entender o que realmente estava acontecendo com suas filhas.
“O que aconteceu, querida? Por que você está chorando assim? É por causa das meninas? Elas estão bem? Diga-me, o que aconteceu?” João, um pai de família dedicado e conhecido no centro da cidade pela loja de importados que administrava sozinho, chegou em casa naquele final de tarde com a cabeça cheia por causa do trabalho. Não esperava que, ao entrar na sala de jantar, encontraria Cassandra, sua esposa, completamente desabada sobre a mesa.
Ela tinha o rosto encharcado, os ombros tremendo e parecia tão fraca quanto ele jamais a tinha visto. Cassandra sempre foi uma mulher forte, objetiva, focada em seus próprios sonhos e comprometida com a família. Uma mulher que raramente se deixava abalar por qualquer coisa, mas naquele momento parecia que o mundo inteiro tinha caído sobre ela. João avançou rapidamente, o desespero marcando seu rosto, e se inclinou perto dela.
“O que aconteceu, querida? Por que você está chorando assim? É por causa das meninas? Elas estão bem? Diga-me, o que aconteceu?”, perguntou ele com a voz trêmula. Cassandra respirou fundo, tentou limpar as lágrimas com as mãos já molhadas, mas o choro insistia em continuar caindo. Quando finalmente conseguiu falar, sua voz saiu baixa. “São as meninas. Hoje os professores delas fizeram uma denúncia ao Conselho Tutelar. Eles vieram aqui, João. Entraram, interrogaram as meninas, revistaram a casa toda, todo aquele procedimento como se fôssemos maus pais.” As palavras atingiram João como uma pedra. Ele empalideceu na hora, sentindo o chão desaparecer sob seus pés. Não podia acreditar que os professores de suas filhas tivessem tomado uma atitude tão extrema.
Já fazia algum tempo que lhe chamavam a atenção para o comportamento estranho das meninas, mas jamais imaginou que isso chegaria tão longe. Bia e Ana, suas filhas gêmeas, sempre foram meninas carinhosas, unidas entre si e conectadas com a família, principalmente com a madrasta Cassandra, que estava com elas há tantos anos que nem sequer tinham lembrança de uma vida antes dela. Mas há cerca de um ano tudo mudou. As duas pararam de comer com a família. Evitavam a mesa de jantar como se algo ali lhes causasse repulsa. Se trancavam no quarto por horas, só saíam para ir à escola. Passavam tempo demais na frente do computador e o que mais doía em João, quase não falavam mais com ele.
Ele notou a mudança, é claro, mas tentou se convencer de que era apenas uma fase da adolescência. Preferiu acreditar nisso. Preferiu fechar os olhos, acreditando que se esperasse um pouco, tudo voltaria ao normal. Só que enquanto ele se fazia de cego, outras pessoas começaram a notar e a apontar e a questionar. João era um homem consumido pelo trabalho. Vivia frustrado por não conseguir dar toda a atenção que suas filhas mereciam, atenção que ele sabia ser necessária. Sua sorte era ter Cassandra, que sempre assumia esse papel, cuidando das meninas, conversando, tentando entender. Nas últimas semanas, no entanto, Bia e Ana começaram a reclamar de tontura, de fraqueza. Pareciam sempre cansadas, mas quando Cassandra insistia para que comessem, elas comiam. Sentavam-se para jantar, petiscavam algo, tomavam vitaminas. Ninguém entendia por que o peso delas caía tão rápido. Era como se seus corpos estivessem se desligando por dentro. Exames médicos eram feitos e refeitos. Todos mostravam que, além da desnutrição severa, elas estavam saudáveis. Nada justificava esse estado. Os suplementos não funcionavam, os medicamentos não funcionavam, o desespero crescia e jamais, jamais João e Cassandra imaginaram que alguém suspeitaria de maus-tratos. Nunca lhes passou pela cabeça que o Conselho Tutelar bateria na porta como se fossem monstros.
Vendo Cassandra completamente arrasada sobre a mesa, João sentiu um aperto no peito. A pergunta saiu sozinha, carregada de angústia. “E agora, o que eu faço para ajudar nossas filhas? Ninguém consegue descobrir o que elas têm.” Ele passou a mão pelo rosto tentando organizar os pensamentos quando notou uma revista aberta sobre a mesa. Era uma revista de tecnologia, justamente na seção de computadores e consoles. Aquilo despertou um pensamento incômodo, quase desesperado. E se o problema viesse dos jogos que as meninas passavam horas jogando? A dúvida o corroeu. Precisava saber. Queria olhar para as filhas nos olhos. Precisava entender. Virou-se para Cassandra e disse: “Decidido, eu vou falar com elas.”
Cassandra arregalou os olhos e se endireitou na cadeira como se tivesse levado um susto. “Mas, amor, você sabe muito bem que elas não falam mais com você. A única pessoa que consegue conversar com elas sou eu.” João segurou os ombros dela tentando transmitir firmeza e carinho ao mesmo tempo. “Eu sei, meu amor, e sou grato demais por tudo o que você faz por elas. Você não tinha obrigação nenhuma, mas as cuida como uma mãe. Eu valorizo isso todos os dias, você sabe, mas eu preciso fazer isso agora. Eu sou o pai delas. Eu tenho que tentar. Eu tenho que descobrir o que está acontecendo.” Cassandra pensou em insistir, mas sabia que seria inútil. Quando João colocava algo na cabeça, não havia argumento que o fizesse mudar, então ela apenas respirou fundo e assentiu suavemente.
João começou a subir as escadas devagar. Cada passo parecia pesar toneladas. Quando chegou ao corredor do andar de cima, sentiu o coração acelerar de uma forma estranha, quase dolorosa. Ao parar em frente à porta do quarto das meninas, suas pernas ficaram rígidas. Era como se cordas invisíveis o prendessem no lugar. Sua respiração ficou pesada e uma onda de medo o invadiu. Tinha medo de ser ignorado de novo. Medo do que poderia ouvir, medo de olhar para as próprias filhas e ver algo que não tinha visto antes, medo de descobrir que a culpa era dele por não ter prestado atenção, por ter acreditado que era só uma fase. Mas, apesar do pânico, ele fechou o punho, respirou fundo e bateu na porta três vezes. Depois disso, sua voz saiu baixa, quase engolida pela ansiedade. “Meninas, eu posso entrar?”
João permaneceu parado em frente à porta, esperando qualquer sinal das filhas. Conseguiu ouvir do outro lado o som abafado de murmúrios. As duas cochichavam baixinho, como se estivessem decidindo entre si se deixariam o pai entrar ou não. Pensou em insistir, em dizer algo mais, mas conteve a vontade. Sabia que forçar a entrada só aumentaria a distância que já existia. Então ficou ali imóvel, esperando a decisão delas, enquanto seu coração parecia bater dentro da garganta.
Depois de um longo minuto, finalmente ouviu as duas responderem ao mesmo tempo com vozes pequenas, mas firmes. “Pode entrar, pai.” João respirou fundo e abriu a porta devagar. Entrou no quarto, iluminado apenas pelo monitor do computador, que refletia uma luz azulada no rosto das garotas, deixando-as pálidas com olheiras ainda mais profundas. “Olá, minhas queridas”, disse ele sem conseguir esconder o nervosismo que carregava na voz. “Vocês, vocês se incomodam se eu sentar aqui e a gente conversar um pouco?” As duas se entreolharam de soslaio e por um instante pareceu que tinham trocado um diálogo inteiro sem abrir a boca. Então, Bia respondeu com uma expressão dura. “O senhor é o dono da casa. Pode sentar onde quiser.” João sentiu a mandíbula tensionar no mesmo instante. Elas não estavam dizendo que o escutariam, apenas estavam reconhecendo que não tinham como impedi-lo. Era um tipo de rejeição que ele já tinha aprendido a identificar. Aquele tipo de resposta que deixa claro que a pessoa não quer vínculo, não quer conversar, mas não tem poder para fugir. As meninas, sem dar mais atenção a ele, voltaram a jogar no computador. Os cliques rápidos do teclado preencheram o ar como um aviso silencioso de que não pretendiam falar. Então ele respirou fundo e pediu com cuidado, tentando não soar autoritário. “Meninas, vocês podem largar o computador um momento e me escutar?” Bia e Ana soltaram um suspiro profundo ao mesmo tempo, como se estivessem sendo forçadas a fazer algo cansativo, algo para o qual já não tinham mais paciência nenhuma, mas obedeceram. Tiraram as mãos do teclado, giraram a cadeira e olharam-no direto nos olhos. João sentiu o estômago apertar quando finalmente encarou as duas. Era raro ter a atenção delas. Assim, aproveitou o momento para analisar o rosto de suas filhas com mais atenção. Havia algo ali, algo que incomodava muito mais do que simples irritação adolescente. As duas pareciam ansiosas, tensas, mas era mais profundo que isso. Era a expressão de alguém que tentou falar muitas vezes em momentos distintos e foi ignorado em todas essas vezes. Era o olhar cansado de quem aprendeu a desistir. Mas para João isso não fazia sentido. Ele não se lembrava de nenhum momento em que elas tivessem tentado conversar ou procurá-lo. Nunca. Então, por que pareciam tão esgotadas, tão ressentidas? Será que ele realmente não tinha prestado atenção suficiente? Será que deixou passar coisas importantes sem notar? Essa dúvida lhe corroeu a mente, mas mesmo nervoso, sabia que não podia deixar que o medo o silenciasse. Então respirou fundo e falou.
“Cassandra me contou sobre a visita do Conselho Tutelar aqui em casa e eu preciso falar com vocês sobre isso.” Foi Bia quem respondeu primeiro, incomodada, cruzando os braços e franzindo a testa. “Bom, mas o que a gente tem a ver com isso? Não fomos nós que chamamos eles. Não é nossa culpa. A gente sempre disse para os professores que era magreza por causa de algum problema médico que eles estão tentando descobrir. Eu não entendo por que o senhor quer falar com a gente.” João começou a tamborilar os dedos na perna, como sempre fazia quando estava ansioso, mas tentou parecer firme, embora por dentro estivesse tremendo.
“Filha, os professores não chamam o conselho sem motivo.” Ele engoliu em seco e continuou. “Eu não estou dizendo que vocês fizeram algo de errado de forma alguma. Eu estou dizendo que vocês são o motivo da preocupação deles, não porque fizeram algo de ruim, mas porque as pessoas se deixam levar muito pelo que veem e muito pouco pelo que escutam.” Ele inclinou o corpo um pouco para frente, tentando se conectar de forma mais humana, mais próxima. “Vocês sabem muito mais do que eu que as pessoas reparam na aparência de vocês. As tonturas, as dores, o cansaço. Nada disso é culpa de vocês, mas o fato de vocês estarem desse jeito influencia diretamente na visita de hoje.” As duas apenas o observaram em silêncio. O silêncio parecia denso, pesado. “Vocês entendem”, continuou ele, “que eles poderiam ter levado vocês desta casa.” Ana, que tinha a boca entreaberta como se fosse dizer algo, hesitou, fechou a boca devagar e desviou o olhar. Era como se uma resposta tivesse subido até sua garganta, mas ela tivesse decidido engoli-la. A atitude despertou em João uma curiosidade angustiante. O que ela ia dizer? O que estava escondendo? Mas sabia que não podia forçar. Forçar só empurraria as meninas para mais longe. Então ele manteve o controle e continuou com a voz mais suave. “Eu tenho pensado muito e acho que talvez o problema de vocês não seja físico. A gente levou vocês em muitas consultas, muitos médicos, exames, medicamentos e nada funciona”, disse ele sentindo o peso da impotência cair sobre si. “Então é possível que seja algo mental.”
Bia se levantou da cadeira de repente, encarando o pai como se estivesse pronta para se defender de alguma acusação. Seu rosto estava rígido e sua respiração acelerada. “O senhor está dizendo que a gente está ficando louca?”, perguntou ela com uma mistura de indignação e medo. João levantou as mãos rapidamente, tentando retomar o controle antes que tudo desmoronasse. “Não, ninguém está dizendo que vocês estão ficando loucas”, respondeu ele, lutando para manter a calma. Depois respirou fundo e continuou mais suave. “Minhas queridas, vocês têm um problema que eu não consigo resolver. Não saem deste quarto, não falam com as amigas, só vão para a escola, voltam, fazem os deveres e ficam no computador o resto do tempo.” Ele passou a mão pelo rosto, cansado antes de continuar. “E outra coisa, eu percebi que vocês não estão dormindo. Não é só ficar acordadas jogando, é que vocês realmente não estão dormindo. Faz 4 dias que eu vejo vocês apenas tirando cochilos de 10 minutos e depois voltando para o computador. Os professores não disseram que vocês dormem na aula, então vocês não dormem na escola e não dormem em casa. Isso só pode significar que quase não dormem mais.” As palavras saíram pesadas, cheias de preocupação. “Eu não sei, pode ser depressão, pode ser ansiedade, talvez bulimia. Eu estou tentando entender”, completou ele. Ana, que até então tinha estado calada, levantou o queixo e falou com uma calma assustadora, quase fria. “O senhor entende que está fazendo suposições sem base alguma? Cassandra lhe conta tudo sobre as nossas refeições, se estamos comendo, se estamos tomando remédios. E a resposta sempre é sim. Então, não há motivo para o senhor estar pensando que o problema é com a gente, pai.” João fechou os olhos por um instante. A forma como ela dizia “pai” soava tão distante. Tentou manter a voz firme. “Minhas queridas, eu entendo o ponto de vista de vocês, mas vocês também precisam entender que o trabalho de um pai é verificar todas as possibilidades que podem estar deixando os filhos doentes ou tristes. Eu preciso ter certeza de que vocês estão bem.” Bia já estava batendo o pé no chão, demonstrando impaciência. Então perguntou irritada: “E qual exatamente é o seu plano? Fala logo. O que é que o senhor quer?” João respirou fundo, tentando organizar a ideia. “Eu sei que vocês não aceitariam ir para a terapia se eu pedisse”, disse ele com cuidado. “Então eu pensei em a gente tentar fazer algo juntos, passar um tempo de qualidade, sabem? Assim eu conheceria vocês melhor. Talvez eu entenderia o que está passando na cabeça de vocês.” Ana girou lentamente na cadeira e encarou o computador como se quisesse fugir da conversa. Sem olhar para o pai, respondeu de forma seca: “Nós não estamos interessadas em nada que o senhor queira fazer, assim como o senhor também não está interessado no que a gente faz. O senhor só veio aqui por ego, não porque realmente se importa com a gente.” A frase doeu profundamente no peito de João. Não houve gritos, mas a dureza das palavras machucou mais do que se ela tivesse gritado. Ele abriu a boca, pronto para responder, mas entendeu que não valia a pena. Isso só geraria uma discussão inútil que afastaria as meninas ainda mais. Então ele engoliu a própria dor e se levantou devagar caminhando para a porta. Saiu do quarto sem olhar para trás. Enquanto descia as escadas, cada degrau parecia pesar mais que o anterior. As palavras das filhas martelavam em sua mente sem parar, como se tivessem sido ditas para feri-lo, mas ao mesmo tempo carregavam alguma verdade escondida.
Quando chegou à sala, parecia um soldado derrotado. E Cassandra, que conhecia o marido como ninguém, percebeu imediatamente sua expressão destruída. Ela se aproximou rápido e o abraçou pelos ombros. “Eu suponho que a conversa não foi muito boa”, disse ela com um tom doce, tentando aliviar a tensão. Ela pegou no braço dele e completou. “Olha, eu sei que você está triste, mas a gente vai encontrar um jeito de ajudar as duas.” João se sentou no sofá exausto, olhou para Cassandra com uma tristeza profunda e respondeu: “O problema não é encontrar um jeito de ajudar. O problema é se elas querem ser ajudadas. O que eu posso fazer se elas sequer me escutam?” O tom de sua voz era quase inaudível. “Desde que isso começou, elas estão se isolando cada vez mais. É como se essa doença estivesse consumindo a vida delas e elas não pudessem lutar.” Ele passou as mãos pelo rosto, lembrando-se das meninas pequenas correndo pela sala. “Você se lembra de quando elas eram menores? Antes de tudo isso, elas brincavam, iam na casa das amigas, faziam trabalhos com os colegas da escola.” Seus olhos se encheram de lágrimas. “Elas liam, tinham uma coleção enorme de livros. Hoje está toda jogada no canto, cheia de poeira. Elas não pegam mais, não fazem mais nada disso. Depois que ganharam o computador, parece que mais nada teve espaço.” João negou com a cabeça angustiado. “Aquele computador é outro problema. Elas só ficam lá. E eu nem sei com quem elas conversam, o que elas conversam, se sentem solidão, se têm medo. Eu não sei de mais nada.” Cassandra abraçou o marido com força e aproximou a boca de seu ouvido, falando com um carinho firme, quase como um voto de confiança. “Eu sei que as coisas estão difíceis agora, querido, mas ser pai é isso. Às vezes elas não sabem que caminho seguir e é complicado mostrar esse caminho, especialmente quando elas estão tão fechadas assim.” Ela acariciou o rosto dele e disse com um tom que misturava esperança e determinação. “Mas você está se esforçando. Eu vejo. Enquanto você continuar assim, tudo vai dar certo. Não desista. Eu vou descobrir o que está causando isso nelas e a gente vai resolver juntos.” As palavras de Cassandra continuaram a ecoar na cabeça de João por alguns segundos, trazendo um alívio que ele não sentia há muito tempo. Ele apertou ainda mais a esposa no abraço, como se tentasse absorver toda a força que ela carregava, desejando em silêncio que cada frase dita por ela se tornasse realidade.
No dia seguinte, quando voltou do trabalho, viu algo que o surpreendeu completamente. Abriu a porta de casa esperando encontrar o cenário de sempre. Silêncio no corredor, luz do quarto das meninas vazando pela porta entreaberta e o som constante do teclado e do mouse. Mas ao entrar na sala de jantar, encontrou Bia e Ana sentadas à mesa esperando o jantar. Ainda estavam fracas, com os ombros caídos e profundas olheiras, mas havia um esforço ali, um gesto pequeno, mas poderoso que não passou despercebido por ele. João engoliu em seco, quase arriscou fazer um comentário, talvez uma piada para quebrar o clima tenso, mas temeu que qualquer palavra errada as fizesse recuar. Tinha medo que algo que dissesse deixasse as meninas incomodadas e que elas não repetissem esse comportamento no dia seguinte. Por isso preferiu se manter em silêncio. Apenas sorriu levemente, cumprimentou as duas e a esposa com um “boa noite” e foi direto para o banheiro tomar um banho antes do jantar. Enquanto a água caía sobre sua cabeça tirando o xampu dos cabelos, sua mente se enchia de pensamentos. “Cassandra é realmente boa nisso. Nem passou um dia da nossa conversa e o comportamento delas já mudou. Eu não sei o que eu faria sem esta mulher na minha vida”, pensou ele enquanto massageava o couro cabeludo. Mas logo em seguida veio outro pensamento, duro, incômodo, difícil de engolir. “Mas eu estou errando em depender tanto dela. Eu deveria saber me comunicar com minhas filhas. Eu sou o pai delas. Então, por que eu não consigo?” Uma insegurança pesada começou a crescer dentro dele, oprimindo o peito, sufocando, lembrando todas as vezes em que ele evitou pensar nisso. Pela primeira vez, em vez de empurrar esses pensamentos para longe, ele decidiu escutá-los. E se o problema não estivesse nas filhas, mas sim nele? Talvez isso tornasse tudo mais fácil de resolver se ele conseguisse admitir. Mas nenhuma resposta veio, nenhuma conclusão, apenas dúvidas. Ainda assim, prometeu que continuaria a pensar nisso depois do jantar. Saiu do banheiro, vestiu uma roupa confortável e desceu as escadas, imaginando novamente a cena de antes. Suas duas filhas sentadas à mesa, a esposa servindo o jantar, um clima de família tranquilo. Mas ao chegar na cozinha, encontrou apenas Cassandra sentada em frente a uma mesa preparada para duas pessoas. Dois pratos, dois talheres, duas cadeiras. João parou no meio da cozinha, confuso. Depois se aproximou e se sentou devagar. “As meninas foram lavar as mãos?”, perguntou ele franzindo a testa. Cassandra desviou o olhar. Era sutil, mas ele conhecia aquele gesto. “Na verdade, elas não vão jantar com a gente hoje”, respondeu ela em um tom quase envergonhado. A confusão de João aumentou. Ele começou a massagear as têmporas com a ponta dos dedos, tentando entender. “Mas elas estavam aqui agorinha. O que aconteceu? Do nada voltaram para o quarto?” Cassandra largou o garfo que tinha na mão e respirou fundo, frustrada. “Eu tinha convencido as duas de jantar com a gente hoje. Elas até ficaram um pouco animadas. Mas eu não sei o que aconteceu quando você chegou em casa. Elas mudaram de ideia, ficaram frias de novo e não quiseram mais comer com a gente.” Essa frase atravessou o peito de João. Ele passou a mão pelo rosto exausto e murmurou em voz alta como se falasse consigo mesmo. “Será que eu sou o problema? O que eu fiz? O que eu disse para elas mudarem de ideia assim de repente?” Depois olhou para Cassandra com o coração partido. “Foi algo que eu deixei de dizer? Algo que eu não notei? Será que eu sou um pai ruim? Um monstro que divide a casa com elas?”, perguntou com a voz embargada. “O que eu estou fazendo de errado, Cassandra?” A mulher negou lentamente com a cabeça. Levantou-se e tentou abraçá-lo, mas João deu um passo para trás, segurando-a pelo braço e afastando-a com suavidade. “Eu preciso de um tempo sozinho para pensar”, disse ele com os olhos cheios de lágrimas. “Eu não consigo entender onde eu estou falhando e preciso descobrir isso sozinho. Sem a sua ajuda agora.” Os olhos de Cassandra se encheram de lágrimas no mesmo instante. Ela levantou a mão para tocá-lo, mas João levantou a própria pedindo silêncio. Era um gesto pesado, duro, cheio de dor. E os dois ficaram ali a poucos passos um do outro, mas separados por algo muito maior do que a distância física.
João saiu de casa andando rápido. Precisava respirar. Precisava entender. Enquanto caminhava pela rua, sua mente era um turbilhão. Será que eu fui muito duro com Cassandra? Ela só queria me abraçar e eu a afastei. Se eu faço isso com ela, será que eu faço o mesmo com as meninas? A pergunta doeu mais do que ele esperava. Talvez seja por isso que elas não falam comigo. Talvez eu tenha afastado todo mundo e nem percebi. Cada passo parecia mais pesado do que o anterior. E Cassandra, há tanto tempo que ela assumiu o papel de mãe. Elas se apegaram mais a ela do que a mim. E se isso aconteceu porque eu permiti? Ele parou na calçada, respirando fundo. Não posso deixar isso continuar. Eu estou perdendo minhas filhas e estou machucando minha esposa. Fechou os olhos um momento tentando afastar a culpa que o sufocava. A partir de amanhã eu mesmo vou investigar o que está acontecendo com as meninas. Eu vou me aproximar delas. Eu vou descobrir a verdade. Eu vou ser o pai que elas precisam.
João acordou cedo naquela manhã. Decidido a colocar seu plano em prática. Era o dia de folga dele e queria aproveitar cada minuto para tentar se aproximar da família. Levantou antes de todos, preparou o café da manhã com carinho, arrumou a mesa, colocou frutas picadas, pão fresco, tapioca, bolo e suco de laranja na geladeira para servir depois. Quando Cassandra e as meninas desceram, encontraram tudo pronto e por um instante algo raro aconteceu. Bia e Ana trocaram olhares silenciosos e abriram um pequeno sorriso discreto, tímido, mas verdadeiro. Cassandra também se iluminou ao ver aquela cena inesperada, desejando que aquele momento fosse o primeiro passo para dias melhores. Mas aquela felicidade durou pouco. Antes que alguém pudesse comentar algo, um barulho seco, forte e repetido ecoou pela casa. Alguém batia na porta com insistência. Cassandra imediatamente se levantou pronta para atender, mas João levantou a mão impedindo. “De jeito nenhum. Você vai ficar sentada aqui com as meninas e vocês três vão tomar café”, disse ele com firmeza apontando para a mesa. “Eu vou ver quem é. Podem se servir, tem pão, tapioca, bolo. Daqui a pouco eu trago o suco que está na geladeira.” Ele pegou um pano de prato, secou as mãos e caminhou para a porta. Antes de abri-la, olhou pelo olho mágico e seu estômago imediatamente revirou. Do outro lado estavam os pais de sua falecida esposa, os avós de Bia e Ana. O olhar deles era carregado de frieza, desconfiança e hostilidade.
Ainda assim, João abriu a porta. O primeiro a reagir foi o sogro, que praticamente explodiu. “O que diabos vocês estão fazendo com as minhas netas?” Sem esperar resposta, o homem empurrou João com força e entrou na casa passando por ele como se fosse dono do lugar, observando ao redor como um inspetor em busca de falhas. A sogra entrou logo atrás com passos mais calmos, mas com o mesmo olhar crítico, duro e julgador. “Nós ficamos sabendo por uma colega minha da escola das meninas”, explicou ela com a voz firme, “que o Conselho Tutelar foi chamado para verificar a situação delas, mas ninguém do serviço social ligou para avisar o que houve ou perguntar se poderíamos ficar com as meninas. Então viemos o mais rápido possível para saber como elas estão.” A presença dos dois fez o sangue de João ferver. Os ex-sogros nunca tinham gostado dele. Sempre acreditaram que a filha tinha se rebaixado ao se casar com ele. E essa não seria a primeira vez que tentavam ficar com a guarda das meninas. Aquilo acendeu uma suspeita terrível na sua cabeça. Será que foram eles que influenciaram os professores a fazer a denúncia? Encaixava perfeitamente no histórico dos dois. Mesmo quando a esposa dele era viva, eles tentaram tirar a guarda, alegando que o casal não era estável o suficiente para criar as meninas. E agora, vendo-os ali entrando como uma tempestade logo após a visita do conselho, tudo fazia muito sentido. Não seria a primeira vez que por trás de um problema estivessem eles.
João teve vontade de gritar, expulsá-los, fechar a porta na cara deles e não abrir nunca mais. Mas quando olhou para a mesa de jantar, viu as filhas pela primeira vez sentadas ali, mostrando um esforço visível para participar da família. E qualquer atitude explosiva sua poderia fazer com que elas se fechassem de novo por semanas. Então ele engoliu o que sentia e correu para a cozinha. Seu sogro já estava lá parado ao lado da mesa, observando Bia e Ana com os olhos arregalados. Quase em choque. O tom de raiva se intensificou quando olhou para João. “O que vocês estão fazendo com essas meninas? Olhem o estado delas.” Disse indignado com a voz alta. “Elas estão tão magras que quase não dá para reconhecer. Você não tem vergonha de deixar suas filhas passarem fome? Seu sem-vergonha.” Antes que João pudesse responder, Cassandra se levantou com o rosto vermelho de indignação. “As meninas não estão passando nenhuma dificuldade aqui”, disse ela firme. “O senhor pode ter certeza de que estamos cuidando bem delas.” A sogra soltou uma risada curta, zombeteira. “Se isso é cuidar bem para vocês, então talvez não seja uma boa ideia deixar duas garotas com pessoas tão irresponsáveis.” Essa frase foi como gasolina no fogo. João não conseguiu mais ficar calado. Deu um passo à frente, encarando os dois com uma firmeza que estava guardando há anos. “Em primeiro lugar”, disse ele tentando controlar a respiração. “Não pensem que podem simplesmente entrar na minha casa. Falando o que vocês querem, como se tivessem ajudado as meninas. Vocês nunca deram apoio nenhum”, ele apontou para as filhas ainda sentadas, assustadas, “e o único motivo pelo qual querem a guarda delas é para alimentar o ego de vocês.” Os dois ficaram em silêncio, mas não recuaram. João continuou. “Em segundo lugar, elas não estão passando fome. É um problema de saúde. Estamos levando-as ao médico, fazendo exames, buscando ajuda.” Ele apontou para a mesa arrumada. “E como podem ver, estamos tomando café da manhã juntos. Elas não estão sendo maltratadas nem um pouco.” O sogro de João deu passos furiosos em direção a ele, aproximando o rosto como se quisesse intimidá-lo. Seus olhos estavam acesos, cheios de acusação. “Isso só significa que você é tão fraco que não consegue nem botar ordem nas suas filhas.” Gritou o homem apontando o dedo para a cara de João. “Porque se aqui tem comida, tem roupa e mesmo assim elas estão desse jeito, é porque você não está as educando direito. E outra coisa, nós não estamos fazendo isso por ego. Estamos fazendo isso para honrar a memória da nossa filha, tentando salvar nossas netas. Das mãos de um homem medíocre como você.” João sentiu o sangue ferver, mas percebeu que não adiantaria discutir com aquele casal. Então ele controlou a raiva o máximo possível. Respirou fundo e apontou para a porta. “É melhor vocês saírem agora antes que eu chame a polícia e me encarregue de que os dois sejam tirados daqui”, disse com firmeza. “E outra coisa, se eu descobrir que vocês estão por trás dessa tentativa de separar minhas filhas de mim, tenham a certeza de que eu vou processá-los.” O sogro parecia querer responder, mas a esposa o segurou pelo braço. Os dois se retiraram, finalmente deixando a casa em silêncio.
Assim que a porta se fechou, o ambiente ficou tão tenso que dava para sentir no ar. Nesse mesmo instante, as duas gêmeas se levantaram da mesa sem dizer uma palavra e começaram a subir as escadas para retornar aos seus quartos. João, com um simples olhar, sinalizou para Cassandra que as acompanhasse. Ele queria ajudar, queria falar com elas, mas sentia com dor que naquele momento não tinha abertura nenhuma. Tudo o que podia fazer era confiar em sua esposa, a única pessoa capaz de atravessar aquela barreira que separava as meninas do mundo.
Uma hora depois, a esposa finalmente desceu as escadas e não estava sozinha. Bia e Ana vinham de mãos dadas com ela, como duas crianças pequenas buscando consolo. Ao chegar na sala, Cassandra se inclinou para João, pegou seu braço e o levou até a sala. Quando pararam ali, ela abriu um sorriso cheio de esperança. “Eu consegui falar com elas”, disse animada. “Mas não foi uma conversa normal, foi a melhor conversa que tivemos em anos. Eu sinto que dessa vez eu realmente consegui que elas entendessem que a gente só quer ajudar.” João arregalou os olhos sentindo o coração acelerar um pouco. “O que foi que elas disseram?”, perguntou esperançoso. Cassandra sorriu ainda mais. “Eu expliquei o motivo de os avós terem vindo aqui. Eu disse para elas serem mais compreensivas. E então elas me perguntaram se não seria uma boa ideia ficar com os avós.” O chão pareceu sumir. O estômago de João gelou na hora, mas ele se obrigou a permanecer em silêncio. Não queria interromper a esposa, queria entender. Ela percebeu a expressão dele, mas continuou. “Eu expliquei para elas que os avós delas não querem realmente ficar com elas. Eu dei exemplos das vezes em que eles poderiam ter passado tempo com as meninas, levado elas para algum lugar ou pelo menos pedido para visitá-las. Eles nunca fizeram. Nunca. Porque eles não estão preocupados com as meninas, eles só querem te machucar. E para minha surpresa, elas entenderam. Nem te conto.” Ela negou com a cabeça emocionada. “Elas começaram a desabafar. Contaram como se sentem.” João ficou ainda mais curioso. “E o que é que elas estão sentindo? Tem a ver comigo?”, perguntou tentando manter a voz firme. Cassandra respirou fundo, mas não perdeu o sorriso. “Amor, você é um pai excelente. Nada do que você fez foi um problema real para elas. Às vezes elas não gostam de algumas coisas porque ainda não entendem, mas você nunca fez mal a elas. Só que…” Ela desviou o olhar por um instante. “Eu não posso te contar o que elas me contaram. Se eu fizesse isso, eu quebraria a confiança delas.” O coração de João apertou com força. Não era raiva, era frustração. Uma frustração amarga, mas compreensível. Ele sabia que Cassandra tinha razão. A esposa colocou a mão sobre o ombro dele para suavizar. “Mas eu consegui chegar a um acordo com elas. Elas vão participar de algumas atividades comigo, esportes, passeios e, aos poucos, eu vou tentar te incluir no meio. Eu acho que se elas tiverem uma vida mais ativa, seja lá o que estiver causando isso, em algum momento vai passar.” João soltou um suspiro longo, cheio de cansaço, mas também de alívio. Abraçou a esposa com força. “Eu não sei o que eu faria sem você na minha vida”, disse apertando-a. Depois os dois voltaram para a cozinha onde terminaram o café da manhã junto com as meninas. O ambiente ainda era frágil, mas havia uma sensação de leve esperança.
Os dias seguintes foram estranhamente tranquilos. Bia e Ana começaram a praticar atividades físicas, embora às vezes se sentissem mal devido à fraqueza. A família começou a sair mais junta, caminhadas curtas, visitas ao parque. As meninas até voltaram a falar com o pai, pouco, tímidas, retraídas, mas falavam. Era um começo até que de repente tudo mudou. João estava no trabalho quando o celular começou a tocar sem parar. Ao atender, ouviu a voz de Cassandra completamente tomada pelo pânico. “Amor, eu estava com elas, estava tudo bem, mas foi de repente. De repente aconteceu e agora elas estão assim e eu não sei o que fazer, eu não sei para onde ir, eu não sei como ajudar.” A voz dela saía atropelada, rápida, sem pausa, como se estivesse prestes a desmoronar. Ela falava, falava, falava e não deixava espaço para João responder nem sequer um “calma”. João levou alguns minutos para acalmá-la e conseguir alguma informação coerente. E, finalmente, Cassandra contou a história com tranquilidade. “Eu estava com as meninas vendo uma apresentação de capoeira na praça, quando de repente elas começaram a se sentir um pouco tontas e eu pensei que fosse por causa do calor, então eu só as levei para tomar um pouco de água e um sorvete. Eu sentei as duas em um banco com uma garrafa de água e fui comprar o sorvete, quando de repente uma multidão de pessoas começou a correr em minha direção e a se aglomerar. E quando eu olhei para trás, lá estavam as duas caídas no chão com várias pessoas em volta tentando ajudar e obviamente eu saí correndo para ver o que tinha acontecido.” João sentiu seu coração parar por alguns segundos ao ouvir toda a história e com medo de ouvir a resposta, perguntou à esposa: “Onde elas estão agora?” E Cassandra respondeu: “Eu estou com elas no hospital. As duas estão fazendo uns exames, mas os médicos estão me olhando estranho e eu acho que podem estar pensando em chamar o Conselho Tutelar.” João ficou calado por alguns segundos do outro lado da linha antes de responder à esposa. “Eu estou indo para aí agora mesmo. Não se preocupe. Eu vou passar em casa e levar uma pasta.” Saiu do trabalho imediatamente e foi para casa, onde pegou uma pasta com todos os exames médicos das meninas e relatos de amigos, vizinhos e parentes, explicando e jurando que nunca tinham presenciado maus-tratos a elas.
Ao chegar no hospital, a primeira coisa que fez foi encontrar Cassandra e entregar-lhe a pasta, pedindo para que ela desse aos médicos para evitar que chamassem os serviços de proteção. Depois foi rapidamente ver suas meninas para saber como elas estavam. Mas ao chegar lá, Bia e Ana, que já estavam conscientes, desviaram o rosto assim que viram o pai, o que fez seu coração apertar. Ainda assim, ele se aproximou da cama para falar. “Olá, minhas queridas, como vocês estão? Os médicos estão tratando vocês bem?”, perguntou João, mas nenhuma respondeu. Ficaram completamente caladas. Ele insistiu e continuou. “Eu sei que vocês podem estar passando por algo que talvez eu não entenda, mas vocês podem se abrir comigo e contar comigo para qualquer coisa que precisarem. Tá bom? É só me dizer para que eu possa ajudar.” Ana começou a chorar e Bia, sem sequer olhar nos olhos do pai, disse: “Só nos deixe em paz, pai. A gente não quer conversar com o senhor.” João se sentiu destruído por dentro. Não sabia por que as meninas estavam sendo tão duras e cruéis com ele. Tudo o que ele queria era que elas voltassem a falar com ele, como sempre fizeram na infância. Mas ele não sabia como trazer isso de volta. Com tristeza no olhar, ele decidiu simplesmente sair do quarto. Na saída, encontrou sua esposa que lhe disse: “Eu já conversei com os médicos. Eles entenderam a situação e disseram que em breve saem os resultados. É só esperar uns 20 minutinhos e pronto.” João apenas assentiu com a cabeça e seguiu andando. Cassandra perguntou para onde ele ia, mas ele não respondeu. Simplesmente continuou a andar pelo hospital, triste demais para qualquer conversa. Encontrou um banco no corredor e se sentou cobrindo o rosto com as mãos. Ficou ali refletindo sobre cada decisão que tinha tomado como pai e marido, e quanto mais pensava, mais via o peso das suas ausências. Talvez as meninas o rejeitassem porque ele não esteve presente o suficiente. Talvez elas tivessem construído um muro tão alto que agora ele não conseguia alcançar. Talvez tudo fosse culpa dele. “Eu tenho que mudar isso imediatamente”, pensou determinado. “Se eu não descobrir como ajudar minhas filhas, eu não sou pai e tudo o que meus sogros disseram vai se tornar verdade.”
Depois de alguns minutos, voltou perto do quarto e foi ali que viu algo que o deixou inquieto. A esposa estava conversando com o médico responsável pelas meninas, só que estavam muito perto. O médico falava sorrindo. Cassandra também. Riam juntos em um momento completamente fora de lugar, o tipo de interação que não combinava com a situação grave que estavam vivendo. Ele franziu os olhos sem entender. Algo dentro dele acendeu um sinal de alerta, uma sensação estranha que ele não estava acostumado a sentir dentro da própria família. Desconfiança. Tentou encontrar uma explicação lógica, obrigar-se a pensar que estava exagerando, mas quanto mais observava, mais incomodado se sentia. Era como se os dois estivessem tendo uma conversa que não deveria existir naquele momento. Quando se aproximou deles, só falou quando estava a poucos passos de distância. “Amor, este é o médico das nossas filhas.” Os dois se assustaram tanto que quase pularam. A reação fez com que a situação parecesse ainda mais suspeita, mas João sabia que não tinha provas, então apenas engoliu em seco e continuou tentando manter a calma. “Bom, doutor”, disse ele ajeitando a postura. “Me disseram que o senhor já tem os exames das minhas filhas. Qual foi o resultado?” O médico ajeitou o jaleco, endireitou a postura e antes de tudo se apresentou com um sorriso contido, mas sério. “Bom, antes de qualquer coisa, deixe-me apresentar. Meu nome é Cássio, eu sou o médico responsável pela pediatria e também fiquei encarregado diretamente dos exames e cuidados das suas filhas”, disse ele cruzando os braços logo em seguida, como quem se prepara para dar uma notícia difícil. “Elas chegaram aqui com um quadro de desidratação severa e desnutrição. O motivo do desmaio foi que o sangue delas não tem nutrientes suficientes para abastecer o corpo e também não está levando oxigênio suficiente para o cérebro.” João sentiu o coração afundar. Cássio continuou ainda mais sério. “Isso fez com que elas desmaiassem tanto pela fraqueza quanto pela baixa oxigenação. O quadro delas é um dos mais graves que eu já vi na minha vida.” Ele deu um passo para o lado apoiando uma das mãos na prancheta. “Nossa equipe até considerou chamar o Conselho Tutelar, mas o senhor trouxe vários documentos provando que não se trata de negligência. Então a gente começou a analisar a possibilidade de que fosse algo clínico, algo interno que estivesse causando a desnutrição severa.” O médico respirou fundo antes de concluir. “Os exames chegaram. Eu analisei tudo. Mas não há absolutamente nada de errado no corpo delas. Nada. Sem parasitas, sem fatores genéticos, sem infecção, sem nada que explique o estado delas.” João abaixou a cabeça por um instante. Aquilo era exatamente o que ele tinha escutado dezenas de vezes, a mesma resposta repetida como se zombasse de sua dor. Ele levantou o olhar cansado e perguntou: “Então, o senhor está me dizendo que minhas filhas não têm nada, que não há o que fazer, que é só uma obra do destino que minhas filhas estejam morrendo?” Sua voz saiu amarga, sufocada em desespero. Cássio respirou fundo, tentando manter a calma profissional. “Não é isso que eu estou dizendo. Eu apenas afirmo que não é um caso tratável com remédios. Ou procedimentos médicos.” Ele se aproximou um pouco mais baixando o tom. “A causa mais provável, levando tudo em consideração, é comportamental.” João franziu a testa sem entender. O médico continuou. “Nos exames que nós fizemos não apareceu absolutamente nada relacionado a drogas ou medicamentos, mas existem muitos casos de pessoas que entram em um estado de depressão tão profundo que mesmo comendo ou mantendo hábitos saudáveis perdem peso. O corpo simplesmente não responde porque o cérebro não está bem.” Anotou algo na prancheta e acrescentou: “Se o cérebro não se sente bem, o resto do corpo também não, tudo está conectado.” Depois tirou um cartão do bolso. “Eu vou passar para vocês o número de um conhecido meu. Ele é especialista em casos assim. Pode ajudar com algumas sessões e talvez descobrir o que está causando isso, mas eu posso lhes garantir, problema físico de saúde não é.” João passou a mão pelo rosto, cansado, buscando respostas que nunca chegavam. “Mas como, doutor? Como algo mental está afetando minhas filhas desse modo?”, perguntou quase implorando. “Diga-me exatamente o que o senhor acha que está acontecendo.” O médico hesitou olhando para os lados como se não quisesse dizer. Depois, finalmente respondeu: “Eu não posso afirmar nada, mas o quadro delas coincide perfeitamente com casos de bulimia.” O mundo de João pareceu parar. A palavra ecoou dentro dele como um trovão. Mas lembrando-se do isolamento das meninas, o comportamento estranho, a recusa em comer na mesa, o afastamento do mundo, fazia sentido. Ele respirou fundo e agradeceu. “Eu lhe agradeço por isso, senhor Cássio. Eu vou trabalhar nisso com as meninas e talvez eu ligue para o seu amigo. Obrigado por todo o esforço.” Sem esperar resposta, virou-se para ir embora. Cassandra correu atrás dele preocupada. “Você está mesmo considerando o que aquele médico disse sobre as meninas poderem estar com bulimia?”, perguntou tentando entender. João parou e girou devagar com um olhar que misturava frustração e indignação. “Eu fico impressionado que você não acredite nele ou que nem sequer considere o que ele disse.” Ela franziu a testa confusa. “Do que você está falando?” João negou com a cabeça, sem forças para discutir. “Não é nada. Eu só preciso ficar um tempo sozinho. É muita coisa para lidar, mas sim, eu acho que ele pode estar certo e eu vou investigar.” Ele não queria brigar, não queria criar mais uma divisão dentro da família. Estava cansado, exausto, emocionalmente destruído e a única coisa que conseguia pensar era: “Eu preciso salvar minhas filhas.”
Nesse mesmo dia, João voltou ao trabalho. Pediu férias adiantadas, algo que já vinha conversando com o chefe há semanas. Ao explicar a situação familiar, ele recebeu autorização imediata, mas decidiu não contar nada para Cassandra. A desconfiança que havia sentido mais cedo ainda latejava dentro dele. Entre os comportamentos estranhos das meninas e aquela conversa animada demais entre sua esposa e o médico. João sentiu que precisava observar tudo de longe. Precisava entender o que estava acontecendo dentro da sua própria casa. Na manhã seguinte, colocou o plano em ação. Saiu de casa como sempre fazia, como se estivesse indo trabalhar. Mas em vez disso, dirigiu até algumas ruas de distância, estacionou o carro discretamente e voltou andando. Parou do outro lado da rua escondido, observando sua própria casa de longe. Ficou ali em silêncio, com o coração pesado, o medo crescendo e uma certeza sufocante se formando dentro dele. Nas primeiras horas daquela vigilância silenciosa, tudo parecia normal. João, escondido do outro lado da rua, observava a sua própria casa como se fosse um desconhecido, olhando a vida de uma outra família. Mas quando o relógio bateu as 3 da tarde, um carro parou em frente à residência e isso mudou tudo. João franziu os olhos tentando reconhecer o motorista. Levou alguns segundos para processar até que finalmente percebeu quem era. Era Cássio, o médico do hospital, o mesmo que tinha falado tão perto de sua esposa no corredor. O mesmo que tinha despertado nele uma desconfiança profunda. No instante em que viu Cássio bater na porta e Cassandra abri-la, João sentiu que todo o seu corpo gelava. A paranoia, que já o consumia, dobrou. Ele já estava desconfiado, mas aquilo cruzava qualquer limite. Por que o médico estava ali? Por que tinha voltado? E por que tão à vontade? João ficou imóvel, apenas observando enquanto o médico entrava com naturalidade, como se não fosse a primeira vez. Assim que a porta se fechou, ele se aproximou para espiar pela janela da cozinha, a única que Cassandra quase nunca fechava por completo. A mesa de jantar ficava logo ali, no ângulo perfeito para ouvir conversas. Ele se abaixou, prendeu a respiração e escutou. Cassandra se sentou ao lado de Cássio e a primeira coisa que saiu da boca dela fez o corpo de João tremer. “Ele começou a suspeitar de algo depois da visita no hospital. Ele ficou com a ideia fixa do que está acontecendo com as meninas. Muito preocupado, sabe? E dessa vez parece que está virando uma obsessão. Eu estou com medo de que ele comece a investigar e descubra o que a gente está fazendo.” João quase caiu para trás. Sua mente começou a girar. “O que a gente está fazendo” não era a frase de alguém inocente. Por um momento, João sentiu o coração desmoronar, mas logo em seguida surgiu um pensamento terrível. “Espero que seja uma traição. Eu aguento qualquer traição, mas eu não quero acreditar que ela esteja fazendo algo contra as meninas.” Ele preferia mil vezes ser traído como marido do que como pai. João continuou a escutar com os nervos à flor da pele. Sua sessão de espionagem só terminou quando ouviu a voz tranquila e baixa de Cássio. “Independente do que ele esteja planejando, não é seguro discutir isso aqui. Vamos para o lugar de sempre. Lá a gente resolve qualquer problema.” Cassandra concordou na hora, sem hesitar, sem questionar. Simplesmente pegou a bolsa e saiu com ele. João sentiu o sangue esquentar, mas não o seguiu. Sabia que se o fizesse, eles o notariam e começariam a esconder tudo ainda mais. Precisava ser inteligente, preciso. Então ele decidiu esperar.

No dia seguinte, as meninas receberam alta e voltaram para casa a tempo do jantar. Mas, como sempre, preferiram comer no quarto. João queria dizer algo, impor alguma regra, tentar criar um ambiente familiar, mas decidiu deixar passar. Não queria forçar nada no primeiro dia. Enquanto Cassandra preparava o jantar, João prestou atenção em algo que nunca tinha observado com cuidado, os pratos das meninas. Ele notou que enquanto ele e Cassandra comiam frango frito com arroz e salada, as meninas recebiam uma sopa, sempre com muito caldo, tão líquida que parecia mais água com tempero do que comida. E pensando bem, percebeu que isso acontecia há muito tempo. Bia e Ana sempre comiam pratos especiais, diferentes, com muito caldo, quase um mingau. Antes ele achava que era só preferência delas e que Cassandra fazia aquilo por carinho, mas agora observando com olhos desconfiados, tudo parecia suspeito. Por que comiam algo completamente distinto? Por que ele nunca provava aquela sopa? Por que Cassandra preparava com tanto cuidado algo que só as meninas comiam? Nos três dias seguintes, isso se repetiu. Os pratos especiais, as sopas carregadas de caldo, os encontros rápidos entre Cassandra e Cássio, sempre na casa, sempre durando poucos minutos. Com o tempo, João começou a desenvolver uma teoria apavorante, envenenamento. Ele não sabia qual substância poderia causar uma perda de peso tão grave, mesmo comendo bem. Mas isso parecia a única explicação possível. O comportamento da sua esposa, os encontros com o médico, as sopas, tudo apontava para o mesmo lugar.
A primeira coisa que fez foi revistar cada canto da casa. Tirou panelas, abriu gavetas, procurou medicamentos escondidos, frascos, qualquer coisa que pudesse comprovar sua suspeita, mas não encontrou nada. Nenhuma pista, nenhuma embalagem, nada. A frustração o consumiu, a raiva e a dúvida também. Ele estava perdendo a sanidade. Seria tudo um mal-entendido? Estaria ele acusando a mulher errada? Mas sempre que sua mente tentava escapar da paranoia, outra imagem surgia. As filhas desmaiadas na praça, as sopas suspeitas, os encontros com o médico. O instinto de pai falava mais alto. Depois de alguns dias, sem alternativa, ele decidiu que teria que seguir a esposa mais cedo ou mais tarde. Mas antes disso, algo o surpreendeu. Ao passar pelo corredor, ouviu vozes vindo do quarto das meninas. A porta estava entreaberta. As duas estavam jogando no computador. Ele seguiu andando até que ouviu Bia dizer: “Na verdade, nosso pai não se preocupa muito com a gente. Ele até era presente antes, mas depois começou a se afastar. Só queria saber de trabalhar. Nunca passava tempo com a gente. Nossa madrasta é quem cuida da gente a maior parte do tempo.” João parou imóvel, sentindo as palavras atravessarem seu peito. A conversa no quarto continuou e Ana completou com a voz pesada. “E além disso nossa madrasta contou as coisas horríveis que ele diz sobre a gente.”
Logo em seguida, uma voz masculina ecoou no quarto. Vinha do computador cheia de chiados, como um garoto falando por um microfone ruim. Ainda assim, dava para entender perfeitamente o que dizia. “Olha, no papel seu pai parece ser bem ausente, mas eu não sei se ele realmente é um homem mau. Talvez só não saiba lidar com vocês. Que coisas horríveis foram essas que ele disse?” Bia suspirou fundo antes de responder. “A madrasta deixou o celular desbloqueado um dia e tinha uma conversa dela com o nosso pai. Ele dizia que a gente estava muito magra e parecia alienígena, que a gente estava ficando feia e nunca ia conseguir um marido e que a gente não servia para nada, além de comer a comida dele e gastar o dinheiro dele, como se a gente fosse um par de pesos mortos.” Outra voz surgiu pelo computador, desta vez feminina, indignada. “Nossa! Seu pai é um idiota. Meus pais jamais diriam algo assim de mim. Nem se eu fizesse a pior besteira do mundo. Eu não entendo como ele pode falar isso de vocês.” Ana, com a voz trêmula acrescentou: “A madrasta até tentou defender a gente. Reclamou com ele por dizer essas coisas, mas ele não se importou. Continuou dizendo coisas horríveis. Por isso que a gente não quer falar com ele.” E ainda assim, ele vem aqui como se fosse bobo, tentando conversar, dizendo que se importa com a gente. A gente sabe a verdade.
No corredor fora do quarto, João ouviu tudo. Já estava chorando antes mesmo de compreender completamente as palavras. As lágrimas caíam silenciosas, atingindo o chão como se cada uma pesasse toneladas. Jamais imaginou que suas filhas pensassem aquilo dele. Jamais acreditou que elas guardassem tanta mágoa e cada frase delas era como um golpe direto no coração. “Mas eu… eu nunca disse nada disso sobre elas.” O pensamento surgiu com força, misturado com dor e então a tristeza deu lugar a uma fúria silenciosa gelada. Será possível que Cassandra simulou essa conversa? Que ela inventou tudo, que ela manipulou uma mensagem falsa para fazê-las acreditar que eu disse isso? Se era verdade, se realmente esse era o caso, então todo o ódio das meninas estava construído sobre uma mentira monstruosa. Uma mentira que veio da pessoa em quem ele mais confiava.
Cansado de viver sufocado pela dúvida, ele decidiu que precisava de uma prova. Não podia confrontar Cassandra sem algo nas mãos. Naquela mesma noite esperou o momento certo, entrou na cozinha e separou um pouco da sopa das meninas. Guardou discretamente em um frasco, colocou a amostra em uma sacola e levou para fazer exames. Foram cinco dias de espera angustiante, cinco dias que pareceram uma eternidade. Quando o resultado finalmente chegou, o mundo de João virou de cabeça para baixo. O exame apontava rastros de um medicamento usado para emagrecer, pílulas que reduziam o apetite e causavam náuseas constantes, fazendo com que a pessoa vomitasse quase tudo que comia. João encarou o papel por vários segundos, sentindo o ar sumir. Então, todo esse tempo, Cassandra estava envenenando as meninas. Sua mente começou a girar. Sentiu as mãos tremerem. Precisava enfrentar aquilo. Precisava, antes de tudo, contar a verdade para suas filhas.
Nesse mesmo dia, assim que Cassandra e Cássio saíram para mais um de seus encontros, João pegou o carro e foi buscar as meninas na escola. O tom de voz deixava claro que havia algo sério. Elas não gostaram da ideia. Reclamaram. Perguntaram se era realmente necessário, mas ele não se importou. Sabia que a pior parte ainda estava por vir. Em casa levou as duas até a cozinha, sentou-as lado a lado, pegou a pasta com o exame e colocou sobre a mesa. As meninas se olharam confusas, abriram a pasta, folhearam, franziram a testa diante dos termos médicos que não entendiam. Finalmente, Bia levantou o olhar e perguntou: “O que é isso? Do que se trata?” João respirou fundo, preparando-se emocionalmente. “É um exame toxicológico”, explicou. “Eu pedi para analisar a sopa que vocês comem quase todos os dias para ver se tinha alguma substância que poderia estar deixando vocês doentes e o resultado deu positivo para medicamentos de emagrecimento.” As duas ficaram congeladas por alguns segundos sem reação. Então Ana perguntou quase gaguejando: “O senhor está dizendo o que eu acho que está dizendo? O senhor está insinuando que a Cassandra está nos envenenando? Que é por isso que a gente está tão doente?” João fechou os olhos tentando conter as emoções. Quando os abriu, havia tristeza na expressão, mas também uma firmeza que fazia tempo que não sentia. “Eu ainda não sei o motivo pelo qual ela está fazendo isso”, respondeu com voz baixa. “Mas ela é a única pessoa que tem acesso à comida de vocês, então é muito provável que seja intencional.” As meninas arregalaram os olhos surpresas, suspiraram de impacto, mas não aceitaram aquilo tão facilmente. Ana cruzou os braços e respondeu: “Pai, o senhor só tem um exame dizendo que tinha algo na nossa comida. Não tem nada que prove que foi a mãe que fez isso.” João sentiu o estômago afundar outra vez porque essa frase… essa frase deixava claro que apesar de tudo, elas ainda confiavam mais na madrasta do que nele.
João, ainda tremendo por tudo que tinha ouvido das filhas, tirou o celular do bolso, navegou rapidamente pelos arquivos e entregou o aparelho para Bia e Ana. As meninas pegaram o celular sem entender exatamente o que o pai pretendia lhes mostrar, até que viram fotos, várias fotos, fotos de Cassandra e Cássio juntos, entrando na casa, saindo da casa, conversando como se fossem íntimos e em uma delas se beijando. As duas ficaram paralisadas. Os olhos de ambas se encheram de lágrimas em poucos segundos. O choque foi tão grande que Ana levou a mão à boca. Enquanto Bia, deixou o celular escorregar sobre a mesa. Nenhuma conseguia falar. A dor era visível, viva, exposta em suas expressões. Foi nesse exato momento que a porta da entrada se abriu. A madrasta entrou carregando uma bolsa e congelou imediatamente ao ver as três pessoas que menos queria encontrar sentadas à mesa. João, Bia, e Ana, todos em silêncio, todos olhando para ela como se vissem pela primeira vez quem ela realmente era. João foi o primeiro a quebrar o silêncio. Sua voz saiu carregada de dor, mas também de firmeza. “A gente já sabe toda a verdade, Cassandra. A gente sabe que você está envenenando as meninas e também sabemos que você está me traindo com aquele médico.” Ele apontou para o celular sobre a mesa. “Seus dias nesta casa estão contados.” Ele esperava gritos, negações, justificativas. Esperava que ela tentasse se defender ou pelo menos fingir surpresa, mas não. Ela permaneceu calma, calma demais, como se nada daquilo fosse um problema. Sem dizer uma palavra, Cassandra caminhou até a cozinha, colocou a bolsa sobre a mesa, depois esticou o braço até a parte superior do armário, mexendo em coisas lá em cima, como se procurasse algo específico. João lançou um olhar sarcástico e disse: “Está procurando o veneno que você usou?” Mas Cassandra não respondeu. Continuou concentrada no que fazia até tirar uma caixa preta retangular. Virou-se, abriu a caixa de modo que ninguém pudesse ver o conteúdo e em silêncio colocou um par de luvas de couro. Quando se virou novamente estava segurando uma arma. O mundo pareceu parar naquele instante. João recuou dois passos. Bia soltou um grito abafado. Ana levou as mãos à cabeça sem acreditar no que via. Cassandra apontava a arma para eles com uma naturalidade que arrepiava a pele como se aquilo fosse rotina. E para completar o terror do momento, Cássio entrou na casa como se nada. Parou na porta, olhou a cena. Cassandra armada, as meninas chorando, João imóvel e abriu um sorriso satisfeito.
Então, sem pressa nenhuma, ele passou ao lado dos três, foi até a geladeira, pegou um copo d’água e começou a falar com uma tranquilidade assustadora. “Para você ter pegado essa arma, Cassandra, significa que eles descobriram tudo, não é?” A mulher suspirou fundo, como se estivesse cansada, e respondeu: “O idiota aí descobriu tudo. Olhe na mesa. São papéis de exame. O infeliz fez um teste toxicológico na comida. Eu bem que te disse que ele estava suspeitando.” João, quase chorando, perguntou com a voz trêmula. “Mas por que, Cassandra? Por que você fez isso? Por que tentar algo assim com as meninas? Elas eram praticamente suas filhas.” Cassandra baixou a arma por um momento, respirou fundo e sua expressão mudou para algo quase melancólico. “Em algum momento, é claro que eu as amei como filhas. Talvez eu ainda sinta que sou a mãe delas.” Disse em um tom estranho, quase calmo demais. “Mas tem coisas que vão além do amor, entende?” João, com lágrimas caindo, perguntou: “O que você está dizendo? Do que você está falando, Cassandra?” Ela fez um gesto com o cano da arma apontando para as escadas. Era uma ordem fria e clara. “Subam”, disse firme. Os quatro, João, Bia, Ana e Cássio, começaram a subir. E enquanto subiam, Cassandra finalmente revelou o motivo e foi a confissão mais sombria que ele poderia imaginar. “Eu precisava de dinheiro, só isso, dinheiro.” Ela continuou subindo atrás deles, mantendo a arma apontada. “Faz uns 2 anos, talvez três, que eu comecei a jogar naqueles aplicativos de aposta tipo Cassino Online, aquelas porcarias. Eu viciei, ganhei algumas vezes, perdia muito mais, mas eu não conseguia parar. Eu queria ganhar sempre, eu queria recuperar tudo.” João sentia o coração acelerar, mas continuou a subir. Cássio ia logo atrás com o copo d’água na mão, como se fosse um convidado casual naquela tragédia. “Eu comecei a perder muito dinheiro”, continuou Cassandra. “Pedi dinheiro emprestado, um aqui, outro ali, até que ninguém quis me emprestar mais. Então eu fiz um empréstimo com um agiota.” João engoliu em seco. “No começo eu pagava, mas depois eu não consegui mais. A dívida cresceu tanto que nem vivendo duas vidas eu ia conseguir pagar.” Cássio então interrompeu e assumiu a história como se contasse algo banal. “Foi nessa época que ela entrou em um grupo de aposta e eu também estava. A gente tinha o mesmo problema. E um dia eu disse para ela que dava para ganhar dinheiro com seguro de vida. Eu já tinha feito isso para alguns clientes. Eu falsificava exame, criava laudos falsos, essas coisas.” Ele tomou um gole da água e continuou. “Como ninguém mais me contratava, eu sugeri que ela fizesse seguro de vida das meninas e do seu. Depois a gente se encarregaria de matá-las com um laudo psicológico falso dizendo que elas morreram por complicações emocionais.” Cassandra completou com uma calma que lavava a alma. “E depois eu dividiria o dinheiro do seguro com ele.”
Quando finalmente chegaram ao quarto, João se virou e perguntou com a voz embargada, mas sem esconder o horror. “Então, o que você vai fazer agora? Vai nos matar a tiros? Como se ninguém jamais fosse notar que foi você. Como se ninguém fosse perguntar quem entrou na nossa casa e matou três pessoas.” Cassandra soltou uma risada curta, quase delicada, mas que gelou o sangue de todos no quarto. Seu sorriso era frio, vazio, como se toda a situação não significasse absolutamente nada. “Eu não vou fazer isso”, respondeu ela, ainda apontando a arma. “Você vai fazer isso. Você vai eliminar as suas duas filhas e depois acabar consigo mesmo.” João sentiu o ar sumir. O desespero subiu como uma onda sufocante. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Cassandra continuou sem demonstrar um pingo de misericórdia. “Eu venho gravando essas crises existenciais suas, essas em que você se pergunta se é um bom pai. Então não seria nenhuma surpresa se de repente você ficasse louco e fizesse isso com as meninas.” A ameaça era clara, imortal. João olhou para Cassandra nos olhos e pela primeira vez viu algo verdadeiramente monstruoso ali. Nem em seus piores pesadelos ele imaginou que aquela mulher, a que ele amou, a que ajudou a criar suas filhas, seria capaz de algo tão cruel. Sua voz saiu trêmula. “Como você pode ser capaz de uma crueldade tão grande? Elas te tratavam como mãe. Eu te tratei com todo o amor que eu podia dar. E você abre mão de tudo isso por causa de apostas?” Cassandra respirou fundo e por um breve segundo deixou que uma lágrima caísse. Mas isso não suavizou em nada seu tom. A frieza permaneceu intacta. “Eu até posso amá-las”, disse ela. firme. “Mas eu venho em primeiro lugar. De que adianta ter um marido e duas meninas se minha vida está em perigo?” Ela levantou o queixo com arrogância. “Além disso, eu posso conseguir outro marido. Cássio está aí para isso.” Seu sorriso era tão perturbador que Bia e Ana agarraram o braço do pai em puro pânico. Cassandra apontou diretamente para Bia. “Agora anda, você vai acabar primeiro com a Bia, depois com a Ana e se você não fizer, eu e o Cássio vamos fazer algo pior.” Ana soltou um soluço. Bia tremia tanto que quase não conseguia se mover. João sentiu o coração rasgar dentro do peito.
Antes que alguém pudesse reagir, um barulho forte ecoou da parte de baixo da casa. Vidro quebrando. Segundos depois, um cheiro de fumaça começou a subir pelo corredor, invadindo o andar de cima. Cassandra se virou imediatamente para a porta, surpresa. A arma ainda estava em sua mão, mas agora sua atenção se dividia entre o fogo e a família. Deu alguns passos para fora do quarto e olhou para baixo. O que viu fez seus olhos se arregalarem. As chamas já tomavam parte da sala. O fogo se espalhava rápido, iluminando o corredor com tons alaranjados. E então uma voz ecoou do computador das meninas. A mesma voz com interferência que João já tinha escutado. “A gente distraiu ela. Corram.” João não pensou. Agarrando Bia e Ana pelos braços, correu para a janela do segundo andar. As meninas gritavam desesperadas, mas ele não hesitou. Abriu a janela, puxou as duas contra si mesmas e pulou, protegendo as filhas com o próprio corpo para amortecer a queda. Os três rolaram pelo chão do quintal, mas sobreviveram sem ferimentos graves. E foi nesse exato momento que as sirenes começaram a tocar. Policiais chegaram rapidamente, correram para a frente da casa e chamaram os bombeiros pelo rádio vendo as chamas devorando cada cômodo. De repente, a porta da frente se abriu com violência. Cássio saiu correndo, envolto em chamas. Tinha tentado escapar pela sala, mas o fogo já tinha tomado tudo. Os policiais correram até ele, jogaram água, apagaram as chamas e, mesmo enquanto o médico gritava de dor, algemaram-no imediatamente. Também chamaram uma ambulância. João se levantou ofegante, segurando as meninas, apontou para a casa em chamas e gritou desesperado: “Minha ex-esposa está lá dentro. Ela está armada.” O policial mais próximo levantou a mão e gritou ordens para cercar a casa. Pediu reforços, chamou mais viaturas, mas ninguém saiu da casa novamente.
Entre as chamas, algo chamou a atenção de Cássio. Mesmo enquanto era atendido pelos policiais, ele olhou fixamente para a janela da sala com os olhos arregalados. João também olhou através da fumaça espessa e das chamas. Era possível ver uma silhueta parada em frente à televisão, imóvel, segurando uma arma. As chamas devoravam todo o seu corpo, deixando visível apenas um sorriso, um sorriso perturbador. Os bombeiros chegaram, mas o fogo já tinha tomado tudo. Não conseguiram salvar nada. A casa inteira queimou até sobrar apenas uma pilha de cinzas. Quando a perícia entrou nas ruínas, procuraram pelo corpo de Cassandra. Revistaram cada centímetro queimado, mas não encontraram nada, nenhum pedaço, nenhum osso, nenhum rastro, como se ela tivesse desaparecido junto com o fogo. No entanto, durante a investigação, enquanto prendiam Cássio por fraude de seguro e tentativa de homicídio, apareceu uma gravação. Uma câmera de segurança de uma casa vizinha havia registrado uma figura saindo da casa no mesmo instante em que ela começava a desabar. Os especialistas afirmaram que com o estado do incêndio não havia como Cassandra ter escapado com vida. Mas o vídeo dizia outra coisa. Declararam Cassandra como morta. Mas João, João nunca conseguiu acreditar nisso. Aquela imagem na janela, aquele sorriso, aquele vulto correndo para longe, isso nunca saiu da sua mente. Enquanto isso, Cássio tentou alegar inocência dizendo que tudo era um mal-entendido, mas os amigos de Bia e Ana, aqueles que estavam no chat de voz, tinham gravado toda a conversa da noite desde o início, cada palavra. A gravação foi entregue à polícia selando o destino do médico. Ele foi condenado por tentativa de homicídio. João e as meninas deixaram a cidade pouco depois. Foram começar uma nova vida em outro lugar, longe de tudo que lhes lembrasse Cassandra. As meninas se recuperaram rápido, agora que estavam longe dos medicamentos que a madrasta colocava escondidos na comida. Voltaram a ganhar peso, a brincar, a estudar, a sorrir. Finalmente livres. Quanto a Cassandra, ninguém sabe. E agora fica a pergunta. E você, acredita que Cassandra sobreviveu ao incêndio ou acredita que ela desapareceu para sempre entre as cinzas? Deixe sua opinião. Se você, assim como João, é alguém que se preocupa com seus filhos, deixe seu like e comente aqui embaixo. E não se esqueça de ver as outras histórias emocionantes do canal. A gente se vê na próxima narrativa do coração