Ana Belén: A ESCRAVA que viu o nascimento da criança cuja pele revelou a traição oculta.

No verão de 1787, quando o ar do vale de Oaxaca ardia como brasa viva e as cigarras cantavam sua ladainha nas árvores de Goiaba, Ana Belén ouviu o primeiro grito da Senhora Leonor vindo do quarto principal da fazenda Santa Cruz de Tlacolula. Era um grito contido, abafado pelo costume de décadas de não mostrar fraqueza diante da servidão.

Ana Belén largou a bacia onde lavava lençóis de linho, secou as mãos no avental e subiu as escadas de pedra que conduziam aos aposentos dos patrões. Seus pés descalços conheciam cada degrau, cada rachadura onde a cal havia se soltado durante as chuvas do ano anterior.

 Ela estava naquela casa há 30 anos, comprada aos 13 em um mercado de Antequera, e tinha visto nascer três gerações da família Villarreal. Desta vez seria diferente. Ela soube pelo tremor nas mãos da senhora quando, três meses antes, lhe pedira que jamais a deixasse sozinha durante o parto. Prometa-me, Ana Belén. Jure pela sua alma.

 A fazenda Santa Cruz dominava um vale onde se cultivava cochonilha, grana e milho. Os senhores Villarreal possuíam 200 almas, entre escravos negros trazidos das costas e serviçais indígenas que trabalhavam por dívidas herdadas de seus avós. Dom Rafael Villarreal, o patrão, partira para a Cidade do México seis meses antes para tratar de assuntos da audiência.

 Ele estava em litígio com os dominicanos por terras próximas a Etla. Sua ausência se prolongava mais do que o previsto, e as cartas que enviava a cada 15 dias falavam de trâmites intermináveis, de papéis que se perdiam, de funcionários que pediam mais dinheiro para acelerar as resoluções. Enquanto isso, a Senhora Leonor, de 42 anos, florescia em uma gravidez inesperada que todos atribuíam à vontade divina.

 Ela havia perdido duas crianças antes, ambas antes de completar o segundo mês de gestação. Desta vez, o menino se agarrava, crescia, chutava. O capelão da fazenda, Frei Domingo, dizia que era sinal de bênção, que Deus premiava a piedade de Dona Leonor, que havia mandado construir uma nova capela no povoado de San Pablo. Se você vive no México ou em qualquer canto da América onde essas histórias ainda dormem, nos arquivos paroquiais e na memória das pedras, comente de onde você nos lê e ajude-nos a resgatar o que o silêncio tentou apagar durante séculos. Ana Belén entrou no

quarto e fechou a porta atrás de si. A Senhora Leonor estava recostada sobre o leito de madeira entalhada, suada, com o cabelo castanho grudado nas têmporas. As contrações haviam começado ao amanhecer, suaves primeiro, depois cada vez mais intensas. Agora chegavam a cada poucos minutos.

 Ana Belén havia assistido a mais de 50 partos. Conhecia os ritmos do corpo, os sinais de perigo, os silêncios que precediam a morte. Aproximou-se, apalpou a barriga inchada, calculou a posição da criança. Tudo parecia em ordem. “Quanto falta?”, perguntou Dona Leonor com voz tensa. Antes do anoitecer, respondeu Ana Belén. “O menino está bem posicionado. É forte.” A senhora fechou os olhos.

 “Ana Belén, quando nascer, quando o vir, não diga nada a ninguém, entende?” Suas palavras eram súplica e ameaça ao mesmo tempo. Ana Belén assentiu. Já o sabia. Há meses o sabia. Durante a gravidez, ela vira Dona Leonor caminhar até o telheiro onde guardavam as ferramentas, onde Jacinto, o capataz mulato, organizava as equipes de trabalho.

 Jacinto era filho de uma escrava e de um espanhol desconhecido, e havia crescido entre a casa grande e os campos, homem de confiança do patrão, encarregado de manter a ordem quando Dom Rafael viajava. Tinha 35 anos, corpo de trabalhador curtido pelo sol, mãos grandes e voz suave que contrastava com seu ofício de dar ordens.

 Ana Belén os vira conversar perto do aqueduto que alimentava as plantações. Vira-os em uma tarde de outubro, antes de as chuvas começarem, caminhar em direção à divisa, onde as árvores de Mesquite ofereciam sombra discreta. Não os seguiu, não precisava confirmar o que já entendia. Em uma fazenda, os segredos são como fumaça.

 Podem se esconder por um tempo, mas sempre buscam sair. O parto avançou por horas. Ana Belén preparou infusões de camomila e arruda. Limpou com panos de algodão. Segurou as pernas da senhora quando as forças fraquejavam. Lá fora, o sol começava a descer, tingindo o céu de laranja e púrpura. Ouviam-se os sinos da capela chamando para o Angelus.

 Frei Domingo viera duas vezes perguntar, e Ana Belén lhe dissera que tudo corria bem, que rezasse e esperasse. O capelão era um homem jovem, recém-chegado de Puebla, sem experiência nos assuntos obscuros que se tramavam nas grandes fazendas. Via o que queria ver, uma família piedosa, uma senhora devota, um patrão generoso com a igreja.

 Quando o menino nasceu, Ana Belén o recebeu com as mãos firmes. Era varão, como havia prognosticado. Chorava com força, os pulmões cheios de vida. Ana Belén limpou-o com água morna, cortou o cordão, envolveu-o em uma manta de lã e então o viu. A pele do menino não era branca como a de Dona Leonor, nem morena clara como a de Dom Rafael.

 Era escura, da cor de café sem leite, com um tom que não deixava dúvidas sobre o sangue que corria em suas veias. Os traços, ainda indefinidos, como em todos os recém-nascidos, insinuavam algo distinto. O nariz mais largo, os lábios mais grossos, o cabelo que começava a encaracolar-se em pequenos cachos apertados.

 Dona Leonor estendeu os braços, mas quando Ana Belén lhe entregou o bebê, viu em seus olhos o terror que estivera escondido durante nove meses. A senhora olhou para o filho e não disse nada, simplesmente o apertou contra o peito e começou a chorar em silêncio. Ana Belén limpou o sangue, trocou os lençóis, preparou o banho para a mãe.

 Trabalhava com eficiência, sem falar, enquanto sua mente calculava as consequências. Quando Dom Rafael voltasse, e mais cedo ou mais tarde ele voltaria, veria o menino e então começaria o inferno. “Não podem saber”, sussurrou Dona Leonor. “Se souberem, ele me matará.”

 “Matará o menino e a você também, Ana Belén, por ter estado aqui.” Ana Belén não respondeu. Sabia que a senhora tinha razão. No mundo das fazendas neo-hispânicas, a honra de um espanhol era mais importante do que qualquer vida. Um filho bastardo era desonra, um filho mulato era abominação. A lei permitia ao marido desfazer-se da esposa adúltera e de sua descendência.

 Alguns o faziam com veneno discreto, outros com faca rápida na madrugada. Sempre com a bênção tácita das autoridades que entendiam que certos crimes não eram crimes, mas sim justiça doméstica. Naquela noite, depois que Dona Leonor adormeceu exausta com o bebê nos braços, Ana Belén desceu à cozinha, onde as outras criadas preparavam tortillas e feijão para a ceia.

 Ninguém perguntou sobre o parto. Era costume esperar que a senhora anunciasse o nascimento oficialmente. No dia seguinte, viria o capelão para batizar o menino com água benta. Seriam enviadas cartas à Cidade do México informando Dom Rafael. Seria organizada uma pequena celebração com aguardente e tamales.

 Mas Ana Belén sabia que nada disso aconteceria da forma habitual. Na manhã seguinte, Dona Leonor mandou chamar Jacinto. Ana Belén estava presente quando ele entrou no quarto. O capataz trazia o chapéu na mão, as costas ligeiramente curvadas em gesto de respeito. Quando viu o menino, seu rosto mudou. Primeiro confusão, depois compreensão, finalmente algo parecido com medo misturado com uma ternura que tentou ocultar.

 “É teu filho”, disse Dona Leonor sem rodeios. “Dom Rafael voltará em duas semanas, segundo sua última carta. Antes que ele chegue, este menino tem que desaparecer.” Jacinto deu um passo atrás. “Desaparecer, senhora, o que está dizendo? Leve-o para longe, para o povoado, para a costa, para onde for. Encontre alguém que o crie.”

 “Eu te darei dinheiro, o que precisar.” Ana Belén observava a cena com o coração apertado. Ela havia carregado aquele menino, o havia limpado com suas próprias mãos. Sabia o que significava “desaparecer” na boca de um patrão. Algumas crianças chegavam a famílias que as acolhiam com carinho, outras eram vendidas, outras abandonadas nas portas dos conventos, outras simplesmente deixadas à própria sorte em caminhos solitários onde os animais as encontravam antes que os humanos. “Eu o levarei”, disse Ana Belén.

 As palavras saíram de sua boca sem pensar, como se outra pessoa falasse. Dona Leonor e Jacinto a olharam. “Você?”, perguntou a senhora. “Conheço uma família em Tlacochahuaya”, continuou Ana Belén, inventando na hora. “Gente boa, sem filhos, a mulher me deve um favor. Levarei o menino para lá. Ninguém fará perguntas.”

” Na verdade, Ana Belén não conhecia nenhuma família assim. Mas precisava de tempo para pensar, para encontrar uma saída que não terminasse com o menino morto em uma vala. Dona Leonor assentiu, grata demais para questionar, “Faça isso hoje, antes que mais alguém o veja. Eu te darei 50 pesos e, quando voltar, diremos que o menino nasceu morto. Já perdi dois antes.

Ninguém duvidará.” 50 pesos era uma fortuna para uma escrava. Equivalia a vários anos de trabalho, caso ela fosse paga alguma vez. Ana Belén pegou a bolsa que a senhora lhe entregou, envolveu o bebê em uma manta grossa e saiu do quarto. Enquanto caminhava pelo corredor, Jacinto a alcançou.

 “Aonde realmente você o levará?”, perguntou em voz baixa. Ana Belén olhou-o nos olhos, “Para um lugar seguro.” “Eu quero saber onde ele está. É meu sangue.” “Seu sangue lhe custará a vida se alguém o descobrir”, respondeu Ana Belén. “A senhora perdoará o adultério de seu marido porque não tem opção, mas a você ele matará por ter tocado o que era dele. Entende?” Jacinto cerrou os punhos. “Eu não pedi isso.”

 “Ninguém pede o que lhe cabe”, disse Ana Belén. “Agora, deixe-me ir. Quanto menos você souber, melhor.” Ana Belén saiu da fazenda com o menino escondido sob seu xale. Pegou o caminho para o leste, onde os morros se erguiam cobertos de carvalhos e pinheiros. Caminhou por horas sob o sol que queimava a terra seca. O bebê chorava de fome, e ela parava de vez em quando para dar-lhe água adoçada com rapadura, a única coisa que podia oferecer.

 Sua mente trabalhava sem descanso buscando soluções. Podia deixá-lo no convento das dominicanas em Tlacolula. Podia levá-lo para alguma família indígena que talvez o aceitasse em troca de dinheiro. Podia até ficar com ele, fingir que era um menino abandonado que havia encontrado, criá-lo como seu, mas cada opção tinha seus perigos, suas formas de ser descoberta.

Ao entardecer, chegou a Tlacochahuaya, um povoado pequeno com uma igreja barroca de muros brancos e uma praça central onde vendiam cerâmica e tecidos. Ana Belén conhecia o lugar porque havia vindo anos antes com a Senhora Leonor para comprar toalhas de mesa bordadas. Sentou-se debaixo de um freixo para descansar e pensar.

 O bebê havia adormecido contra seu peito. Era lindo, com cílios longos e dedos perfeitos. Não merecia morrer pelo pecado de seus pais. Uma mulher se aproximou curiosa. “De onde vens, irmã?” Ana Belén reconheceu seu sotaque zapoteca. “Da fazenda Santa Cruz. Levo este menino para a sua família.” A mulher olhou para o bebê e depois para Ana Belén com olhos que haviam visto demais.

 “Não há família”, disse simplesmente. Ana Belén não respondeu. A mulher sentou-se ao seu lado. “Minha filha perdeu um menino há dois meses. Ainda tem leite. Se precisas de alguém que o amamente, posso levá-los.” Era uma oferta ou uma armadilha. Ana Belén não sabia qual, mas o bebê estava com fome e ela não tinha opções.

 Seguiu a mulher até uma casa de adobe à beira do povoado. A filha era jovem, talvez 20 anos, com o rosto marcado pelo luto recente. Quando viu o menino, seus olhos se encheram de lágrimas. Tomou-o nos braços sem perguntar nada e o levou ao peito. O bebê começou a sugar com avidez. Ana Belén observava a cena e sentia algo que não sentia há anos. Esperança. “Quanto?”, perguntou a mãe, prática.

Ana Belén tirou 20 pesos da bolsa, “Pelo seu cuidado durante um ano. Depois voltarei com mais.” Era uma mentira, mas necessária. A mulher pegou o dinheiro e guardou-o na blusa. “Como ele se chama?” “Ainda não tem nome”, disse Ana Belén. A jovem que amamentava o menino falou pela primeira vez. “Vou chamá-lo de Gabriel, como o anjo que anuncia o impossível.”

 Ana Belén regressou à fazenda Santa Cruz três dias depois. Havia tomado caminhos longos, parando em povoados diferentes, construindo uma história crível sobre ter viajado longe para entregar o menino. Quando chegou, encontrou a casa em luto oficial. Haviam pendurado panos pretos nas janelas. Frei Domingo rezara uma missa pela alma do menino morto.

 Dona Leonor permanecia em seu quarto recebendo visitas das poucas famílias espanholas da região que vinham dar os pêsames. Ninguém perguntou detalhes. A morte infantil era tão comum que explicá-la parecia desnecessário. Dom Rafael Villarreal chegou uma semana depois, empoeirado da viagem, irritado por ter tido que interromper seus assuntos na capital.

 Quando soube do menino morto, mostrou decepção, mas não dor. “Mais um varão perdido”, disse, “Deus tem suas razões.” Dona Leonor chorava de verdade, mas não pelas razões que seu marido imaginava. Ana Belén os observava durante as refeições, durante as conversas no corredor, durante os momentos em que Dom Rafael revisava as contas da fazenda com Jacinto.

 O capataz mantinha o olhar baixo, respondia com monossílabos, evitava ficar a sós com a senhora. A tensão era como uma corda que se esticava a cada dia um pouco mais, ameaçando romper-se. Os meses se passaram. O outono trouxe as primeiras chuvas, o inverno secou os campos, a primavera fez florescer as árvores de Buganvílias que subiam pelos muros da fazenda.

Ana Belén continuava com suas tarefas, lavando roupa, cozinhando, cuidando do galinheiro. Uma vez por mês, inventava alguma desculpa para ir a Tlacochahuaya. Levava dinheiro para a família que cuidava de Gabriel. Via-o crescer forte e saudável. O menino tinha já oito meses. Engatinhava, ria quando ela fazia caretas. A jovem que o amamentava o tratava como seu. “É um menino bom”, dizia.

“Deus te abençoe por trazê-lo.” Mas os segredos, como as dívidas, sempre cobram seu preço. Em maio de 1788, chegou à fazenda um visitante inesperado, Dom Rodrigo Villarreal, irmão mais novo de Dom Rafael, que havia estado vivendo na Guatemala durante 10 anos administrando plantações de anil. Vinha de regresso à Nova Espanha para reclamar sua parte na herança paterna.

Era um homem observador, de olhar afiado, que notava inconsistências onde outros viam apenas a superfície. Durante o jantar de boas-vindas, perguntou pelo menino morto. “Quando nasceu exatamente?” “Em agosto do ano passado”, respondeu Dona Leonor com a voz trêmula. “E viveu quanto tempo?” “Apenas alguns dias”, interveio Dom Rafael, “não chegou nem a ser batizado.”

 Dom Rodrigo assentiu, mas seus olhos se moveram em direção a Ana Belén, que servia o vinho. “Você esteve no parto”, disse. Não era uma pergunta. Ana Belén assentiu. “E o que viu?” A pergunta pairou no ar como uma faca suspensa. Ana Belén sentiu os olhares de todos cravados nela. “Vi um menino que não conseguia respirar bem, senhor. Nasceu roxo, durou três dias lutando, depois se apagou como vela.”

 Era mentira técnica e verdade emocional ao mesmo tempo. Dom Rodrigo não pareceu convencido, mas não insistiu. Durante sua visita, fez perguntas estranhas, revisou documentos antigos, falou com os trabalhadores. Em uma tarde, Ana Belén o viu conversando com Jacinto perto dos estábulos.

 Não ouviu o que diziam, mas viu como o capataz ficava tenso, como Dom Rodrigo apontava para a casa grande, como seus gestos sugeriam acusação. Naquela noite, Jacinto procurou Ana Belén na cozinha. “Dom Rodrigo, suspeita de algo”, disse. “Me perguntou se eu havia notado algo estranho na senhora durante a gravidez, se a tinha visto falar com alguém em particular.”

 “E o que você lhe disse?” “Que eu apenas cumpria minhas obrigações. Mas ele não acreditou em mim. Ele tem essa maneira de olhar que lê seus pensamentos.” Na semana seguinte, Dom Rodrigo anunciou que ficaria na fazenda por tempo indefinido. Tinha planos de modernizar a produção de cochonilha, de trazer novas técnicas da Guatemala, de aumentar os lucros.

Dom Rafael aceitou a ajuda de seu irmão sem saber que estava convidando à sua própria perdição. Porque Dom Rodrigo não havia vindo apenas a negócios. Ele havia vindo porque na Guatemala havia recebido uma carta anônima, uma carta que falava de um menino que não havia morrido, de um adultério que se ocultava sob um luto falso, de uma escrava que sabia demais.

 Quem havia escrito essa carta? Ana Belén nunca soube com certeza. Suspeitava do mordomo, um espanhol velho chamado Melchor, que estava há 40 anos na fazenda e que havia visto Dom Rafael e seu irmão crescerem. Melchor era um homem de lealdades antigas, que considerava que a família Villarreal merecia saber a verdade sobre seu sangue. Ou talvez tenha sido o capelão Frei Domingo, que sem querer ouvira algo em confissão e decidira cumprir um dever moral mais alto do que o segredo sacramental.

Ou talvez tenha sido alguma das criadas invejosa do poder de Ana Belén, desejosa de vê-la cair. Nas fazendas, as paredes têm ouvidos e os ouvidos têm línguas. Dom Rodrigo começou sua investigação de forma sutil, revisou os livros paroquiais, falou com o médico que ocasionalmente visitava a fazenda, interrogou as parteiras da região, ofereceu dinheiro, ameaçou com castigos, prometeu proteção. Lentamente, construiu um caso.

 Não tinha provas definitivas, mas tinha pontas soltas suficientes para tecer uma corda. Em uma tarde de junho, enquanto a família jantava, Dom Rodrigo soltou sua bomba com precisão calculada. “Irmão”, disse, “creio que deves saber algo sobre o menino que morreu no ano passado, ou melhor, sobre o menino que não morreu.” O silêncio que se seguiu foi absoluto.

 Dom Rafael largou o garfo sobre o prato. “O que estás insinuando?” “Não insinúo, afirmo”, respondeu Dom Rodrigo. “Tua esposa deu à luz um menino vivo, um menino que foi entregue a uma família em Tlacochahuaya, um menino cuja pele revelou uma verdade inconveniente.” Dona Leonor levantou-se, branca como a toalha de mesa.

 “Estás louco?” “Estou informado”, corrigiu Dom Rodrigo, “e proponho que vamos juntos buscar essa criança. Se não existe, eu me desculparei. Se existe, teremos uma conversa necessária sobre honra e consequências.” No dia seguinte, uma comitiva saiu em direção a Tlacochahuaya.

 Iam Dom Rafael, Dom Rodrigo, Frei Domingo, Jacinto e Ana Belén. Ninguém falou durante o trajeto. Ana Belén sabia que sua vida pendia por um fio. Se encontrassem Gabriel, tudo desmoronaria. Se não o encontrassem, Dom Rodrigo ficaria como mentiroso, mas as suspeitas permaneceriam. Rezo em silêncio, sem saber a que santo se dirigir. Ao santo dos inocentes, ao dos mentirosos piedosos, ao das causas perdidas.

Quando chegaram ao povoado, Ana Belén os guiou até a casa de adobe, mas a casa estava vazia, completamente vazia. Não havia móveis, não havia gente, apenas paredes nuas e um chão de terra varrido. Os vizinhos disseram que a família havia se mudado dois meses antes para a costa, que haviam recebido dinheiro de um parente e decidido recomeçar em Oaxaca, porto. Ninguém sabia exatamente onde.

 Dom Rodrigo interrogou meia dúzia de pessoas. Todos diziam o mesmo. Família se foi, menino incluído, destino desconhecido. No caminho de regresso, Dom Rafael não olhou para a esposa. Dom Rodrigo cavalgava à frente, frustrado, mas não derrotado. Ana Belén respirava com dificuldade, sabendo que havia ganhado tempo, mas não a guerra, porque a verdade era que ela havia esvaziado a casa.

 Duas semanas antes, quando soube que Dom Rodrigo fazia perguntas, ela havia pegado os 30 pesos que lhe restavam, fora a Tlacochahuaya e convencera a família a partir imediatamente. Havia-lhes dado o dinheiro, explicado o perigo, dito para irem para longe e não voltarem nunca.

 A jovem que cuidava de Gabriel havia chorado, mas entendia. “Protegeremos o menino”, prometera, “como se fosse nosso.” Os meses seguintes foram de tormenta contida. Dom Rafael, embora sem provas definitivas, começou a se distanciar de sua esposa. Já não compartilhavam o leito, mal falavam durante as refeições.

 Dom Rodrigo regressou à Guatemala após meses de busca infrutífera, mas deixou semeada a semente da dúvida. Jacinto foi rebaixado de capataz a simples trabalhador de campo, sem explicação oficial, mas com uma mensagem clara. Ana Belén continuava seus labores, mas sentia os olhos de Dom Rafael sobre ela cada vez que entrava em um quarto.

 O patrão sabia que ela sabia de algo, mas não se atrevia a interrogá-la diretamente, porque isso significaria dar credibilidade às acusações de seu irmão. Em setembro de 1790, dois anos após o nascimento de Gabriel, chegou à Nova Espanha a notícia de que o Rei Carlos IV havia ascendido ao trono.

 Com ele vieram rumores de reformas, de mudanças nas leis sobre escravidão, de pressões da Europa para moderar os abusos coloniais. Eram apenas rumores, mas nas fazendas começaram a circular com intensidade. Os escravos falavam em voz baixa sobre possíveis liberdades futuras. Os patrões reagiam com mais dureza, temendo perder o controle.

 A tensão social crescia como um rio que transborda antes da tempestade. Em uma noite de novembro, Dona Leonor mandou chamar Ana Belén ao seu quarto. Estava sentada junto à janela, olhando a lua cheia que iluminava o vale. “Onde está meu filho?”, perguntou sem rodeios. Ana Belén havia esperado essa pergunta por dois anos. “Longe, a salvo, vivo.” “Sim.”

 “Sabe onde exatamente?” “Não. Eu lhes disse para não me dizerem. É mais seguro assim.” Dona Leonor fechou os olhos. “Às vezes sonho com ele, com a pele escura dele, com os olhos dele. Acordo chorando. Dom Rafael já não me toca. Creio que me odeia, embora não possa provar.” “Ele odeia porque suspeita, senhora, mas enquanto não houver prova, não pode agir sem destruir sua própria reputação.”

 “E quando eu morrer”, perguntou Dona Leonor, “o que acontecerá com o menino então? Quem saberá que ele é meu?” Ana Belén não tinha resposta. A senhora continuou, “Quero que escrevas algo, uma declaração assinada por mim, testemunhada por ti, algo que explique a verdade, que diga a Gabriel quem foi sua mãe, não para agora, para o futuro, para quando todos estivermos mortos e o escândalo já não importar.”

 Era um pedido impossível e necessário. Ana Belén, que havia aprendido a ler e escrever em segredo durante seus anos na fazenda, pegou pena e papel. Sob o ditado de Dona Leonor, escreveu uma confissão completa. O adultério com Jacinto, o nascimento do menino, a decisão de ocultá-lo, o papel de Ana Belén como salvadora.

 A senhora assinou com a mão trêmula. Ana Belén guardou o papel em uma caixa de madeira que escondeu sob as tábuas do chão de seu pequeno quarto de serviço. Em 1794, Dom Rafael adoeceu com febres. Os médicos disseram que era malária contraída durante uma viagem às costas de Veracruz. Morreu em dezembro, delirante, chamando por sua mãe morta.

 Dona Leonor herdou a fazenda completa, sem filhos reconhecidos, tornando-se uma das poucas mulheres proprietárias da região. Dom Rodrigo tentou disputar o testamento, argumentando que seu irmão havia sido envenenado por sua esposa adúltera, mas sem provas concretas, o caso desmoronou.

 A viúva Villarreal continuou administrando Santa Cruz com a ajuda de novos empregados trazidos de Puebla. Ana Belén envelheceu com a fazenda. Seu cabelo ficou grisalho, suas costas se curvaram, mas sua mente permanecia alerta. Uma vez por ano, enviava dinheiro através de intermediários para a costa, onde acreditava que Gabriel e sua família adotiva viviam. Nunca recebeu confirmação.

 Nunca soube se o dinheiro chegava, mas continuava enviando-o como um ato de fé. Em 1810, quando o padre Hidalgo levantou o estandarte da Virgem de Guadalupe e começou a guerra de independência, Ana Belén tinha 63 anos. A Fazenda Santa Cruz foi saqueada duas vezes por insurgentes que buscavam armas e dinheiro. Dona Leonor morreu em 1812 durante um ataque rebelde, atravessada por uma bala perdida em sua própria casa.

Ana Belén, livre finalmente por decreto de abolição que Hidalgo havia proclamado, ficou nas ruínas da fazenda junto a outros antigos escravos que não tinham para onde ir. Em 1821, quando o México proclamou sua independência, era uma anciã de 74 anos que passava seus dias sentada sob o freixo do pátio, recordando.

 Às vezes vinham viajantes, comerciantes, soldados licenciados. Alguns ficavam para ouvir suas histórias sobre os tempos do vice-reinado, sobre as grandes famílias que caíram, sobre os segredos que morreram com seus donos. Em uma tarde de setembro daquele ano, um homem de pele morena clara de uns 33 anos chegou à fazenda perguntando por Ana Belén.

 Trazia consigo uma pequena caixa de madeira e uma carta antiga, amarelada pelo tempo. A carta estava assinada por Dona Leonor Villarreal. O homem disse chamar-se Gabriel. Havia crescido na costa, filho adotivo de uma família zapoteca que lhe contara, ao completar 21 anos, a verdade sobre sua origem. Levara anos para decidir-se a procurar, mas finalmente havia vindo.

 Queria conhecer sua história completa. Ana Belén olhou-o longamente, buscando em seus traços as marcas de Jacinto e de Dona Leonor. Estavam ali misturadas, fundidas em um rosto que era todos e nenhum. Contou-lhe tudo, desde o parto até a fuga, desde as mentiras até as verdades, desde o medo até a esperança.

 Gabriel ouviu sem interromper e, quando ela terminou, pegou sua mão enrugada entre as suas e disse: “Obrigado por me salvar, por guardar a memória.” Ana Belén morreu três meses depois, em dezembro de 1821, rodeada pelas poucas pessoas que ainda viviam nos restos da fazenda Santa Cruz. Gabriel estava presente e, quando a enterraram debaixo do freixo que ela tanto havia amado, colocou sobre sua tumba uma pedra com uma inscrição simples talhada por suas próprias mãos.

Ana Belén, escrava que viu nascer a liberdade, onde todos viam apenas cadeias.

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