O que restava do bolsonarismo como um movimento político unificado não está apenas rachado; está em autocanibalismo. Nas últimas semanas, o circo político que orbitava o ex-presidente Jair Bolsonaro—agora sob o peso de uma prisão—entrou em colapso total, numa série de ataques públicos, humilhações e traições que expuseram a crua disputa pelo poder e o espólio político de um líder ausente. A figura central e mais atacada desta implosão é a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
O golpe mais devastador veio de onde menos se esperava, mas com o maior barulho: Allan dos Santos, o blogueiro foragido e um dos propagandistas mais fiéis do clã, rasgou o véu da lealdade e esculhambou publicamente Michelle. O ataque foi direto, humilhante e impiedoso, pintando o retrato de uma madrasta que se comporta como se o patriarca já tivesse morrido e que não tem o mínimo interesse em sua sobrevivência política e jurídica.
Este não é apenas um barraco familiar; é a crônica de como a ausência de um líder transforma seu movimento em uma arena de batalha. A briga, que começou nas coxias, agora é travada em rede nacional, com os próprios filhos do ex-presidente, Eduardo e Flávio, entrando na ofensiva contra a madrasta. O Partido Liberal (PL), a máquina que financiava a família, está em pânico, convocando reuniões de emergência para “enquadrar a madrasta” e estancar a “hecatombe” que ameaça a estratégia eleitoral de 2026.

A Espada de Allan: “Estrago o Velório”
A retórica de Allan dos Santos, conhecida por sua agressividade, atingiu um novo patamar de crueldade. O foragido, que se mantém ativo em suas redes sociais nos Estados Unidos, não poupou Michelle, desferindo uma série de acusações que minam a imagem de esposa leal e sofredora.
As declarações de Allan são um manifesto de ressentimento e traição que ecoam o sentimento de parte da base mais radical do bolsonarismo:
Ausência na Adversidade: Michelle, segundo Allan, não estava presente no momento da prisão de Bolsonaro. Uma ausência crucial que aniquila a narrativa de união e apoio inabalável.
A Política do Luto: A ex-primeira-dama estaria a “viajar o Brasil inteiro como se o Bolsonaro já tivesse morto,” ou, nas palavras chulas do blogueiro, “está cagando para o Bolsonaro.” Esta é a acusação mais grave: a de que ela estaria a construir sua própria carreira sobre as ruínas da de seu marido.
Isolamento Político: Allan afirmou que Michelle não possui “nenhum aval dos filhos” para as articulações que está a fazer e, mais ainda, que figuras chave do movimento, como Tarcísio de Freitas, o governador de São Paulo e o nome mais cotado para 2026, querem “distância da Michelle por perto.”
A frase mais ilustrativa do colapso veio do próprio Allan: “Se eu falar, eu estrago o velório.” O bolsonarismo, segundo seus próprios porta-vozes, virou uma família a brigar pela herança de um preso. A lealdade foi substituída pela luta por “espólio político”.
A Guerra da Madrasta e os Filhos: Disputa Pela Herança
O ataque de Allan dos Santos foi apenas o prelúdio para a intensificação do drama familiar. O núcleo da crise não é moral, mas puramente político: quem será o porta-voz, o negociador e o protagonista do clã enquanto Jair Bolsonaro está fora de jogo?
O senador Flávio Bolsonaro e Carlos Bolsonaro já haviam expressado seu desconforto. Mas foi Eduardo Bolsonaro quem baixou o nível publicamente, unindo-se ao coro de críticas. Eduardo classificou a atitude de Michelle como “desrespeitosa” e a acusou de ter “humilhado” o deputado André Fernandes (PL-CE), um aliado fiel.
O epicentro desta guerra é um acordo de bastidores que Bolsonaro havia fechado antes de ser preso. Este acordo visava garantir uma coligação importante no Ceará para as eleições de 2026, mas Michelle, em um ato de autoritarismo e desconsideração pela estratégia partidária, simplesmente o anulou. Eduardo, em defesa dos interesses políticos do clã, escreveu que Flávio estava certo em criticá-la e que Michelle havia “exagerado”, insinuando que ela estava a prejudicar a família.
A imagem é clara: em vez de uma frente unida para defender o ex-presidente, a família Bolsonaro está a disputar quem tem mais poder e quem define os rumos. Eduardo e Flávio, os mais envolvidos na política institucional, tentam conter a ex-primeira-dama, que age com autonomia e, o que é pior para eles, com a autoridade de quem se sente a herdeira natural da liderança.
A Hecatombe de Ceará e o Motim do PL
O descontrole de Michelle Bolsonaro no Ceará foi o estopim da crise que fez o Partido Liberal (PL) implodir.
O acordo derrubado por Michelle era fundamental para a estratégia do Centrão e da direita para 2026. A articulação envolvia o apoio a Ciro Gomes – um adversário histórico de Bolsonaro – como palanque no Ceará, fundamental para pavimentar o caminho para um candidato presidencial de direita, como Tarcísio de Freitas. O pragmatismo, na política, exige alianças com inimigos de ontem.
No entanto, Michelle viajou para o Ceará e, publicamente, detonou essa negociação, alegando que jamais apoiaria alguém que tivesse criticado a família Bolsonaro no passado. Ela agiu acima do partido e, o que é mais grave, passou por cima de uma decisão que o próprio Jair Bolsonaro havia fechado. O deputado André Fernandes, presidente do PL no Ceará, confirmou em entrevista que tinha um acordo com o ex-presidente e que Bolsonaro lhe pediu, em viva-voz, que ligasse para Ciro Gomes para acertar a coligação.
A reação da cúpula do PL foi de pânico e revolta:
Valdemar Costa Neto, presidente do PL, sentiu-se atingido e convocou uma reunião de emergência em Brasília.
Flávio Bolsonaro teve que ir à prisão para implorar ao pai que resolvesse a situação, pedindo que ele “enquadrasse” a esposa.
Dirigentes do partido definiram Michelle como “agente de desestabilização” que provocou uma “hecatombe” nas articulações de 2026.
A frase mais ofensiva e reveladora da crise interna foi a de um dirigente do PL, citada nos bastidores: “Michelle não entende que ela é funcionária do partido e do Valdemar. Nem o Bolsonaro fala assim. Falta disciplina.”
A Humilhação do “Colocar no Lugar”: Misoginia e Poder
A crise interna no PL ganhou contornos de misoginia na forma como a cúpula masculina do partido se referiu à ex-primeira-dama. A reunião de emergência, que visava “enquadrar a madrasta”, foi marcada por frases de teor machista que dificilmente seriam usadas contra um político homem.
Um integrante da direção do PL foi categórico: “Nós vamos colocá-la no lugar dela.” Esta expressão – “colocá-la no lugar dela” – é o cerne da revolta. Michelle, que foi colocada como a grande líder do PL Mulher, está a ser tratada como uma funcionária rebelde, uma figura que deve obediência cega aos homens do partido e à estratégia do Centrão.
A contradição é gritante: o PL pediu a Michelle que viajasse o país para levantar a bandeira do PL Mulher, articulando e protagonizando politicamente. Quando ela age com autonomia, ela é acusada de indisciplina. A crise expõe que o papel de liderança oferecido a Michelle era, na verdade, um papel decorativo, e não de poder real. A cúpula do partido está com o deputado André Fernandes e “de saco cheio das maluquices dela”, exigindo que ela recuie e se submeta à disciplina partidária.
Michelle, por sua vez, não recuou. Ela soltou notas atacando novamente, reafirmando que não apoiará quem fez mal à família Bolsonaro. Isso só solidifica a percepção no PL de que ela é um “agente de desestabilização” que age por paixões e ressentimentos pessoais, e não por pragmatismo político.

O Fim da Unidade e o Caos Perfeito
A crise entre Michelle Bolsonaro, os filhos e o PL é muito mais do que um drama de família ou uma disputa partidária; é o sinal mais claro de que o bolsonarismo, como força unificada, chegou ao fim.
O movimento era sustentado pela figura central de Jair Bolsonaro. Sem ele, o que resta são peças soltas a disputar uma herança política minguante. De um lado, está o pragmatismo de Flávio Bolsonaro e do Centrão, que priorizam a sobrevivência política e as alianças necessárias para 2026 (como o apoio a Tarcísio de Freitas e a negociação com figuras como Ciro Gomes). De outro, está a ex-primeira-dama, que tenta ocupar o vácuo de liderança com uma retórica passional e radical, mas sem a disciplina e o tato político necessários para negociar com os caciques.
A luta pelo protagonismo, que envolve Michelle e Flávio, transformou a família em um campo de batalha, com Carlos e Eduardo a fazerem a segurança ideológica e moral contra a madrasta. O PL, por sua vez, está a ser usado como um instrumento nesta guerra, vendo sua estratégia eleitoral ser aniquilada pelos conflitos internos.
A ausência do líder não gerou coesão, mas sim o caos perfeito. É a implosão de um movimento que, agora, se devora publicamente, provando que sua força estava na figura do mito e não na união de seus seguidores. O destino de Michelle Bolsonaro no PL está selado; ela será forçada a recuar ou será marginalizada. Mas, independentemente do resultado da reunião de emergência, a imagem do bolsonarismo está irremediavelmente manchada pela traição e pela briga aberta pelo poder. O “velório” que Allan dos Santos temia estragar está a ser protagonizado e televisionado pelos próprios membros do clã.