Bem-vindo a este percurso por um dos casos mais inquietantes registrados na história de Campinas. Antes de iniciar, te convido a deixar nos comentários de onde você está nos assistindo e a hora exata em que escuta esta narração. Nos interessa saber até quais lugares e em quais momentos do dia ou da noite chegam estes relatos documentados.
Nas terras férteis e onduladas da província de São Paulo, no ano de 1846, quando o aroma do café já dominava os ares e trazia riqueza aos senhores de terra, uma história foi enterrada tão profundamente quanto as raízes dos cafezais que dominavam o horizonte. Era uma época em que a cidade de Campinas se erguia como um dos principais centros da economia cafeeira do império, com suas grandes fazendas e seus sobrados imponentes a abrigar famílias cujos nomes eram sussurrados com reverência e às vezes com temor.
A fazenda Monte Alto era uma das mais prósperas da região, localizada a aproximadamente 15 km do Centro Urbano de Campinas, na estrada que levava ao pequeno povoado de Valinhos. Construída em 1832 pelo coronel Augusto Monteiro, a propriedade se destacava pela casa grande de estilo neoclássico, com suas colunas brancas e amplas varandas, que pareciam observar, como sentinelas silenciosas, os intermináveis cafezais que se estendiam até onde a vista alcançava.

O coronel era conhecido tanto por sua rigorosa disciplina quanto por sua astúcia comercial, características que o haviam transformado em um dos homens mais ricos e temidos da província. Quando Augusto Monteiro faleceu, em dezembro de 1845, vítima de uma febre que o consumiu em menos de uma semana, sua esposa Isabel Monteiro tornou-se a única herdeira de um império.
Com apenas 28 anos, a viúva se viu dona de uma das maiores fazendas de café da província, com mais de 100 escravos e uma produção anual que enchia os cofres da família. Os registros paroquiais da Igreja Matriz de Santa Cruz indicam que o funeral do coronel foi um dos mais concorridos já vistos na região, com a presença de autoridades vindas até mesmo da capital da província.
Isabel Monteiro nunca havia sido uma mulher comum. Filha de um comerciante português estabelecido no Rio de Janeiro, recebera educação formal, algo raro para mulheres daquela época. Sabia ler, escrever e era versada em literatura e música. Habilidades que, somadas à sua beleza discreta e porte e elegante, a tornavam uma figura singular na sociedade campineira.
Seu casamento com Augusto Monteiro, 20 anos mais velho, havia sido arranjado pelo pai, um negócio como tantos outros, que celavam alianças familiares e comerciais. Conforme consta nos registros do cartório de Campinas, apenas três meses após o luto oficial, Isabel Monteiro surpreendeu a todos ao assumir pessoalmente a administração da fazenda, dispensando o capataz que seu marido havia designado para supervisionar os negócios caso algo lhe acontecesse.
De acordo com correspondências trocadas com seu pai, preservadas no arquivo histórico municipal, Isabel escreveu: “Não delegarei a outra em o que posso fazer com minhas próprias mãos. A fortuna que herdei não será dilapidada por homens que julgam uma mulher incapaz de compreender números e negócios.” E assim, contra todas as expectativas e convenções sociais, Isabel Monteiro passou a dirigir pessoalmente a fazenda Monte Alto.
Levantava-se antes do sol, supervisionava a colheita, negociava preços com os compradores e mantinha a disciplina entre os escravos, com a mesma firmeza que seu falecido marido. No início, foi objeto de escárnio e de apostas sobre quanto tempo demoraria para fracassar. Mas logo o respeito, ainda que relutante, começou a substituir as zombarias.
Em março de 1846, um incidente na fazenda viria a mudar o curso dos acontecimentos. Segundo relatos preservados no diário do padre Anselmo, vigário da paróquia local e confessor de Isabel, um incêndio de grandes proporções, destruiu parte da cenzala principal e matou sete escravos, incluindo o feitor Jerônimo, um homem de confiança do falecido coronel, conhecido por sua brutalidade no trato com os cativos.
O registro oficial constante nos arquivos da Câmara Municipal atribuiu o incêndio a um acidente causado por uma lamparina que teria sido derrubada durante a noite. Contudo, rumores persistentes, registrados pelo padre em seu diário, sugeriam que o fogo teria sido ateado propositalmente como forma de vingança contra os maus tratos do feitor.
O fato é que após o incêndio, Isabel Monteiro precisou repor sua mão de obra e para isso dirigiu-se a um leilão de escravos que ocorreria em Campinas no final daquele mês. O leilão aconteceu no dia 27 de março de 1846, no Largo da Matriz, hoje conhecido como Praça Bento Quirino. Era uma sexta-feira de céu limpo e sol intenso, conforme registrado no Diário Meteorológico mantido pela administração municipal.
Os leilões de escravos eram eventos comuns naquela sociedade e atraíam tanto fazendeiros da região quanto comerciantes que revendiam seres humanos como se fossem mercadoria. O som do martelo do leiloeiro ecoava pela praça, enquanto homens, mulheres e crianças eram expostos sobre um estrado de madeira para serem examinados como animais.
Segundo o relato de Josefa Bueno, uma senhora livre que trabalhava como costureira para várias famílias abastadas de Campinas e cujas memórias foram registradas por seu neto em 1920, a chegada de Isabel Monteiro ao leilão causou burburinho. Era incomum, especialmente uma viúva jovem e rica, frequentasse sozinha esse tipo de evento. Vestida com um trage de montaria azul escuro, com o cabelo castanho preso em um coque severo sob um chapéu discreto.
Ela se posicionou na primeira fileira, ignorando os olhares e comentários. O leilão prosseguia normalmente quando um homem foi trazido ao estrado. Segundo a descrição de Josefa, ele era excepcionalmente alto para os padrões da época, com aproximadamente 1,80 cm, ombros largos e uma postura que, apesar das correntes nos pulsos, emanava uma dignidade emcomum.
Sua pele era de um tom escuro e brilhante, quase azulado sob o sol, e cicatrizes visíveis nas costas contavam uma história silenciosa de castigos anteriores. Mas o que mais chamava a atenção eram seus olhos descritos como penetrantes e sem qualquer traço de submissão. O leiloeiro o anunciou como Isaías, um escravo nascido na província de Minas Gerais, com aproximadamente 30 anos.
hábil na lida com animais e no cultivo do café. No entanto, algo estranho aconteceu quando o leiloeiro abriu os lances. Apesar de sua aparente força e saúde, qualidades valorizadas em um escravo, nenhum dos presentes se manifestou. Um silêncio desconfortável desceu sobre a praça. Foi então que Isabel Monteiro ergueu sua mão. R500.000 réis, disse com voz clara.
O leiloeiro, após um momento de hesitação, repetiu a oferta, olhando em volta à espera de outros lances. Nada. O martelo bateu uma vez, duas vezes. Antes da terceira batida, um fazendeiro da região de Mogimirim, identificado nos registros apenas como Senhor Almeida, inclinou-se para Isabel e murmurou algo em seu ouvido.
Ela ouviu sem alterar sua expressão e, quando o homem terminou, limitou-se a responder: “Agradeço o conselho, mas mantenho minha oferta.” O martelo bateu pela terceira vez. Isaíaso, como viria a ser chamado posteriormente, adotando o sobrenome de sua proprietária, como era costume, tornou-se propriedade de Isabel Monteiro por 500.000 réis, um valor considerado baixo para um escravo com suas características físicas.
Segundo o livro de registro de compra e venda de escravos preservado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, a transação foi oficializada no mesmo dia. Isabel Monteiro adquiriu outros quatro escravos naquele leilão, todos por preços dentro do esperado para a época. Mas foi a compra de Isaías, que permaneceu na memória dos presentes e gerou comentários pela cidade nos dias que se seguiram.
Os rumores sobre o motivo pelo qual nenhum outro fazendeiro havia dado lance por Isaías começaram a circular quase imediatamente. De acordo com o relato de Josepao, dizia-se que ele havia pertencido a três senhores diferentes nos últimos dois anos e os três haviam morrido em circunstâncias misteriosas. O último, um fazendeiro de nome Francisco Guedes, da região de Bragança Paulista, teria sido encontrado morto em sua própria cama, sem marcas visíveis de violência, mas com uma expressão de terror congelada no rosto.
Outras histórias, ainda mais sombrias, sugeriam que Isaías possuía conhecimentos de feitiçaria trazidos da África por sua mãe e que usava esses poderes para se vingar de seus senhores. Alguns chegavam a afirmar que ele havia envenenado seu primeiro proprietário, utilizando ervas desconhecidas dos médicos da época.
Contudo, nos registros oficiais, a razão pela qual Isaías havia passado por tantos donos em tão pouco tempo era mais prosaica. sua reputação de insubordinado e a dificuldade em quebrá-lo. Um relatório de venda encontrado entre os documentos do comerciante de escravos que o levou ao leilão de Campinas, mencionava que o negro Isaías, apesar de forte e saudável, apresenta temperamento indômito e tendência à insubordinação, havendo tentado fugir por duas vezes de seu último senhor.
uma descrição que em condições normais diminuiria consideravelmente seu valor de mercado ou até mesmo o tornaria invendável. Segundo consta nos registros da fazenda Monte Alto, meticulosamente mantidos por Isabel em cadernos de capa de couro, que sobreviveram parcialmente até 1930, quando foram doados ao arquivo municipal, Isaías chegou à propriedade no final da tarde do mesmo dia do leilão.
Foi alojado na cenzala, reconstruída após o incêndio e no dia seguinte designado para o trabalho com os animais. especialmente os cavalos, dada sua experiência anterior. O diário de Isabel Monteiro, um dos poucos documentos que revelam seus pensamentos privados, contém uma breve menção à chegada de Isaías. O novo escravo, apesar dos rumores sobre seu caráter difícil, parece compreender ordens com inteligência e executa suas tarefas sem necessidade de supervisão constante.
Seus olhos, no entanto, carregam um desafio silencioso que me intriga. Desconfio que seja um homem letrado ou ao menos exposto à educação, pois sua fala, nas poucas vezes em que o ouvi, revela vocabulário incomum para sua condição. Nas semanas seguintes, conforme relatado pelo capataz Rodrigo Silveira em seu registro diário de atividades, Isaías provou ser um trabalhador habilidoso, especialmente no trato com os animais.
Os cavalos em particular pareciam responder a ele de uma maneira quase sobrenatural. Um animal particularmente arisco, que ninguém conseguia montar, mostrou-se dócil sob seus cuidados. Essa habilidade especial não passou despercebida por Isabel, que começou a designá-lo para cuidar especificamente de seu próprio cavalo, um alazão de pedigri importado da Inglaterra pelo falecido coronel.
Foi nesse período que os primeiros incidentes estranhos começaram a ocorrer na fazenda Monte Alto. Segundo depoimentos de outros escravos registrados anos depois, durante uma investigação, objetos começaram a desaparecer da casa grande. um relógio de prata, um camafeu que havia pertencido à mãe de Isabel, pequenas quantidades de dinheiro do escritório, nada que justificasse uma acusação formal ou uma busca nas cenzalas, mas o suficiente para criar uma atmosfera de desconfiança. O Capataz Rodrigo, em seu relatório mensal Isabel, sugeriu que as perdas
poderiam estar relacionadas à chegada dos novos escravos. particularmente Isaías, cuja reputação o preced. Isabel, no entanto, mostrou-se relutante em tomar qualquer medida sem provas concretas, o que frustrou o capataz, conforme ele mesmo escreveu em seu diário pessoal. A patroa parece cega quando se trata daquele negro.
Qualquer outro já teria sido açoitado apenas pela suspeita, mas ela exige provas como se estivéssemos em um tribunal da capital. Em junho daquele mesmo ano, aproximadamente dois meses após a chegada de Isaías à fazenda, um incidente mais grave ocorreu. De acordo com o registro policial arquivado na delegacia de Campinas, o capataz Rodrigo Silveira foi encontrado inconsciente no estábulo, com um ferimento profundo na cabeça.
Quando recuperou os sentidos, afirmou ter sido atacado por trás enquanto verificava os animais, sem ter visto seu agressor. Suas suspeitas, no entanto, recaíram imediatamente sobre Isaías, com quem havia tido um desentendimento no dia anterior a respeito do tratamento dispensado a um dos cavalos.
Isabel Monteiro, segundo consta em seu diário, encontrava-se dividida. Por um lado, as circunstâncias apontavam para Isaías. Por outro, não havia testemunhas do ataque e o próprio Rodrigo admitia não ter visto quem o golpeara. Além disso, conforme ela anotou, não posso ignorar que Rodrigo demonstrou antipatia por Isaías desde sua chegada e que seu tratamento para com ele tem sido particularmente severo.
Decisão de Isabel, registrada tanto em seu diário quanto no livro de ocorrências da fazenda, foi de não punir Isaías na ausência de provas conclusivas, mas transferi-lo temporariamente do cuidado dos cavalos para o trabalho nos cafezais, longe do capataz. Essa decisão, considerada excessivamente leniente pelos padrões da época, alimentou os rumores que já circulavam entre os moradores da região.
De acordo com o relato de Josefa Bueno, as pessoas começaram a especular sobre a natureza da relação entre Isabel Monteiro e o escravo Isaías. A viúva, que até então havia mantido uma reputação inata. Apesar das críticas à sua decisão de administrar pessoalmente a fazenda, tornou-se alvo de coxichos e insinuações.
Dizia-se que ela havia sido enfeitiçada ou seduzida, que Isaías exercia sobre ela algum tipo de poder inexplicável. O padre Anselmo, em seu diário, registrou uma visita de Isabel à igreja em julho daquele ano, durante a qual ela teria se confessado perturbada por sonhos estranhos e pensamentos impuros. O padre, respeitando o sigilo da confissão, não forneceu detalhes específicos, mas anotou que a viúva parecia atormentada por desejos que a consumiam como fogo, contrários à sua posição e aos bons costumes.
Em agosto de 1846, um novo desenvolvimento ocorreu. Isabel Monteiro, contrariando todas as convenções sociais da época, designou Isaías como seu coxeiro pessoal. Isso significava que ele não apenas seria responsável por sua carruagem e cavalos, mas a acompanharia em suas viagens à cidade e a outras propriedades, uma posição de relativa proximidade e confiança.
O anúncio dessa decisão, conforme registrado pelo capataz Rodrigo, provocou comoção entre os outros empregados da fazenda e reações de desaprovação entre os fazendeiros vizinhos. O jornal O Campineiro, em sua edição de 20 de agosto daquele ano, publicou uma nota discreta na sessão de acontecimentos sociais, mencionando que a ilustre viúva do coronel Monteiro tem sido vista em companhia de um serviçal de aparência distinta, causando comentários entre as famílias respeitáveis da cidade.
Era uma crítica velada, mas suficientemente clara para quem conhecia o contexto. Foi nesse período que os eventos na fazenda Monte Alto tomaram um rumo ainda mais sombrio. Em 1eo de setembro de 1846, segundo consta no relatório policial, uma escrava doméstica chamada Maria, que servia na Casagre há mais de 10 anos, foi encontrada morta no riacho que cortava a propriedade.
Seu corpo apresentava marcas de estrangulamento e, conforme o laudo do médico que examinou o cadáver, ela havia morrido na noite anterior. As suspeitas inicialmente recaíram sobre outro escravo com quem Maria tinha um relacionamento conturbado, mas o homem conseguiu provar que estava trabalhando no engenho de açúcar de uma fazenda vizinha na noite do crime, confirmado por diversos testemunhos. Foi então que a atenção se voltou para Isaías.
De acordo com o depoimento de uma jovem escrava chamada Benedita, registrado nos autos do inquérito, Maria havia comentado dias antes de sua morte que presenciara algo que não deveria ter visto entre a senhora e o coxeiro. Benedita não soube especificar o que seria esse algo, mas sua declaração foi suficiente para direcionar as suspeitas.
Isaías foi interrogado pelo delegado de Campinas, tenente Joaquim Firmino, na presença de Isabel Monteiro, conforme exigia a lei, já que um escravo não podia ser interrogado sem a presença de seu proprietário. Segundo o registro do interrogatório, Isaías negou qualquer envolvimento na morte de Maria, afirmando que na noite do crime estava nos alojamentos dos escravos domésticos.
Uma informação que foi confirmada por dois outros servos. Isabel Monteiro, conforme consta no alto do interrogatório, manifestou-se em defesa de Isaías, declarando que confiava em sua palavra e em seu caráter. Uma afirmação extraordinária para uma senhora em relação a um escravo naquela época.
O delegado, segundo seu próprio relatório, considerou a atitude da viúva desconcertante e imprópria. Sem provas conclusivas, e diante da posição de Isabel, Isaías não foi formalmente acusado do assassinato de Maria. No entanto, o caso permaneceu aberto e as suspeitas, longe de se dissiparem, apenas aumentaram. Os rumores sobre a natureza da relação entre Isabel e Isaías ganharam nova força, alimentados agora pela suspeita de um crime para encobrir um segredo.
De acordo com o diário do padre Anselmo, Isabel deixou de comparecer à missa dominical durante todo o mês de setembro, algo inédito desde que se estabelecera em Campinas. Quando finalmente retornou à igreja, no primeiro domingo de outubro, o religioso notou que ela parecia emagrecida e com olheiras profundas, como quem não encontra sono tranquilo há muitas noites.
Em sua confissão, segundo as discretas anotações do padre, Isabel mencionou sonhos perturbadores e tentações contra as quais lutava em vão. Foi nesse mesmo período que ocorreu um incidente que, embora pequeno em si mesmo, viria a ter consequências significativas. Segundo o registro do Capataz Rodrigo, em 4 de outubro de 1846, Isabel e Isaías saíram da fazenda em direção a Campinas pela manhã.
O objetivo declarado era uma visita ao escritório do advogado da família para tratar de assuntos relacionados à exportação de café. O que deveria ser uma viagem de rotina transformou-se em objeto de escândalo quando, ao chegarem à cidade, foram vistos entrando juntos no escritório do tabelião Pedro Alves da Costa.
De acordo com o relato de uma testemunha, o comerciante Antônio Vieira, registrado posteriormente durante as investigações, Isabel e Isaías permaneceram no escritório por cerca de uma hora. Quando saíram, a viúva parecia agitada e o negro carregava um documento enrolado que guardou cuidadosamente dentro de seu palitó. A notícia de que Isabel Monteiro havia visitado um tabelião em companhia de seu coxeiro escravo, espalhou-se rapidamente pela pequena cidade.
Especulações sobre o conteúdo do documento assinado naquele dia começaram a circular. Alguns sugeriam que poderia ser uma carta de alforria para Isaías. Outros, mais maledicentes, insinuavam que a viúva poderia estar preparando um testamento favorecendo o escravo, o que seria não apenas escandaloso, mas legalmente questionável.
Na mesma noite, quando retornavam à fazenda, outro incidente ocorreu. Segundo o depoimento posterior de Isaías, eles foram interceptados na estrada por três homens encapuzados e armados que tentaram deterruagem. Isaías, demonstrando notável presença de espírito, conseguiu forçar passagem açoitando os cavalos, enquanto um dos agressores disparou um tiro que não atingiu ninguém.
Isabel, em seu diário, descreveu o episódio como um momento de terror que confirma minhas suspeitas de que estamos sendo observados e que há quem deseje nos fazer mal. No dia seguinte, 5 de outubro, Isabel compareceu à delegacia de Campinas para reportar o ataque. O delegado tenente Joaquim Firmino registrou a ocorrência, mas conforme seu relatório, mostrou-se cético quanto à veracidade do relato, insinuando que poderia ser uma tentativa de desviar a tensão do comportamento controverso da viúva.
Nenhuma investigação séria foi conduzida. Nos dias que se seguiram. A atmosfera na fazenda Monte Alto tornou-se cada vez mais tensa. De acordo com os registros do Capataz Rodrigo, Isabel ordenou que os portões principais permanecessem fechados a todo momento e designou dois escravos armados para fazer rondas noturnas.

Ela própria, segundo as anotações de sua criada pessoal, Josefina, preservadas por meio de relatos orais transmitidos à sua neta, passou a dormir com uma pistola carregada sob o travesseiro. Em 10 de outubro de 1846, um novo elemento foi adicionado a já complexa situação. Uma carta anônima chegou à fazenda Monte Alto, entregue por um menino que disse ter recebido algumas moedas de um desconhecido para executar a tarefa.
O conteúdo da carta, conforme transcrito no diário de Isabel, era breve e ameaçador. A senhora brinca com fogo ao proteger o que não merece proteção. A verdade sobre o negro Isaías virá à luz e então compreenderá o perigo que corre. Afaste-o enquanto há tempo. Isabel, em vez de se intimidar, mostrou-se ainda mais determinada a descobrir quem estava por trás das ameaças.
em seu diário escreveu: “Não cederei a intimidação de covardes que não ousam mostrar o rosto, se há verdades a serem reveladas sobre Isaías, que venham à luz do dia, pois tenho certeza de que não alterarão o que sei sobre seu caráter e o que sinto por ele.” Esta última frase, ambígua em sua natureza, alimentou ainda mais as especulações quando o diário veio a público anos mais tarde.
Em 12 de outubro, Isabel enviou Isaías a São Paulo com a missão de entregar documentos importantes a um advogado que representava seus interesses na capital da província. Era uma demonstração de confiança extraordinária. Permitir que um escravo viajasse sozinho por uma distância considerável, carregando papéis de valor. De acordo com o registro de despesas da fazenda, ela forneceu a Isaías dinheiro para a viagem e uma carta de apresentação ao advogado, o que tecnicamente lhe dava permissão para viajar sem ser detido como escravo fugitivo. A ausência de
Isaías, que deveria durar aproximadamente uma semana, considerando o tempo de viagem de ida e volta e a permanência na capital, coincidiu com a chegada à fazenda de um homem que se identificou como João Ferreira, negociante de escravos de Minas Gerais. Segundo o registro de visitantes mantido pelo Capataz, o homem solicitou uma reunião com Isabel, alegando ter informações importantes sobre um dos escravos recentemente adquiridos por ela.
Isabel concordou em recebê-lo e a conversa, conforme relatado em seu diário, revelou-se perturbadora. João Ferreira afirmou ser o antigo capataz da fazenda em Minas Gerais, onde Isaías havia nascido e crescido. Segundo seu relato, o escravo não era filho de africanos, como constava em seus documentos de venda, mas sim de uma escrava doméstica e do próprio senhor da fazenda, um homem chamado Manuel Bueno.
Essa origem explicaria tanto seus traços físicos quanto sua educação acima do comum. Mais inquietante, porém, foi a história que Ferreira contou sobre o destino de Manuel Bueno e sua família. De acordo com ele, quando Isaías tinha aproximadamente 20 anos, um incêndio devastou a casa grande da fazenda durante a noite, matando o Senhor, sua esposa e três dos quatro filhos.
O único sobrevivente foi justamente Isaías, que, segundo Ferreira, teria sido visto saindo da casa pouco antes de as chamas se alastrarem. Sem provas concretas de sua culpa, ele foi vendido para outra fazenda em vez de ser punido. Isabel, conforme registrou em seu diário, ouviu o relato com crescente desconfiança.
“As coincidências são muitas para serem ignoradas”, escreveu. “Mas também há lacunas e inconsistências que me fazem questionar se este homem diz a verdade ou se é apenas mais um tentando incitar medo. Ela notou em particular que Ferreira não apresentou documentos que comprovassem sua identidade ou sua conexão com a fazenda em Minas Gerais. Antes de partir, Ferreira fez uma oferta.
Compraria Isaías por um valor muito acima do mercado, alegando que desejava levá-lo de volta à Minas Gerais para enfrentar a justiça pelos crimes que supostamente cometera. Isabel recusou categoricamente e ordenou que o homem deixasse sua propriedade, ameaçando chamar seus capatazes caso ele insistisse. Após a partida de Ferreira, Isabel enviou imediatamente um mensageiro à capital com instruções para que Isaías retornasse à fazenda o mais rápido possível.
Em seu diário, ela expressou o temor de que o visitante pudesse tentar interceptá-lo no caminho. Receio que haja mais nesta história do que simples maledicência, escreveu. Há interesses em jogo que ainda não compreendo plenamente. O mensageiro retornou dois dias depois com a informação de que Isaías já havia partido da capital e deveria chegar à fazenda no dia seguinte.
Isabel, segundo os relatos de sua criada Josefina, passou a noite em vigília, olhando pela janela de seu quarto, na direção da estrada. Na manhã de 16 de outubro, Isaías retornou à fazenda Monte Alto, aparentemente sem incidentes durante sua viagem. De acordo com o registro do capataz, ele entregou a Isabel os documentos que havia trazido da capital e um recibo assinado pelo advogado.
Isabel, após confirmar que tudo estava em ordem, convocou-o para uma reunião privada em seu escritório, algo que mais uma vez provocou desaprovação entre os empregados da casa. O conteúdo dessa conversa não foi registrado, mas segundo o depoimento posterior de Josefina, que afirmou ter ouvido parte do diálogo enquanto servia chá, Isabel confrontou Isaías com as alegações feitas por João Ferreira.
A resposta do escravo, conforme relatado, foi de negação veemente, seguida por uma revelação que deixou Isabel visivelmente abalada. O que exatamente foi dito, no entanto, permaneceu um mistério, pois Josefina foi chamada para outras tarefas e não pôde continuar ouvindo. O que se sabe, com certeza, baseado em registros históricos, é que naquela mesma noite, Isabel Monteiro enviou um mensageiro urgente a Campinas com uma carta endereçada ao delegado tenente Joaquim Firmino.
O conteúdo da carta preservado nos arquivos policiais era breve e alarmante. Solicito com urgência sua presença na fazenda Monte Alto. Tenho razões para crer que minha vida corre perigo. Traga consigo homens armados. O delegado, acompanhado por quatro policiais, chegou à fazenda na manhã do dia 17 de outubro.
Segundo seu relatório oficial, encontrou a propriedade em aparente normalidade com os escravos realizando suas tarefas habituais nos campos e a casa grande silenciosa. Isabel os recebeu em seu escritório e durante uma conversa privada revelou ao delegado suas suspeitas de que havia uma conspiração para prejudicá-la, possivelmente envolvendo o homem que se identificara como João Ferreira.
Conforme consta no relatório, o delegado questionou Isabel sobre a natureza de sua relação com o escravo Isaías, ao que ela respondeu com indignação, classificando a pergunta como impertinente e irrelevante para a questão em pauta. O delegado, por sua vez, argumentou que os rumores sobre essa relação haviam se espalhado por Campinas e poderiam estar relacionados às ameaças que ela dizia receber.
A conversa foi interrompida pelo som de cavalo, se aproximando rapidamente. O capataz Rodrigo entrou no escritório sem se anunciar, com a respiração acelerada, e informou que dois homens armados haviam sido vistos nas proximidades da propriedade. O delegado ordenou que seus homens se posicionassem estrategicamente e saiu para verificar pessoalmente a situação.
Durante sua ausência, conforme registrado posteriormente em seu relatório, Isabel aproveitou a oportunidade para enviar Josefina com um recado urgente a Isaías, que trabalhava nos estábulos. O conteúdo exato da mensagem nunca foi revelado, mas o que se seguiu sugere que ela o estava alertando sobre algum perigo iminente. Quando o delegado retornou, aproximadamente 20 minutos depois, informou a Isabel que seus homens haviam avistado dois cavaleiros que se afastaram rapidamente ao perceberem a presença policial.
Ele recomendou que Isabel reforçasse a segurança da fazenda. e prometeu enviar uma patrulha para vigiar a propriedade nos dias seguintes. Antes de partir, no entanto, o delegado insistiu em falar com Isaías. Segundo seu relatório, desejava averiguar se o escravo possuía informações relevantes sobre as supostas ameaças.
Isabel inicialmente tentou dissuadi-lo, argumentando que Isaías nada sabia além do que ela já havia relatado, mas acabou cedendo diante da insistência da autoridade. Um dos policiais foi enviado aos estábulos para buscar Isaías, mas retornou sozinho alguns minutos depois com a informação de que o escravo não se encontrava lá, nem em qualquer outra dependência da fazenda.
Uma busca rápida confirmou que Isaías havia desaparecido, assim como um dos cavalos. O delegado, diante dessa descoberta, voltou-se para Isabel com evidente desconfiança. “A senhora facilitou a fuga de seu escravo”, questionou diretamente. Isabel negou veementemente, manifestando surpresa com o desaparecimento e sugerindo que Isaías poderia ter sido sequestrado pelos mesmos homens que rondavam a propriedade.
O delegado ordenou uma busca completa nas terras da fazenda e nas estradas próximas, mas Isaías não foi encontrado. Conforme registrado em seu relatório, o tenente Joaquim Firmino concluiu que a fuga do escravo Isaías, facilitada ou não por sua proprietária, levanta sérias questões sobre sua culpabilidade nos incidentes recentes e fortalece as suspeitas de uma relação imprópria entre ambos.
Antes de deixar a fazenda, o delegado informou a Isabel que ela seria convocada formalmente para prestar esclarecimentos na delegacia de Campinas no dia seguinte. No entanto, conforme os acontecimentos subsequentes demonstrariam, essa convocação nunca chegou a ser cumprida. Naquela noite, segundo o depoimento posterior de Josefina, Isabel permaneceu em seu quarto, recusando-se a jantar e pedindo apenas que lhe trouxessem uma garrafa de vinho do porto.
Por volta das 22 horas, ela chamou a criada e entregou-lhe uma carta lacrada, instruindo-a a guardá-la em um lugar seguro e a entregá-la ao padre Anselmo, caso algo lhe acontecesse. Josefina, conforme seu depoimento, percebeu que sua patroa parecia estar em um estado de aceitação melancólica, como quem se prepara para um fim inevitável.
De acordo com o relatório do capataz Rodrigo, a noite transcorreu sem incidentes com os guardas designados pelo delegado patrulhando as entradas da fazenda. No entanto, por volta das 2 horas da madrugada, um dos escravos que dormia próximo à cenzala principal relatou ter ouvido o som de cascos de cavalo se aproximando da Casa Grande.
Pensando tratar-se de um dos guardas, não deu maior importância ao fato. Às 5 horas da manhã do dia 18 de outubro de 1846, quando as primeiras luzes da aurora começavam a iluminar os cafezais, Josefina dirigiu-se ao quarto de Isabel para ajudá-la com seu ritual matinal, como fazia todos os dias.
Ao bater na porta e não receber resposta, entrou cautelosamente e encontrou o quarto vazio, com a cama desarrumada e uma janela aberta. Sobre a mesa de cabeceira havia um bilhete escrito à mão, assinado por Isabel. Fui chamada para um assunto urgente. Não me esperem antes do meio-dia. Josefina relatou o fato ao capataz Rodrigo, que inicialmente não demonstrou preocupação, assumindo que Isabel teria saído para resolver alguma questão relacionada à fazenda, como ocasionalmente fazia.
No entanto, quando o meio-dia chegou e passou sem que ela retornasse, e constatando-se que seu cavalo favorito, uma égua Bahia, também havia desaparecido, Rodrigo começou a suspeitar que algo estava errado. Por volta das 14 horas, um dos escravos que trabalhava na colheita retornou à Casa Grande com uma informação alarmante.
havia encontrado o corpo de um homem desconhecido, parcialmente oculto, entre os arbustos próximos ao limite da propriedade. O capataz, acompanhado por dois outros homens, dirigiu-se imediatamente ao local indicado e confirmou a descoberta. O homem, que mais tarde seria identificado como João Ferreira, havia sido morto com um único tiro no peito.
Rodrigo enviou imediatamente um mensageiro à delegacia de Campinas. O tenente Joaquim Firmino chegou à fazenda por volta das 17 horas, acompanhado por vários policiais. Após examinar o corpo e o local, ordenou uma busca completa na propriedade e nas áreas circundantes. Agora, não apenas por Isaías, mas também por Isabel Monteiro.
Foi nesse momento que Josefina, temendo pelo destino de sua patroa, revelou a existência da carta que Isabel lhe havia confiado na noite anterior. O delegado ordenou que a carta fosse entregue imediatamente, mas Josefina insistiu que sua instrução era de entregá-la apenas ao padre Anselmo.
Diante da recusa da criada, o delegado ordenou que ela fosse mantida sob vigilância, enquanto enviava um homem à igreja para buscar o sacerdote. O padre Anselmo chegou à fazenda ao anoitecer. Em seu diário, ele registrou que encontrou a propriedade em estado de agitação, com policiais vasculhando cada canto e os escravos reunidos em grupos amedrontados, sussurrando entre si.
Josefina entregou-lhe a carta de Isabel na presença do delegado, que exigiu que o conteúdo fosse revelado imediatamente. O padre, após ler a carta em silêncio, mostrou-se visivelmente perturbado. Segundo seu próprio registro, ele inicialmente hesitou em revelar o conteúdo, argumentando que se tratava de uma confissão privada, protegida pelo sigilo sacerdotal.
O delegado, no entanto, insistiu que a carta poderia conter informações cruciais para localizar Isabel, possivelmente em perigo, e que a recusa em cooperar poderia configurar obstrução à justiça. Finalmente, o padre Anselmo concordou em ler em voz alta partes selecionadas da carta, aquelas que julgava não violar o sigilo da confissão.
De acordo com os registros policiais e com o próprio diário do padre, o conteúdo revelado foi o seguinte: Reverendo Padre Anselmo, se esta carta chega às suas mãos, é porque meus temores se concretizaram e não estou mais em condições de defender minha honra e minha verdade. Peço que leia estas palavras com a compaixão que sempre demonstrou por esta pecadora que agora busca, senão absolvição, ao menos compreensão.
Acuso-me de ter faltado com a verdade sobre a natureza de minha relação com o homem conhecido como Isaías, o que começou como um ato de caridade cristã ao oferecer tratamento humano a um ser tão brutalmente tratado por seus anteriores proprietários, transformou-se em algo que não posso explicar, senão como obra do próprio destino. Isaías não é quem todos pensam. Nascido Isaías Bueno, filho ilegítimo do fazendeiro Manuel Bueno, com uma escrava de sua propriedade, recebeu educação às escondidas e foi criado com privilégios até que seu pai, temendo escândalo, decidiu negar-lhe o reconhecimento e
reduzi-lo à condição dos demais cativos. O incêndio que matou a família Bueno não foi obra dele, como agora o acusam, mas de outro escravo que confessou o crime antes de morrer. O documento que assinei no escritório do tabelião não foi, como muitos especulam, uma carta de alforria ou um testamento escandaloso.
Foi um contrato de compra de terras na província do Paraná, onde planejávamos recomeçar longe dos julgamentos e preconceitos que nos cercam aqui. Isaías seria libertado apenas quando chegássemos em segurança ao nosso destino. Agora sinto que esse sonho está ameaçado. O homem que se apresentou como João Ferreira é, na verdade, o irmão do falecido Manuel Bueno, tio de Isaías.
Embora jamais tenha reconhecido esse parentesco, ele veio não para fazer justiça, mas para silenciar definitivamente aquele que poderia um dia reivindicar parte da herança da família Bueno, se não estou mais entre os vivos quando o Senhor ler estas palavras, peço apenas duas coisas. que reze por minha alma pecadora e que faça chegar às autoridades competentes a verdade sobre Isaías, para que não seja perseguido por crimes que não cometeu, com profundo arrependimento pelos meus pecados, mas sem me arrepender do amor que, apesar de tudo, trouxe luz à minha
existência solitária, Isabel Monteiro, conforme registrado tanto pelo delegado quanto pelo padre Anselmo, a leitura da carta provocou comoção entre os presentes. O capataz Rodrigo em particular manifestou-se com indignação, afirmando que a patroa havia sido enfeitiçada por aquele negro ardiloso. Uma opinião que, segundo o relato do padre, parecia ser compartilhada pelos demais empregados da casa.
O delegado ordenou imediatamente que a busca por Isabel e Isaías fosse intensificada e estendida além dos limites da fazenda, com foco especial nas estradas que levavam à província do Paraná. E recompensas foram oferecidas por informações que pudessem levar à captura do escravo fugitivo e possível sequestrador da viúva Monteiro, conforme anunciado nos cartazes espalhados por Campinas.
e cidades vizinhas nos dias seguintes. No entanto, apesar dos esforços, nem Isabel nem Isaías foram encontrados. O corpo de João Ferreira, identificado posteriormente como Jerônimo irmão do falecido fazendeiro Manuel Bueno, foi sepultado no cemitério municipal de Campinas após os procedimentos legais. A investigação sobre sua morte permaneceu oficialmente aberta. mas sem avanços significativos.
A carta de Isabel, transcrita parcialmente nos registros policiais, tornou-se objeto de intenso debate na pequena comunidade. Para alguns, era a prova definitiva de que a viúva havia sucumbido a uma paixão proibida e fugido com seu amante escravo. Para outros, particularmente entre as famílias mais tradicionais, tratava-se de uma confissão estorquida ou forjada, sendo mais provável que Isabel tivesse sido vítima de um crime perpetrado por Isaías. A fazenda Monte Alto, sem sua proprietária, entrou em um período de
declínio na ausência de herdeiros diretos ou de um testamento válido, a propriedade foi temporariamente administrada por um curador nomeado pela justiça, enquanto se buscavam parentes de Isabel que pudessem reivindicar a herança. Os escravos foram distribuídos, entre outras fazendas da região ou vendidos em leilões judiciais.

Josefina, a criada pessoal de Isabel, foi interrogada diversas vezes pelas autoridades, mas manteve-se firme em sua declaração de que não sabia mais do que já havia revelado. Segundo registros da paróquia local, ela acabou sendo comprada pelo padre Anselmo, que a empregou como governanta em sua residência, onde permaneceu até sua morte em 1879.
O capataz Rodrigo Silveira deixou Campinas alguns meses após o desaparecimento de Isabel, estabelecendo-se em Ribeirão Preto, onde se tornou administrador de outra fazenda de café. em seu depoimento final às autoridades, registrado nos autos do processo que investigava o desaparecimento de Isabel e a morte de Jerônimo Bueno, ele afirmou sua convicção de que a patroa havia sido vítima de manipulação e provavelmente fora assassinada por Isaías, que planejara tudo desde o início para obter sua fortuna.
Em abril de 1847, aproximadamente 6 meses após o desaparecimento, o delegado tenente Joaquim Firmino recebeu uma carta anônima postada em Curitiba, capital da então comarca do Paraná, ainda parte da província de São Paulo. O conteúdo da carta preservado nos arquivos policiais consistia em apenas uma frase: “A viúva e o escravo encontraram paz longe dos olhos que os condenavam sem conhecer seus corações.
” A caligrafia foi analisada e comparada com documentos escritos por Isabel, mas os peritos da época não chegaram a uma conclusão definitiva sobre sua autenticidade. O delegado chegou a viajar a Curitiba para investigar, mas retornou sem resultados concretos, apenas com rumores sobre um casal misto que teria sido visto em uma pequena propriedade nos arredores da cidade, vivendo discretamente da criação de cavalos.
Em agosto de 1848, quando o caso já esfriava e as autoridades se preparavam para arquivá-lo oficialmente, um comerciante de Campinas chamado Sebastião Alves, que havia viajado ao Paraná para negócios, relatou ao retornar que vira Isabel Monteiro em uma feira em Castro, acompanhada por um homem negro que ele acreditava ser Isaías.
Segundo seu relato, ambos pareciam bem estabelecidos e Isabel carregava no colo uma criança de aproximadamente um ano de idade. O delegado organizou uma nova expedição ao Paraná, mas quando chegaram a Castro não encontraram nenhum rastro das pessoas descritas por Sebastião. Entrevistando moradores locais, descobriram apenas referências vagas a um casal que correspondia à descrição, mas que havia deixado a região semanas antes, rumo ao sul, possivelmente em direção a terras ainda mais distantes e isoladas.
A última menção oficial ao caso nos registros policiais data de março de 1850, quando o processo foi finalmente arquivado por falta de novas evidências. A conclusão formal do delegado registrada nos autos foi de que a viúva Isabel Monteiro provavelmente foi vítima de homicídio perpetrado pelo escravo Isaías, que fugiu levando consigo valores e documentos da fazenda.
No entanto, o próprio tenente Joaquim Firmino, em correspondência particular ao chefe de polícia da província, admitiu que o caso permanece envolto em mistério, com indícios contraditórios que não permitem uma conclusão definitiva. O padre Anselmo, que acompanhou o caso desde o início, manteve-se reservado em suas declarações públicas.
Em seu diário, porém, preservado nos arquivos da diocese, ele registrou em janeiro de 1852 uma anotação enigmática. Recebi hoje notícias que trazem paz ao meu coração. Aqueles por quem rezei encontraram seu caminho. Que Deus, em sua infinita sabedoria e misericórdia, compreenda o que os homens condenam sem entender. A fazenda Monte Alto, após anos de disputa judicial, acabou sendo arrematada em leilão por um café eicultor de Campinas em 1853.
A casa grande foi reformada e a propriedade voltou a prosperar sob nova administração. No entanto, segundo relatos preservados na tradição oral da região, os novos proprietários frequentemente se queixavam de presenças inquietas que pareciam vagar pelos corredores durante a noite e de sons inexplicáveis de passos no andar superior.
Em 1859, um incêndio de origem desconhecida destruiu completamente a Casa Grande. Embora todos os moradores tenham escapado ilesos, a propriedade foi reconstruída em outro local, mais próximo da estrada principal, e a área onde ficava a antiga sede foi convertida em mais um trecho de cafezal. Os trabalhadores, no entanto, relatavam sensações estranhas ao colher café naquela parte específica da fazenda, como se estivessem sendo observados.
A história de Isabel Monteiro e Isaías Bueno gradualmente se transformou em lenda local. Diferentes versões circulavam, algumas romantizando a relação entre a viúva e o escravo, outras enfatizando aspectos mais sombrios, como possíveis crimes e traições. O que todas compartilhavam, no entanto, era a figura central de Isaías.
Para alguns, um manipulador ardiloso, para outros, uma vítima de circunstâncias injustas, que encontrou na viúva uma aliada improvável. Em 18880 anos, após o desaparecimento, um pesquisador da recém-fundada Academia Campineira de Letras iniciou um estudo sobre o caso, entrevistando pessoas que ainda se lembravam dos acontecimentos e coletando documentos e registros da época.
Seu trabalho, no entanto, foi interrompido pela epidemia de febre amarela que devastou Campinas no ano seguinte. vitimando o próprio pesquisador. Os materiais coletados por ele permaneceram esquecidos nos arquivos da academia até 1922, quando foram descobertos por um historiador local interessado em crimes históricos da região. Historiador Alberto Campos publicou em 1924 um pequeno livro intitulado O mistério da fazenda Monte Alto, no qual apresentava a história de Isabel e Isaías com uma abordagem que sugeria um romance proibido, terminando em fuga
planejada em vez de crime. Em 1937, durante escavações para a construção de uma nova estrada ligando Campinas a valinhos, trabalhadores descobriram ossadas humanas enterradas em uma área remota que, segundo mapas antigos, ficava próxima aos limites da antiga fazenda Monte Alto.
As autoridades foram notificadas e um médico legista examinou os restos, concluindo tratar-se de dois esqueletos adultos. um masculino e um feminino, aparentemente enterrados ao mesmo tempo, há muitas décadas. Junto aos ossos, foram encontrados fragmentos de tecido, alguns botões de metal e, mais significativo, um camafeu de ouro com uma pequena imagem pintada à mão, representando uma mulher jovem.
Segundo relatos de pessoas que haviam conhecido Isabel Monteiro, o camafeu era surpreendentemente semelhante a uma joia que ela frequentemente usava, descrita como herança de sua mãe. A descoberta reascendeu brevemente o interesse pelo caso, mas sem métodos científicos avançados para identificação positiva e determinação precisa da causa da morte, as ossadas foram eventualmente transferidas para o cemitério municipal e sepultadas em uma cerimônia simples, com uma lápide, identificando-as apenas como restos não identificados.
1937, o caso de Isabel Monteiro e Isaías Bueno gradualmente se dissolveu na névoa do tempo, transformando-se em uma daquelas histórias que as avós contam em noites de inverno, quando o vento sussurra entre as janelas e as sombras parecem ganhar vida própria. uma história de transgressão, perigo e talvez de um amor proibido que desafiou as convenções de seu tempo.
Em 1968, os últimos documentos relacionados ao caso foram microfilmados e arquivados na Biblioteca Municipal de Campinas, como parte de um projeto de preservação do patrimônio histórico da cidade. O pesquisador responsável pelo projeto, em seu relatório final, observou que, apesar da abundância de registros, o destino real de Isabel Monteiro e Isaías Bueno, permanece um dos grandes enigmas da história local, um lembrete de que o passado, por mais que o documentemos, sempre guardará seus segredos mais íntimos e assim permanece até hoje. Nas terras onde um dia se ergueu a fazenda
Monte Alto, agora ocupadas por modernos condomínios residenciais, dizem que ocasionalmente, nas noites sem lua, é possível ouvir o som distante de cascos de cavalo e vislumbrar, por um instante fugazilhueta de dois cavaleiros galopando lado a lado, como sombras, perseguindo um horizonte eternamente fora de alcance.
Para aqueles que conhecem a história, o som não causa medo, apenas uma melancolia quieta, como se o próprio arasse o eco de uma pergunta sem resposta. O que realmente aconteceu à viúva do café e ao escravo que ninguém ousou comprar naquele distante leilão de 1846? A verdade talvez esteja enterrada tão profundamente quanto as raízes centenárias dos cafezais que um dia definiram o destino daquela terra e daquelas vidas entrelaçadas por circunstâncias que a sociedade da época não estava preparada para compreender. E assim, enquanto histórias como esta
continuam a ser contadas, algo daquelas vidas permanece, sussurrando entre as páginas amareladas dos registros históricos, nos vestígios materiais de uma época que já não existe mais e na memória coletiva que transforma fatos em lendas e pessoas comuns em personagens quase míticos. O que sabemos com certeza é que naquele fatídico dia de março de 1846, quando Isabel Monteiro ergueu sua mão no leilão de escravos e adquiriu Isaías por 500.000 Reis, ignorando os avisos sussurrados.
Ela não estava apenas comprando um escravo, estava selando um destino que a conduziria por caminhos que jamais poderia ter imaginado. Enquanto o tempo continua sua marcha inexorável, a história da viúva do café e do escravo mais belo do leilão permanece, como todas as grandes histórias, um lembrete de que o coração humano é um território inexplorado, capaz das mais surpreendentes revoluções silenciosas, mesmo nas circunstâncias mais improváveis e nos tempos mais hostis a qualquer forma de transgressão. M.