Pernambuco, 1872. 10 anos depois de algo impensável ter acontecido, quando abriram o caixão de Joana, a escrava que tinha sido enterrada viva em 1862, esperavam encontrar ossos, talvez alguns trapos de tecido apodrecido, talvez nada. O que encontraram os fez cair de joelhos, os fez gritar, os fez questionar tudo que sabiam sobre vida, morte e o que existe entre esses dois mundos.
Porque Joana estava lá intacta, pele ainda macia, cabelo ainda brilhante, vestido ainda limpo, como se tivesse sido enterrada ontem, não 10 anos atrás. E o pior, o detalhe que fez três homens desmaiarem e dois saírem correndo do cemitério, jurando nunca mais voltar, era seu rosto. Ela estava sorrindo. Não era sorriso de paz, não era sorriso de perdão.
Era sorriso de quem sabia um segredo, de quem tinha visto algo que os vivos não deveriam ver, de quem tinha vencido mesmo na morte. Esta é a história de Joana, de como ela foi enterrada viva por uma cruel, de como seu corpo recusou apodrecer e de como mesmo 10 anos morta, ela destruiu a família que a matou. Porque algumas mortes não são fins, são começos.

E algumas vinganças levam uma década para florescer, mas quando florescem destróem tudo. Fique comigo até o fim, porque esta história vai mudar como você vê a morte e talvez como você vê a justiça. Bem-vindo ao Vozes da Senzala, onde as histórias que tentaram enterrar recusam ficar no túmulo. Engenho, boa esperança. Dona da mata pernambucana, 1862.
Pernambuco era naquele momento coração do império açucareiro brasileiro. A zona da mata, aquela faixa verde e úmida entre o litoral e o sertão, era onde o açúcar era rei e onde os senhores de engenho eram mais poderosos que o próprio imperador. O engenho boa esperança tinha 2.
000 tarefas de terra, 400 pés de cana, 180 escravos e uma casa grande que parecia fortaleza. Dois andares de pedra calcária, varandas com balaústres portugueses, capela privativa com imagens de santos trazidas de Lisboa. Tudo muito imponente, tudo muito católico, até você conhecer quem mandava ali, porque por trás daquela fachada de pedra e fé aconteciam coisas que fariam o próprio diabo hesitar.
E no comando de tudo estava ela, Sá Teresa Cavalcante de Albuquerque. Teresa tinha 39 anos em 1862. Era viúva há 3 anos. Seu marido, Coronel Joaquim de Albuquerque, tinha morrido em acidente de cavalo em 1859. Quebrou o pescoço ao ser jogado do animal depois que uma cobra assustou a montaria. Alguns diziam que foi acidente.
Outros sussurravam que Teresa tinha colocado a cobra no caminho, que estava cansada de marido, que bebia demais e batia nela quando estava bêbado. Mas ninguém provava nada. E Teresa herdou tudo, o engenho, os escravos, as terras, o poder. E descobriu que gostava de poder muito. Teresa era mulher de beleza severa, cabelos pretos sempre presos em coque apertado, tão apertado que dava dor de cabeça só de olhar.
vestidos escuros, nunca coloridos, sempre preto, cinza, marrom escuro, como se estivesse em luto perpétuo. Mas não era luto, era escolha estética. Teresa achava cores alegres, vulgares. Achava que mulher de respeito devia se vestir com sobriedade. Ela tinha rosto de traços marcados, nariz fino, lábios finos, olhos negros e fundos que pareciam ver através das pessoas, sobrancelhas grossas que ela nunca aparava porque modificar o corpo era pecado de vaidade.
era mulher profundamente religiosa, ou pelo menos achava que era. Rezava o terço todas as noites, ia à missa todos os domingos e feriados religiosos, lia a Bíblia antes de dormir. Tinha crucifixos em todos os cômodos da casa grande e acreditava, genuinamente, acreditava que Deus tinha colocado ela acima dos escravos na hierarquia natural do universo.
que escravidão era vontade divina, que negros eram descendentes de Cam, amaldiçoados por Deus para servir eternamente. Então, quando punia, quando torturava, quando ordenava chicotadas até a carne abrir, ela não sentia culpa. sentia que estava cumprindo o papel dado por Deus, estava educando criaturas inferiores, estava salvando suas almas através do sofrimento.
Era crueldade santificada, tortura batizada, maldade que rezava antes e depois. E isso era pior, muito pior que crueldade comum. Porque crueldade que se sabe errada ao menos tem vergonha. Mas crueldade que se acha virtuosa, essa não tem limites. A obsessão de Teresa era pureza, pureza moral, pureza espiritual, pureza física.
A casa grande tinha que estar sempre perfeitamente limpa. Nem uma mancha, nenhum grão de poeira, nem um fio de cabelo fora do lugar. Os escravos domésticos passavam horas limpando, encerrando, polindo, porque qualquer imperfeição era vista como pecado, como ofensa aos olhos de Deus.
Teresa mandou reunir todos os escravos do engenho, todos os do canavial, os da casa de enfardar, os da moa, os domésticos, 180 pessoas arrancadas do trabalho. Quero que vejam, disse Teresa ao feitor. Quero que aprendam o que acontece com quem traz paganismo para minha casa. O feitor, homem chamado Severino, mulato de 40 anos com cicatriz atravessando o rosto, hesitou. Sim. Ah, que punição a senhora quer? Enterramento, silêncio.
Como assim? Sim. Ah, viva. Quero ela enterrada viva. Severino empalideceu. Era homem brutal. Tinha chicoteado centenas de escravos. Tinha marcado carne com ferro quente. Tinha colocado homens no tronco até desmaiar. Mas enterrar alguém vivo. Sim. Ah, isso é, isso vai longe demais, até para os padrões.
Não me questione a voz de Teresa ecoou pela casa grande. Eu decido o que é longe demais. Eu decido os padrões e decidi que essa negra bruxa vai ser enterrada hoje, agora. Mas sim há. Você quer juntar-se a ela? Quer que eu ache outro feitor? Alguém que obedeça sem questionar? Severino baixou a cabeça. Não se há. Farei como ordena. Ótimo. E chame o padre Anselmo.
Quero que ele venha. Quero que ele dê extrema unção antes. Para que ninguém diga que não fui caridosa. Para que ninguém diga que não dei chance de ela salvar a alma. Era lógica distorcida e perfeita. Teresa ia enterrar escrava viva, mas primeiro ia dar última bênção.
Ia permitir que padre a absolvesse dos pecados antes de morrer sufocada. Era crueldade embrulhada em misericórdia. Era assassinato batizado. Joana foi tirada do quarto onde estava trancada. Dois homens asseguraram um de cada braço. Ela não resistiu porque sabia que resistência só pioraria, mas estava apavorada, tremendo, olhos arregalados de terror. “Sim, ah, por favor!”, implorou. “Por favor, não faça isso.
Farei qualquer coisa. Nunca mais cantarei. Nunca mais rezarei para meus orixás. Serei só sua completamente. Teresa olhou para ela com nojo. Tarde demais. Sua alma já está corrompida e eu não posso permitir que essa corrupção se espalhe. Sim. Ah, silêncio. Negra não fala comigo. Negra não implora. Negra aceita a punição de Deus com resignação.
Levaram Joana para fora, para o terreiro, onde todos os escravos estavam reunidos em semicírculo, crianças, velhos, homens, mulheres, todos forçados a assistir. No centro do terreiro, Severino e outros homens tinham cavado buraco, não muito profundo, 1,5 m, mas profundo o suficiente.
E ao lado do buraco havia caixão simples, de madeira tosca, sem forro, sem nada de conforto, apenas caixa. Caixa para guardar corpo, caixa que se tornaria túmulo. O padre Anselmo chegou 15 minutos depois. Era homem de 60 anos, padre da paróquia local a 30, conhecia Teresa, conhecia sua devoção e tinha medo dela, como todos tinham.
“Padre”, disse Teresa com voz suave. Sempre falava suave com autoridades religiosas. “Obrigada por vir tão rápido, dona Teresa. Severino me disse que que a punição sendo aplicada. Sim, essa escrava aqui praticava bruxaria, invocava demônios em minha casa. Então Deus, em sua justiça infinita, determinou que ela deve ser removida do mundo dos vivos.
O padre olhou para Joana, viu terror em seus olhos, viu como ela tremia. Dona Teresa, talvez uma punição menos severa. Padre Anselmo. A voz de Teresa ficou fria. Lembro que sua paróquia recebe generosas doações desta família. Doações que mantém o teto da igreja inteiro, que pagam seus hábitos, que alimentam os órfã do hospício. A ameaça era clara. O padre engoliu seco. Entendo. Ótimo.
Então, por favor, dê extrema unção a esta mulher para que sua alma não vá completamente perdida ao inferno. É ato de caridade cristã. Caridade, ela chamava aquilo de caridade. O padre se aproximou de Joana, tirou o pequeno frasco de óleo sagrado, fez sinal da cruz em sua testa. Que Deus tenha misericórdia de sua alma”, sussurrou. Joana olhou para ele. Padre, padre, ela vai me enterrar viva.
Por favor, fale com ela, por favor. O padre fechou os olhos, não conseguia olhar. Não posso fazer nada, filha. Perdoe-me. E se afastou. covarde, como tantos foram covardes diante da escravidão. Homens de Deus que escolheram proteger poder em vez de proteger pessoas. “Coloquem-na no caixão”, ordenou Teresa. Severino e outro homem pegaram Joana.
Ela começou a lutar então porque instinto de sobrevivência superou medo de punição pior. Não, não, por favor, não façam isso. Mas eram dois homens fortes contra a mulher pequena. Não havia chance. Jogaram-la no caixão. Ela tentou sair. Eles a empurraram de volta, seguraram e pregaram a tampa.
Cada martelada foi como sino de morte tocando. Bang! Bang bang! Bang bang! Bang! Quatro pregos, um em cada canto. Dentro do caixão, Joana gritava, batia na madeira, arranhava: “Por favor, por favor, eu imploro, não me enterrem, não me deixem aqui”. Os escravos assistindo começaram a chorar silenciosamente, porque chorar alto seria se juntar a ela, mas lágrimas caíam de mães pensando em suas filhas, de filhas pensando em suas mães, de todos pensando: “Poderia ser eu amanhã, poderia ser eu.” “Baixem”, ordenou Teresa.
Quatro homens pegaram cordas, passaram sob o caixão e começaram a descer lentamente. caixão descendo para o buraco, para a sepultura. Os gritos de Joana ficavam abafados pela madeira, mas ainda audíveis. Não, Oxum e Emanjá, Xangô, me ajudem, me salvem. Ela estava clamando aos orixás. Na hora de sua morte, não clamava ao Deus cristão que tinha sido forçada a adorar.
clamava aos seus, aos deuses de seus ancestrais, aos protetores que nunca tinha abandonado completamente. Teresa o viu e sorriu com satisfação amarga. “Vem”, disse aos escravos reunidos. “Vem, como ela confirma sua bruxaria. Até na morte invoca demônios. Eu tinha razão. Deus me guiou corretamente. O caixão tocou o fundo do buraco. Enterrem, ordenou Teresa.
Severino pegou o pá, começou a jogar terra. Cada pá de terra caindo sobre o caixão fazia som oco. Tud, tud. E embaixo Joana ouvia. Sentia o peso aumentando sobre ela. Não, por favor, alguém, alguém me tire daqui. Mais terra, mais peso. O ar no caixão começou a ficar raro efeito, quente, úmido com sua própria respiração. Joana começou a hiperventilar.
Entrar em pânico faz você respirar mais rápido e respirar mais rápido consome oxigênio mais rápido. Mãe, chorou. Mãe, onde você está? Mãe, mas terra agora o caixão estava meio coberto, os gritos ficavam mais abafados. Teresa assistia sem expressão, como se estivesse supervisionando o trabalho normal.
Plantil de cana, colheita de algodão, enterramento de escrava. Tudo igual para ela, tudo apenas administração de propriedade. Levou 20 minutos para encher completamente o buraco. Nos primeiros 10 minutos, ainda se ouvia algo. Batidas abafadas, gritos distantes, sons de desespero filtrados por terra e madeira. Depois de 15 minutos, apenas batidas ocasionais. mais fracas.
Aos 18 minutos, silêncio. Aos 20 minutos, o buraco estava cheio, nivelado com o resto do terreiro, como se nada tivesse acontecido ali, como se Joana nunca tivesse existido. Teresa olhou para os escravos reunidos, todos em choque, alguns chorando silenciosamente, outros com olhares vazios, defesa psicológica contra trauma que não podiam processar. Isso”, disse Teresa com voz calma.
“É o que acontece com quem traz paganismo para minha casa, com quem desafia a lei de Deus. Lembrem-se e nunca, nunca ousem fazer o mesmo.” “Pausa. Voltem ao trabalho. A cana não vai colher sozinha”. E os escravos voltaram cambaleando, em choque, mas voltaram porque não tinham escolha.
Teresa entrou na casa grande, lavou as mãos em bacia de porcelana, secou em toalha bordada, ajoelhou-se diante do crucifixo em seu quarto e rezou. Rezou agradecendo a Deus por lhe dar força para fazer o certo, por lhe dar coragem de eliminar o mal. Rezou pedindo que outros escravos vissem a sabedoria de sua ação.
Rezou com devoção genuína, porque em sua mente distorcida tinha feito coisa boa, coisa justa, coisa santa, e dormiu tranquilamente naquela noite, sem pesadelos, sem remorços, sem nada, apenas paz de quem acha que cumpriu vontade divina. Mas embaixo da terra algo estava acontecendo, algo que Teresa não podia ver. Algo que nenhum vivo poderia explicar. Dentro do caixão, Joana tinha morrido.
Tinha demorado quase uma hora, porque asfixia não é instantânea, é lenta, é agonia prolongada. Primeiro veio pânico, depois aceitação, depois escuridão. Mas no momento final, naquele segundo entre morte, ela sentiu algo calor, como se alguém a abraçasse e ouviu voz. Voz de mulher suave, familiar, embora nunca tivesse ouvido antes. Filha minha, não tenha medo.
Você não está sozinha, nunca esteve. Era Oxum, a orixá das águas doces, a mãe de todas as mães. Fizeram com você injustiça que clama aos céus. Mataram você por manter fé, por não abandonar seus, por ser ponte entre mundos. Então eu faço promessa, seu corpo não apodrecerá. Sua carne não será comida por vermes. Sua beleza será preservada como testemunho.
E aqueles que fizeram isso pagarão, não hoje, não amanhã, mas pagarão, porque justiça dos orixás é lenta, mas é inevitável. E Joana sentiu paz. Pela primeira vez desde que tinha sido arrancada de sua família aos 12 anos, sentiu paz completa, fechou os olhos e morreu. Mas morte não era fim, era transformação.
Os primeiros meses depois do enterramento foram normais, pelo menos na superfície. Teresa continuou sua rotina. Acordava às 6 da manhã, rezava, tomava café, supervisionava os escravos e a missa aos domingos voltava, rezava de novo antes de dormir. Nada tinha mudado, ou quase nada, porque à noite, quando a casa grande ficava em silêncio, coisas começaram a acontecer. Primeiro foram os sons, batidas, vindas debaixo do chão, como se alguém estivesse batendo de dentro da terra. Toque, toque, toque.
Ritimadas, persistentes. Teresa acordava, acendia vela, ouvia, mas quando prestava atenção completa, os sons paravam. Imaginação dizia para si mesma. Apenas velha madeira estalando, nada mais. Mas os sons voltavam toda a noite, sempre às 3 da madrugada, 3 horas, a hora morta, a hora em que dizem que o véu entre mundos é mais fino. Toque, toque, toque.
Depois vieram os cantos muito baixos, quase inaudíveis, mas lá estavam cantos em yorubá, os mesmos que Joana cantava. I o chum é o Teresa os ouvia e seu sangue gelava. Mas quando saía do quarto, quando procurava de onde vinham, silêncio. Estou enlouquecendo. Pensava. É culpa. Apenas culpa, manifestando em alucinações.
Mas Teresa não acreditava em culpa, porque culpa significa reconhecer erro. E ela não achava que tinha errado. Então, o que era? Três meses após o enterramento, a primeira tragédia aconteceu. Maria das Dores, escrava que tinha sido amiga de Joana, morreu. Simplesmente morreu. Estava trabalhando no canvial, sob sol forte, suores correndo e de repente caiu.
Quando chegaram perto, ela estava morta. Olhos abertos, boca aberta, como se tivesse visto algo terrível. e o choque tivesse parado seu coração. O médico que veio examinar, Dr. Fonseca, homem cético de 50 anos, não encontrou causa. “Coração parou”, disse, “mas não sei porê. Ela era jovem, saudável. Não faz sentido. Teresa mandou enterrar rapidamente. Negra morta não serve para nada. Livrem-se do corpo.
Mas os escravos que prepararam corpo para enterro notaram algo estranho. No pescoço de Maria havia marcas, como se alguém tivesse apertado, tentado estrangular, mas ninguém tinha estado perto dela quando caiu. Ela estava sozinha, a metros de distância do escravo mais próximo.
Então, quem ou o que tinha deixado aquelas marcas? Seis meses depois, segundo a morte, Severino, o feitor, o homem que tinha supervisionado o enterramento de Joana, acordou no meio da noite gritando: “Sua esposa, mulher livre, que morava com ele em casa perto da Casagre, correu para ajudar. O que foi? O que aconteceu?” Severino estava sentado na cama, suando, tremendo, olhos arregalados de terror puro. Ela, ela estava aqui.
Joana estava aqui. Que Joana? A mucama que foi enterrada. Sim, ela estava em pé ao lado da cama, me olhando, sorrindo, e ele engoliu seco. E ela disse: “Logo, Severino, logo você vai saber como é.” Saber como é o quê? Não sei, não sei. Ele estava à beira do colapso nervoso, mas ela estava tão real, tão presente, não era sonho. Eu sei que não era sonho.
A esposa tentou acalmá-lo. Disse que era pesadelo, culpa, mente, pregando peças. Mas Severino não dormiu mais aquela noite, nem nas próximas, porque toda vez que fechava os olhos, via Joana. sorrindo, esperando. Uma semana depois, Severino estava supervisionando o trabalho na moenda de cana.
A moenda era máquina perigosa, dois cilindros gigantes de madeira reforçada que esmagavam a cana para extrair caldo. Movidos por juntas de boi em círculos eternos. Escravos alimentavam cana entre os cilindros. Trabalho perigoso. Se não tivesse cuidado, mão podia ser puxada junto, braço, corpo inteiro.
Havia machado pendurado perto da moenda para emergências. Se alguém ficasse preso, você cortava o braço rapidamente. Era melhor perder braço que ser esmagado inteiro. Severino estava parado perto dos cilindros, distraído, pensando em Joana, em pesadelos, em medo que não conseguia controlar e então escorregou. Não havia nada no chão. Chão estava seco, mas ele escorregou como se alguém tivesse puxado seus pés.
caiu para a frente, direto nos cilindros. Sua mão direita entrou primeiro. Os cilindros a puxaram, quebrando ossos, esmagando carne. Ele gritou. Escravos correram para parar os bois, mas bois estavam assustados. Corriam mais rápido em vez de parar. Alguém pegou o machado, tentou cortar o braço de Severino para salvá-lo, mas já era tarde.
Os cilindros puxaram, braço inteiro, depois ombro. Depois cabeça, craque. O som de crânio sendo esmagado ecoou pela moenda. Severino morreu em segundos, mas foram segundos de agonia indescritível. E dizem, os escravos que estavam lá juraram depois que no momento antes de morrer, Severino olhou para algo, algo que ninguém mais via, e gritou: “Não, eu sinto muito, eu sinto muito.
” Como se estivesse pedindo perdão para alguém invisível, para um fantasma. Teresa ficou perturbada com a morte de Severino. Não por perder o feitor, poderia contratar outro. mas pela forma como morreu, porque era morte muito similar ao que Joana tinha sofrido. Aprisionamento, esmagamento lento, agonia prolongada, era coincidência? Teresa rezou muito naquela noite, pedindo proteção, pedindo que Deus afastasse qualquer mal.
Mas as batidas continuaram: “Toque, toque, toque!” E os cantos: “Ei, é, ó, ié, ó”. Um ano passou, depois dois, depois três e mais coisas começaram a acontecer. Os escravos começaram a ter sonhos, todos o mesmo sonho. Sonhavam com Joana, caminhando pelo terreiro, descalça, vestido branco, cabelo solto ao vento. Não era sonho assustador. Pelo menos não para eles.
Joana sorria, acenava e dizia: “Ainda não, mas logo, justiça vem. Esperem. Alguns escravos acordavam chorando de alívio, de esperança, porque aquele sonho era promessa. Promessa de que sofrimento não era eterno, de que havia algo mesmo além da morte que vingaria injustiças. Mas quando contavam os sonhos entre si, descobriam algo perturbador.
Todos tinham o mesmo sonho, na mesma noite, no mesmo horário, como se Joana estivesse de fato visitando-os. Não como memória individual, mas como presença coletiva. Teresa também começou a ter sonhos, mas os dela eram diferentes. Sonhava que estava no caixão, enterrada, viva, batendo nas paredes de madeira, gritando, sentindo terra pesada sobre ela, ar acabando, e ouvia risada, risada de mulher vinda de cima.
Como é, senh? Como é sentir o que você fez comigo? Teresa acordava aos gritos, encharcada de suor, coração disparado. E a cada noite o sonho era mais vívido, mais real, mais físico. Ela acordava com terra sobs, embora não tivesse estado perto de terra, acordava com hematomas nos punhos, como se tivesse batido em algo sólido.
Acordava com dificuldade para respirar, como se de fato tivesse faltado ar. 5 anos após o enterramento, o padre Anselmo, aquele que tinha dado extrema unção a Joana, morreu de forma estranha. Estava dando missa domingo de manhã, igreja cheia. No meio da homilia, parou de falar, ficou pálido, olhou para o fundo da igreja. Não, sussurrou. Não, por favor, eu não tive escolha. A congregação olhou para trás.
Não havia ninguém lá. O padre começou a tremer. Perdoe-me, eu deveria terte protegido. Eu sei, eu sei que falhei. E então caiu morto. Ataque cardíaco, disseram. Mas seu rosto, seu rosto estava congelado em expressão de terror absoluto, como se tivesse visto algo, algo que o matou de susto.
Teresa estava na missa quando isso aconteceu. Viu tudo e pela primeira vez, pela primeira vez em 5 anos, sentiu medo verdadeiro porque estava vendo padrão. Maria, amiga de Joana, morta, Severino, executor do enterramento, morto de forma brutal, padre Anselmo, cúmplice silencioso, morto, todos conectados a Joana, todos mortos de formas estranhas.
E Teresa sabia, embora não quisesse admitir, que ela era próxima. Ela era culpada principal. Ela tinha ordenado tudo. Se havia justiça vindo de além túmulo, ela seria alvo final. 8 anos após o enterramento, Teresa não dormia mais. Tinha medo. Medo de fechar os olhos, medo dos sonhos que vinham. Ficava acordada noites inteiras, rezando, acendendo velas, lendo Bíblia, mas não ajudava, porque não importava quantas orações rezasse, não importava quantos salmos recitasse, as batidas continuavam: “Tque toque, toque”.
Os cantos continuavam ye a cada noite ficavam mais altos, mais próximos, como se algo estivesse subindo, vindo do fundo da terra, aproximando-se da superfície. 10 anos, 1872. Teresa tinha 49 anos agora, mas parecia ter 70. Cabelos brancos, rosto enrugado, olhos fundos com círculos escuros profundos.
Não comia direito, não dormia, vivia em estado de terror constante. Os escravos sussurravam, diziam que ela estava sendo assombrada, que Joana tinha voltado para cobrar dívida e Teresa sabia que estavam certos. Foi em junho de 1872, exatos 10 anos após o enterramento, que Teresa tomou decisão. Desenterrem-na, ordenou.
O novo feitor, homem chamado Tobias, que tinha sido contratado após morte de Severino, olhou para ela confuso. Sim, Joana, a Mucama que foi enterrada há 10 anos. Quero que desenterrem o caixão. Por que, senh? Porque preciso ver, preciso confirmar que ela está morta, que está apodrecida, que não é, que não é o que penso que é. Tobias não entendia, mas obedeceu.
Chamou seis homens, deu paz e foram para o terreiro. Teresa o seguiu carregando crucifixo, murmurando orações. Levaram duas horas para cavar até o caixão. Quando as paz tocaram madeira, Teresa sentiu algo estranho, como se ar tivesse ficado mais pesado, como se tempestade estivesse vindo embora, não houvesse nuvens.
Tirem”, ordenou. Os homens colocaram cordas, puxaram. O caixão subiu lentamente, estava intacto. Madeira não tinha apodrecido. Os pregos ainda estavam lá, firmes, como se tivesse sido enterrado ontem. “Abram”, disse Teresa com voz trêmula. Tobias pegou o pé de cabra, começou a arrancar os pregos. Um craque, dois craque. Três craque. Quatro craque. A tampa estava solta.
Abram, repetiu Teresa. Tobias hesitou, depois levantou a tampa e todos, todos recuaram em choque. Joana estava lá intacta, completamente impossível, sobrenaturalmente intacta. Sua pele, que deveria estar cinza, enrugada, decomposta, estava lisa, macia, cor de jambo maduro, exatamente como tinha sido em vida.

Seu cabelo, que deveria estar caído, ressecado, apodrecido, estava brilhante, cada cacho perfeitamente formado, como se tivesse sido penteado naquela manhã. Seu vestido, tecido simples de algodão branco, estava limpo, sem manchas, sem mofo, sem decomposição. Não havia cheiro, nenhum cheiro de morte, nenhum cheiro de podridão. Havia apenas perfume, suave, doce, como flores, como água limpa de rio, como oxum, a orixá das águas doces e seu rosto. Seu rosto era pior ou melhor, dependia de quem olhava.
Estava sorrindo. Não era sorriso forçado, não era contração muscular postmem. Era sorriso genuíno, lábios curvados suavemente, expressão de paz. Mas não era paz comum. Era paz de quem sabe algo, de quem venceu, de quem está esperando. E seus olhos, seus olhos estavam fechados, mas as pálpebras tremiam levemente, como se a qualquer momento pudessem se abrir, como se ela estivesse apenas dormindo e pudesse acordar.
Tobias deixou cair o pé de cabra. Meu Deus! Um dos homens que tinha ajudado a cavar caiu de joelhos, começou a rezar. Ave Maria após Ave Maria, outro saiu correndo, simplesmente fugiu, não aguentou ver. E Teresa, Teresa ficou parada, olhando, boca aberta, olhos arregalados, porque estava vendo impossível.
Estava vendo algo que ciência não podia explicar, que natureza não permitia. Corpo humano não fica intacto depois de 10 anos enterrado. Não importa o clima. Não importa as condições do solo, carne apodrece, pele se decompõe, órgãos liquefazem, ossos ficam expostos. É processo natural, inevitável, universal, exceto aparentemente quando não é. Isso não é possível. Teresa sussurrou. Não é, não pode ser, mas era.
E enquanto olhava para Joana, para aquele corpo que recusava a morte, Teresa sentiu algo que nunca tinha sentido em 49 anos de vida. Verdadeiro terror metafísico. Não medo de pessoa, não medo de animal, não medo de coisa física, mas medo de algo além. Algo que não seguia regras, algo que não podia ser controlado com poder, dinheiro ou autoridade, algo divino ou diabólico ou ambos. Fechem, disse com voz trêmula.
Fechem o caixão. Enterrem de novo. Agora sim. Ah, Tobias começou. Agora antes que pudessem pregar a tampa de volta, algo aconteceu. O vento começou a soprar. vento forte, vindo de lugar nenhum, porque segundos antes o ar estava parado, completamente parado, mas agora vento soprava, levantando poeira, fazendo árvores balançarem, arrancando folhas.
E com o vento veio som, canto, cantiga em yorubá. Ie iô, o chumô. Não vinha de lugar específico, vinha do ar, de tudo, de todos os lados ao mesmo tempo. Era voz de mulher, voz de Joana, mas não era só ela. Eram muitas vozes. Coro, como se centenas de pessoas cantassem junto todas as vozes de todas as escravas que tinham sofrido, todas cantando juntas através de Joana.
Teresa colocou mãos nos ouvidos. Parem, façam parar. Mas não parava. ficava mais alto e então o solo começou a tremer levemente primeiro, depois mais forte. Não era terremoto. Pernambuco não tinha terremotos, mas o chão tremia, como se algo embaixo estivesse acordando, se movendo, um dos homens gritou: “Olhei, olhei o corpo!” Todos olharam para o caixão e viram.
Os olhos de Joana estavam se abrindo lentamente, como se estivesse acordando de sono profundo. Não eram olhos de morta, não eram olhos vazios ou brancos, eram olhos vivos, escuros, profundos, conscientes e olhavam diretamente para Teresa. Teresa gritou: Grito de terror puro e correu.
correu para a casa grande, tropeçando, caindo, levantando, correndo mais. Atrás dela ouvia o canto ficando mais alto e risada. Risada de mulher que ecoava pelo terreiro. Não era risada cruel, era risada de vitória, de justiça, de “Eu avisei”. Teresa trancou-se em seu quarto, empurrou móveis contra a porta, acendeu todas as velas que tinha, ajoelhou-se diante do crucifixo e rezou como nunca tinha rezado.
Pai nosso que estais no céu, mas não conseguia focar porque ouvia batidas. Toque, toque, toque. Não vinham do chão, desta vez vinham da porta. Alguém ou algo estava do outro lado. Santificado seja o vosso nome. Toque, toque, toque mais alto, mais insistente. Venha a nós o vosso reino. A maçaneta começou a girar lentamente. Seja feita a vossa vontade. A porta começou a abrir, empurrando os móveis como se fossem feitos de papel, assim na terra como no céu. Então Teresa viu.
Joana estava parada na entrada, vestido branco, pés descalços, cabelo solto, exatamente como no caixão. Mas agora estava em pé andando viva ou algo que parecia viva. Sim, a Teresa disse Joana, voz calma, suave, como se estivessem tomando chá. Teresa estava paralisada, não conseguia se mover, não conseguia gritar. 10 anos continuou Joana. 10 anos eu esperei.
10 anos meu corpo não apodreceu porque Oxum me preservou, me transformou em testemunho. Ela deu passo para dentro do quarto. Você sabe por fiz isso? Porque vim até você. Teresa balançou a cabeça. Não conseguia falar. para lembrar, para que você nunca esqueça, para que cada segundo restante de sua vida Joana sorriu. Você saiba o que fez e saiba que eu venci.
Eu Eu só queria ordem. Teresa finalmente conseguiu sussurrar. Não, você queria controle absoluto, queria apagar quem eu era, transformar-me em coisas sem identidade, sem alma, sem Deus próprio. Eu estava servindo a Deus, seu Deus. A voz de Joana ficou mais forte pela primeira vez. Deus que você moldou a sua imagem. Deus que justificava sua crueldade.
Deus que benzia correntes e batizava sofrimento. Mas meu Deus, nosso Deus, os orixás dos meus ancestrais, esses não esqueceram e não perdoaram. Joana se aproximou mais até estar a centímetros de Teresa. Você me enterrou viva. Então agora você vai sentir o que eu senti. O quê? O que você vai fazer? Nada.
Eu não preciso fazer nada. Joana sorriu porque você já está enterrada, não em caixão de madeira, mas em caixão de culpa, de medo, de terror, que não vai te deixar até seu último suspiro. E quando morrer, quando finalmente seu coração parar, você vai descobrir que morte não é fim, é apenas mudança de prisão. Teresa começou a chorar. Por favor, por favor, me perdoe.
Perdão? Joana inclinou a cabeça. Você pediu perdão quando me ouviu implorar? Quando me ouviu bater no caixão, quando me ouviu sufocar? Silêncio. Então não peça agora, porque perdão é luxo e você não merece luxo. E então Joana fez algo inesperado, aproximou-se mais ainda e sussurrou no ouvido de Teresa. Mas vou te dar presente.
Vou te deixar viver por mais 10 anos. 10 anos para sentir o que eu senti, para carregar peso, para ter pesadelos toda noite. E quando esses 10 anos acabarem, quando você tiver sofrido o suficiente, aí sim virá descanso. Mas não será descanso em paz, será descanso em terror, porque onde você vai, eu estarei esperando.
Joana se afastou, caminhou até a porta, parou, olhou para trás uma última vez. Ah, e Teresa, meu corpo vai voltar para o caixão agora, vai apodrecer finalmente, porque trabalho está feito. Mensagem foi entregue. Mas quando abrirem o caixão de novo e vão abrir, porque você não vai conseguir resistir, vão encontrar apenas ossos. E ninguém vai acreditar em você quando contar o que viu hoje.
Vão dizer que enlouqueceu, que culpa destruiu sua mente. E talvez, talvez tenham razão. E desapareceu. Simplesmente desapareceu. Não saiu pela porta, não se transformou em fumaça, apenas deixou de estar ali. Teresa desmaiou. Quando acordou, era manhã. Sol entrava pela janela. Os móveis ainda estavam empurrados contra a porta.
As velas tinham se apagado e ela não tinha certeza, não tinha certeza absoluta se tinha sido real ou pesadelo. Até que olhou para o chão e viu pegadas, pegadas descalças, feitas de terra úmida, levando da porta até onde Joana tinha estado. E depois nada, simplesmente desapareciam. Teresa mandou verificar o caixão naquela tarde.
Quando abriram de novo, encontraram apenas esqueleto, ossos limpos, vestido decomposto, nada de pele, nada de cabelo, como se corpo tivesse apodrecido normalmente durante 10 anos, como se nada impossível tivesse acontecido. Os homens olharam para Teresa esperando explicação, mas ela não tinha, porque se contasse o que viu, a achariam louca. Então disse apenas: “Enterrem de novo e nunca mais mexam nesta sepultura”.
Teresa viveu exatamente mais 10 anos depois daquela noite, mas não era vida, era sobrevivência, era espera agonizante pelo fim que sabia que viria. Os primeiros meses foram os piores. Teresa não dormia, não conseguia, porque toda vez que fechava os olhos, via Joana de pé ao lado da cama, sorrindo, esperando, ou pior, via-se a si mesma dentro do caixão, batendo, gritando, terra pesada sobre ela, ar acabando, acordava sufocando, literalmente sufocando, como se estivesse de fato enterrada. Os médicos vieram, Dr. Fonseca, depois
outros de Recife, depois um de Salvador, que era especialista em doenças nervosas. Todos disseram a mesma coisa. É histeria, é culpa manifestando em sintomas físicos. Não há nada fisicamente errado com a senhora. Mas Teresa sabia que não era histeria, era maldição, era a justiça vinda de além túmulo. E não havia remédio para isso.
Ela tentou se livrar da culpa através da religião. Foi à igreja todo dia, não apenas domingos, todo maldito dia. Rezava horas. confessava pecados repetidamente ao novo padre, padre Benedito, jovem de 30 anos, que tinha vindo substituir o falecido padre Anselmo. Padre, fiz coisas terríveis, preciso de absolvição.
Que coisas, minha filha? Enterrei, enterrei escrava viva há 10 anos por castigo. E agora, agora ela me assombra. Padre Benedito hesitou porque todos no engenho conheciam a história, mas ninguém falava sobre isso abertamente. Você se arrepende verdadeiramente? Sim, sim, me arrependo. Mas era mentira. E ambos sabiam. Teresa não se arrependia do ato.
Se arrependia das consequências, do medo, do terror, dos pesadelos. Se não houvesse consequência, faria de novo. E arrependimento falso não traz absolvição, traz apenas ilusão temporária de paz. Teresa tentou se livrar da culpa através da caridade. Começou a tratar os escravos melhor. Não bem, nunca chegou a ser boa, mas melhor. Menos chicotadas, mais comida, domingos livres. Vem, dizia para si mesma.
Estou mudando, estou me redimindo. Mas os escravos sabiam a verdade. Sabiam que ela não tinha mudado o coração. Apenas estava tentando comprar perdão, negociando com Deus ou com fantasma. E perdão não pode ser comprado, só pode ser dado. E Joana não estava dando. Três anos após a exumação, Teresa libertou cinco escravos, não por bondade, mas por medo.
Escolheu os cinco que tinham sido mais próximos de Joana, incluindo Benedito, homem de 50 anos, que tinha crescido junto com Joana na Czala. Vocês estão livres, anunciou. Dou cartas de alforria. Podem ir. Podem começar vida nova. Os cinco olharam para ela com desconfiança, porque presente de Senhor sempre tinha preço oculto. Por que, senh? Perguntou Benedito.
Porque? Porque é certo? Porque Deus quer. Porque sua voz quebrou? Porque espero que ela me perdoe. Benedito entendeu. Todos entenderam. Joana não precisa de seu perdão, senhão neste mundo ou no próximo. E foram embora, levando liberdade que Teresa oferecia como suborno cósmico, mas não funcionou. Os pesadelos continuaram.
5 anos após a exumação, a fortuna de Teresa começou a desmoronar. Primeiro foi a safra. Praga de ferrugem atacou os canaviais. Metade da cana morreu, depois foram os preços. Açúcar brasileiro estava perdendo o mercado para açúcar de beterraba europeu. Preços caíram pela metade, depois foram as dívidas.
Teresa tinha pegado empréstimos para modernizar a moenda, mas com safra ruim e preços baixos não conseguia pagar. Os credores começaram a aparecer, exigindo pagamento, ameaçando tomar a propriedade. Teresa vendia joias, vendia móveis, vendia terras, mas não era suficiente. Nunca era suficiente. O engenho Boa Esperança, que tinha sido império açucareiro, estava virando ruína.
E Teresa via nisso a mão de Joana, porque coincidência demais não existe. 7 anos após a exumação, Teresa começou a ficar fisicamente doente. Primeiro foi tosse, persistente, dolorosa, depois foi perda de peso. Comia, mas não engordava, como se corpo recusasse nutrição. Depois foram as dores no peito, nas costas, por todo o corpo. Os médicos não encontravam causa. fizeram todos os exames disponíveis em 1879.
Sangue, urina, ausculta pulmonar, nada, nenhuma doença identificável. Mas Teresa definhava dia após dia, semana após semana, e sabia por quê? Porque corpo pode adoecer de medo, de culpa, de terror que não tem fim. estava morrendo lentamente, como Joana tinha morrido.
8 anos após a exumação, Teresa ficou acamada, não conseguia mais levantar, não tinha força, ficava deitada, olhando o teto, esperando, esperando o fim que sabia que viria. E toda noite, toda maldita noite, Joana vinha, não falava mais, apenas ficava ali de pé ao lado da cama, sorrindo, esperando, contando, sempre contando.
Teresa podia ver nos olhos dela a contagem regressiva. 2 anos, 1 ano, 6 meses. 9 anos após a exumação, Teresa mandou chamar padre. Padre Benedito, preciso de extrema unção. Vou morrer em breve. A senhora não está tão doente assim. Estou. Eu sei que estou. E quando morrer, quando morrer, lágrimas corriam. Tenho medo do que vai acontecer. Deus é misericordioso.
Não com quem fez o que eu fiz, não com quem enterrou inocente viva, não comigo. Padre Benedito deu extrema unção, ungiu com olho sagrado, rezou. Mas ambos sabiam que não faria diferença, porque algumas almas estão além de salvação. Não porque Deus não perdoa, mas porque elas mesmas não aceitam perdão.
Teresa não queria perdão, queria escapar, queria fugir das consequências. E isso, isso não era possível. 10 anos, junho de 1882, exatamente 20 anos após o enterramento original de Joana. Teresa estava na cama, corpo esquelético, pele esticada sobre ossos, cabelos completamente brancos e ralos. Tinha 59 anos, mas parecia ter 90.
E sabia, sabia com certeza absoluta que aquela seria sua última noite. Ao pôr do sol, ela acordou de sono agitado e viu Joana, como sempre, mas desta vez era diferente. Joana não estava sozinha. Havia outras, dezenas delas. Escravas que tinham morrido no engenho ao longo dos anos, todas usando branco, todas em silêncio, todas esperando. É hora disse Joana.
Teresa não conseguia falar. Garganta estava seca, fechada. 20 anos. 10 anos você me fez sofrer na terra. 10 anos eu fiz você sofrer em vida. Agora, agora vem o resto. O resto. Eternidade, Teresa, você vai passar eternidade sentindo o que eu senti dentro do caixão, batendo, gritando, sem ninguém ouvir, sem ar, sem luz, sem fim.
Não, não, por favor. Você pediu, por favor. Interessante, porque eu também pedi, lembra? Teresa fechou os olhos, lágrimas caíam. Mas eu vou dar o que você nunca me deu. Continuou Joana. Vou dar escolha. Teresa abriu os olhos. Pode morrer agora aqui nesta cama e ir para onde vai, sem luta, sem resistência.
Ou pode tentar segurar. tentar viver mais um dia, mais uma semana, mais um ano. Mas cada dia extra que viver será agonia pior que o anterior, será sofrimento multiplicado, será inferno na terra. Então, escolha, morra agora com dignidade que você nunca me deu, ou viva em agonia.
Teresa olhou para Joana, para as outras fantasmas, para a morte que esperava e pela primeira vez em 10 anos sorriu. Não era sorriso de alegria, era sorriso de rendição, de aceitação. “Você venceu”, sussurrou. “Você sempre venceu?” “Sim, venci.” Teresa fechou os olhos. “Então me leve. Acabemos com isso.” E seu coração parou. simplesmente parou como vela que sopram.
Teresa Cavalcante de Albuquerque morreu aos 59 anos, 20 anos depois de enterrar Joana Viva. O funeral de Teresa foi pequeno, poucos vieram porque ela tinha se tornado reclusa nos últimos anos e porque reputação de mulher que enlouqueceu mantinha pessoas afastadas. Mas algo estranho aconteceu durante o enterro.
Quando abriram espaço no cemitério particular engenho para enterrá-la, descobriram que o local escolhido estava ocupado. Não oficialmente, não havia lápide, mas havia sepultura. E quando cavaram um pouco para verificar o que era, encontraram caixão, velho, decomposto, mas reconhecível. É o caixão da Mucama, disse um dos escravos mais velhos, da Joana, que assim a enterrou viva. Mas ela não estava enterrada no terreiro.
Estava, mas aparentemente não está mais. Abriram o caixão. Dentro havia apenas ossos, como esperado após 20 anos. Mas os ossos estavam arranjados, não jogados aleatoriamente, como acontece com decomposição natural. estavam posicionados, mãos cruzadas sobre o peito, crânio voltado para cima, como se alguém ou algo tivesse arrumado o corpo com cuidado, com respeito.
“Enterrem assim em outro lugar”, disse o coveiro. “Este lugar pertence a esta mulher, não vamos profanar”. Mas um dos escravos, Benedito, aquele que Teresa tinha libertado, falou: “Não enterrem aá aqui ao lado dela.” Por quê? Porque Joana disse: “Ela me visitou em sonho ontem.
Disse que queria Teresa perto para sempre, para que não esquecesse, para que mesmo na morte não houvesse escapatória.” Todos hesitaram, depois concordaram. Porque quem eram eles para questionar vontade de morta que tinha provado ter poder além do túmulo? Enterraram Teresa ao lado de Joana, sem lápide elaborada, sem epitáfio bonito, apenas cruz simples de madeira com nome e datas. Teresa Cavalcante de Albuquerque, 1823182.
E ao lado, finalmente colocaram lápide para Joana também. Joana 1834-1862. Que Oxum aguarde e que sua voz nunca seja esquecida. Nos anos seguintes, histórias começaram a circular. Diziam que à noite, especialmente nas noites de lua cheia, podia-se ouvir sons vindos do cemitério, batidas, vindas debaixo da terra. Toque, toque, toque e cantos, cantos em yorubá. Yeó, yeó, oxum, yaó.
E se você ficasse parado, muito quieto, muito atento, podia ouvir outra coisa também. Gritos abafados, vindos da sepultura de Teresa, como se ela estivesse presa, batendo, tentando sair, mas nunca conseguindo, porque Joana tinha prometido, tinha prometido que Teresa passaria eternidade sentindo o que ela sentiu. E Joana sempre cumpria suas promessas.
O engenho Boa Esperança foi abandonado 5 anos após a morte de Teresa, sem dinheiro, sem herdeiros, sem razão para continuar. Os escravos foram vendidos ou libertados, dependendo da situação. O engenho foi leiloado, comprado por outro senhor que tentou recomeçar, mas não conseguiu porque coisas ruins continuavam acontecendo.
Acidentes inexplicáveis, doenças misteriosas, sons à noite que faziam homens corajosos tremerem. Tr anos depois, o novo dono abandonou também. Este lugar está amaldiçoado”, disse. “Algo ruim aconteceu aqui, algo que a terra não esqueceu e o engenho ficou vazio. Virou ruína. Hoje, 2025, não resta quase nada do engenho boa esperança. Paredes caídas, telhado desmoronado, mato tomando conta de tudo.
Mas o cemitério, o cemitério ainda está lá escondido na mata. esquecido pela maioria, mas ainda lá. E as duas sepulturas de Joana e Teresa ainda estão lado a lado. Lápides apagadas pelo tempo, nomes quase ilegíveis, mas lá estão. E dizem os velhos da região que ainda conhecem as histórias, que se você for lá, se você for naquele cemitério esquecido, na noite de lua cheia, em junho, e se colocar ouvido no chão sobre a sepultura de Teresa, vai ouvir. Vai ouvir batidas. fracas, desesperadas.
Toque, toque, toque. Como se alguém estivesse preso embaixo, tentando sair depois de 143 anos, ainda batendo, ainda presa, ainda pagando, porque algumas punições não têm fim. Algumas dívidas não são pagas em vida, são pagas em morte, em eternidade. E Teresa Cavalcante de Albuquerque, mulher que enterrou escrava viva por ousar manter dignidade, descobriu que justiça às vezes demora, mas sempre chega. E quando chega é eterna.
Esta foi a história de Joana e Teresa, da escrava que recusou apodrecer e da Siná que apodreceu viva, de como corpo pode ser prisão na vida e na morte, de como justiça dos orixás é lenta, mas inevitável, e de como algumas vozes, mesmo silenciadas, continuam falando através dos séculos.
Aché para Joana e para todas as Joanas que foram enterradas, viva ou morta. mas que se recusaram a ser esquecidas. Do canal Vozes da Senzala. Eu me despeço até a próxima história que precisa ser contada, porque enquanto houver injustiça enterrada, continuaremos cavando.