A história macabra das Irmãs Monte e os desaparecidos na Bahia

Vinte e dois homens entraram naquele vale entre 1912 e 1914. Nenhum deles regressou a casa, nenhum corpo foi encontrado nas trilhas da serra, nenhum rasto nas pedras, apenas o silêncio da Chapada Diamantina e duas mulheres que viviam sozinhas no coração da Bahia. Em outubro de 1914, quando as autoridades finalmente desceram pelos túneis abandonados do Garimpo Montes, a 28 quilómetros de Mucugê, o que encontraram reescreveu os limites do que um ser humano é capaz de fazer quando a fé se transforma em obsessão e o isolamento se torna o caldo de cultura para a barbárie.

Documentos da esquadra de Lençóis descrevem câmaras subterrâneas, correntes presas à rocha viva, crianças que jamais haviam visto a luz do sol e um diário manuscrito que falava sobre a profecia das pedras e o sangue puro que traria salvação à serra. Duas irmãs, um vale esquecido e a certeza absoluta de que Deus havia escolhido as suas mãos para purificar a raça dos garimpos. Como pode o horror prosperar em silêncio por tanto tempo? E o que resta de humanidade quando a fé se torna mais forte que a própria vida?

A Chapada Diamantina em 1912 era um mundo à parte, um lugar onde a lei dos homens era uma abstração e a lei da serra era tudo. Não existiam estradas dignas desse nome, não havia telégrafo que ligasse as almas distantes. As vilas espalhavam-se pela serra como ilhas perdidas num oceano de pedra e mata fechada. Mucugê, Lençóis, Andaraí. Nomes que mal apareciam nos mapas oficiais da jovem República. Entre essas vilas, havia dias de caminhada. Entre as famílias, o silêncio de quem aprendeu que a serra guarda segredos e não os devolve.

O ciclo do diamante já agonizava, cuspindo a última poeira de fortuna. As grandes fortunas haviam migrado para o sul. Os coronéis, que um dia mandaram erguer casarões de pedra, agora viam os seus filhos partirem para Salvador ou para o Rio de Janeiro em busca de um futuro mais gentil. O que restava eram homens desesperados, garimpeiros que cavavam a terra com as próprias mãos, tropeiros que atravessavam vales carregando sal e tecido, trabalhadores rurais que iam de fazenda em fazenda procurando serviço. Eram homens sem paradeiro fixo, homens que ninguém reclamaria com muita insistência caso desaparecessem.

A geografia conspirava para o isolamento. Vales encaixados entre paredões de arenito que subiam como muralhas naturais, rios que secavam no verão e se tornavam torrentes mortais no inverno. Trilhas que desapareciam sob a vegetação rasteira depois de poucas semanas sem uso. Um homem podia caminhar por dias sem encontrar outra alma viva. E se algo lhe acontecesse, a serra simplesmente engolia o seu corpo. Animais, quedas, febres. A natureza não deixava rastos de culpa.

Foi nesse cenário de beleza selvagem e indiferente que Joaquim Montes construiu o seu refúgio. Português de nascimento, chegara ao Brasil ainda jovem, perseguindo a febre dos diamantes que varreu a Bahia nas últimas décadas do século XIX. Não encontrou fortuna, mas encontrou algo mais valioso para um homem que, rumores diziam, fugia de algo: isolamento absoluto. Comprou uma concessão de garimpo abandonada num vale sem nome, a quase 30 quilómetros da vila mais próxima. O lugar era conhecido apenas como “o Buraco do Montes”. Ninguém ia até lá, ninguém precisava.

Joaquim cavou túneis na rocha, plantou mandioca, ergueu uma casa de pedra e barro grudada na encosta como um ninho de ave de rapina, e criou duas filhas sozinho. Depois que a mãe morreu no parto da segunda, Eufrásia e Custódia Montes cresceram sem conhecer outras crianças, sem frequentar a igreja da vila, sem aprender a ler nos livros que as meninas das vilas liam. O Pai ensinou-lhes a Bíblia de cor. Versículos inteiros. Salmos, Provérbios. O Velho Testamento, com as suas histórias de sangue, promessas e escolhidos de Deus, tornou-se o único alicerce da sua educação, a única lente pela qual viam o mundo.

Joaquim Montes morreu em 1911. Desabamento no túnel principal. Dizem que levou horas para morrer preso sob as pedras, enquanto as filhas tentavam cavar a rocha com as mãos nuas. Quando finalmente o libertaram, ele ainda respirava. Tempo suficiente para dizer algo, tempo suficiente para plantar uma semente. O que exatamente ele disse nunca ficou claro nos registos oficiais, mas testemunhas que passaram pela propriedade meses depois juraram que as irmãs haviam mudado para sempre.

Eufrásia, a mais velha, sempre fora séria e calada. Agora falava com uma autoridade estranha, citava passagens bíblicas sobre multiplicação, sobre a pureza das gerações, sobre o dever dos escolhidos. Custódia, que antes tinha o olhar assustado de animal acuado, agora observava os raros visitantes com uma frieza calculista, como quem avalia gado, o valor ou a utilidade de uma coisa.

Foi nesse mesmo ano que começaram a produzir cachaça. O garimpo não rendia mais nada, mas os túneis serviam para envelhecer a aguardente, e cachaça era moeda forte na serra. Tropeiros e garimpeiros pagavam bem por garrafas que podiam revender nas vilas. Os homens vinham até a propriedade, entravam na casa das Irmãs Montes, bebiam um gole de aguardente e, alguns, simplesmente não regressavam mais.

O primeiro desaparecimento registado foi em março de 1912. Aides Pereira da Cruz, garimpeiro de Sergipe, 34 anos. Havia passado por Mucugê duas semanas antes, contando que seguiria para o sul da Chapada, onde diziam ter encontrado um novo veio de diamantes. Nunca mais foi visto. A família em Sergipe esperou, esperou mais, depois parou de esperar. Homens desapareciam nos garimpos. Fazia parte da vida.

Em agosto do mesmo ano, foi a vez de Tertuliano Sampaio, tropeiro que fazia a rota entre Lençóis e Andaraí. A sua mula foi encontrada três dias depois, solta numa trilha, ainda carregada com sacos de farinha e sal. Tertuliano nunca apareceu. As autoridades suspeitaram de assalto, mas nada foi roubado da carga. Apenas o homem havia sumido. Depois veio Damião Ferreira. Depois os irmãos Cosme e Abílio Souza. Depois José Venâncio dos Santos. Um atrás do outro. Garimpeiros, trabalhadores rurais, homens que atravessavam a serra sozinhos. Homens que ninguém reclamaria com muita insistência.

A cada novo desaparecimento, as famílias faziam as mesmas perguntas, as autoridades davam as mesmas respostas, cheias de evasivas e fatalismo. “A serra é perigosa. Onças, cobras, despenhadeiros, febre amarela. Ou talvez ele simplesmente tenha seguido viagem para outro estado, procurando vida melhor.”

Mas alguns homens na região começaram a notar um padrão, um arrepio que lhes subia pela espinha sempre que pensavam no assunto. Não era a serra inteira que engolia pessoas. Era sempre a mesma área, um círculo de aproximadamente 15 quilómetros ao redor do vale onde as Irmãs Montes viviam sozinhas, isoladas e silenciosas. Tropeiros experientes, homens que conheciam cada palmo daquelas trilhas, começaram a evitar aquela rota, a dar a volta, mesmo que demorasse um dia a mais. Quando perguntados porquê, davam respostas vagas: “Mal-estar, sensação estranha. A terra ali não é boa.”

As Irmãs Montes, entretanto, prosperavam, ou pelo menos pareciam prosperar. Quando o mascate João Pessoa visitou a propriedade em abril de 1913, estranhou a quantidade de mercadorias que elas compravam: tecidos finos, ferramentas de metal importado, correntes grossas de ferro que Eufrásia justificou, dizendo serem para prender porcos contra as onças. Ele aceitou a explicação, mas anotou mentalmente que nunca havia visto porcos naquela propriedade.

O mascate também notou algo mais perturbador: um cheiro vindo dos fundos da casa, onde a encosta tinha várias entradas de túnel fechadas com portas grossas de madeira. Um cheiro doce e pútrido ao mesmo tempo, como carne deixada ao sol, um odor que não combinava com o ar puro da Chapada. Eufrásia percebeu que ele havia notado e, pela primeira vez, o mascate viu algo que o fez recusar o copo de cachaça que ela oferecia. Viu nos olhos dela não exatamente ameaça, mas certeza. A certeza de alguém que sabe que está acima de qualquer julgamento humano, que acredita estar a cumprir uma lei superior.

João Pessoa saiu dali mais rápido do que deveria e, quando chegou a Mucugê, três dias depois, estava com febre. Febre que os médicos não conseguiram explicar. Morreu duas semanas depois, delirando sobre túneis e correntes e crianças que choravam no escuro. As pessoas atribuíram tudo à febre, a delírios de homem à beira da morte. Ninguém deu importância.

Mas em Lençóis, a 40 quilómetros dali, havia um homem que dava importância a padrões. Um homem cuja guerra havia-lhe ensinado que coincidências não existem, apenas causas que ainda não foram descobertas. O Subdelegado Tertuliano Barreto tinha 39 anos em 1913. Veterano de Canudos, onde serviu sob o comando do General Artur Oscar. Havia visto homens morrerem de formas que nenhum livro de história ousaria registar. Havia visto o que acontece quando o fanatismo religioso se mistura com isolamento e desespero. E quando começou a juntar os relatórios de desaparecimentos que se acumulavam na sua escrivaninha, uma sensação antiga voltou, a mesma sensação que teve dias antes da tomada final do arraial de Canudos, quando o silêncio era profundo demais para ser natural, quando o ar cheirava a sangue seco.

Tertuliano Barreto pegou num mapa, marcou com alfinetes vermelhos cada ponto de último avistamento dos homens desaparecidos e viu que todos os alfinetes formavam um círculo quase perfeito. No centro desse círculo, o Garimpo Montes. Ele não sabia ainda o que encontraria, mas sabia que precisava ir até lá. Sabia que homens não desaparecem sem razão e sabia, acima de tudo, que o silêncio da serra estava escondendo algo que nenhum ser humano deveria ser capaz de fazer. A história não perdoa os ingénuos, e os homens que acreditam demais em si mesmos sempre acabam pagando o preço. Mas as mulheres? E aquelas que acreditam que Deus fala diretamente com elas? Essas são ainda mais perigosas.

Na Chapada Diamantina, entre 1912 e 1914, as perguntas acumulavam-se mais rápido do que as respostas. Tertuliano Barreto não acreditava em maldições, não acreditava em azar. Canudos havia-lhe ensinado que por trás de cada mistério existe sempre uma mão humana. E quando aquela mão pertence a alguém que se acredita escolhido por Deus, o resultado é sempre sangue, destruição e o fim da razão.

Ele começou a investigação de verdade em maio de 1913, depois que o décimo homem desapareceu na mesma região. Dez homens em pouco mais de um ano. Para uma área tão isolada, aquilo não era estatística normal, era um padrão. E padrões revelam intenção. O subdelegado convocou as famílias, uma por uma. Sentou-se com esposas que já haviam desistido de esperar, com filhos que mal se lembravam do rosto do pai, com mães que rezavam rosários gastos pelo uso e ouviu as mesmas histórias repetidas com pequenas variações, mas com o mesmo núcleo de dor.

“Ele disse que ia para o sul da Chapada, garimpo novo, voltaria em dois meses. Nunca mais chegou.”

“Falou que tinha negócio com um homem em Mucugê. Nunca chegou lá.”

“Ia buscar cachaça boa, aquela que dizem que tem numa propriedade isolada. Saiu de manhã, não voltou para o jantar.”

Tertuliano anotava tudo: datas, nomes, últimas palavras e, principalmente, rotas. Todas as rotas, quando mapeadas, passavam perto do mesmo ponto: o vale sem nome, o Buraco do Montes. Mas havia algo mais, algo que as famílias mencionavam sem dar importância, mas que o subdelegado percebeu de imediato. Todos os desaparecidos tinham algo em comum além da rota. Eram homens fortes, saudáveis, entre 25 e 40 anos. Nenhum velho, nenhum adolescente, nenhum doente, como se alguém estivesse selecionando o melhor do rebanho.

Em junho de 1913, Tertuliano decidiu fazer a sua primeira visita às Irmãs Montes, não oficial, não anunciada, apenas um subdelegado curioso passando por acaso numa propriedade isolada. Ele levou consigo Manuel Quirino, guia experiente que conhecia cada trilha da Chapada como conhecia as linhas da própria mão.

A viagem durou dois dias. A trilha era íngreme, pedregosa, desaparecia em vários trechos. Manuel comentou que aquele caminho era raramente usado.

“Só quem tem negócio muito específico vem até aqui, subdelegado. Ou quem está a fugir de algo.”

Quando finalmente avistaram a propriedade, Tertuliano entendeu por que as irmãs haviam escolhido aquele lugar. O vale era cercado por paredes de pedra de todos os lados, como um anfiteatro natural. Apenas uma entrada, apenas uma saída. Quem controlasse aquela passagem controlava tudo que entrava e saía. Perfeito para quem quer privacidade, ou para quem precisa garantir que ninguém escape.

A casa era de pedra escura, grudada na encosta como parte da própria montanha. Várias portas de madeira pesada fechavam entradas na rocha, antigos túneis do garimpo, presumiu Tertuliano. Ao redor da casa, uma pequena plantação de mandioca, algumas galinhas, nenhum sinal de porcos que justificasse as correntes grossas que o mascate havia mencionado.

Eufrásia Montes saiu para recebê-los antes mesmo que eles desmontassem. Alta, magra, cabelo preso em coque apertado, rosto sem expressão, olhos que avaliavam os visitantes com uma frieza que parecia ir além da simples desconfiança do sertanejo. Era algo mais profundo, como se ela estivesse medindo não apenas suas intenções, mas o seu valor.

“Subdelegado Barreto,”

ela disse, sem perguntar. Como se soubesse quem ele era, como se estivesse à espera dele. Tertuliano apresentou-se formalmente, explicou que estava a investigar os desaparecimentos na região. Perguntou se as irmãs haviam visto algo suspeito, se homens haviam passado por ali recentemente.

Eufrásia respondeu com calma, estudada, quase como se estivesse a recitar um guião. Sim, homens passavam ocasionalmente, compravam cachaça, descansavam, seguiam viagem. Ela lembrava-se de alguns nomes, descrevia com precisão perturbadora os rostos, as roupas, as conversas.

“Aquele ali falou que ia para Minas. Esse outro estava a fugir da mulher. Aquele de barba ruiva disse que tinha dívidas em Lençóis.”

Detalhes demais para encontros casuais. Memória boa demais para simples vendedora de cachaça. Tertuliano anotou mentalmente cada palavra, o seu coração a bater com a certeza de que estava no caminho certo.

Custódia, a irmã mais nova, não disse nada durante toda a conversa, apenas observava. Os seus olhos seguiam cada movimento do subdelegado com uma intensidade que fazia a pele arrepiar. Manuel Quirino depois confessaria que nunca havia sentido tanto desconforto na presença de uma mulher. “Parecia que ela estava a ver através de mim, subdelegado, vendo se eu prestava para alguma coisa.”

Tertuliano pediu para ver a propriedade. Eufrásia concordou prontamente. Mostrou a casa simples, limpa, paredes cobertas com versículos bíblicos escritos a carvão, frases escolhidas que ressoavam com uma obsessão perturbadora. Frutificai e multiplicai-vos. Os escolhidos herdarão a terra. O sangue dos puros clamará por justiça. Mostrou o alambique, onde produziam a cachaça, mostrou a plantação.

Mas quando Tertuliano começou a caminhar em direção às portas dos túneis, Eufrásia o interrompeu, com um pânico contido, mas firme.

“Perigoso ali, subdelegado. Túneis antigos, estrutura ruim. O meu pai morreu soterrado num desses. A gente não entra mais.”

Mentira. Tertuliano viu marcas recentes nas portas. Viu que o chão de terra na frente das entradas estava pisoteado, usado. Viu correntes novas penduradas em ganchos na parede externa. Mas não tinha mandado de busca, não tinha autorização para forçar a entrada e estava sozinho a dois dias de viagem da vila mais próxima, diante de duas mulheres que pareciam não ter medo de absolutamente nada.

Ele agradeceu, montou no cavalo e, antes de partir, virou-se para Eufrásia mais uma vez.

“Se a senhora vir ou ouvir algo estranho, qualquer coisa que possa ajudar nas investigações, me procure em Lençóis.”

Eufrásia sorriu pela primeira vez. Não foi um sorriso tranquilizador. Foi um sorriso de pena.

“Subdelegado, a serra guarda os seus segredos. Sempre guardou. Os homens que vêm para cá, alguns não foram feitos para sair. Deus decide, não nós.”

Aquela frase ecoou na cabeça de Tertuliano durante toda a viagem de volta. Deus decide, não nós. Como se ela fosse apenas instrumento de uma vontade superior, como se os seus atos, quaisquer que fossem, estivessem além do julgamento humano. Manuel Quirino cavalgava em silêncio, mas Tertuliano via que o guia estava perturbado.

Quando finalmente pararam para descansar, Manuel disse baixo, com a voz embargada pelo medo.

“Subdelegado, eu vi gente estranha nessa vida. Vi jagunço, vi cangaceiro, vi coronel que matava por menos que nada, mas nunca vi ninguém como aquelas duas. Tem algo errado ali, algo que não é deste mundo.”

“É deste mundo, sim, Manuel,”

corrigiu Tertuliano, o seu coração pesado pela verdade.

“E é exatamente por isso que é pior.”

Nos meses seguintes, mais três homens desapareceram. Agostinho Macedo, trabalhador rural. Lindolfo Pereira, garimpeiro da Paraíba. João Batista dos Anjos, tropeiro que jurou à esposa que voltaria antes do Natal. Nenhum voltou. As famílias começaram a organizar-se, o desespero a transformar-se em ação. Formaram um grupo de busca em setembro de 1913: 12 homens armados que percorreram a região durante uma semana inteira. Encontraram nada. Nem rasto, nem roupa rasgada, nem resto de acampamento, apenas o silêncio da pedra e da mata. E no centro daquele silêncio, a propriedade das Irmãs Montes intocada, isolada, como um coração negro batendo devagar no peito da serra.

Tertuliano voltou mais duas vezes ao vale, sempre sem aviso prévio, sempre procurando por detalhes que pudessem servir como prova. Mas Eufrásia era cuidadosa, meticulosa. Nunca havia sinais de violência, nunca havia objetos que pertencessem aos desaparecidos. A propriedade estava sempre limpa, organizada, normal, exceto pelo cheiro. Aquele cheiro doce e podre que vinha de algum lugar atrás da casa. Fraco demais para ser definitivo, forte demais para ser ignorado.

“Animal morto, subdelegado,”

Eufrásia explicava sempre.

“Onça matou um bode nosso. Jogamos longe, mas o cheiro fica.”

Em janeiro de 1914, aconteceu algo que mudou tudo. Um tropeiro chamado Severino Ramos passou pela propriedade das Montes numa tarde de chuva. Aceitou abrigo, bebeu cachaça, conversou com Eufrásia sobre rotas e negócios, mas ao contrário dos outros, Severino desconfiou de algo. Talvez o jeito como Custódia o observava, talvez o gosto estranho da bebida, talvez apenas instinto de homem que sobreviveu muito tempo sendo cauteloso. Ele fingiu que a bebida não fazia efeito. Fingiu que estava bêbado demais para andar. E quando Eufrásia saiu do cómodo por alguns minutos, Severino levantou-se e fugiu, o pânico a impulsioná-lo.

Montou no cavalo e galopou mata adentro, mesmo sob chuva, mesmo sem enxergar direito a trilha. Galopou até chegar a Mucugê. Três horas depois, encharcado e a tremer, procurou as autoridades locais. Contou o que viu. Contou que havia outros homens naquela propriedade, que ouviu vozes vindas debaixo da terra, que viu correntes através de uma fresta na porta de um dos túneis, que as irmãs falavam sobre os escolhidos e a purificação da linhagem, como quem recita uma oração.

O delegado de Mucugê não deu importância. Severino estava visivelmente assustado, provavelmente bêbado, a contar história de fantasma. Mas ele enviou um relatório para Lençóis, para o Subdelegado Tertuliano Barreto. Um relatório que chegou em fevereiro de 1914. Um relatório que finalmente dava a Tertuliano algo concreto: uma testemunha viva.

Ele convocou Severino para depor. O tropeiro repetiu tudo e, dessa vez, Tertuliano acreditou, não porque a história fosse verosímil, mas porque finalmente fazia sentido: os desaparecimentos, o padrão de seleção, o isolamento, a obsessão religiosa, as correntes, os túneis. Mas ainda não era suficiente para um mandado judicial. Não eram provas, eram suspeitas, e juízes não emitem ordens baseadas em suspeitas. Tertuliano precisava de mais. Precisava de um corpo ou de alguém que tivesse escapado e pudesse testemunhar. Precisava de algo definitivo que forçasse as autoridades estaduais a agirem.

E em agosto de 1914, ele conseguiu exatamente isso. Não da forma que esperava, não da forma que queria, mas da única forma que a serra permitiria: através do sofrimento de um homem que conseguiu fazer o impossível. Um homem que rastejou do inferno de volta à vida apenas para contar a verdade. E a verdade era pior do que qualquer um poderia imaginar.

Damião Oliveira Santos chegou a Lençóis a rastejar, literalmente. As pernas não o sustentavam mais. Os pulsos sangravam através de trapos imundos que um dia foram camisas. O corpo, coberto de feridas infetadas, exalava o cheiro doce da carne a apodrecer ainda viva. Eram 4 da manhã de 23 de agosto de 1914, quando ele desabou na porta da Santa Casa de Misericórdia, batendo com as mãos no portão de madeira até que alguém ouvisse.

A irmã de caridade que abriu a porta gritou. Não de susto, de horror. Porque Damião não parecia humano, parecia algo que a Terra havia cuspido de volta depois de engolir. Chamaram imediatamente o Dr. Lúcio Mascarenhas, médico da cidade que já havia visto febre amarela, cólera, ferimentos de bala e faca. Mas quando chegou à enfermaria improvisada, onde haviam deitado Damião, até ele precisou de um momento antes de se aproximar.

“Este homem deveria estar morto.”

Foi a primeira coisa que o médico disse. E não estava a exagerar. As lesões nos pulsos e tornozelos eram profundas, circulares, infetadas até ao osso. Marcas de algemas ou correntes usadas por tempo prolongado. A pele das costas mostrava sinais de chicotadas antigas, algumas cicatrizadas, outras ainda abertas. Desnutrição severa, desidratação crítica. Mas o pior eram os ferimentos nas pernas: cortes profundos, cheios de terra e fragmentos de pedra, como se ele tivesse se arrastado por quilómetros de chão de serra. Dr. Mascarenhas começou a limpeza das feridas, sabendo que provavelmente não adiantaria. A infeção estava avançada demais. Gangrena já começava a tomar os dedos dos pés. Febre altíssima. Aquele homem tinha, no máximo, dias de vida, mas Damião estava consciente e precisava falar.

Entre delírios febris e momentos de lucidez aterradora, ele começou a contar. O médico chamou imediatamente o Subdelegado Tertuliano Barreto e, dessa vez, finalmente, alguém que havia estado dentro daqueles túneis conseguiria falar.

Damião Oliveira Santos tinha 31 anos, garimpeiro de Minas Gerais, que veio para a Bahia em abril de 1914, atrás de rumores sobre um novo veio de diamantes na Chapada. Passou por Lençóis, seguiu para o sul, acampou em alguns pontos da serra. Foi em junho que encontrou a propriedade das Irmãs Montes.

“Estava à procura de água,”

ele disse, a voz fraca, mas clara.

“O meu cantil tinha acabado. Vi fumo a subir de um vale. Desci até lá. Duas mulheres sozinhas. Pensei que fosse seguro.”

Eufrásia recebeu-o com educação. Ofereceu água fresca, convidou-o para descansar. Damião aceitou, agradecido pela hospitalidade rara em região tão isolada. Ela trouxe um copo de cachaça.

“Para recuperar as forças depois da caminhada, moço.”

Ele bebeu.

“Lembro-me do gosto amargo, diferente, mas pensei que fosse só cachaça forte.”

Damião fechou os olhos, revivendo aquele momento.

“Depois só me lembro de acordar no escuro. Escuro absoluto, completo, o tipo de escuro que existe apenas debaixo da terra, onde nenhum raio de luz consegue penetrar.”

Damião tentou mexer-se e sentiu o peso das correntes. Pulsos presos à parede de pedra, tornozelos também. Comprimento suficiente para se sentar ou deitar, não para se levantar completamente. Ele gritou, gritou até a garganta rasgar. E então ouviu outras vozes fracas, vindas de algum lugar próximo na escuridão. Vozes de homens.

“Não grites. Só piora as coisas.”

Era uma voz rouca, como se há muito tempo não fosse usada adequadamente.

“És novo aqui. Vais aprender.”

Damião perguntou onde estava, quantos eram, há quanto tempo estavam ali. Silêncio. Depois, a mesma voz.

“Eu não sei mais. Perdi a conta. Mas há outros. Noutras câmaras. A gente ouve os gritos às vezes.”

O Doutor Mascarenhas precisou interromper nesse ponto porque Damião começou a convulsionar. A febre subia. Tertuliano segurou o braço do médico.

“Ele precisa terminar. Precisa contar tudo.”

Aplicaram compressas frias. Damião voltou a si. Continuou. As irmãs desciam aos túneis uma vez por dia, talvez. Era difícil medir o tempo no escuro. Traziam água e comida. Pouca. Pão duro, carne seca, às vezes nada. “Para purificar o corpo”, Eufrásia dizia.

Ela falava muito durante essas visitas, citava a Bíblia constantemente, explicava, com voz calma e convicta, que eles haviam sido escolhidos.

“Deus falou com o nosso pai antes de morrer,”

ela dizia, segurando uma lamparina que iluminava o seu rosto pálido nas sombras.

“Revelou a profecia das pedras. Que desta serra sairia uma geração pura, limpa da corrupção do mundo. Que nós, mulheres de fé, fomos escolhidas para germinar essa semente sagrada. Vocês são os instrumentos, os vasos.”

Damião descreveu o olhar dela ao dizer essas coisas. Não era loucura, no sentido comum, era certeza, convicção absoluta e inabalável. Ela acreditava, até à última fibra do ser, que estava a cumprir a vontade divina. Custódia, a irmã mais nova, nunca falava, apenas observava. E era ela quem executava as punições quando alguém resistia ou desobedecia. Chicotes, privação de água. Uma vez, Damião viu-a quebrar o braço de um homem que tentou atacá-la durante a alimentação. Quebrou com as próprias mãos, sem expressão no rosto, como quem quebra um galho seco.

“Quantos?”

Tertuliano interrompeu.

“Quantos homens estavam lá consigo?”

Damião pensou.

“Não sei ao certo. Eu conheci quatro na minha câmara, ouvia vozes de outras, talvez sete, oito no total. Mas tinha… tinha outras câmaras mais fundas.”

E lá ele parou, engoliu em seco. Lágrimas escorreram pelo rosto sujo.

“Lá tinha as crianças.”

O silêncio que caiu sobre a enfermaria foi pesado como pedra. O Doutor Mascarenhas parou de fazer curativos. Tertuliano fechou os olhos.

Damião continuou, a voz a quebrar-se.

“Três crianças pequenas. Duas meninas e um menino. Estavam… estavam mal, muito magras, pele branca, tipo doente. Nunca viram sol, entende? Nasceram ali em baixo, no escuro. Eufrásia chamava aquilo de o Bersário da Nova Geração.”

Levava as crianças para os homens verem às vezes, durante as visitas. Dizia que eram a prova do sucesso da profecia, que Deus estava a abençoar o trabalho delas. As crianças mal sabiam falar, faziam sons estranhos, animalescos, arrastavam-se pelo chão como bichos.

“Ela forçava…”

Damião engasgou. Não conseguiu terminar a frase. Não precisou. Todos entenderam.

Os homens eram mantidos em estado de fraqueza controlada. Comida suficiente para não morrer, mas não para ter força de escapar. Água racionada. As correntes eram substituídas periodicamente, sempre por outras mais pesadas, mais apertadas. Eufrásia explicava que era para “domesticar a selvageria”, para “preparar o corpo para a obra sagrada”.

Alguns homens enlouqueciam. Damião ouviu gritos que não eram de dor física, mas de mentes a despedaçarem-se. Um dos homens em sua câmara só repetia versículos bíblicos o dia inteiro. O outro não falava mais nada, apenas chorava baixinho, sem parar.

“Quantos morreram?”

Tertuliano perguntou.

“Muitos. Elas arrastavam os corpos para câmaras mais fundas. A gente ouvia. E o cheiro, aquele cheiro ficava por dias.”

Damião passou cerca de dois meses naquele inferno. Dois meses a perder peso, a perder esperança, a perder a própria noção de quem era. Até que numa noite, durante a alimentação, Custódia cometeu um erro. Um erro pequeno. Deixou a algema do pulso direito dele um pouco mais frouxa do que deveria.

Damião esperou. Esperou até ter a certeza de que elas não voltariam por horas. Então começou a trabalhar na algema, torcendo o pulso, ignorando a dor, ignorando a carne que rasgava. Horas de esforço silencioso, metódico, desesperado. Conseguiu. O pulso saiu da algema, talvez quebrado, mas livre.

Com a mão livre, trabalhou nas outras correntes. Mais horas. Tornou-se um trabalho mecânico, quase meditativo. Dor era irrelevante, tempo era irrelevante. Apenas a liberdade importava. Quando finalmente se libertou completamente, ficou parado no escuro, a ouvir. Os outros homens estavam quietos. Ele sussurrou que tinha conseguido soltar as correntes. Ninguém respondeu por um longo momento. Então, uma voz fraca.

“Vai. Não tentes libertar-nos. Não vai dar tempo. Vai e traz ajuda.”

Damião tateou pelas paredes até encontrar a porta da câmara. Trancada, mas não por dentro. A tranca era externa. Ele empurrou, esperando que estivesse aberta. Não estava. Ficou ali na escuridão, diante daquela porta de madeira grossa que o separava da liberdade. E então ouviu passos. Alguém vinha descendo o túnel. Uma lamparina iluminava a passagem distante. Era Custódia, vindo para a ronda noturna.

O que Damião fez a seguir? Ele não contou em detalhes, apenas disse que fez o necessário. Quando Custódia abriu a porta, ele estava à espera, usando as próprias correntes como arma. Bateu até ela parar de se mexer. Pegou a faca que ela carregava na cintura e correu. Correu pelos túneis escuros, tropeçando, caindo, levantando. Seguiu a corrente de ar fresco até encontrar uma das saídas. Empurrou a porta de madeira com força. Ela estava trancada por fora também, mas a estrutura estava velha. Ele bateu com o ombro, bateu de novo. A madeira cedeu e então, luz.

Depois de meses no escuro absoluto, a luz do sol nascente o cegou completamente. Ele caiu de joelhos, gritando de dor, os olhos incapazes de processar tanta claridade. Mas não podia parar. Ouviu gritos vindos da casa. Eufrásia havia descoberto a fuga.

Damião levantou-se e correu para a mata. Correu até não conseguir mais. Depois rastejou. Rastejou por dois dias inteiros, bebendo água de poças lamacentas, comendo folhas, perdendo sangue pelas feridas que abriam cada vez mais.

“Eu só pensava,”

ele sussurrou para Tertuliano.

“Que precisava contar. Que alguém precisava saber o que elas estavam a fazer. Aquelas crianças, aqueles homens, não podiam continuar lá.”

Damião Oliveira Santos morreu na manhã de 26 de agosto de 1914, três dias depois de chegar a Lençóis. A infeção tomou conta, a gangrena subiu pelas pernas. O Dr. Mascarenhas fez tudo que a medicina de 1914 permitia. Não foi suficiente.

Mas antes de morrer, Damião havia dado a Tertuliano Barreto exatamente o que ele precisava: testemunho detalhado, nomes de outros cativos, descrição precisa da localização das câmaras e, principalmente, motivação. Porque agora não era apenas sobre desaparecimentos, era sobre crianças nascidas em cativeiro, sobre homens ainda vivos, acorrentados no escuro, esperando por uma ajuda que talvez nunca viesse.

Tertuliano segurou a mão de Damião nos últimos momentos. Prometeu que não seria em vão, que ele iria até aquele vale e tiraria todos de lá.

“Tem um diário,”

Damião disse com o último fôlego.

“Eufrásia escreve tudo num diário. Ela guarda na casa escondido. Procura. Procura no quarto dela.”

Foram as suas últimas palavras.

O subdelegado saiu da Santa Casa direto para o telégrafo. Enviou mensagens para Salvador, para a capital, para as autoridades estaduais. Anexou o testemunho completo de Damião, o relatório médico do Dr. Mascarenhas, os nomes dos desaparecidos que coincidiam com o que o garimpeiro havia contado. E pela primeira vez em dois anos de investigação, recebeu resposta positiva. As autoridades estaduais autorizaram uma operação. Enviariam homens armados, enviariam força suficiente para invadir aquela propriedade e trazer todos de volta.

Mas organizar uma expedição para um lugar tão remoto levava tempo. Tempo que os homens acorrentados no escuro não tinham mais e tempo que as Irmãs Montes usariam para preparar a sua própria resposta. Porque elas sabiam que alguém havia escapado, sabiam que a revelação estava próxima. E mulheres que acreditam estar a cumprir a vontade divina não se rendem facilmente. Elas preferem morrer e levar consigo todos os segredos que puderem.

Setembro de 1914 foi um mês de tempestades na Chapada Diamantina. Chuvas que transformavam trilhas em rios de lama. Ventos que arrancavam árvores pela raiz, como se a própria serra estivesse tentando impedir o que estava por vir. Tertuliano Barreto não acreditava em sinais, mas mesmo ele sentiu o peso daquelas semanas de espera. Cada dia que passava era mais um dia em que homens permaneciam acorrentados no escuro. Mais um dia em que crianças cresciam sem saber o que era a luz do sol. Mais um dia em que as Irmãs Montes continuavam cumprindo a sua profecia maldita.

A autorização oficial chegou em 20 de setembro. O governo estadual enviaria seis homens da força pública da Bahia, todos armados, todos experientes em operações no interior. O comando seria de Tertuliano por conhecer o caso e o território. Também iriam dois médicos, incluindo o Dr. Mascarenhas, e quatro carregadores para transportar suprimentos e ajudar no resgate dos cativos. Quinze homens ao todo contra duas mulheres isoladas numa propriedade remota. Deveria ser simples, mas Tertuliano conhecia Canudos. Sabia que fanáticos são sempre mais perigosos do que parecem e sabia que Eufrásia Montes tinha tido semanas para se preparar desde a fuga de Damião, semanas para reforçar defesas ou para eliminar evidências.

A expedição partiu de Lençóis na manhã de 2 de outubro. Seis mulas carregadas com cordas, ferramentas, armas extras, suprimentos médicos. As chuvas haviam parado dois dias antes, mas o chão ainda estava encharcado, as trilhas quase intransitáveis. O que normalmente levaria dois dias de viagem, agora levaria três, talvez quatro. Manuel Quirino, o mesmo guia que havia acompanhado Tertuliano nas visitas anteriores, recusou-se a ir desta vez.

“Desculpa, subdelegado, mas aquele lugar não é só ruim, é amaldiçoado, eu sinto. E homem velho como eu, aprendeu a ouvir quando a serra avisa.”

Contrataram outro guia, jovem corajoso ou inconsequente demais para ter medo. Levou-os pela rota mais segura, evitando os trechos onde a chuva havia causado desmoronamentos. Durante a viagem, Tertuliano reuniu os homens e explicou o que encontrariam. Não omitiu nada. Falou sobre as câmaras subterrâneas, sobre os cativos, sobre as crianças. Falou sobre a convicção religiosa das irmãs, sobre como elas acreditavam estar acima de qualquer lei humana.

“Essas mulheres não vão se render facilmente,”

ele disse, olhando cada homem nos olhos.

“Elas vão preferir morrer a serem capturadas. Então, precisamos ser rápidos, cercar todas as saídas antes de anunciar a nossa presença. Não podemos dar a elas tempo para reagir.”

O Sargento Anselmo Figueiredo, veterano de várias operações contra cangaceiros no sertão, perguntou:

“E se houver resistência armada?”

“Usem apenas a força necessária. Precisamos delas vivas para testemunhar. Mas se houver escolha entre a vida de vocês e a delas, não hesitem.”

Chegaram às proximidades do vale na tarde de 4 de outubro. Pararam a 3 quilómetros de distância e montaram acampamento escondido. Esperariam até o amanhecer. O ataque seria na primeira luz, quando a visibilidade melhorasse, mas as irmãs ainda estivessem na casa, não nos túneis.

Tertuliano dormiu pouco naquela noite. Ficou pensando no que Damião havia dito: no diário. Se conseguissem aquele diário, teriam prova documental de todos os crimes. Não apenas os desaparecimentos, mas as intenções, a metodologia, tudo. Teria evidência suficiente para garantir que aquela história não fosse esquecida, não fosse desacreditada como lenda ou exagero.

Às 5 da manhã, começaram a mover-se silenciosos, divididos em três grupos. O primeiro cercaria a casa pela frente. O segundo cobriria os fundos, onde ficavam as entradas dos túneis. O terceiro, liderado por Tertuliano, iria direto à porta principal.

O sol ainda não havia nascido completamente quando chegaram ao vale. A propriedade estava silenciosa. Fumo subia da chaminé, sinal de que havia alguém acordado. Tertuliano esperou que todos estivessem em posição. Então avançou, o rifle em punho, acompanhado por três soldados.

Bateu na porta.

“Eufrásia Montes, Custódia Montes, em nome da lei, abram a porta.”

Silêncio. Bateu de novo. Mais forte.

“Esta é uma operação oficial da Polícia Estadual. Temos mandado de busca e apreensão. Abram a porta agora.”

Nada. Tertuliano olhou para o Sargento Figueiredo. Este acenou. Dois soldados avançaram com um tronco pesado e arrombaram a porta com três golpes secos.

A casa estava vazia. Revistaram rápido. Dois quartos simples. Cozinha, sala com a Bíblia aberta sobre uma mesa, as paredes cobertas de versículos escritos a carvão, mas nenhum sinal das irmãs.

“Subdelegado!”

Um grito veio de fora, nos fundos.

“Elas estão nos fundos!”

Tertuliano correu para os fundos da propriedade e ali, diante das portas de madeira que fechavam os túneis, estava Eufrásia Montes, sozinha, parada como uma estátua, segurando algo na mão.

Tertuliano ergueu o rifle.

“No chão, mãos onde eu possa ver.”

Eufrásia não se moveu, apenas o observou com aquele olhar que ele conhecia, aquele olhar de certeza absoluta, de superioridade moral, de alguém que não teme a morte porque acredita que está do lado certo de Deus.

“Subdelegado Barreto,”

ela disse, a voz calma, apesar de estar cercada por 15 homens armados.

“Vocês não entendem o que estão a fazer. Estão a interromper a obra sagrada. Estão a impedir a profecia.”

“A única coisa que estou a impedir é um crime. Solte o que está a segurar e deite-se no chão.”

Eufrásia sorriu. Não foi um sorriso de rendição, foi um sorriso de pena.

“Vocês acham que podem parar o que Deus começou? Acham que correntes e celas vão apagar a verdade?”

Ela ergueu a mão. Tertuliano viu que segurava um pequeno frasco de vidro, líquido escuro lá dentro.

“Não!”

ele gritou. Mas já era tarde. Eufrásia abriu o frasco e bebeu todo o conteúdo de uma vez. Depois jogou o frasco vazio no chão, onde se estilhaçou em pedaços.

“A carne morre. A profecia continua.”

Levou menos de um minuto. O veneno, provavelmente estricnina ou algo similar, agiu rápido. Eufrásia caiu de joelhos, a convulsionar. Espuma apareceu nos cantos da boca. Os olhos viraram. Dr. Mascarenhas correu até ela, mas não havia nada a fazer. Ela morreu ali mesmo, no chão de terra diante dos túneis que guardavam os seus segredos, com aquele sorriso terrível ainda congelado no rosto.

“Onde está a outra?”

O Sargento Figueiredo gritou.

“Onde está a Custódia?”

A resposta veio de dentro de um dos túneis. Um grito agudo, furioso, inumano. E então Custódia emergiu da escuridão como algo que não pertencia a este mundo. Ela atacou sem aviso, sem palavra, apenas violência pura. Tinha uma faca na mão direita, outra na esquerda. Moveu-se com velocidade chocante para alguém que vivia isolada, sem treino militar aparente. O primeiro soldado não teve tempo de reagir. Ela cortou o seu braço antes que ele pudesse erguer o rifle. O segundo soldado atirou, errou. Custódia estava próxima demais, rápida demais. Ela cravou a faca no ombro dele.

Foi o Sargento Figueiredo quem finalmente a deteve. Atirou uma vez, acertou no peito. Custódia parou, olhou para a mancha vermelha a espalhar-se na sua roupa. Depois olhou para o sargento com uma expressão de surpresa genuína, como se não acreditasse que algo tão mundano quanto uma bala pudesse detê-la. Ela caiu de joelhos, depois de costas. O Dr. Mascarenhas correu até ela também, mas a ferida era fatal. Perfurou o pulmão. Custódia tentou falar, sangue saindo pela boca, não conseguiu. Morreu olhando para o céu, para aquele sol que os seus olhos raramente viam, com a mesma expressão vazia que carregava em vida.

Duas irmãs, duas mortes em menos de 5 minutos. Tertuliano ajoelhou ao lado dos corpos, respirando fundo. Não era assim que deveria terminar. Precisava delas vivas. Precisava de testemunhos. Precisava que elas enfrentassem julgamento, que admitissem publicamente o que haviam feito. Mas fanáticos nunca escolhem o julgamento, escolhem o martírio.

“Subdelegado,”

o sargento tocou o seu ombro.

“Os túneis. Precisamos entrar.”

Tertuliano levantou-se, olhou para aquelas portas de madeira escura. Atrás delas, homens ainda estavam acorrentados. Crianças ainda esperavam no escuro e, em algum lugar lá dentro, se Damião estava certo, havia um diário que documentava tudo.

“Peguem as lamparinas, armas em punho. Não sabemos o que vamos encontrar lá dentro.”

Eles acenderam seis lamparinas, abriram a porta principal do túnel. Um cheiro nauseabundo saiu de dentro. Morte, urina, fezes, suor. O cheiro do sofrimento humano concentrado, sem ventilação e sem esperança. Tertuliano entrou primeiro. Os outros seguiram. O túnel descia em ângulo suave, as paredes de pedra húmidas e frias, marcas de ferramentas antigas, vigas de madeira apodrecida a sustentar o teto. Trinta metros de descida, 50, 100. E então chegaram à primeira câmara.

O que viram ali dentro destruiu qualquer ilusão de que conheciam o pior da natureza humana. Correntes presas às paredes, baldes imundos no canto, restos de comida cobertos de bolor. E deitado no chão de pedra, tão magro que parecia um esqueleto coberto de pele, um homem ainda vivo. Ele ergueu o rosto quando a luz entrou. Gemeu, não de dor, mas de medo. Levantou as mãos acorrentadas como se pedisse para não ser magoado.

“Está tudo bem,”

Tertuliano disse, a voz a quebrar-se.

“Viemos tirar você daqui.”

O homem começou a chorar. Não eram lágrimas de alívio, eram lágrimas de quem não acreditava mais que a liberdade fosse possível.

“Tem mais,”

ele sussurrou.

“Tem mais homens. E as crianças. Pelo amor de Deus, salvem as crianças.”

Foi quando Tertuliano percebeu que aquele seria o dia mais longo da sua vida, porque a primeira câmara era só o começo. Os túneis estendiam-se para dentro da montanha, muito mais do que Damião havia descrito, muito mais do que qualquer um poderia imaginar. E em cada câmara, um novo horror esperava para ser descoberto.

Existem lugares no mundo onde a luz não deveria entrar. Não porque a escuridão os proteja, mas porque a luz revela verdades que nenhum ser humano foi feito para testemunhar. Os túneis do Garimpo Montes eram um desses lugares. Tertuliano Barreto havia visto homens mortos em Canudos. Havia visto corpos empilhados sob o sol, inchados, irreconhecíveis. Havia visto crianças famintas com olhos vazios. Havia visto o que o fanatismo religioso faz quando se mistura com o desespero. Mas nada, absolutamente nada, o preparou para o que encontrou naquelas câmaras subterrâneas.

A primeira câmara tinha um homem, a segunda dois. A terceira estava vazia, mas as correntes ainda pendiam das paredes, manchadas de sangue seco e algo pior. A quarta câmara tinha outro homem, mas este não estava mais lúcido. Apenas balançava para a frente e para trás, murmurando versículos bíblicos em voz monótona, sem parar, sem respirar direito entre as palavras.

O Dr. Mascarenhas tentou examinar cada um, mas era difícil saber por onde começar. Desnutrição severa, infeções generalizadas, escaras de decúbito, feridas abertas, infestadas. Alguns tinham dedos em falta, comidos pela gangrena. Outros tinham dentes partidos, como se tivessem tentado morder as próprias correntes para se libertar.

“Vão precisar de meses de tratamento,”

o médico disse baixo para Tertuliano.

“E alguns… alguns nunca vão se recuperar completamente. O dano psicológico…?”

Ele não terminou a frase, não precisou. Os soldados trabalhavam para quebrar as correntes. Não tinham chaves. Eufrásia e Custódia haviam morrido sem revelá-las. Tiveram que usar marretas e alavancas, martelando as argolas presas à pedra. Cada golpe ecoava pelos túneis, como um trovão subterrâneo.

O quarto homem encontrado não disse o seu nome, não disse nada que fizesse sentido, apenas repetia:

“As pedras choram sangue. As pedras choram sangue.”

Tertuliano reconheceu um dos cativos. Lindolfo Pereira, o garimpeiro da Paraíba, que havia desaparecido em setembro de 1913. Mais de um ano preso naquele buraco. Quando finalmente quebraram as suas correntes, ele não conseguiu andar. As pernas haviam atrofiado. Dois soldados tiveram que carregá-lo.

“Quantos eram vocês?”

Tertuliano perguntou. Lindolfo tentou contar nos dedos a tremer. Desistiu.

“Muitos. Mas elas levaram alguns para câmaras mais fundas. A gente ouvia. A gente ouvia eles gritarem. Depois não ouvia mais nada. Mais fundas.”

Os túneis continuavam a descer. Tertuliano deixou metade dos homens a cuidar dos cativos resgatados, levando-os para fora, para a luz, para o ar puro. Ele seguiu em frente com o Sargento Figueiredo e quatro soldados, adentrando o ventre da montanha. O túnel dividia-se, ramificações que iam em várias direções. Algumas terminavam em paredes sólidas, onde o garimpo antigo havia parado. Outras continuavam a descer cada vez mais fundo.

Tertuliano escolheu a passagem mais larga, onde o chão mostrava marcas recentes de arrasto, como se algo pesado tivesse sido puxado por ali, ou alguém. 50 metros adiante, encontraram a quinta câmara. Esta era maior que as outras e estava vazia de pessoas vivas, mas não vazia de horror. Contra a parede do fundo, cobertos com uma lona velha, estavam os corpos.

“Meu Deus!”

O sargento sussurrou, benzendo-se.

Tertuliano aproximou-se devagar, ergueu a lamparina, puxou a lona com a mão que tentava não tremer. Dezessete corpos em vários estágios de decomposição. Os mais antigos já eram apenas ossos e trapos de roupa. Os mais recentes ainda tinham carne escurecida, inchada, irreconhecível. O cheiro era indescritível. Um dos soldados correu para o canto e vomitou.

“Precisamos identificá-los,”

Tertuliano disse, a voz sem emoção, porque emoção agora era um luxo que ele não podia ter.

“Procurem objetos pessoais, qualquer coisa que ajude a descobrir quem eram.”

Trabalho horrível, mas necessário. Vasculharam os bolsos dos mortos. Encontraram carteiras de couro apodrecido, medalhões enferrujados, um relógio de bolso parado há meses, uma aliança de casamento com o nome gravado na parte interna: Para José, com amor eterno, Maria. José Venâncio dos Santos, desaparecido em maio de 1912. Um dos corpos mais frescos ainda tinha o cinto característico descrito pela família de William Hartman, o trapper que sumiu em novembro de 1913. Outro usava botas com as iniciais marcadas a ferro quente: APC. Aides Pereira da Cruz. Cada identificação era uma família que finalmente teria resposta. Terrível, mas resposta. Era uma mãe que poderia parar de esperar. Um filho que saberia que o pai não os abandonou. Era o encerramento que o horror ao menos permitia.

Mas ainda faltava encontrar as crianças. Tertuliano voltou ao túnel principal, seguiu mais fundo. O ar ficava cada vez mais pesado, difícil de respirar. As lamparinas começavam a fraquejar, consumindo o pouco oxigénio disponível. Mais 20 metros. 30, até que o túnel se abriu numa câmara maior que todas as outras. E foi ali que encontraram o que Eufrásia chamava de Bersário.

Três crianças, duas meninas e um menino. A mais velha parecia ter sete ou oito anos. A mais nova, três, talvez quatro. Estavam amontoadas num canto, cobertas por trapos imundos, fazendo sons baixos de medo quando a luz das lamparinas invadiu o seu mundo de trevas perpétuas. Não corriam, não gritavam, apenas encolhiam-se, protegendo os olhos da luminosidade que provavelmente lhes causava dor física real.

O Doutor Mascarenhas, que havia descido novamente, aproximou-se devagar, muito devagar, falando baixo, num tom que se usa com animais assustados.

“Está tudo bem, pequenos. Ninguém vai machucar vocês. Viemos ajudar.”

A menina mais velha olhou para ele. Os seus olhos eram desproporcionalmente grandes para o rosto magro, adaptados à escuridão. A pele era translúcida, as veias azuladas visíveis por baixo como um mapa de rios. O cabelo embaraçado e sujo, havia crescido sem nunca ser cortado. Ela tentou falar. Conseguiu apenas produzir sons guturais, primitivos, que poderiam ser palavras, ou poderiam ser apenas medo transformado em som.

“Eles não sabem falar,”

um dos soldados disse, horrorizado.

“Ou esqueceram como.”

“Nasceram no escuro, criados no escuro,”

Dr. Mascarenhas corrigiu, lágrimas a escorrerem silenciosamente pelo seu rosto.

“Nunca ouviram conversas normais, nunca viram rostos humanos sob luz natural. Como poderiam aprender?”

Levou mais de uma hora para convencer as crianças a moverem-se. Elas tinham medo da luz, medo de sair daquele buraco que era o único mundo que conheciam. A menina mais velha resistiu com força surpreendente quando tentaram carregá-la. Não entendia que estavam a tentar salvá-la. Para ela, aqueles estranhos com luzes dolorosas eram apenas uma nova ameaça num mundo feito inteiramente de ameaças.

Finalmente conseguiram. Enrolaram as crianças em cobertores para protegê-las da luz. Carregaram-nas como se fossem de vidro e começaram a lenta subida de volta à superfície. Quando emergiram do túnel, o sol estava alto. Tertuliano teve que fechar os olhos por um momento, ajustando-se à claridade depois de horas na escuridão. Ao redor dele, o vale parecia absurdamente normal. Árvores a balançar ao vento, pássaros a cantar, céu azul sem nuvens, como se a natureza não soubesse ou não se importasse com os horrores que haviam acontecido ali em baixo.

Os cativos resgatados estavam sentados em grupo, cobertos com mantas, a beber água devagar sob supervisão médica: sete homens ao todo. Alguns choravam, outros apenas olhavam para o nada, processando o facto de que estavam livres, de que o pesadelo havia terminado. Mas Tertuliano sabia que o pesadelo nunca termina completamente. Não para quem viveu aquilo.

Ele voltou para a casa das irmãs, precisava encontrar aquele diário. Precisava da prova documental, precisava garantir que a história completa fosse registada, não como lenda ou rumor, mas como facto verificável, indiscutível, real. Revistou o quarto de Eufrásia sistematicamente. Estava prestes a desistir quando notou algo estranho no edredão. Uma das costuras estava diferente, mais nova. Ele puxou a linha com cuidado. A costura abriu-se e lá dentro, embrulhado em pano encerado para proteção contra a humidade, estava o Diário.

Capa de couro surrado, páginas preenchidas com letra miúda, meticulosa. Tertuliano abriu na primeira página e leu: Ano de nosso Senhor de 1911. Papai me revelou a verdade antes de morrer. A profecia das pedras. Deus escolheu a nossa família para purificar a raça dos garimpos, para criar uma geração livre da corrupção do mundo moderno. Custódia e eu somos os vasos sagrados, os instrumentos divinos. Este é o nosso testemunho.

Ele folheou as páginas seguintes. Cada entrada era datada. Cada captura era descrita em detalhes clínicos, sem remorso, sem dúvida. Características físicas dos homens. Por que foram escolhidos? Como foram sedados? Qual câmara receberam? Eufrásia documentava tudo como se fosse um experimento científico, não uma série de crimes hediondos.

15 de março de 1912. Aides Pereira da Cruz, 34 anos, garimpeiro de Sergipe, físico forte, compleição robusta, sem sinais de doença, adequado para o propósito divino. Custódia preparou a cachaça com tintura de dormideira. Ele dormiu em 20 minutos. Acordou na câmara três. Resistiu inicialmente. Chicotes foram necessários. Aceitou a sua função após uma semana de jejum e oração.

Página após página, nome após nome. Vinte e dois homens catalogados. E entre esses registos, anotações sobre gestações, sobre partos, sobre crianças nascidas e crianças mortas logo após o nascimento. A primeira criança foi anjo que Deus recolheu cedo, muito fraca para sobreviver. A segunda também, mas a terceira viveu. Chamei-a de Misericórdia, pois é a misericórdia de Deus que nos permitiu o sucesso. Duas outras nasceram depois, todas meninas. Deus ainda não nos concedeu um menino forte, mas confiamos no seu tempo.

Uma linha chamou a especial atenção de Tertuliano. Papai me disse que as pedras da serra choram sangue quando a purificação está completa. Que um dia da nossa obra nascerá a geração que governará estas montanhas com retidão divina. Não entendo completamente o significado, mas obedeço. Fé não precisa de compreensão, apenas obediência.

Ele fechou o diário, respirou fundo. Tinha nas mãos o documento que seria usado em tribunais, que seria estudado por médicos, que seria debatido por teólogos, tentando entender como a fé se transforma em monstruosidade. Mas documentar o horror não o apagava. Não devolvia anos roubados aos homens que sobreviveram, não curava mentes quebradas. Não dava infância às crianças que cresceram no escuro.

Tertuliano saiu da casa, segurando o diário. Olhou para o vale ao redor, bonito, de uma beleza selvagem e indiferente, e pensou em como lugares podem guardar segredos. Como o isolamento permite que horrores prosperem sem testemunhas. Como a certeza de estar a cumprir a vontade divina pode transformar pessoas comuns em monstros metódicos.

“O que fazemos com a propriedade?”

O Sargento Figueiredo perguntou.

Tertuliano olhou para a casa de pedra, para os túneis, para aquele vale que agora seria sempre associado ao pior da humanidade.

“Queimem,”

ele disse, com a voz rouca.

“Queimem tudo!”

E queimaram. Os soldados empilharam tudo que era inflamável: madeira das portas, móveis da casa, as roupas das Irmãs Montes, até a Bíblia de Eufrásia, com as suas margens preenchidas de justificativas delirantes. Tacaram fogo e assistiram às chamas a consumirem o refúgio do horror.

Depois, usando explosivos trazidos para emergências, selaram a entrada principal dos túneis. Pedras rolaram, poeira subiu. O buraco na montanha foi lacrado, tornando-se um túmulo permanente para os segredos que ainda restavam lá em baixo. A fumaça subia reta para o céu, sem nuvens, visível por quilómetros, como se a própria serra estivesse a exalar algo pútrido que estava preso dentro dela por tempo demais.

As crianças choravam baixinho, assustadas com o fogo, com o barulho. Não entendiam que estavam a ser libertadas. Para elas, o mundo acima da Terra era tão aterrorizante quanto o mundo abaixo dela.

Mas antes que pudessem partir, um dos soldados encontrou mais uma coisa. Atrás da casa, parcialmente escondido por vegetação, havia um pequeno cemitério improvisado. Cruzes de madeira mal feitas, sem nomes, apenas datas. Doze cruzes, 12 bebés que não sobreviveram ao bersário de Eufrásia Montes.

O Dr. Mascarenhas caiu de joelhos ali mesmo e rezou. Não uma oração formal. Apenas um pedido incoerente de perdão, como se a humanidade inteira precisasse pedir desculpas por ter permitido que aquilo acontecesse.

Quando finalmente partiram do vale, no fim da tarde de 5 de outubro de 1914, levavam com eles sete homens destroçados, três crianças que nunca conheceriam a normalidade, 17 corpos para um enterro digno e um diário que documentava meticulosamente como a fé pode ser corrompida até se tornar justificativa para o imperdoável. O que deixaram para trás foi cinza, pedra selada e silêncio. Um silêncio que ainda ecoa mais de um século depois.

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