
Lucía desceu do avião após cinco longos anos, cinco anos a trabalhar como enfermeira no Canadá, carregando duas malas recheadas de presentes e o coração a transbordar de uma emoção quase insuportável pela promessa iminente de voltar a abraçar os seus pais.
Mas quando finalmente chegou à familiar porta de casa, o seu irmão Andrés abriu-a com uma expressão fria, gélida, e soltou uma notícia que lhe gelou o sangue nas veias:
“A mãe e o pai foram viver com uns tios para o Norte. É melhor que não os procures.”
Algo naquela história não se encaixava, ressoava falso no fundo da sua alma. E foi então que Lucía, mergulhada num desespero crescente para os encontrar, percorreu cada recanto da cidade, cada viela esquecida, até que, num beco sombrio atrás da estação de autocarros, os viu. Os seus pais, ambos com mais de setenta anos, as mãos trémulas a revistar sacos de lixo, procurando desesperadamente algo para comer sob a chuva fria da tarde. Aquela visão, a imagem final dos seus heróis reduzidos à mendicidade, foi um golpe esmagador, uma dor tão profunda que lhe roubou o ar.
A luz do entardecer filtrava-se através das pesadas nuvens cinzentas enquanto o avião tocava a terra húmida no aeroporto internacional. Lucía tinha o rosto colado à janela, observando como as luzes da cidade que a tinha visto nascer piscavam na distância, num ritmo de chegada e esperança. Cinco anos. Tinham passado cinco longos e infindáveis anos desde que embarcara naquele avião com destino a Toronto, o coração dividido pela saudade, mas cheio de uma determinação inabalável.
Cinco anos a trabalhar em turnos duplos em hospitais, a cuidar de pacientes, a limpar feridas, a segurar as mãos geladas de pessoas solitárias nos seus últimos momentos, tudo isso enquanto poupava cada cêntimo que podia para enviar para casa. O seu único propósito era garantir que os seus pais, Don Roberto e Doña Carmen, pudessem viver com a dignidade que mereciam na sua velhice.
Enquanto esperava na fila da imigração, Lucía não conseguia parar de sorrir. Na sua mala de mão levava um estojo de veludo azul com um colar de pérolas para a sua mãe, algo que Doña Carmen admirava nas revistas há anos, mas que nunca ousara sonhar em comprar. Para o seu pai, havia comprado um relógio de bolso antigo, do tipo que ele costumava reparar quando era jovem e trabalhava na relojoaria da cidade. Eram presentes modestos, talvez, mas para Lucía representavam anos de sacrifício, de noites sem sono, de refeições apressadas para conseguir poupar um pouco mais.
O oficial de imigração carimbou o seu passaporte com um golpe seco.
“Bem-vinda a casa,” disse ele com um sorriso rotineiro.
Lucía anuiu, sentindo as lágrimas formarem-se nos seus olhos. Casa. Aquela palavra que ecoara na sua mente durante cinco anos de invernos canadianos, cinco anos a falar numa língua que não era a sua, cinco anos a sentir falta do cheiro das tortilhas acabadinhas de fazer da sua mãe e das histórias intermináveis do seu pai sobre os dias da juventude.
O ar quente e húmido da cidade atingiu-a como um abraço familiar. Tudo lhe parecia simultaneamente familiar e estranho. Os vendedores ambulantes anunciavam as suas ofertas, o cheiro a comida de rua pairava no ar, e o ruído do trânsito criava uma sinfonia caótica que era pura música para os seus ouvidos, após anos de silêncio organizado canadiano.
Apanhou um táxi e deu a morada da casa de família, aquela casa de dois andares no bairro de San Miguel, onde crescera, onde aprendera a andar, onde a sua mãe lhe ensinara a cozinhar e o seu pai lhe contara histórias de fantasmas que a mantinham acordada à noite.
“Vem de visita, senhorita?” perguntou-lhe o motorista, observando-a pelo espelho retrovisor com curiosidade.
“Estou a voltar para casa,” respondeu Lucía, com um sorriso que lhe iluminava o rosto. “Estive fora cinco anos. Não vi os meus pais durante todo esse tempo, só videochamadas e fotos, mas não é a mesma coisa.”
“Ah, que bonito,” disse o motorista, com alegria genuína. “Os seus pais devem estar muito emocionados. De certeza que estão a preparar um grande jantar para a receber.”
Lucía anuiu, imaginando a cena perfeita: a mãe na cozinha desde cedo, a preparar todos os seus pratos favoritos; o pai a inspecionar a casa vezes sem conta, limpando as janelas, arranjando pequenas coisas que não precisavam de ser arranjadas, nervoso e animado como uma criança à espera do aniversário.
Mas o que Lucía não sabia, o que não podia sequer imaginar, era que a realidade que estava prestes a enfrentar seria completamente diferente da imagem que construíra na sua mente durante cinco anos de ausência e esperança.
O táxi parou em frente a uma casa que Lucía reconheceu e não reconheceu ao mesmo tempo. Era a morada certa, sim, mas algo estava terrivelmente errado. O jardim que o seu pai cuidava com tanto esmero estava descuidado, cheio de ervas daninhas. A vedação de madeira branca que ele pintava todos os anos estava lascada e cinzenta. As janelas, que a sua mãe mantinha sempre impecáveis, estavam sujas, algumas com as cortinas fechadas de forma desigual. Sentiu uma sensação estranha a instalar-se no seu estômago. Subiu os degraus da varanda, notando que alguns estavam rachados e soltos. A campainha, que costumava brilhar a azul, estava partida.
Bateu à porta com os nós dos dedos, primeiro suavemente, depois com mais força. Passaram-se vários minutos. Bateu de novo, desta vez chamando: “Mãe, pai, sou eu, Lucía! Voltei!”
Finalmente, ouviu passos lentos a aproximarem-se. A porta abriu-se apenas uma fresta, retida por uma corrente de segurança que não existia antes. Através do espaço estreito, Lucía viu o rosto do seu irmão Andrés.
Mas não era o Andrés de quem se lembrava, aquele jovem alegre e brincalhão que sempre a defendera. Este Andrés tinha olheiras profundas, o cabelo despenteado, uma barba por fazer de vários dias. Os seus olhos, antes brilhantes e cheios de vida, pareciam agora apagados e esquivos.
“Andrés,” disse Lucía, a voz cheia de confusão e alegria misturadas. “Irmão, sou eu! Abre a porta.”
Andrés não se moveu, limitando-se a olhá-la através da fresta, como se ela fosse uma estranha indesejada.
“Lucía,” disse finalmente, a voz monótona, sem emoção, “não sabia que vinhas.”
“Mandei-vos uma mensagem há uma semana,” respondeu Lucía, sentindo a alegria esvair-se do seu corpo, substituída por uma ansiedade crescente. “Disse-vos a data e a hora da minha chegada. Não a receberam?”
“Ah,” foi tudo o que Andrés disse, sem oferecer mais nenhuma explicação.
“Vais deixar-me entrar ou vamos conversar através desta fresta?” perguntou Lucía, tentando manter um tom leve, embora o seu coração batesse cada vez mais depressa.
Andrés hesitou. Por um momento, Lucía pensou que ele lhe ia fechar a porta na cara, mas finalmente, com movimentos lentos e relutantes, tirou a corrente e abriu a porta o suficiente para ela passar.
Lucía entrou, arrastando as suas malas. O interior da casa atingiu-a como um murro no estômago. Tudo tinha mudado. Os móveis de que se lembrava, aqueles que os seus pais tinham comprado com tanto esforço ao longo dos anos, tinham desaparecido. O sofá onde a sua mãe se sentava a tricotar já não estava; no seu lugar, havia um sofá de couro preto, moderno, mas frio, que parecia fora de lugar. As paredes, antes cobertas de fotografias de família, de décadas de memórias sorridentes, estavam nuas, pintadas de um cinzento escuro que fazia com que tudo parecesse uma caverna.
“O que aconteceu aqui?” perguntou Lucía, girando lentamente em círculos, procurando desesperadamente algo que lhe recordasse o lar que deixara. “Onde está tudo? Onde estão as coisas da mãe e do pai?”
Andrés fechou a porta e encostou-se a ela, cruzando os braços sobre o peito.
“As coisas mudam, Lucía,” disse ele num tom que soava defensivo. “Precisávamos de modernizar o lugar.”
“Modernizar?” repetiu Lucía, a voz a subir de tom. “Andrés, esta era a casa dos nossos pais. Cada móvel, cada fotografia tinha uma história, um significado. Onde está tudo?”
“Vendemos,” disse Andrés, com rispidez. “Precisávamos do dinheiro.”
Lucía sentiu o chão a mover-se debaixo dos seus pés.
“Venderam as coisas dos nossos pais sem os consultar? Sem me consultar?”
“Não tinha de te consultar,” retorquiu Andrés, a voz a endurecer. “Tu estavas a viver a tua vida de sonho no Canadá, a ganhar em dólares, enquanto eu ficava aqui a lidar com tudo.”
“Eu estava a trabalhar para lhes enviar dinheiro!” gritou Lucía, as lágrimas a começarem a surgir. “Para que a mãe e o pai pudessem viver confortavelmente, para que nada lhes faltasse! Onde é que eles estão, Andrés? Onde é que estão os nossos pais?”
Foi então que surgiu uma mulher da cozinha. Jovem, com o cabelo platinado e unhas longas pintadas de vermelho vivo.
“Então, esta é a irmã famosa,” disse a mulher, com voz nasalada. “A enfermeira internacional. O Andrés não para de falar de ti.”
Lucía olhou para o irmão, confusa. “Quem é ela?”
“Sou a Vanessa,” respondeu a mulher, antes que Andrés pudesse falar, aproximando-se com passos firmes. “A namorada do Andrés. Vivo aqui agora.”
“Vives aqui?” a voz de Lucía era apenas um sussurro. “Na casa dos nossos pais?”
“Tecnicamente, agora é a minha casa,” disse Vanessa, com um sorriso que não chegava aos olhos. “Eu e o Andrés mudámo-nos para cá há uns seis meses. É muito mais espaçosa que o meu apartamento anterior.”
Seis meses. Lucía sentia-se presa num pesadelo.
“Andrés, o que se passa? Onde é que estão a mãe e o pai?”
O seu irmão não conseguia encará-la. Olhava para o chão, para as paredes, para qualquer lugar, exceto para o rosto da irmã.
“Foram-se,” disse finalmente, a voz mal audível.
“O que queres dizer com foram-se? Para onde?”
“Para o Norte. Com os tios, com o tio Fernando e a tia Estela. Disseram que queriam estar no campo, longe da cidade. Já sabes como o pai é. Sempre a falar de como sentia falta da terra onde cresceu.”
Lucía conhecia o pai melhor do que ninguém. Don Roberto tinha passado cinquenta anos naquela cidade, construíra uma vida ali. A ideia de que ele simplesmente decidiria ir para o campo, deixando tudo para trás, não fazia qualquer sentido.
“Não te acredito,” disse Lucía, com firmeza. “O pai nunca faria isso, e a mãe muito menos. Ela tem o grupo de costura, as amigas de toda a vida. Porque é que se iriam embora assim, sem me dizerem nada?”
“Porque não te queriam preocupar,” interveio Vanessa, com uma voz que pretendia ser compreensiva, mas soava ensaiada. “O Andrés contou-me que os teus pais sempre foram assim, muito orgulhosos. Preferiram ir para junto de familiares que pudessem estar mais atentos a eles.”
“Cala-te,” retorquiu Lucía, com uma ferocidade que fez Vanessa recuar um passo. “Tu não conheces os meus pais, não sabes nada deles.”
Virou-se para o irmão, aproximando-se até ficar a centímetros do seu rosto.
“Andrés, olha-me nos olhos e diz-me a verdade. Onde estão os nossos pais?”
Andrés finalmente olhou-a, e o que Lucía viu nos seus olhos aterrorizou-a. Não era apenas evasão ou culpa; era algo mais profundo, mais sombrio. Era medo misturado com vergonha.
“Eu já te disse,” murmurou Andrés, a voz embargada. “Foram para o Norte. É melhor que os deixes em paz, Lucía. Foi o que eles quiseram.”
“Dá-me o número de telefone do tio Fernando,” exigiu Lucía. “Vou ligar-lhes agora mesmo.”
“Não tenho o número dele,” disse Andrés, demasiado depressa. “Mudou de telefone há uns meses.”
“Mentira!” gritou Lucía. “Estás a mentir. Consigo ver na tua cara, Andrés. Sempre foste um péssimo mentiroso. O que fizeste? O que lhes fizeste aos nossos pais?”
“Não lhes fiz nada!” gritou Andrés de volta, a voz cheia de uma fúria defensiva. “Eles decidiram ir. Eu só… eu só precisava de espaço. Precisávamos de espaço. A Vanessa e eu queríamos começar uma vida juntos e eles estavam aqui, sempre aqui a meterem-se em tudo, a criticarem cada coisa que fazíamos.”
“Esta é a casa deles!” rugiu Lucía, sentindo a raiva a substituir o choque. “Eles criaram-te aqui, deram-te tudo, e é assim que lhes pagas? Expulsando-os do seu próprio lar?”
“Olha, Lucía,” interveio Vanessa, o tom agora irritado. “Não sei que imagem perfeita tens na tua cabeça desta família, mas a realidade é diferente. Os teus pais são velhos. Precisavam de mais cuidados do que o Andrés podia dar enquanto trabalhava. Foi melhor para todos que fossem para junto de familiares que tivessem mais tempo.”
“Melhor para todos ou melhor para vocês?” cuspiu Lucía. “Para que pudessem ter esta casa só para vocês? Para que pudessem vender as coisas dos meus pais e ficarem com o dinheiro? Eu enviava dinheiro todos os meses!” gritou Lucía, as lágrimas a escorrerem livremente pelas suas faces. “Mil e quinhentos dólares todos os meses, durante cinco anos! Onde é que está esse dinheiro, Andrés? O que fizeste com ele?”
Um silêncio pesado abateu-se sobre a sala. Andrés e Vanessa trocaram um olhar, e nesse momento, Lucía soube. Soube com uma certeza absoluta que a fez sentir-se fisicamente doente.
“Usámo-lo para melhorar a casa,” disse Vanessa, finalmente, a voz agora defensiva. “Para pagar dívidas, para viver. A vida é cara, Lucía. Não podes esperar que todo esse dinheiro ficasse simplesmente guardado.”
“Aquele dinheiro era para os meus pais,” disse Lucía, a voz trémula, cada palavra a pesar como chumbo. “Cada cêntimo que ganhei a limpar vómito, a mudar fraldas, a trabalhar turnos duplos noturnos, era para garantir que eles pudessem viver com dignidade. E vocês…” Não conseguiu terminar a frase. Tapou a boca com a mão, sentindo náuseas.
“Não,” disse, com uma voz que tinha encontrado uma calma perigosa. “Não quero ouvir as tuas desculpas. Quero a morada exata de onde estão os nossos pais. Agora.”
Com as mãos a tremer, Lucía ligou para o número do tio Fernando. Chamou e chamou até cair na caixa de voz. Ligou para a tia Estela. O número estava desligado. Tentou outros tios, primos, amigos da família. Ninguém atendia ou os números estavam fora de serviço.
Finalmente, ligou para Doña Beatriz, a vizinha de longa data dos seus pais, uma senhora idosa que tinha sido como uma avó para ela.
“Alô, Doña Beatriz, sou Lucía. A filha de Don Roberto e Doña Carmen.”
“Lucía, minha menina!?” A voz de Doña Beatriz encheu-se de emoção e surpresa. “Como estás? Já voltaste do Canadá?”
“Sim, Doña Beatriz, acabei de chegar hoje. Estou em casa e preciso de falar consigo. Pode receber-me?”
Houve uma pausa. Quando Doña Beatriz voltou a falar, a sua voz tinha mudado, carregada de algo que Lucía não conseguiu identificar de imediato.
“Sim, minha menina, vem à minha casa. Há coisas que precisas de saber.”
Lucía correu até à casa de Doña Beatriz. A idosa esperava-a à porta. Quando viu Lucía, abriu os braços, e a jovem enfermeira desabou neles, soluçando como não chorava há anos.
“Pronto, pronto, minha menina,” murmurou Doña Beatriz, acariciando-lhe o cabelo, como costumava fazer quando Lucía era pequena e caía da bicicleta. “Vem, entra. Temos muito que conversar.”
Sentaram-se na cozinha, onde Doña Beatriz lhe serviu uma chávena de chá quente de camomila. “Para os nervos,” explicou a idosa com um sorriso triste. “Vais precisar.”
Lucía olhou diretamente para os olhos de Doña Beatriz. “Por favor, diga-me a verdade. Onde é que estão os meus pais? E não me diga que foram para o Norte, porque sei que é mentira.”
Doña Beatriz suspirou profundamente, os ombros a caírem com o peso do que estava prestes a revelar.
“Tens razão, minha menina, isso é mentira. Os teus pais não foram para o Norte. Na verdade, não foram para lado nenhum. Bom, não voluntariamente.”
O coração de Lucía começou a bater tão forte que conseguia ouvi-lo nos ouvidos. “O que quer dizer?”
“Há uns oito meses,” começou Doña Beatriz, lentamente, escolhendo cada palavra com cuidado. “O teu irmão Andrés conheceu essa mulher, Vanessa. Mas ela, ela não é boa pessoa, Lucía. Desde o primeiro dia em que a vi, soube-o. Tinha olhos de cobra, essa mulher. Sempre a olhar para as coisas da tua casa, a calcular.”
“Os meus pais,” sussurrou Lucía.
“Os teus pais,” confirmou Doña Beatriz com tristeza. “Ao princípio foi subtil. O Andrés começou a queixar-se do quanto custava manter a casa, do quanto os teus pais comiam, dos gastos com os medicamentos do teu pai. A Vanessa queixava-se do barulho que a tua mãe fazia de manhã, do cheiro dos remédios. Começaram a tratá-los cada vez pior.”
“Porque é que não me disseram nada?” perguntou Lucía, a voz embargada.
“Eles tentaram, minha menina. A tua mãe veio à minha casa várias vezes a chorar. Dizia-me que queria ligar-te, mas que o Andrés lhe tinha tirado o telefone, dizendo que precisava de poupar na conta. Comprou-lhe um desses telefones básicos que só serviam para chamadas de emergência, mas o Andrés controlava até isso. Tiraram-lhes a dignidade pouco a pouco. Restringiam os quartos que podiam usar. Puseram cadeados no frigorífico novo, dizendo que os teus pais comiam demasiado!”
Lucía sentiu-se nauseada.
“O teu pai tentou defender-se,” continuou Doña Beatriz. “Mas a Vanessa disse-lhe que, se não gostavam, podiam ir embora, que já eram velhos e um fardo. Numa noite, há uns quatro meses, houve uma briga terrível. Ouvi-os da minha casa. A Vanessa gritava que estava farta de viver com dois velhos fedorentos. O Andrés… não a defendeu. O teu irmão, esse menino doce que eu vi crescer, não defendeu os seus próprios pais.”
Doña Beatriz fez uma pausa, os olhos marejados. “Na manhã seguinte, vi os teus pais a saírem de casa com duas pequenas malas. A tua mãe estava a chorar. O teu pai tentava ser forte, mas eu conseguia ver as suas mãos a tremer. Fui ter com eles, perguntei o que se passava.”
“O que disseram?”
“O teu pai disse-me que tinham decidido ir-se embora por um tempo, dar espaço ao Andrés e à namorada. Deu-me um número de telefone. Pediu-me que, se tu ligasses à procura deles, te dissesse que estavam bem. Mas, Lucía,” Doña Beatriz pegou nas mãos frias e trémulas da jovem, “eu sabia que algo estava muito mal.”
“Há umas duas semanas, vi a tua mãe,” disse Doña Beatriz, mais baixo.
“O quê? Onde?” O coração de Lucía parou.
“Foi por acaso. Eu estava no centro, a fazer compras. Decidi apanhar um atalho pelo beco que fica atrás da estação de autocarros, aquele onde deitam o lixo dos restaurantes. E… e vi um casal de idosos a revistar os caixotes. Ao princípio não prestei muita atenção. Mas algo me fez olhar mais de perto: a maneira como a mulher se movia, algo na sua postura. Era a tua mãe, Lucía. Era Doña Carmen.”
“Não,” gemeu Lucía, sentindo uma punhalada no coração. “Não pode ser.”
“Aproximei-me a correr. Chamei-a pelo nome. Quando ela se virou e me viu, a vergonha nos olhos dela… Lucía, a tua mãe quase correu para se esconder de mim. O teu pai estava com ela, a revistar o lixo. Eles pareciam… pareciam esqueletos. Magros, sujos, com roupas que lhes ficavam grandes. O teu pai, esse homem tão orgulhoso, nem conseguia olhar-me nos olhos.”
Lucía desabou no chão da cozinha, soluçando convulsivamente.
“Dei-lhes todo o dinheiro que tinha,” continuou Doña Beatriz, chorando também. “Implorei-lhes para virem para minha casa, mas a tua mãe disse que não, que não podiam ser um fardo para mais ninguém.”
“Eles nunca foram um fardo!” soluçou Lucía. “Eles deram-me tudo, tudo o que sou. Eu amo-os mais do que tudo neste mundo!”
“Eu sei, minha menina, eu sei.”
“Tentei segui-los quando se foram, mas desapareceram entre as ruas. Desde então, voltei àquele beco várias vezes, à espera de os ver novamente, mas não os encontrei.”
Lucía secou as lágrimas com as costas da mão, uma determinação feroz a apoderar-se dela. “Vou encontrá-los. Vou percorrer cada rua, cada beco desta cidade até os encontrar.”
Lucía começou a caminhar em direção ao centro da cidade, os seus pés a levá-la automaticamente para o beco que Doña Beatriz mencionara. O seu coração batia com uma mistura desesperada de esperança e medo.
“Mãe,” chamava suavemente. “Pai, sou eu, Lucía. Voltei para casa.”
Continuou a sua busca pelo mercado, onde uma vendedora de frutas a deteve.
“Espera, espera,” disse a mulher, olhando a fotografia. “Acho que já vi esta senhora. Vem por vezes, quando estou a fechar, pergunta se tenho frutas ou legumes que já não vou vender. Às vezes dou-lhe algumas coisas que estão um pouco magoadas, mas que ainda servem.”
O coração de Lucía deu um salto. “Quando foi a última vez que a viu?”
“Talvez há três ou quatro dias. Sim, foi na sexta-feira passada. Veio com um senhor mais velho, o marido dela, acho. Os dois não pareciam em muito boas condições.” A vendedora deu-lhe uma pista: pessoas em situação de rua costumavam reunir-se perto da ponte velha, onde havia menos problemas com a polícia.
Lucía correu para a ponte. Quando lá chegou, viu um grupo de pessoas reunidas à volta de um barril de metal onde tinham acendido uma fogueira.
“Com licença,” disse Lucía, mantendo uma distância respeitosa. “Estou à procura dos meus pais, chamam-se Roberto e Carmen…”
Um homem de barba longa e grisalha falou: “Aqui não damos informações sobre as pessoas, senhorita.”
“Por favor,” suplicou Lucía, a voz a quebrar. “São os meus pais. Não merecem estar na rua. Eu estava fora do país a trabalhar. Por favor, se os viram, digam-mo. Só quero levá-los para casa, cuidar deles.”
Uma mulher mais jovem aproximou-se e deu-lhe outra pista: “Ouvi dizer que há um casal que às vezes dorme atrás do antigo edifício dos correios. É mais silencioso lá.”
Lucía agradeceu e afastou-se a correr. O homem da barba chamou-a:
“Ouça, senhorita. Se são mesmo os seus pais, se realmente os ama, despache-se. As noites estão a ficar frias. As pessoas mais velhas não duram muito tempo na rua.”
As palavras foram como um punhal, mas Lucía sabia que eram verdadeiras.
Rodeou o edifício dos correios abandonado até chegar às traseiras. Era quase meia-noite. Ao princípio, não viu nada, apenas sombras e lixo acumulado. Mas então, num canto protegido, onde o telhado velho ainda oferecia alguma cobertura, viu movimento.
Lucía aproximou-se lentamente. E então, viu-os. Duas figuras encolhidas, cobertas com camadas de cartão e panos velhos. Mesmo na escuridão, Lucía reconheceu-os. A maneira como a mãe se aninhava contra o pai à procura de calor. A maneira como o pai a rodeava protetoramente com o braço, mesmo a dormir.
“Mãe,” sussurrou Lucía, a voz embargada. “Pai.”
As figuras não se moveram. Lucía deu mais uns passos, acendeu a lanterna do seu telemóvel e apontou-a para o seu próprio rosto para que pudessem vê-la.
“Não, não tenham medo,” disse rapidamente. “Sou eu. Sou Lucía, a vossa filha. Voltei. Voltei por vocês.”
Os olhos de Doña Carmen focaram-se no rosto de Lucía. Por um longo, agonizante momento, não houve reconhecimento. Mas então, algo mudou. Os olhos da sua mãe encheram-se de lágrimas e a boca abriu-se num grito silencioso.
“Lucía,” sussurrou, a voz rouca e quebrada. “A minha Lucía.”
Don Roberto também acordou, olhando para Lucía como se fosse um fantasma.
“Minha menina,” murmurou, a voz a tremer. “Minha filhinha.”
Lucía atirou-se para eles, abraçando-os com tamanha força que os três quase caíram. Podia sentir os seus ossos através da roupa demasiado fina. Podia sentir o cheiro azedo de dias sem banho, mas nada disso importava. Nada, exceto tê-los encontrado, estarem vivos, e estar com eles.
“Perdão,” soluçou Lucía contra o ombro da mãe. “Eu sinto tanto. Eu devia ter estado aqui. Eu devia ter-vos protegido.”
“Não, não, minha menina,” chorava a mãe, acariciando-lhe o cabelo com as mãos trémulas. “A culpa não é tua, tu não sabes nada.”
“Eu sei de tudo,” disse Lucía, afastando-se ligeiramente para poder olhar ambos nos olhos. “Doña Beatriz contou-me. O Andrés mentiu-me, e eu procurei-vos. Estive a procurar-vos a tarde e a noite inteiras.”
“Não devias ter-nos procurado,” disse o pai, a voz cheia de vergonha. “Não devias ver-nos assim. Somos uma vergonha, não somos?”
“Vocês nunca serão uma vergonha para mim. Nunca,” disse Lucía com ferocidade, pegando no rosto do pai entre as suas mãos e obrigando-o a encará-la. “A vergonha é do Andrés, do que ele vos fez. Mas agora, estou aqui. Vou tratar disto. Vou cuidar de vocês como vocês cuidaram de mim durante toda a minha vida.”
Ajudou os pais a levantarem-se. Correu para a rua principal e parou um táxi. O motorista hesitou ao ver o casal idoso, sujo e visivelmente em situação de rua.
“São os meus pais,” disse Lucía com firmeza, mostrando-lhe uma nota de cem dólares canadianos. “Vou levá-los para o melhor hotel da cidade. Esta nota é sua se nos levar sem fazer perguntas.”
O motorista olhou para a nota, depois para Lucía, e a sua expressão suavizou-se.
“Guarde o seu dinheiro, senhorita. Eu levo-os. Entrem.”
No táxi, Lucía sentou-se entre eles, abraçando-os. A mãe não parava de lhe tocar no rosto, como se precisasse de confirmação de que Lucía era real.
No hotel, um dos mais bonitos da cidade, Lucía pediu a melhor suíte e todos os produtos de higiene e roupas limpas. Quando os seus pais viram o quarto, luxuoso e quente, o pai começou a chorar abertamente.
“Não merecemos isto,” soluçou. “Não depois de nos teres visto a revistar o lixo como animais.”
“Pai, ouve-me,” disse Lucía, pegando no rosto dele entre as suas mãos. “Vocês não são o que vos aconteceu. Vocês são as pessoas mais fortes, mais corajosas, mais amorosas que eu conheço. Sobreviveram a algo que a maioria das pessoas não conseguiria. E agora vão sarar, e eu vou estar aqui em cada passo do caminho.”
Com infinita paciência e ternura, Lucía ajudou a mãe a tomar um banho demorado, lavando-lhe o cabelo três vezes. Enquanto a enxaguava, a mãe contou-lhe tudo: sobre as restrições, os insultos da Vanessa, o silêncio de Andrés, o roubo e as noites a dormir nas ruas.
“Nunca o vimos,” chorou Doña Carmen, referindo-se ao dinheiro que Lucía enviava. “O Andrés dizia que estava a poupar para nós. Mas quando finalmente precisámos, quando nos expulsou, não nos deu nada, apenas quinhentos pesos.”
Lucía, com o coração partido, ajudou-a a vestir um pijama macio e pô-la na cama, onde a mãe adormeceu com um suspiro de alívio. Depois, foi a vez do pai, que, envergonhado, se recusava a despir-se.
“Não posso, filha,” soluçou ele. “É humilhante. Sou um esqueleto. Sou um fracasso.”
“Tu não és um fracasso,” ordenou Lucía. “Tu és o meu herói. Deixa-me cuidar de ti.”
Lucía lavou-o, cuidou de uma ferida infetada na sua perna, e falou-lhe suavemente sobre o Canadá, prometendo levá-los a ver as cataratas.
Quando o pai também estava limpo e seguro na sua cama, Lucía sentou-se na sala, a planear o futuro. Enviou uma mensagem a Andrés: Eu encontrei-os. Eu sei de tudo. Não tentes contactar-me a mim ou aos nossos pais nunca mais. Vou falar com um advogado.
Durante as semanas seguintes, Lucía encontrou um apartamento acolhedor, tratou de médicos e advogados. O diagnóstico médico foi desolador: desnutrição severa, desidratação crónica, trauma severo.
“O que eles viveram é trauma,” disse o médico a Lucía. “A cura não será só física; o espírito e a mente também precisam de sarar.”
A recuperação foi lenta, mas firme. Lucía era a sua âncora. No entanto, quando o advogado preparava a queixa, os seus pais pediram que parasse.
“Não sei se algum dia poderei perdoá-lo,” disse a mãe, com cansaço. “Mas não quero passar o tempo de vida que me resta em tribunais, a lutar. Já sofri o suficiente, minha menina. Não quero dar-lhe mais poder.”
Lucía não gostou, mas compreendeu. Aceitou a sua decisão de procurar a paz em vez da vingança.
Anos mais tarde, Lucía encontrou Vanessa num mercado. A ex-namorada de Andrés parecia acabada, mas pediu para falar.
“Eu instiguei muito do que aconteceu,” admitiu Vanessa, em lágrimas. “Fui eu que convenci o Andrés de que os pais eram um fardo. Fui eu que gastei o dinheiro que tu enviavas… e tenho vivido com essa culpa todos os dias desde então. Eu sinto muito.”
“Eu não te perdoo,” disse Lucía, com frieza, “e provavelmente nunca o farei, mas agradeço a coragem de me teres dito isto. Agora, por favor, não te aproximes de mim ou dos meus pais nunca mais.”
Lucía nunca regressou em definitivo ao Canadá. O seu lugar era ali, com os seus pais, ajudando-os a viver com a dignidade e o amor que sempre mereceram. Don Roberto e Doña Carmen viveram mais sete anos, cheios de afeto, de pequenas alegrias e muita cura. Quando o pai faleceu, foi na sua própria cama, rodeado de amor.
“Obrigado por me teres dado estes anos,” sussurrou ele para Lucía, antes de fechar os olhos pela última vez. “Obrigado por me teres demonstrado que o amor verdadeiro nunca abandona.”
A mãe viveu mais dois anos. No seu último dia, com Lucía sentada ao seu lado, disse-lhe:
“Minha menina, quero que saibas uma coisa. Eu perdoei o teu irmão. Não por ele. Por mim. Carreguei essa dor durante tanto tempo, mas agora percebi que perdoar não significa dizer que o que ele fez foi correto. Significa simplesmente largar o peso, deixar de permitir que a traição dele defina os meus últimos pensamentos.”
“Eu amo-te, mãe,” disse Lucía, a chorar.
“E eu amo-te a ti, minha menina, meu anjo salvador. Agora promete-me que viverás uma vida plena, que serás feliz.”
Lucía prometeu. A sua mãe sorriu, fechou os olhos e partiu em paz. Lucía chorou a sua perda, mas também celebrou a sua vida: celebrou o facto de os seus pais não terem morrido sozinhos num beco frio, mas sim rodeados de amor, num lar quente e seguro, um lar que ela lhes tinha devolvido. A vida de Lucía, embora marcada por aquela dor profunda, tornou-se um testemunho de que o amor verdadeiro nunca se rende e encontra sempre, sempre, o caminho de volta para casa.