Engenho, Araruna, Porto Calvo, Alagoas, 1869. Alagoas era naquele momento, uma das províncias mais brutais do império quando se tratava de escravidão. Não era a mais rica, essa era São Paulo com café. Não era a maior produtora de açúcar. Essa era Pernambuco, mas era uma das mais cruéis.
Talvez pelo calor sufocante, talvez pela mentalidade dos senhores de engenho alagoanos, homens que tinham aprendido brutalidade com pais, que tinham aprendido com avós, gerações de crueldade destilada e refinada, ou talvez simplesmente porque podiam, porque o império estava longe, porque autoridades faziam vista grossa, porque escravos não tinham para onde correr, cercados por canaviais intermináveis de de um lado e oceano do outro.
O engenho Araruna ficava perto de Porto Calvo, cidade costeira que tinha sido importante no período colonial, mas que em 1869 estava decadente, vivendo de glórias passadas e açúcar cada vez menos lucrativo. O engenho tinha 100 haares, 500.000 pés de cana, 160 escravos, casa de enfardar com moenda movida por bois. e capela, onde padre vinha uma vez por mês rezar missa rápida antes de fugir de volta para a cidade. O nome Araruna vinha de pássaro.

A Araraúa, papagaio de plumagem azul profundo que habitava matas da região. Dono anterior tinha achado o nome poético, mas não havia nada de poético naquele lugar. Era inferno verde cercado de Cana. A propriedade pertencia à família Mendonça, família que tinha chegado a Alagoas no século X7, perseguindo sonhos de riqueza fácil com açúcar.
Tinham encontrado riqueza, mas fácil nunca foi. Foi construída sobre suor, sangue e morte de milhares de africanos escravizados. No comando em 1869 estava Coronel Baltazar Mendonça e sua esposa Sá Perpétua. Perpétua tinha 42 anos. Vinha de família tradicional de Maceió. Tinha se casado com Baltazar aos 19 anos em casamento arranjado, que uniu duas fortunas açucareiras. Não era bonita, nunca tinha sido.
Rosto angular com queixo proeminente, nariz grande e adunco, olhos pequenos e fundos que pareciam sempre desconfiados, corpo magro e sem curvas. Masculino demais”, diziam as outras senhoras quando achavam que ela não estava ouvindo. Cabelo grisalho que tinha começado a embranquecer aos 30 anos, sempre preso em coque tão apertado que puxava a pele do rosto.
Vestia-se sempre de cores escuras, marrom, cinza, preto, como se estivesse em luto perpétuo, embora não tivesse perdido ninguém importante. Era apenas escolha estética que combinava com alma sombria. tinha tido quatro gravidezes, todas terminaram em abortos espontâneos. Médicos disseram que útero era inóspito, que não conseguiria levar gravidez a termo.
Isso a amargurou profundamente, porque mulher sem filhos era mulher que tinha falhado em propósito fundamental aos olhos da sociedade. Baltazar nunca a culpou abertamente, mas também nunca a consolou, apenas aceitou que não teria herdeiros diretos. e começou a preparar sobrinho para herdar engenho. E perpétua, Perpétua canalizou dor e amargura em crueldade.
Não era como senhoras que explodiam em fúria e batiam em escravos impulsivamente. Essas eram previsíveis, tempestuosas, mas passageiras. perpétua era diferente, era fria, calculista, metódica, planejava punições, como general, planeja campanhas militares, pensava em como causar máxima dor física e psicológica com mínimo desperdício de propriedade.
“Não adianta matar escravo rápido, dizia, tem que fazer durar, fazer exemplo para que outros vejam e aprendam”. Gostava de humilhações públicas, de forçar escravos a se ajoelharem e pedirem perdão por crimes inventados, de fazer mães escolherem qual filho apanharia, de quebrar espíritos antes de quebrar corpos e tinha ciúme patológico do marido.
Baltazar Mendonça tinha 48 anos. Era homem corpulento, não gordo, mas grande. Ombros largos de quem tinha trabalhado fisicamente na juventude antes de herdar engenho. Rosto queimado de sol, permanentemente vermelho, bigode grosso e grisalho, mãos grandes e calejadas, bebia muito.
Cachaça, principalmente, começava no café da manhã com golinho para acordar e continuava até desmaiar à noite. Não era homem atraente, não era homem refinado, mas era homem com poder absoluto sobre 160 vidas. E isso o tornava perigoso. Tinha histórico. Antes de casar, tinha tido filhos com várias escravas, pelo menos seis, que se sabia.
Vendia todos logo após nascimento para eliminar evidência e evitar problemas. Depois de casar com perpétua, tinha tentado ser discreto, mas era difícil ser discreto em engenho, onde todo mundo via tudo. Havia rumores, sempre havia rumores, de visitas noturnas à cenzala, de escravas jovens que desapareciam grávidas e reapareciam magras meses depois sem beber.
Perpétua ouvia rumores e enlouquecia. Não podia controlar marido. Homem de 48 anos, dono de engenho, com poder de vida e morte sobre todos ao redor fazia o que queria, mas podia controlar as escravas, podia puni-las, podia destruí-las. Se não podia ter filhos próprios, ao menos podia garantir que nenhuma escrava tivesse filhos com seu marido e vivesse para contar história. Teodora tinha 24 anos em 1869.
Era escrava doméstica. Trabalhava na Casagre desde os 15 anos, quando foi comprada de engenho vizinho que tinha falido. Cozinhava, limpava, servia refeições, lavava roupas, engomava rendas delicadas com ferro quente. Todas as tarefas de Mucama. Era bonita, impossível negar. Não era beleza chamativa. Teodora fazia tudo o possível para não chamar atenção.
Usava roupas mais largas que tinha. Prendia cabelo sob lenç baixava olhos. Falava baixo. Mas beleza existia, apesar de esforços para escondê-la. Pele cor de canela clara, olhos amendoados grandes e expressivos, cílios naturalmente longos e curvos, lábios cheios, corpo com curvas que nenhum pano largo conseguia disfarçar completamente.
Movimentos graciosos, mesmo carregando peso, voz naturalmente melodiosa, mesmo quando sussurrava. E algo mais, dignidade quieta que emanava dela sem esforço. Perpétua odiava tudo isso. Odiava com intensidade que ia além de razão. Porque como escrava ousa ser bonita, como escrava ousa ter graça natural. Como escrava ousa existir de forma que atrai olhares, fica longe do coronel. Era a advertência que Perpétua repetia quase diariamente.
Agarrava braço de Teodora com força de deixar hematomas. Se eu ver você olhando para ele, arranco seus olhos, entendeu? Sim, sim. Ah, se eu ver você sorrindo quando ele está perto, corto sua boca de orelha a orelha. Entendeu? Sim, sim. H. Você não é nada, é propriedade, é ferramenta. Ferramentas não seduzem homens.
Então, age como ferramenta que é sem vontade, sem personalidade, sem existir, além do trabalho. Sim. Sim. Teodora obedecia, fazia todo o possível para ser invisível. Quando Baltazar entrava incômodo, Teodoro encontrava desculpa para sair. Vou buscar mais lenha, Sim. Preciso verificar panela no fogo. Esqueci de qualquer mentira para não estar no mesmo espaço que ele.
Se tinha que servir refeição com Baltazar presente, Teodora se movia como sombra. entrava, colocava prato, saía sem olhar, sem falar, além de sim, senhor, se perguntada diretamente. A noite, quando outros escravos domésticos voltavam para Senzá-la, Teodora ia com eles rapidamente, sem olhar para trás, sem dar chance de ser chamada para trabalho extra, tinha aprendido, tinha visto outras moças bonitas que chamavam atenção do Senhor eram destruídas, ou por ele, ou pela esposa ciumenta, ou por ambos. Melhor ser invisível, melhor ser
feia, se possível, melhor não existir além do mínimo necessário. Mas não importava o quanto Teodora se esforçasse, porque Perpétua tinha decidido que ela era a ameaça. E uma vez que Perpétua decidia isso sobre alguém, era questão de tempo até inventar desculpa para destruir. A desculpa veio em 15 de março de 1869.
Perpétua tinha broche de ouro, herança de sua avó, peça antiga, em forma de flor estilizada com pétalas trabalhadas em ouro maciço de 18 quiles. Não era bonita, era pesada e antiquada, mas tinha valor sentimental e monetário considerável. guardava emcaixa de madeira de jacarandá em sua penteadeira, junto com outras joias que raramente usava, porque vida em engenho não tinha ocasiões para ostentação.
E numa manhã de março, quando abriu caixa para pegar brincos para a missa, o broche não estava lá. Por segundo, Perpétua ficou confusa. Será que guardei em lugar diferente? Mas não, ela era metódica, sempre guardava no mesmo lugar. E então confusão virou raiva, raiva fria e calculada. Roubaram! Gritou voz ecoando pela casa grande. Alguém entrou em meu quarto e roubou.
Perpétua mandou reunir todos os escravos domésticos imediatamente. 11 pessoas alinhadas no corredor da casa grande, de pé, imóveis, tremendo, porque quando se agritava sobre roubo, alguém ia sangrar, sempre sangrava. Perpétua caminhou lentamente na frente deles, examinando cada rosto, procurando culpa, ou melhor, procurando quem ela queria que fosse culpado.
Alguém, disse com voz perigosamente calma, entrou em meu quarto, abriu minha caixa de joias e roubou broche de ouro que minha avó me deixou. Broche que vale mais que a vida de todos vocês juntos. Silêncio absoluto. Ninguém ousava respirar alto. Vou perguntar uma vez, apenas uma vez. Quem roubou? Mais silêncio, porque ninguém tinha roubado, e porque confessar crime que não cometeu era suicídio.
Mas não confessar quando acusado também era. Não havia opção certa, apenas opções ruins. Estou perguntando. A voz de perpétua explodiu. Quem roubou meu broche? Nada. 11 escravos olhando para o chão, rezando para não serem escolhidos. perpétua, respirou fundo, controlando raiva, voltando para a frieza calculada que era mais perigosa. Muito bem, então vamos fazer diferente.
Coronel Baltazar. Baltazar apareceu de seu escritório. Copo de cachaça na mão, mesmo sendo apenas 9 da manhã. O que foi? Roubaram meu broche. Esses negros mentem dizendo que não sabem de nada. Manda revistar tudo. Roupas, pertences, censala inteira. Vira tudo de cabeça para baixo até achar.
Baltazar acenou para Feitor. Ouviu assim: “Ah, faz o que ela mandou”. Levou 3 horas. Rasgaram colchões de palha, viraram baús velhos, revistaram cada canto de cada quartinho na cenzala. Até buracos no chão foram verificados. Vasculharam roupas, bolsos, dobras, forros. Checaram galinheiro pensando que talvez tivesse sido escondido entre ovos.
Olharam em poço, em horta, em qualquer lugar que pudesse servir de esconderijo. Nada. Zero. O broche não foi encontrado porque ninguém tinha roubado. Provavelmente tinha caído atrás de algum móvel, ou perpétua tinha guardado em gaveta diferente e esquecido, ou qualquer uma de mil explicações mundanas. Mas admitir isso significaria admitir que tinha sido alarme falso, que tinha causado 3 horas de transtorno por nada, que talvez, apenas, talvez tinha cometido erro e Perpétua nunca admitia erro. Quando feitor voltou com mãos vazias, Perpétua
não demonstrou surpresa, apenas a sentiu como se já esperasse. Então, esconderam bem ou venderam já? ou jogaram fora quando perceberam que eu descobriria? Sim. Ah, o feitor, homem chamado Augusto, mulato de 40 anos, veterano de décadas supervisionando escravos, falou cuidadosamente: “Talvez o broche tenha caído em algum lugar. Talvez a Você está me chamando de descuidada.
Não, senhá, nunca. Apenas digo que você está dizendo que menti sobre roubo. Augusto empalideceu. Não, senh perdão. Não quis dizer isso. Então alguém roubou e vai confessar ou vai morrer. Perpétua olhou para os 11 escravos ainda alinhados, esperando julgamento. E seus olhos pararam em Teodora.
sempre paravam em Teodora, porque Perpétua tinha decidido meses atrás, talvez anos, que Teodora era problema, era ameaça, era rival imaginária que precisava ser eliminada. Tinha apenas esperado desculpa, momento certo, justificativa que pudesse usar e agora tinha. Foi você, disse, apontando para Teodora. Você roubou meu broche. Teodora sentiu o estômago cair.
Não, senh eu juro por Deus que não fui eu. Não jura por Deus em vão. Você roubou. Sei que foi você. Sim. Ah, eu nunca roubei nada em minha vida. Por favor, acredite. Porque eu acreditaria em você? A voz de perpétua era gelo e fogo ao mesmo tempo. Você é escrava. Escravos mentem. Escravos roubam. É natureza de vocês. Eu não roubei. Sá, podem revistar minhas coisas de novo. Podem. Já revistaram.
É claro que não acharam. Porque você é esperta. Já vendeu ou escondeu tão bem que ninguém vai achar? Não, Senhá, eu juro, não tenho o broche, nunca tive. Perpétua se aproximou tão perto que Teodora podia sentir hálito azedo, verveias pulsando na testa. Você sabe porque roubou? Vou te dizer. Roubou porque está com raiva.
Raiva de mim. Porque eu vejo o que você faz. Vejo como se arruma, como prende cabelo, como anda rebolando. Tudo para chamar a atenção do meu marido. Não, Sá. Eu nunca. Cala a boca. Perpétua agarrou o rosto de Teodora, unhas cravando pele.
Você acha que sou cega? Acha que não vejo como ele olha para você? Como segue você com olhos quando passa? Teodora queria gritar que não era culpa dela se Baltazar olhava, que ela fazia todo o possível para evitá-lo, que não controlava olhos dele, mas sabia que dizer isso seria pior, porque confirmaria que Baltazar de fato olhava e isso aumentaria fúria de perpétua.
Então ficou calada, aceitando unhas cravadas em seu rosto, sentindo sangue quente escorrendo pelo queixo. E quando viu que ele não correspondia suas investidas de vagabunda, perpétua continuou: “Você decidiu se vingar de mim, roubando o que é meu, pensando que isso me machucaria.” Não foi assim, senhor. Não foi. Confessa. Não posso confessar o que não fiz.
Perpétua soltou o rosto de Teodora, limpou unhas ensanguentadas em avental e sorriu. Foi sorriso que todos os escravos reconheceram. Sorriso que significava que Perpétua tinha decidido. E quando Perpétua decidia, não havia volta. Então vamos ao tronco. Vamos ver quanto tempo você aguenta antes de confessar. O tronco ficava no terreiro, à vista de todos.
Era tora grossa de madeira enterrada verticalmente no chão, com argolas de ferro presas na altura do peito e na altura dos pés. Tinha manchas escuras de sangue seco de anos de uso. Tinha sucos onde chicote tinha atingido madeira junto com carne. E tinha história, história de dezenas, talvez centenas de escravos que tinham sido amarrados ali, chicoteados, quebrados. Alguns tinham sobrevivido, outros não.
“Amarra ela”, ordenou perpétua. Augusto hesitou. “Sim ah, talvez seja melhor deixar ela pensar um pouco. Às vezes no tronco eles confessam sem precisar bater.” Eu disse para amarrar. Augusto sinalizou para dois outros homens. Pegaram Teodora pelos braços. Ela não resistiu porque resistir só piorava. Levaram-na até o tronco. Arrancaram camisa dela, deixando costas nuas.
Amarraram pulsos nas argolas superiores. Amarraram tornozelos nas inferiores. Teodora estava esticada, ponta dos pés tocando chão mal, costas completamente expostas. Perpétua caminhou ao redor dela, examinando. Como a solgueiro examina carne antes de cortar. Você vai ficar aqui até confessar. horas, dias, semanas, se necessário, e vai apanhar.
Vai apanhar até pele abrir, até carne cair, até ossos ficarem expostos e então vai apanhar mais. Sim. Teodora tentou uma última vez, voz tremendo. Por favor, eu não roubei. Não sei onde está o broche. Por favor, Augusto, começa. Augusto pegou o chicote. Não era chicote simples de couro, era chicote de nove pontas, cada ponta com nó duro na extremidade. Ferramenta feita especificamente para rasgar carne.
Sim há até ela confessar ou até morrer, o que vier primeiro. Augusto olhou para Teodora, viu medo em seus olhos, mas também viu algo mais. Dignidade. Aquela maldita dignidade que irritava perpétua. “Vai confessar?”, perguntou baixo. “Facilita para você. Diz que foi você. Inventa onde escondeu. Ela vai acreditar. E isso para.
Teodora podia ter mentido, podia ter confessado crime que não cometeu, podia ter inventado história elaborada e talvez, talvez Perpétua aceitasse e parasse. Mas Teodora sabia a verdade. Sabia que Perpétua não procurava confissão, procurava desculpa para destruir. Confessar ou não confessar, o resultado seria o mesmo. Dor, sofrimento, talvez morte. Então decidiu morrer com verdade nos lábios.
Não vou confessar mentira, disse. Voz firme, apesar de medo. Não roubei. Morro dizendo verdade. Augusto fechou olhos por segundo, depois os abriu e levantou o chicote. Craque. Primeira chicotada cortou o ar, depois costas de Teodora. Ela gritou, não conseguiu conter. Dor era como fogo líquido derramado em pele. Craque segunda, paralela à primeira, abrindo nova linha de fogo.
Craque, terceira, cruzando as anteriores. E perpétua a assistia, com sorriso satisfeito, como se estivesse assistindo ópera favorita. Depois de 10 chicotadas, Perpétua levantou mão para Vai confessar agora, Teodora. Teodora mal conseguia respirar. Costas eram massa de dor pulsante. Sentia sangue escorrendo pelas costas, pelas pernas, formando poça aos pés. Não roubei. Ofegou. Continua, Augusto.
Craque, crack, crack. Mais 10. Pausa. E agora? Vai confessar. Não tenho nada para confessar. Mais 10. Crack. Crack. Crack! Teodora parou de gritar porque não tinha voz mais, apenas gemia. Sons baixos de agonia animal. Perpétua se aproximou, passou o dedo em sangue, escorrendo das costas de Teodora, olhou para ele.
Vermelho vivo em dedo pálido, bonita cor, disse quase para si mesma: “Vermelho de culpa, vermelho de mentira, vermelho que vai continuar até verdade sair. Continua, Augusto, e não para até eu mandar”. Augusto chicoteou e chicoteou e chicoteou. Perdeu conta depois de 50. Outros escravos foram forçados a assistir para aprenderem, perpétua disse, para verem o que acontece com ladrões, com mentirosos, com negras que acham que podem roubar de mim. O sol subia. Calor de Alagoas era infernal.
Março era um dos meses mais quentes. Teodora estava exposta ao sol direto, desidratando rapidamente, queimando, mas chicote não parava. Pele abriu, depois carne, depois músculos ficaram expostos. Em algum ponto, ninguém sabia exatamente quando. Teodora parou de fazer sons. Parou de se mover.
Cabeça pendia para a frente, inconsciente. “Joga a água nela”, ordenou Perpétua. “Acorda ela!” Jogaram balde de água fria. Teodora se mexeu levemente, mas não acordou completamente. “Mais outro balde.” “Nada. Deixa”, disse perpétua. “Finalmente, “Quando acordar continua, fica aí até confessar”. E foi embora para dentro da casa grande, para a sombra fresca.
para a limonada gelada, deixando Teodora amarrada no tronco sob sol escaldante, sangrando. Mas Teodora não acordou, ficou ali. Horas passando, solcorrendo céu. Outros escravos foram liberados para voltar ao trabalho, mas tiveram que passar por ela, ver seu corpo destroçado. Lembrei-te constante do que acontecia com quem a perpétua marcava.
À tarde, moscas começaram a se juntar, atraídas por sangue, por carne aberta. Ao anoitecer, Perpétua saiu para verificar. Ainda não confessou, Augusto estava ali guardando. Sim, ah, ela não está consciente. Não respondeu o dia todo. Então acorda, ela chicoteia mais. Sim. Ah. Augusto hesitou. Acho que ela está morta.
Perpétua se aproximou, tocou o pescoço de Teodora, procurando pulso. Nada, sem batimento, sem respiração, pele já esfriando no ar noturno. Morreu sem confessar, disse perpétua. Não havia remorço na voz, nem culpa, apenas irritação leve, negra, teimosa até o fim. O que fazemos com corpo? Sim. Deixa aí até amanhã, que outros vejam o que acontece com ladrões. Amanhã em terra e foi dormir.
Dormiu tranquilamente, sem pesadelos, sem remorço, porque em sua mente distorcida tinha feito justiça, tinha punido ladra, tinha eliminado ameaça, tudo estava bem. Mas na manhã seguinte, quando amanheceu, algo impossível estava acontecendo, algo que faria aquele engenho nunca mais ser o mesmo. Quando amanheceu em 16 de março de 1869, dois escravos foram designados para tirar corpo de Teodora do tronco e enterrá-lo.
Tomás, homem de 50 anos que trabalhava como carpinteiro do engenho. e Joaquim, jovem de 20 anos, forte, que normalmente cavava sepulturas quando alguém morria. Aproximaram-se do tronco com lençol velho para embrulhar corpo. E foi Tomás quem viu primeiro. Joaquim, olha isso. Joaquim olhou e seus olhos se arregalaram.
Segundo os dois homens contaram depois e juraram pela Virgem Maria que era verdade, o corpo de Teodora ainda estava sangrando. Não era sangramento fraco, não era apenas sangue coagulado úmido de noite anterior. Era sangramento ativo, vermelho vivo, escorrendo pelas costas dilaceradas, gotejando no chão, formando poça fresca sob o tronco. “Ela está viva”, Joaquim sussurrou. Tomás se aproximou, tocou o pescoço de Teodora, procurando pulso.
Nada, pele fria, rígida. Mortes estava começando. Cadavérica está morta, confirmou. Mas como está sangrando assim? Os dois homens olharam um para o outro, medo nos olhos. Porque corpos mortos não sangram assim. Sangue para de circular quando coração para de bater. Pode haver sangramento residual por algumas horas, mas não assim. Não vermelho vivo, não tanto.
É sinal, disse Tomás, voz baixa, reverente. Sinal de que ela morreu inocente. Sangue de inocente não seca. Clama à terra, clama aos céus. O que fazemos? Enterramos. O que mais podemos fazer? Desamarraram Teodora do Tronco com cuidado. Embrulharam corpo no lençol velho e, segundo juraram depois, o lençol ficou encharcado de sangue imediatamente, como se feridas fossem frescas, como se tivessem acabado de ser feitas. Carregaram corpo até cemitério pequeno que engenho tinha para escravos.
Área de terra batida cercada por cerca velha, sem lápides, apenas cruzes simples de madeira marcando onde cada pessoa estava enterrada. Joaquim tinha cavado cova na noite anterior. Rasa porque escravos não mereciam covas profundas aos olhos dos senhores. Apenas buraco suficiente para cobrir corpo. Colocaram Teodora lá, embrulhada no lençol ensanguentado, e começaram a jogar terra.
Tomás rezou enquanto trabalhavam, palavras que padre tinha ensinado, Pai Nosso, Ave Maria, orações que talvez trouxessem paz para a alma que tinha partido tão violentamente, cobriram completamente, alisaram terra, colocaram cruz simples. Teodora, 1845-1869. apenas isso, sem sobrenome, porque escravos não tinham sobrenome. Sem Epitáfio, porque quem se importava com palavras bonitas para escrava morta? E foram embora. Mas no dia seguinte, 17 de março, algo estranho aconteceu.
Foi Maria das Dores, escrava velha de 60 anos, que cuidava de cemitério, limpava mato, mantinha cruzes em pé. Quem notou primeiro? A terra sobre sepultura de Teodora estava diferente, escura, úmida, vermelha, como se tivesse sido regada com vinho ou com sangue. Maria se ajoelhou, tocou terra com dedos, olhou, era úmida, pegajosa e tinha cheiro característico, cheiro de ferro, de sangue.
“Meu Deus!”, sussurrou, chamou outros, Tomás, Joaquim, alguns mais. Todos viram, todos tocaram, todos confirmaram. A terra estava encharcada de algo que parecia que todos juravam ser sangue. “Cavem”, disse Tomás, “de precisamos ver”. Joaquim hesitou. Profanar sepultura? Isso não é profanação, é verificação. Cava. cavaram apenas alguns centímetros.

E segundo o testemunho de todos que estavam presentes, testemunho que repetiram pelo resto de suas vidas, viram um líquido vermelho subindo pela terra. Não era água avermelhada de chuva misturada com barro. Alagoas não tinha tido chuva em semanas. Era viscoso, espesso, como sangue fresco, borbulhando gentilmente, subindo através de grãos de terra, manchando tudo de vermelho. Está vindo do caixão.
Joaquim disse com voz trêmula: “Do corpo, mas ela está morta há dois dias. Mortos não sangram assim. Sangue de inocente não seca.” Maria das Dores repetiu o que Tomás tinha dito. Teodora morreu inocente, morreu por acusação falsa e seu sangue, seu sangue testemunha. Notícia se espalhou pelo engenho como fogo em cana seca.
A sepultura de Teodora está sangrando. O corpo dela continua sangrando mesmo morta. É milagre, é maldição, é sinal de Deus, é sinal dos orixás. Cada pessoa interpretava diferente, mas todos concordavam. Algo impossível estava acontecendo. Perpétua ouviu rumores e ficou furiosa. São mentiras. Superstição de negros ignorantes. Mortos não sangram. Mandou Augusto verificar.
Augusto foi ao cemitério, viu a terra vermelha, viu o líquido subindo, voltou pálido. Sim. Ah, tem algo lá. Não sei o que é, mas tem. É água, água misturada com barro vermelho. Não choveu sem a e o cheiro é de sangue. Perpétua quis ir ver pessoalmente, mas tinha medo. Medo de que fosse verdade, medo de que Teodora, mesmo morta, estivesse a acusando.
Joguem cal sobre sepultura, cal seca tudo. Resolve isso. Augusto obedeceu. Jogaram sacos de cal virgem sobre terra ensanguentada. caucheou, fumegou, reagindo com líquido e por algumas horas parou. A terra ficou branca, seca, normal, perpétua, suspirou aliviada. Viu? Não era nada, apenas água, superstição. Mas na manhã seguinte, 18 de março, a terra estava vermelha de novo, não apenas úmida, encharcada, como se quantidade impossível de sangue tivesse jorrado durante a noite.
A cal tinha sido lavada, dissolvida, empurrada para os lados, e o vermelho voltara mais intenso. Jogaram mais cal. De novo, parou por horas, de novo voltou. Os escravos começaram a fazer peregrinações ao cemitério. Não abertamente isso seria punido, mas discretamente. Quando podiam, quando feitores não estavam olhando. Ajoelhavam-se diante da sepultura de Teodora, rezavam, alguns para Deus, alguns para orixás, alguns para os dois. Teodora, você morreu inocente. Morreu por mentira de se amar.
Seu sangue testemunha a verdade. Não deixa que esqueçamos, não deixa que aceitem mentira como verdade. Deixavam oferendas, flores silvestres, pedaços de pano branco, velas quando conseguiam roubar sem serem notados, e contavam entre si, sussurrando na cenzala à noite. O sangue de Teodora não para, já faz três dias, quatro dias, cinco dias.
Dizem que enquanto sangrar é prova de inocência dela. Dizem que vai sangrar até perpétuo a confessar verdade. Dizem que vai sangrar 40 dias. Por que 40? Porque é número de Deus. 40 dias de dilúvio. 40 dias de jejum de Cristo. 40 dias para purificar, para separar mundo velho de mundo novo.
Uma semana passou, sete dias. E segundo todos no engenho Araruna e juravam que era verdade, juravam por tudo que era sagrado. A sepultura de Teodora continuava sangrando. Toda manhã a terra estava vermelha, úmida, encharcada. Tentaram de tudo, mas calou. Terra nova por cima, o vermelho atravessava, pedras pesadas cobrindo área inteira.
O líquido encontrava caminho pelos lados. Era como se como se a terra se recusasse a aceitar o sangue, como se o sangue se recusasse a secar, como se algo, Deus, os orixás, justiça cósmica, mantivesse testemunho vivo. E perpétua, perpétua começou a mudar nos primeiros dias. Era raiva, é truque.
Esses negros estão fazendo isso, jogando sangue de galinha na sepultura de noite para me assustar. mandou vigiar cemitério à noite. Dois homens armados ficaram lá a noite inteira. De manhã, terra vermelha de novo. Vocês dormiram? Deixaram alguém passar? Não. Sim. Ah, ficamos acordados o tempo todo. Ninguém passou. Ninguém se aproximou. Mentirosos.
Mas sabia que não era mentira, porque conhecia aqueles homens e viu medo genuíno em seus olhos. Depois de 10 dias, raiva começou a se misturar com algo mais. Inquietação. Perpétua, não dormia bem. Acordava no meio da noite com coração acelerado, suando, sem razão aparente. Sonhava sempre o mesmo sonho. Estava em cemitério. Noite, lua cheia iluminando cruzes.
E via Teodora de pé sobre própria sepultura, costas de laceradas sangrando. Olhando para ela, não falava, apenas olhava e sangrava. Sangue escorrendo infinitamente. Perpétua acordava gritando. Baltazar, que dormia em quarto separado desde anos, às vezes ouvia, mas não ia verificar. Apenas virava na cama e voltava a dormir. 15 dias. Perpétua parou de comer direito. Comida tinha gosto de ferro, de sangue.
Parou de sair de casa. tinha medo de passar perto do cemitério, mesmo de longe, mesmo sabendo que não podia ver sepultura dali, começou a evitar espelhos, porque às vezes, apenas à vezes, quando se olhava, via Teodora atrás dela no reflexo, por fração de segundo, depois desaparecia.
“Estou imaginando coisas”, dizia para si mesma. “É culpa! Culpa tola. Não tenho nada a me culpar. Ela roubou, foi punida, justiça foi feita, mas repetir não tornava a verdade mais convincente. 20 dias, os escravos notaram mudança imperpétua. Estava mais magra, olhos fundos, com círculos escuros, profundos, pele pálida, mãos tremendo constantemente.
Gritava menos, punia menos, não porque tinha ficado mais gentil, mas porque parecia distraída. ausente, como se parte dela estivesse em outro lugar. “Ela sendo assombrada”, sussurravam. Teodora não deixa ela em paz. Sangue de inocente clama e ela ouve 30 dias, um mês completo. E a terra sobre sepultura de Teodora continuava vermelha todas as manhãs.
Perpétua, parou de negar completamente. Chamou o padre. Padre Sebastião da vila de Porto Calvo, homem de 70 anos que servia aquela região há décadas. Padre, preciso de bênção, preciso de de exorcismo. Talvez exorcismo para quem? Paraitou, para cemitério, para sepultura. Tem escrava que morreu e coisas estranhas estão acontecendo.
Padre Sebastião franziu testa. Conhecia Perpétua há anos. Sabia de sua crueldade. Tinha ouvido confissões dela que faziam seu estômago revirar. Que coisas? A sepultura. Dizem que sangra, que continua sangrando faz um mês. Dizem. Ou você viu? Não vi. Mas todos dizem. E eu eu não durmo bem. Tenho sonhos. Vejo vejo ela a morta. Sim.
Padre Sebastião suspirou. E como essa escrava morreu? Perpétua não respondeu imediatamente. Depois foi punida por roubo no tronco. Morreu durante punição. Ela tinha roubado. Sim, meu broche de ouro. Acharam o broche? Silêncio. Acharam evidência do roubo? Mais silêncio. Ela confessou? Não. Mas isso não significa. Então você a matou.
Padre interrompeu com voz dura, sem prova. sem confissão, apenas com acusação. Ela era culpada. Eu sabia. Como sabia? Perpétua não conseguiu responder porque não sabia. Nunca soube, apenas tinha querido acreditar. Padre Sebastião ficou em pé. Não posso exorcizar sepultura perpétua, porque não há demônio ali. Há apenas sangue de inocente. E sangue de inocente clama a Deus, não a mim. A Deus.
E eu não posso calar o que Deus ouve, mas o que eu faço? Confessa. Confessa que matou mulher inocente. Confessa sua injustiça e reza por perdão. É única forma. Mas ela roubou. Não roubou. A voz do padre explodiu. Raramente gritava, mas agora gritou. Você sabe que não roubou.
Sabe que inventou desculpa e agora paga preço deixando perpétua sozinha. Tremendo. 35 dias. Perpétua começou a vagar pela casa grande à noite. Baltazar a encontrava às vezes 3 da manhã, caminhando descalça pelos corredores, falando sozinha. Não roubou. Eu sei que não roubou, mas tinha que fazer algo. Ela era ameaça. Olhava para você.
Não, não olhava, mas podia olhar. Tinha que eliminar antes que perpétua. Baltazara a agarrava pelo ombro. Volta para a cama. Ela olhava para ele como se não reconhecesse. Depois piscava. Baltazar. O quê? Por que estou aqui? Você estava andando, falando sozinha. Estava. Não me lembro. E realmente não lembrava. Blocos de tempo desaparecendo de sua memória, horas perdidas, 38 dias.
Maria das Dores, a velha que cuidava de cemitério, veio procurar perpétua. Era ato de coragem enorme. Escrava não procurava por vontade própria, apenas quando chamada. Mas Maria veio porque precisava dizer: “Sim”. Perpétua estava sentada na varanda, olhando para nada. O que quer? É sobre Teodora. Perpétua enrijeceu.
Não quero ouvir sobre ela, mas precisa, porque vai acabar em dois dias. O que vai acabar? O sangramento faz 38 dias. No quadº dia vai parar. É o que todos sabem, 40 dias. Depois para. Como sabe? Porque é número de Deus. 40 dias de purificação, 40 dias de testemunho. Depois, depois o sangue vai silenciar e Teodora vai descansar.
Então, vai acabar. Perpétua sentiu alívio. Vai acabar e tudo volta ao normal. Maria olhou para ela com piedade. Vai acabar, mas nada volta ao normal, senhá, porque todos vão lembrar. Vão lembrar para sempre que Teodora sangrou 40 dias. Vão lembrar que morreu inocente e vão lembrar que foi a senhora que matou. Ela roubou? Não roubou. E a senhora sabe? Sempre soube.
E Maria saiu, deixando verdade pendurada no ar como espada. 4º dia. 25 de abril de 1869. Amanheceu. Maria das Dores foi ao cemitério, como fazia toda manhã por 40 dias, e olhou para a sepultura de Teodora. A terra estava seca, não vermelha, não úmida, seca, marrom normal. Tocou poeira fina, como se nunca tivesse estado molhada. Acabou, sussurrou, 40 dias completos.
E agora? Descansa, Teodora. Descansa em paz. Seu testemunho foi dado. Sua inocência foi provada. Descansa. Notícia se espalhou. Parou. No quadréso dia exato. Parou. É sinal. Prova que era real, que não era truque. A Teodora está em paz agora, mas Perpétua nunca estará. E perpétua. Perpétua ouviu que tinha parado.
Esperava sentir alívio, libertação, mas sentiu apenas vazio, porque o sangramento tinha parado, mas memória não. Todos sabiam agora, todos tinham testemunhado 40 dias de sangue impossível, 40 dias de acusação silenciosa. E ela, perpétua, era culpada. assassina de inocente, não aos olhos da lei.
Lei não se importava com escrava morta, mas aos olhos de Deus, aos olhos dos escravos, aos olhos de si mesma, embora lutasse para não admitir. E essa culpa, essa culpa nunca secaria, como o sangue de Teodora nunca tinha secado por 40 dias. Depois que o sangramento parou depois do quadrago dia, perpétua nunca mais foi a mesma. Não foi transformação súbita, foi deterioração lenta, erosão gradual de quem ela era ou de quem fingia ser.
Nos primeiros meses, tentou voltar à normalidade, voltar a ser siná perpétua, dona absoluta, mulher temida, mas não funcionava mais. Os escravos a olhavam diferente. Antes olhavam com medo, medo genuíno de punição, de dor, de morte. Agora olhavam com algo mais. Não exatamente desafio. Não eram tolos a ponto disso, mas algo próximo de pena.
Pena misturada com julgamento silencioso. Ela matou Teodora por mentira. E todos sabemos, o sangue testemunhou por 40 dias. Não há como negar. E perpétua sentia aqueles olhares perfurando, acusando, lembrando, tentou punir de novo. Reafirmar a autoridade. Duas semanas após sangramento parar, escrava jovem deixou cair prato durante jantar.
Quebrou em pedaços. Antes, perpétua teria explodido. Chicotadas, jejum, humilhação pública. Agora abriu boca para gritar e voz falhou. ficou presa na garganta porque viu medo nos olhos da menina. Mas viu também outra coisa. Viu Teodora, por fração de segundo, sobreposta ao rosto da menina, costas dilaceradas sangrando. Perpétua ofegou, cambaleou. Lim, limpa isso, vai.
A menina correu aliviada, confusa, porque sim, a Perpétua nunca, nunca era misericordiosa. E perpétua subiu para quarto, trancou-se, chorou, pela primeira vez em décadas chorou. Os sonhos pioraram toda a noite agora, sem exceção. Sempre Teodora, sempre cemitério, sempre sangue, mas variavam.
Às vezes, Teodora estava no tronco, sendo chicoteada infinitamente, e cada chicotada ecoava como trovão. E perpétua era forçada a assistir, incapaz de fechar olhos, incapaz de fugir. Outras vezes, Teodor estava de pé, silenciosa, apontando, acusando sem palavras. E pior, as piores noites, perpétua sonhava que estava no tronco, que era ela sendo chicoteada.
sentindo cada golpe, cada rasgo de carne, cada quebra de osso. Acordava gritando, suor encharcando lençóis, mãos checando próprias costas, procurando feridas que não estavam lá fisicamente, mas que sentia mesmo assim. Seis meses após morte de Teodora, setembro de 1869, Perpétua parou de sair de casa completamente.
“Estou doente”, dizia a Baltazar. Não me sinto bem. Médico foi chamado Dr. Fonseca de Maceió. Examinou perpétua minuciosamente. Não encontrou nada fisicamente errado. Sua esposa está saudável, pelo menos corporalmente. Então, por que ela diz que está doente? Dr. Fonseca hesitou, depois falou baixo.
Ouvi rumores sobre escrava que morreu, sobre coisas estranhas que aconteceram depois. Baltazar ficou tenso. São superstições, boatos de negros ignorantes, talvez. Mas sua esposa acredita e crença pode adoecer tanto quanto doença real. Ela sofre de de aflição da consciência, de culpa. Isso manifestando em sintomas físicos.
Como trata isso? confissão, arrependimento, aceitação, perdão de Deus, de si mesma, da pessoa que prejudicou. A pessoa está morta, então busca perdão da memória dela ou aprende a viver com peso. Baltazar dispensou o médico. Tolices, minha esposa não tem nada a se arrepender. Fez justiça, puniu ladra. Mas doutor Fonseca balançou cabeça.
Se acreditasse nisso, não me teria chamado. Um ano após morte de Teodora, março de 1870, aconteceu algo que todos no engenho interpretaram como sinal. O broche de perpétua foi encontrado. Estava embaixo de cômoda pesada em seu próprio quarto. Tinha caído lá quando ela o guardava meses atrás.
rolou, ficou preso entre móvel e parede. Criada encontrou ao limpar. Sim. Ah, achei seu broche. Perpétua olhou para a peça de ouro em mãos trêmulas. O broche porque Teodora tinha morrido. O broche que nunca tinha sido roubado. O broche que tinha simplesmente caído. Sentiu algo romper dentro dela, algo fundamental.
Porque até aquele momento, até aquele segundo exato, tinha se apegado a fio fino de justificativa. Talvez ela roubou e devolveu. Talvez escondeu tão bem que nunca acharam. Talvez. Mas agora, agora tinha prova física. Teodora nunca tinha roubado, tinha morrido inocente, completamente inocente. E Perpétua a tinha matado.
A partir daquele dia, Perpétua começou a definhar. Parou de comer quase completamente. Comida tinha gosto de cinzas, de sangue, de culpa. Emagreceu rapidamente. Pele ficou translúcida sobre ossos. Cabelo começou a cair em mechas. Parou de falar. dias inteiros em silêncio, apenas sentada, olhando para a parede ou para a janela que dava para cemitério ao longe.
Baltazar tentou alimentá-la à força. “Você vai morrer de fome.” “Já estou morta”, disse ela. Primeira coisa que tinha falado em semana. Morri no dia que Teodora morreu. Só não fui enterrada ainda. Dois anos após morte de Teodora, 1871, Perpétua ficou acamada permanentemente, não por doença física. Médicos continuavam não achando nada, mas simplesmente desistiu de viver.
Ficava deitada, olhando o teto, murmurando. Às vezes as palavras eram distinguíveis: “Perdão, não sabia, não roubou. perdão. Outras vezes eram apenas sons, lamentos, choro seco, sem lágrimas. Maria das Dores, que agora cuidava dela porque outras escravas tinham medo, a ouvia. Ela pede perdão.

Contava aos outros, toda hora, mas não sei se é para Teodora ou para Deus ou para si mesma. E então uma noite, conta-se, perpétua teve visita. Era a noite sem lua de março de 1871. Exatos do anos após morte de Teodora, Perpétua estava sozinha no quarto. Baltazar dormia em quarto separado há anos e acordou, se é que estava dormindo, com sensação de presença.
Olhou e, segundo ela, contou depois, com voz trêmula: “Vio Teodora de pé ao lado da cama. Não era fantasma translúcido de histórias. Era sólida, real, como se estivesse viva. Mas costas, costas ainda mostravam cicatrizes profundas de chicotadas. Teodora perpétua sussurrou. Você você é real? A aparição não falou, apenas olhou. Eu sinto muito.
Sinto tanto. Você não roubou. Eu sabia. Sempre soube. Mas estava com ciúmes, com raiva e precisava de desculpa. E você, você morreu por minha mentira, minha maldade. Silêncio. Por favor, por favor, me perdoe. Não consigo viver assim. Não consigo dormir. Não consigo existir sabendo o que fiz.
E então, perpétua jurou até morte que isso aconteceu. Teodora falou: “Vóz suave, sem raiva, sem ódio, apenas cansada. Não posso perdoar, porque perdão não é meu para dar, é de Deus, dos orixás, da terra que bebeu meu sangue por 40 dias. Mas você você veio, vim para dizer que está acabando. Seu sofrimento, sua culpa logo vai acabar, porque você vai juntar-se a mim e lá, lá você vai entender tudo que eu entendi. Vou morrer.
Todos morrem, mas você vai morrer sabendo verdade e verdade, verdade tanto liberta quanto condena. E desapareceu. Perpétua começou a gritar. Baltazar veio correndo. Outros escravos, todos encontraram na sentada na cama olhos arregalados apontando para canto vazio. Ela estava aqui. Teodora estava aqui. Falou comigo. Não tem ninguém aqui, perpétua. Você sonhou. Não foi sonho.
Ela estava aqui e nunca se convenceram dela do contrário. Três dias depois, 18 de março de 1871, Perpétua morreu. Simplesmente parou de respirar. Durante sono. Não houve agonia, não houve luta, apenas parou. Tinha 44 anos. O médico disse que foi coração, que simplesmente parou de bater sem razão aparente.
Mas os escravos sabiam a verdade. Teodora veio buscá-la como prometeu. E agora, agora perpétua vai pagar, não aqui, mas lá. Enterraram perpétua no cemitério do engenho, não cemitério de família em igreja de Porto Calvo, porque Baltazar achou que não merecia honra de sepultura nobre. Colocaram-na perto de onde Teodora estava, não ao lado.
Isso seria insulto, mas perto o suficiente para que todos vissem ironia, assassina e vítima, separadas por poucos metros de terra, unidos por história que ninguém esqueceria. A história de Teodora e do sangramento de 40 dias nunca foi esquecida no Engenho Araruna. Passou de geração para geração, de pais escravizados para filhos nascidos cativos, de avós libertos para netos nascidos livres após 1888.
Variações existiam, como sempre acontece com histórias passadas oralmente. Alguns diziam que não foram 40 dias exatos. Alguns diziam que foi menos, outros juravam que foi mais. Alguns diziam que era realmente sangue. Outros diziam que era água avermelhada que parecia sangue.
Outros ainda diziam que era manifestação espiritual que cada pessoa via diferente. Mas todos concordavam nos pontos fundamentais. Teodora morreu inocente por acusação falsa. Algo impossível aconteceu com sepultura dela. Durou o período significativo, 40 dias na versão mais contada, e perpétua nunca mais foi mesma depois morreu consumida por culpa do anos depois.
O engenho Araruna continuou funcionando até 1889, um ano após abolição. Baltazar tentou manter produção com trabalhadores livres pagos. Não funcionou. Custos eram altos demais, preços de açúcar caindo. Faliu. Vendeu terra por fração do valor e morreu sozinho e amargo em 1892. O engenho foi abandonado. Virou ruína. Natureza retomou.
Mas o cemitério, o cemitério permaneceu pequeno, esquecido, escondido em mata que cresceu ao redor. As cruzes de madeira apodreceram com tempo. Nomes foram apagados por chuva e vento, exceto uma. A cruz de Teodora foi renovada. Repetidamente por décadas. Descendentes de escravos do engenho Araruna, mesmo morando longe, voltavam periodicamente, trocavam cruz velha por nova, limpavam mato ao redor, deixavam flores, porque Teodora tinha se tornado mais que pessoa, tinha se tornado símbolo, símbolo de todos que morreram injustamente, de todos acusados falsamente, de todos que sofreram sob
crueldade de senhores sádicos. E o sangramento real ou lendário, era testemunho. Prova de que injustiça não passa despercebida, de que sangue inocente clama, de que verdade eventualmente emerge. Hoje, 2025, poucos sabem onde ficava Engenho Araruna. Está em mapas antigos, em registros de cartório empoeirados, em documentos históricos que ninguém lê.
As ruínas foram engolidas por fazendas modernas. por plantações de cana mecanizadas, por progresso que apaga passado. Mas locais ainda conhecem história. Velhos de Porto Calvo e arredores ainda contam. Para netos, para quem quiser ouvir. Houve mulher chamada Teodora.
Morreu no tronco inocente, e seu corpo sangrou 40 dias para provar inocência. 40 dias que o chão não aceitou mentira. 40 dias que Deus testemunhou. A maioria ouve como folclore, como lenda interessante, mas impossível. Alguns ouvem como verdade literal, como milagre que aconteceu. E alguns, talvez os mais sábios, ouvem como verdade moral envolta em linguagem de milagre.
Porque o que importa não é se sangue literalmente borbulhou da terra por 40 dias. O que importa é que Teodora morreu inocente, que Perpétua a matou por mentira e que essa injustiça foi tão profunda que marcou memória coletiva de forma indelével. O sangramento literal ou metafórico é forma que história encontrou de dizer. Isto não pode ser esquecido. Isto não pode ser perdoado sem reconhecimento.
Isto clama da terra, dos céus, de todos que testemunharam. E há algo mais que história ensina. Culpa, verdadeira culpa por verdadeiro crime, não pode ser apagada. Perpétua tentou, negou, justificou, racionalizou, mas culpa comeu ela de dentro. consumiu do anos de vida.
E se acreditamos em justiça cósmica, continua comendo além da morte, porque sangue inocente derramado nunca seca completamente. Pode parar de fluir após 40 dias, mas mancha permanece na terra, na memória, na alma de quem derramou para sempre. M.