
O vento gelado de julho de 1942 cortava as ruas de Curitiba como uma lâmina afiada de obsidiana. Não era apenas o frio físico que atormentava os moradores, mas a sensação de que o próprio ar carregava o peso da tragédia, a promessa de um inverno que se recusava a terminar. A guerra assombrava o mundo inteiro, uma doença global de sangue e ferro que chegava pelos jornais, mas na tranquila e pretensamente respeitável Rua Voluntários da Pátria, no coração da cidade, havia algo ainda mais perturbador do que os horrores distantes. A casa número 247, uma construção sólida de tijolos e madeira, permanecia imóvel, silenciosa, como um túmulo erguido que desafiava o tempo e a curiosidade mórbida dos vizinhos. Ninguém entrava. Ninguém saía. E esse silêncio opressor já durava quarenta longos anos, desde o início do século, um hiato inexplicável na vida cotidiana da vizinhança.
As cortinas de renda amarelada pelo tempo e pela ausência de luz nunca se moviam, nem mesmo quando o vento sul, uivando como um cão faminto, açoitava as janelas com força bruta. A tinta azul das paredes descascava lentamente, revelando o cinza da madeira por baixo, como pele morta que se desprende de um cadáver esquecido. O jardim da frente havia se transformado numa selva urbana selvagem, um emaranhado de ervas daninhas espinhosas, mato alto e trepadeiras vorazes que engoliam o portão de ferro forjado, um dia o orgulho da família Silveira. A casa era uma ilha de desolação e mistério, cercada pela banalidade cotidiana dos vizinhos.
Os moradores da rua sussurravam histórias macabras durante as tardes de domingo e as noites de insônia, trocando olhares e teorias sobre a cerca baixa que separava seus lares daquele horror silencioso. Diziam que duas mulheres viviam ali dentro. Irmãs solteiras, sozinhas, com seus segredos, há décadas sem contato com o mundo exterior. Mas ninguém realmente as via. E a falta de evidências apenas alimentava as lendas mais sombrias.
O padeiro, que passava todas as manhãs às 5:30 com seu carrinho rangente, jurava ter ouvido vozes femininas conversando baixinho através das paredes grossas, sempre na mesma hora, sempre o mesmo tom sussurrado e urgente, como se estivessem planejando algo terrível, ou talvez, ensaiando uma mentira que duraria uma vida inteira. A lavadeira do bairro, uma mulher de fé que não temia a morte, mas temia os vivos, contava que às vezes via luzes fracas movendo-se pelos cômodos durante a madrugada. Luzes de velas que dançavam como fantasmas pelos corredores escuros, criando sombras estranhas e alongadas que se projetavam nas cortinas fechadas, figuras distorcidas que pareciam se mover em um ritual noturno.
Até mesmo as crianças da vizinhança, com seus instintos puros de sobrevivência, sabiam que aquela casa era diferente, que a energia ali era tóxica. Elas corriam mais rápido quando passavam em frente ao portão enferrujado, desviando o olhar. Algumas juravam ter visto vultos pálidos observando-os da janela do segundo andar. Vultos que desapareciam assim que alguém olhava diretamente, um jogo de esconde-esconde com a morte. O padeiro, o leiteiro, a lavadeira… todos eram testemunhas não da vida, mas da persistência de um segredo.
Mas foi numa terça-feira comum de julho, um dia cinzento e sem importância, que a fachada de silêncio começou a ruir.
O carteiro Edmilson conhecia cada casa da sua rota como conhecia os próprios bolsos. Cada morador tinha seus hábitos peculiares. Cada endereço guardava suas pequenas histórias cotidianas de alegria e dor. Ele sabia quem recebia cartas de amor, quem acumulava contas em atraso e quem esperava ansiosamente por notícias de parentes distantes no front da guerra. A casa das irmãs Silveira, no número 247, sempre foi um enigma que o intrigava profundamente.
Durante anos, ele deixava a correspondência na caixa postal de madeira pintada de verde, um pequeno ritual que se repetia dia após dia. No dia seguinte, as cartas sempre desapareciam. Alguém as recolhia durante a noite, como um ritual silencioso, sem deixar rastros ou sinais de vida. Edmilson nunca as tinha visto, mas a ausência da correspondência era a única prova de que Cordélia e Esperança Silveira ainda habitavam aquele mausoléu.
Mas naquela manhã de terça-feira, Edmilson notou algo que fez seu estômago se contrair de ansiedade e pânico. A correspondência que ele havia deixado na segunda-feira, e até mesmo a de sexta-feira anterior, ainda estava lá, intocada. As cartas se amontoavam dentro da caixa pequena, uma pilha crescente de contas de luz vencidas, correspondências oficiais da prefeitura e, até mesmo, uma carta com selo internacional que parecia importante, talvez uma notícia da guerra. O correio transbordava como uma boca cheia de palavras não ditas, de segredos que ninguém queria mais guardar. Edmilson verificou novamente, contou as cartas, reconheceu sua própria letra nas etiquetas de endereçamento.
Três dias se passaram. As cartas continuavam se acumulando, a pilha crescendo, desafiando a lógica. Edmilson sentiu um arrepio subir pela espinha. Em 20 anos de profissão, nunca havia visto algo assim. As irmãs Silveira eram pontuais como relógios suíços. Recolhiam suas cartas religiosamente, mesmo que ninguém jamais as visse. Algo estava muito, muito errado naquela casa silenciosa. O silêncio havia se tornado aterrorizante.
Na quinta-feira, ele decidiu quebrar o protocolo e enfrentar o mistério. Vestindo sua capa de chuva pesada, ele subiu os degraus de pedra rachada e parou diante da porta de carvalho pesada e escura. Seus punhos bateram três vezes na madeira fria. O som ecoou pelo interior da casa, como tiros de canhão numa catedral vazia. Silêncio absoluto. Ele encostou o ouvido na porta, ignorando o frio que lhe gelava a face. Nenhum ruído, nenhum movimento, nem mesmo o ranger de tábuas do assoalho que toda a casa antiga produz. Era como se a casa estivesse completamente vazia, como se nunca tivesse sido habitada por nada vivo. Mas Edmilson sabia que isso era impossível. Ele havia entregue correspondência ali durante anos. Alguém sempre recolhia as cartas, alguém pagava as contas que chegavam mensalmente. Alguém vivia naquela casa, ou pelo menos vivia até poucos dias atrás.
O carteiro olhou para as janelas do segundo andar. As cortinas permaneciam imóveis como mortalhas de renda amarelada. Nenhuma sombra se movia por trás do tecido amarelado pelo tempo, nenhuma prova de vida. Um pensamento terrível começou a se formar em sua mente, rastejando como uma aranha fria. E se as irmãs estivessem em perigo? E se algo terrível tivesse acontecido dentro daquela casa que parecia ter parado no tempo, o vento frio de julho soprou mais forte, fazendo as folhas secas dançarem pelo jardim abandonado com um ruído seco. Edmilson sentiu como se a própria casa estivesse o observando, como se paredes e janelas fossem olhos que guardavam segredos sombrios demais para serem revelados. Ele não sabia ainda, mas estava prestes a descobrir uma verdade que mudaria para sempre a tranquila Rua Voluntários da Pátria. Uma verdade enterrada há 40 anos, uma verdade que algumas famílias carregam até a morte, e, às vezes, mesmo depois dela.
Edmilson conhecia cada casa da sua rota como um mapa gravado na memória. Cada morador tinha sua rotina particular, seus pequenos rituais que marcavam o passar dos dias e das estações, mas a casa das irmãs Silveira sempre foi diferente, sempre foi um mistério que o intrigava e, ao mesmo tempo, o perturbava com uma intensidade que o tirava o sono. Cordélia e Esperança Silveira. Dois nomes que ele havia lido centenas de vezes nas correspondências ao longo dos anos. Duas mulheres que herdaram aquela propriedade imponente do pai, Amâncio Silveira, um comerciante próspero que, dizia a lenda, morreu em circunstâncias nebulosas no início do século, sucumbindo a uma “febre súbita”. Quarenta anos se passaram desde então. Quarenta longos anos em que elas jamais saíram daquela casa.
O carteiro lembrava perfeitamente dos primeiros anos de trabalho. Via vultos fugazes atrás das cortinas de renda, sombras que se moviam rapidamente quando ele se aproximava do portão. Às vezes, uma mão pálida e ossuda aparecia pela fresta da porta para recolher as cartas, sempre no exato momento em que ele se afastava, como um reflexo de medo. Mas isso foi há muito tempo. Nos últimos anos, apenas o silêncio e o mofo habitavam aquela casa.
A vizinha do lado direito, dona Palmira, observava tudo da sua janela como uma sentinela vigilante, uma detetive amadora da desgraça alheia. Ela era uma mulher de 60 anos, viúva há uma década, que encontrava nas fofocas da vizinhança sua única distração e propósito. Palmira jurava de pés juntos ter ouvido vozes durante as madrugadas mais frias, conversas baixas e sussurradas que vinham da casa ao lado, vozes que pareciam discutir algo urgente, algo que não podia esperar até o amanhecer, planos sinistros e secretos.
— Aquelas mulheres não são normais — murmurava Palmira para quem quisesse ouvir, durante as tardes na venda do seu Libório. — Há algo muito estranho acontecendo naquela casa. Algo que faz meu sangue gelar nas veias.
O açougueiro da esquina, seu Libório, confirmava as suspeitas da vizinhança com detalhes que deixavam todos inquietos. Seu Libório era um homem gordo e suado que conhecia os hábitos alimentares de toda a vizinhança. As irmãs Silveira compravam carne suficiente para alimentar uma família de seis pessoas, e não duas. Sempre pagavam com dinheiro velho, notas amareladas e secas pelo tempo que pareciam ter saído de um baú empoeirado, um tesouro que não via a luz do sol.
— Elas pedem cortes muito estranhos — revelava Libório em voz baixa para os clientes mais próximos, inclinando-se sobre o balcão. — Ossos grandes e com muita carne grudada. Peças que a maioria das donas de casa nem sabe como preparar, como se estivessem alimentando alguma coisa que precisa de muito, muito alimento, e que tem um apetite voraz.
A costureira da rua, dona Efigênia, acrescentava mais lenha na fogueira das especulações. Ela contava que as irmãs encomendavam roupas masculinas há décadas, ternos completos, camisas de linho fino, gravatas de seda importada, sempre nas mesmas medidas, sempre no mesmo estilo antiquado que os homens usavam no início do século.
— Para quem elas fazem essas roupas? — perguntava Efigênia, com os olhos arregalados de curiosidade mórbida. — Não há homens naquela casa há 40 anos. O pai delas morreu quando eu ainda era uma menina.
Mas talvez o detalhe mais perturbador viesse do leiteiro que fazia entregas todas as manhãs às 5 horas. Seu Anacleto jurava que às vezes ouvia o som de três vozes conversando na sala de jantar, duas vozes femininas que ele reconhecia como sendo das irmãs, e uma terceira voz, uma voz masculina, grave e rouca, que falava baixo demais para ser compreendida, como se viesse de uma garganta ressecada.
— Impossível — diziam os vizinhos mais céticos, balançando a cabeça. — Não há homens naquela casa.
Mas Anacleto insistia no que ouvia. Três pessoas conversando sempre às 5:30 da manhã, sempre na mesma sala que dava para a rua, um ritual imutável.
O farmacêutico da Rua Quinze de Novembro também tinha suas histórias para contar. As irmãs compravam remédios estranhos, medicamentos para dores nas articulações, pomadas para feridas que não cicatrizavam, tônicos fortificantes para pessoas muito debilitadas, sempre em grandes quantidades, sempre pagando à vista com aquelas notas antigas que cheiravam a mofo e morte. Durante os últimos meses, elas começaram a comprar algo ainda mais inquietante, que o farmacêutico só vendia com extremo cuidado: morfina. Doses altas de morfina, que normalmente eram prescritas apenas para pacientes terminais ou pessoas em grande sofrimento físico.
— Para que duas senhoras idosas precisariam de tanta morfina? — questionava o farmacêutico para sua esposa durante o jantar, com um medo crescente. — A menos que estejam cuidando de alguém que está morrendo lentamente e precisa de alívio constante.
Todas essas histórias circulavam pela vizinhança como um vírus silencioso. Cada pessoa acrescentava um detalhe novo, uma observação perturbadora, uma teoria mais macabra que a anterior, mas ninguém tinha coragem de bater na porta e descobrir a verdade que a casa guardava. Ninguém, exceto Edmilson, que agora enfrentava o mistério das cartas não recolhidas, o sinal de que o segredo havia atingido seu ponto de ruptura.
Na sexta-feira, ele decidiu conversar com dona Palmira. Encontrou a vizinha regando suas plantas na varanda, mas com os olhos fixos na casa ao lado.
— Dona Palmira, a senhora notou algo diferente na casa das irmãs Silveira? — perguntou o carteiro com voz cautelosa, tentando não parecer invasivo.
A mulher parou de regar as plantas e se aproximou da cerca que dividia os terrenos. Seus olhos brilhavam com uma mistura de medo e excitação.
— Diferente como? — perguntou ela, embora já soubesse exatamente do que Edmilson estava falando.
— As cartas não estão sendo recolhidas há uma semana. A correspondência está se acumulando na caixa postal.
Palmira assentiu lentamente, como se essa informação confirmasse suas piores suspeitas.
— Eu sabia que algo estava errado. Não ouço mais as vozes durante a madrugada. Não vejo mais as luzes se movendo pelos cômodos. É como se a casa tivesse morrido de repente. — Ela fez uma pausa dramática, olhando diretamente para as janelas fechadas da casa vizinha, com a certeza sombria que só a fofoca informada permite. — Ou como se quem vivia lá dentro tivesse morrido também.
A descoberta não veio de uma investigação policial, mas de um acaso terrível, de uma falha nos canos, que mudaria para sempre a tranquila Rua Voluntários da Pátria. O encanador Valdomiro havia sido chamado para consertar um vazamento persistente na casa de dona Palmira. Era uma segunda-feira chuvosa de agosto e a água estava infiltrando pelo porão, criando poças fedorentas que ameaçavam os alicerces da construção antiga. Valdomiro era um homem simples, de mãos calejadas e costas curvadas por décadas de trabalho pesado. Ele conhecia os segredos subterrâneos de Curitiba melhor que qualquer engenheiro, sabia onde cada cano passava, onde cada fundação se apoiava, onde cada problema poderia surgir. Mas nada o preparou para o que encontraria naquela manhã.
Enquanto cavava uma vala ao lado da cerca que separava as duas propriedades, sua pá bateu em algo que não deveria estar ali, algo duro, algo que fez um som oco e perturbador quando atingido pelo ferro da ferramenta. Valdomiro parou de cavar, limpou o suor da testa com as costas da mão suja de terra, olhou para o buraco que havia aberto e sentiu um arrepio subir pela espinha. Aquilo não era uma pedra, não era um pedaço de madeira velha, era algo muito pior. Ele cavou com mais cuidado, removendo a terra úmida com as próprias mãos. Seus dedos tocaram uma superfície lisa e fria, uma superfície que ele reconheceu imediatamente, mesmo tentando negar para si mesmo o que estava vendo. Ossos. Ossos humanos amarelados pelo tempo e pela humidade.
O encanador recuou como se tivesse tocado fogo. Suas pernas tremeram. Sua respiração ficou ofegante. Por um momento, pensou em reenterrar tudo e fingir que nada havia acontecido, mas sua consciência, atormentada pela certeza, não permitiu.
— Dona Palmira! — gritou ele com voz trêmula, o terror puro em sua garganta. — A senhora precisa ver isso, precisa ver urgentemente!
A vizinha apareceu na porta dos fundos, secando as mãos no avental florido. Quando viu a expressão de terror no rosto do encanador, soube imediatamente que algo terrível havia sido descoberto.
— O que foi, Valdomiro? O que aconteceu?
Ele apontou para o buraco com mão trêmula.
— Tem um corpo enterrado aqui, dona Palmira. Um corpo humano bem debaixo da cerca.
A mulher se aproximou devagar, como se estivesse caminhando em direção ao próprio inferno. Quando olhou para dentro da vala e viu os ossos expostos, suas pernas falharam. Ela teve que se apoiar na cerca para não desmaiar.
— Meu Deus do céu — sussurrou ela, com a voz falhando. — Meu Deus do céu, o que fizeram aqui?
Valdomiro continuou cavando, agora com uma mistura de horror e curiosidade mórbida. A cada punhado de terra removida, mais ossos apareciam. Um esqueleto quase completo estava enterrado ali, a poucos metros da casa das irmãs Silveira, mas o mais perturbador ainda estava por vir. Junto com os ossos, ele encontrou pedaços de tecido que resistiram parcialmente ao tempo, restos de um terno masculino de boa qualidade, botões de madrepérola que ainda brilhavam apesar das décadas sob a terra, e, dentro do bolso do paletó esfarrapado, uma carteira de couro que o tempo havia transformado numa massa escura e ressecada.
Dona Palmira chamou o delegado Floriano, um homem sério e meticuloso, que conhecia cada família da região. Ele chegou em menos de 20 minutos, acompanhado de dois soldados que isolaram a área com cordas e estacas. O delegado examinou os ossos com cuidado profissional, mas seus olhos revelavam a perturbação que sentia. Em 20 anos de carreira policial, havia visto muitas coisas terríveis, mas encontrar um corpo enterrado no quintal de uma casa respeitável era algo que abalava suas certezas sobre a natureza humana.
Ele abriu a carteira com extremo cuidado. O couro se desfez parcialmente em suas mãos, mas os documentos internos estavam protegidos por um envelope encerado. Quando leu o nome nos papéis, o sangue do delegado gelou nas veias. Amâncio Silveira, nascido em 1852, comerciante, residente na Rua Voluntários da Pátria, número 247. O pai das irmãs, o homem que supostamente havia morrido de causas naturais 40 anos atrás, o homem que teve um funeral respeitoso e foi enterrado no cemitério municipal com todas as honras devidas a um cidadão próspero. Se o corpo de Amâncio Silveira estava ali enterrado no quintal da vizinha, quem estava no túmulo oficial do cemitério, e mais importante ainda, onde estavam Cordélia e Esperança, as irmãs que guardavam o segredo?
O delegado olhou para a casa silenciosa das irmãs. As cortinas continuavam fechadas, nenhum movimento, nenhum sinal de vida. Mas agora ele sabia que precisava entrar naquela casa. Precisava descobrir a verdade que estava escondida por trás daquelas paredes há quatro décadas. Ele bateu na porta da frente com força, nenhuma resposta. Bateu novamente, gritando os nomes das irmãs. Apenas o eco de sua própria voz retornava do interior vazio e sombrio. Valdomiro e dona Palmira observavam tudo de longe, abraçados um ao outro como crianças assustadas, a vizinhança inteira em choque. Outros vizinhos começaram a se aglomerar na rua, sussurrando teorias cada vez mais macabras sobre o que poderia ter acontecido naquela casa maldita.
O delegado decidiu forçar a entrada. Com a ajuda dos soldados, arrombou a porta da frente. A madeira cedeu com um estalo seco que ecoou pela rua inteira. O cheiro que saiu da casa foi como um soco no estômago de todos os presentes: doce, enjoativo, inconfundível, o aroma da morte e do tempo que havia se instalado naqueles cômodos há muito tempo. Floriano entrou devagar, a mão no revólver, embora soubesse instintivamente que não encontraria nenhuma ameaça viva lá dentro. O que encontrou foi muito pior que qualquer criminoso. Foi a verdade sobre uma família que guardou um segredo terrível durante 40 anos. Um segredo que finalmente havia vindo à tona, trazendo consigo consequências que ninguém poderia ter imaginado.
A porta rangeu como um grito de agonia que ecoou pela rua inteira, o som do selo sendo quebrado. O delegado Floriano hesitou por um momento na soleira, respirando fundo o ar viciado antes de cruzar o umbral daquela casa que guardava segredos por 40 anos. O cheiro atingiu todos os presentes como um soco no estômago, doce, enjoativo, penetrante, o aroma inconfundível da morte que havia se instalado naqueles cômodos há semanas, talvez meses. Dona Palmira cobriu o nariz com o avental e recuou vários passos. Valdomiro virou o rosto e cuspiu no chão, tentando expulsar o gosto amargo que invadiu sua boca. Até mesmo os soldados experientes fizeram caretas de nojo, mas o delegado continuou em frente. Sua obrigação era descobrir a verdade, por mais terrível que ela fosse.
A casa estava congelada no tempo, como um museu macabro do início do século. Móveis pesados cobertos por lençóis empoeirados que pareciam mortalhas. Retratos de família pendurados nas paredes, como olhos mortos que tudo observavam sem piscar. Pratos sujos sobre a mesa da sala de jantar, como se alguém tivesse saído no meio de uma refeição e jamais voltado. O papel de parede descascava em tiras longas que pendiam como pele morta. O assoalho de madeira gemia sob delegado, cada passo ecoando pelos cômodos vazios, como batidas de um coração moribundo no peito da casa.
Na sala principal, três cadeiras estavam dispostas ao redor de uma mesa posta para o jantar. Pratos com comida apodrecida, copos com líquido escuro que um dia foi vinho, talheres enferrujados dispostos com cuidado obsessivo. Mas onde estavam as irmãs Silveira? Floriano subiu as escadas rangentes. Cada degrau protestava sob seu peso, como se a própria casa estivesse tentando impedi-lo de descobrir seus segredos mais íntimos.
No corredor do segundo andar, três portas, todas fechadas, todas guardando mistérios que ele temia desvendar. A primeira porta se abriu com facilidade. Um quarto feminino, cama desfeita há muito tempo, roupas espalhadas pelo chão como se alguém tivesse se vestido às pressas. Na penteadeira, potes de pó de arroz vazios e um espelho rachado que refletia a imagem fragmentada do delegado. A segunda porta revelou uma biblioteca empoeirada, livros amarelados pelo tempo, jornais de décadas passadas empilhados até o teto. Na mesa, uma máquina de escrever antiga com uma folha de papel ainda inserida. As últimas palavras digitadas diziam: “Não podemos mais continuar assim”.
A terceira porta estava trancada. Floriano forçou a fechadura com o ombro. A madeira velha cedeu com um estalo seco que reverberou pela casa inteira. O que viu o fez recuar instintivamente, a mão cobrindo a boca. Duas camas, e em cada uma, uma mulher. Cordélia e Esperança Silveira, mortas. O estado dos corpos indicava que haviam falecido há várias semanas, entrando em um estado de mumificação natural devido ao ambiente fechado. Estavam deitadas em suas camas, vestidas com camisolas de linho branco, as mãos cruzadas sobre o peito, como se tivessem se preparado cuidadosamente para a morte, um ritual final de devoção.
Mas não foi isso que mais chocou o delegado. Foi o que estava espalhado pelo quarto. Cartas, centenas de cartas manuscritas, todas endereçadas ao mesmo destinatário. Amâncio Silveira, o pai morto há 40 anos. Floriano pegou uma das cartas com mãos trêmulas. A caligrafia era feminina, delicada, mas tremia como se tivesse sido escrita por alguém em grande sofrimento emocional.
Querido papai, hoje faz 14.608 dias que você partiu. Cordélia ainda acredita que você vai voltar para o jantar. Eu não tenho coragem de dizer a ela que você nunca mais voltará. É a única ilusão que a mantém viva.
Outra carta, mais recente:
Papai, o dinheiro que você escondeu está acabando. Cordélia fica cada vez mais fraca. Ela não come direito, só fala com você durante as refeições. Diz que você responde às perguntas dela. Às vezes eu também ouço sua voz ecoando pela casa, vindo do andar de baixo.
E a última carta, datada de apenas duas semanas atrás:
Perdoe-nos, papai. Perdoe-nos pelo que fizemos naquela noite terrível. Perdoe-nos pelo que escondemos todos esses anos. Não aguentamos mais carregar este peso nas costas. Vamos nos juntar a você. Finalmente poderemos ser uma família completa novamente. O fardo será dividido, e o segredo morrerá conosco.
O delegado sentiu suas pernas tremerem. Quarenta anos de correspondência com um morto. Quarenta anos de loucura e culpa que consumiram duas vidas lentamente. Mas ainda havia mais segredos para descobrir, a verdade final. Ele desceu correndo para o porão, seguindo um pressentimento terrível que crescia em seu peito. Suas suspeitas se confirmaram de forma ainda mais macabra do que imaginara.
Lá estava ele, Amâncio Silveira, ou o que restava dele depois de quatro décadas, sentado numa poltrona de couro vermelho, vestido com seu melhor terno preto, mumificado pelo tempo e pelo ar seco e frio do porão. Seus olhos vazios pareciam observar uma mesa posta para três pessoas: pratos com comida apodrecida, copos com vinho transformado em vinagre, guardanapos de linho dispostos com cuidado obsessivo. As irmãs jantavam com o pai morto há 40 anos, conversavam com ele, serviam-lhe comida, tratavam-lo como se ainda estivesse vivo. Mas por quê? O que as havia levado a esta loucura que durou quatro décadas?
O delegado sabia que precisava encontrar mais respostas. Precisava entender como uma família respeitável havia se transformado numa tragédia que durou 40 anos. A verdade estava escondida em algum lugar daquela casa, e ele não descansaria até encontrá-la, por mais terrível que ela fosse. O delegado Floriano pegou o diário encontrado no porão com mãos que tremiam incontrolavelmente. A primeira página estava datada de 15 de janeiro de 1902, o dia seguinte à morte de Amâncio Silveira. A caligrafia de Esperança era jovem, firme, mas já revelava sinais do trauma que acabara de vivenciar.
Papai morreu hoje, mas não foi como todos pensam. Não foi o coração que parou. Foi um acidente terrível. Foi culpa nossa. Foi. Cordélia empurrou ele na escada durante uma discussão sobre a herança que ele queria deixar para os netos que nunca tivemos. Ele bateu a cabeça no degrau de mármore. Sangue por toda parte, tanto sangue que pensei que nunca conseguiríamos limpar.
Floriano sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Continuou lendo, cada palavra revelando camadas mais profundas da tragédia que se desenrolara naquela casa.
16 de janeiro de 1902: Decidimos esconder o corpo. Ninguém pode saber o que realmente aconteceu. Cordélia não suportaria a prisão. Ela já está em estado de choque, falando sozinha, dizendo que papai vai perdoar a gente. Eu não suportaria perdê-la também. Enterramos um caixão vazio no cemitério, um caixão cheio de pedras e terra. Papai ficou conosco para sempre, aqui, no nosso lar.
20 de janeiro de 1902: Cordélia começou a falar com o papai como se ele estivesse vivo. Ela põe a mesa para três pessoas todas as noites. Diz que ele não está morto, que está apenas descansando, que ele responde quando ela fala com ele. Eu finjo que concordo porque não tenho coragem de quebrar a ilusão que a mantém funcionando. Somos duas prisioneiras do nosso segredo.
Floriano virou as páginas amareladas, observando como a caligrafia de Esperança mudava ao longo dos anos. Tornava-se mais trêmula, mais desesperada, mais carregada de culpa e remorso.
Primeiro de março de 1902: Mudamos papai para o porão. Cordélia insiste que ele precisa de um lugar mais confortável para receber as visitas. Compramos a poltrona de couro mais cara da cidade. Ela disse que papai merece o melhor, mesmo depois de morto. Às vezes eu me pergunto quem está mais louca. Ela por acreditar que ele está vivo, ou eu por fingir que acredito também?
As páginas seguintes revelavam a progressão da loucura que havia se instalado naquela casa. Esperança descrevia como Cordélia conversava longamente com o pai morto, como servia comida para ele, como trocava suas roupas regularmente.
15 de dezembro de 1910: Oito anos se passaram desde aquela noite terrível. Cordélia envelheceu, mas sua mente parou naquele dia de janeiro. Ela ainda espera papai subir para o jantar todas as noites. Ainda conversa com ele sobre negócios, sobre o tempo, sobre as fofocas da vizinhança. Eu cuido dela, cuido dos dois. Sou a guardiã desta loucura silenciosa.
Floriano notou como a letra de Esperança se tornava cada vez mais irregular. Os anos de isolamento e culpa estavam cobrando seu preço.
3 de junho de 1925: Vinte e três anos. As pessoas da rua esquecem. Ninguém mais pergunta por papai. Somos apenas duas solteironas excêntricas que vivem sozinhas. Se soubessem a verdade sobre o que guardamos no porão, se soubessem que jantamos com um morto todas as noites, nos chamariam de loucas. E talvez estejam certos.
As entradas do diário se tornavam mais espaçadas nos anos seguintes. Esperança escrevia apenas quando a culpa se tornava insuportável, quando precisava confessar seus pecados para o papel, já que não podia confessá-los para nenhum ser humano vivo.
10 de abril de 1942: Estou doente, muito doente. O médico disse que é o coração, mas eu sei que é a culpa que está me matando lentamente. Cordélia também está fraca. Ela mal consegue descer para o porão para visitar papai. Ontem ela me disse que ele está chamando a gente, que ele quer que paremos de sofrer. A morte é um descanso que ele nos oferece.
A última entrada estava datada de apenas duas semanas atrás. A caligrafia era quase ilegível, trêmula, como a de uma criança aprendendo a escrever.
Não temos mais forças para continuar esta farsa terrível. Quarenta anos fingindo que papai está vivo. Quarenta anos servindo comida para um morto. Quarenta anos conversando com um cadáver. Cordélia comprou veneno na farmácia, disse que finalmente vamos poder conversar com papai de verdade, que finalmente vamos poder pedir perdão pelo que fizemos. Talvez ela esteja certa. Talvez a morte seja a única forma de nos libertarmos desta culpa que nos consome.
Floriano fechou o diário e o guardou cuidadosamente. Agora entendia completamente a tragédia que havia se desenrolado naquela casa durante quatro décadas. Duas mulheres presas por um acidente, presas pela culpa, presas por um amor doentio que as impediu de viver suas próprias vidas. Elas escolheram a loucura em vez da verdade. Escolheram viver com os mortos em vez de enfrentar a realidade dos vivos.
Mas ainda havia uma última descoberta por fazer. Uma descoberta que revelaria que os segredos daquela família eram ainda mais profundos e perturbadores do que qualquer um poderia imaginar. O delegado subiu do porão com o diário sob o braço. Sabia que precisava examinar cada cômodo daquela casa maldita. Precisava ter certeza de que havia descoberto todos os segredos que as irmãs Silveira guardaram por 40 anos. E foi no último cômodo que encontrou a verdade final, a verdade que mudaria tudo.
O legista municipal chegou na casa das irmãs Silveira numa tarde cinzenta de agosto. Dr. Sebastião era um homem meticuloso, acostumado a desvendar os segredos que os mortos levavam consigo. Mas mesmo com décadas de experiência, nada o preparou para o que encontraria naquela casa maldita. Ele examinou primeiro o corpo de Cordélia, 68 anos. Desnutrição severa, sinais de que havia parado de se alimentar adequadamente há meses. A morte havia sido natural, causada pela combinação de idade avançada e fraqueza extrema. Esperança, por outro lado, apresentava um quadro diferente. O legista encontrou traços de arsênico em seus tecidos, envenenamento deliberado, suicídio planejado e executado com precisão cirúrgica. Ela havia escolhido a morte como libertação.
Mas havia algo mais perturbador na cena, algo que fez o Dr. Sebastião questionar sua própria sanidade. Enquanto examinava o quarto das irmãs, o delegado Floriano fazia sua própria investigação nos cômodos restantes da casa. Foi no último andar que encontrou uma porta disfarçada atrás da estante da biblioteca, uma sala secreta que as irmãs haviam mantido trancada por 40 anos. Floriano forçou a entrada e se deparou com um espetáculo que o deixou sem fôlego.
A sala estava repleta de baús antigos, todos cuidadosamente organizados e etiquetados com datas que remontavam ao início do século. Dentro dos baús, a fortuna completa de Amâncio Silveira. Moedas de ouro que brilhavam como pequenos sóis, joias que valiam mais do que a maioria das pessoas ganhava em uma vida inteira. Documentos de propriedades espalhadas por todo o Paraná, ações de empresas que se tornaram prósperas ao longo das décadas. As irmãs Silveira eram ricas, imensamente ricas, mas haviam vivido como pobres durante 40 anos, negando a si mesmas qualquer conforto ou luxo, como se a fortuna pertencesse apenas ao Pai morto e elas fossem meras guardiãs de um tesouro que jamais poderiam tocar, um fardo de ouro.
No centro da sala secreta, uma mesa com três cadeiras dispostas em círculo. Na parede, uma fotografia emoldurada da família nos tempos felizes. Amâncio Silveira sorrindo ao lado das filhas jovens, tempos em que ainda eram uma família normal antes do acidente que mudou tudo. Embaixo da fotografia, uma mensagem escrita à mão em caligrafia masculina.
Família é para sempre, mesmo na morte.
Floriano reconheceu imediatamente a letra. Era a mesma caligrafia dos documentos antigos de Amâncio Silveira, que havia encontrado junto com o corpo enterrado. Mas isso era impossível. O homem estava morto há 40 anos. O delegado examinou a mensagem mais de perto. A tinta estava fresca. Não podia ter mais de algumas semanas. Alguém havia escrito aquelas palavras recentemente, mas quem?
Ele voltou ao quarto das irmãs e examinou novamente as cartas espalhadas pelo chão. Agora, com uma compreensão mais profunda da situação, notou algo que havia escapado anteriormente. Algumas das cartas não estavam escritas pela caligrafia feminina das irmãs. Algumas estavam escritas com a mesma letra masculina que havia encontrado na sala secreta. Cartas de resposta. Como se Amâncio Silveira realmente tivesse respondido às filhas ao longo dos anos.
Floriano sentiu suas pernas tremerem, pegou uma das cartas com letra masculina e leu:
Minhas queridas filhas, não se culpem pelo que aconteceu. Foi um acidente. Eu perdoo vocês. Sempre perdoei. Continuem cuidando uma da outra. Continuem cuidando de mim. Somos uma família. Famílias não se separam.
Outra carta mais recente:
Cordélia e Esperança, vocês sofreram demais. É hora de descansar. É hora de se juntarem a mim. Não tenham medo. A morte é apenas o começo de uma nova vida juntos.
O delegado correu de volta ao porão. Examinou o corpo mumificado de Amâncio Silveira com novos olhos. Procurou por sinais de que alguém havia movido o corpo recentemente. Procurou por evidências de que as irmãs realmente acreditavam que ele estava vivo. Foi então que notou algo que o fez questionar sua própria sanidade. Na mesa, ao lado da poltrona, havia uma caneta-tinteiro, uma caneta com tinta fresca, e, ao lado da caneta, papel de carta com o timbre da família Silveira, como se Amâncio realmente escrevesse cartas para as filhas. Floriano pegou a caneta e examinou a ponta. Tinta azul ainda úmida. Alguém havia usado aquela caneta muito recentemente, mas as irmãs estavam mortas há semanas e não havia mais ninguém naquela casa, ninguém vivo, pelo menos.
O delegado olhou novamente para o rosto mumificado de Amâncio Silveira. Os olhos vazios pareciam observá-lo com uma intensidade perturbadora. A boca ressecada parecia estar prestes a falar. Por um momento terrível, Floriano teve a impressão de que o morto havia se movido ligeiramente, como se estivesse apenas fingindo estar morto. Ele recuou rapidamente, o coração batendo descompassado. Sabia que sua mente estava pregando peças nele. Sabia que 40 anos de loucura naquela casa estavam afetando o seu julgamento, mas não conseguia se livrar da sensação de que estava sendo observado, de que Amâncio Silveira realmente estava presente naquela sala, cuidando das filhas, mesmo depois da morte.
O delegado subiu correndo do porão. Precisava sair daquela casa. Precisava respirar ar puro e recuperar sua sanidade. Mas enquanto subia as escadas, ouviu um som que o fez parar no meio do caminho. O ranger de uma cadeira sendo arrastada no porão, como se alguém estivesse se levantando da mesa de jantar.
O delegado Floriano parou no meio da escada, o coração batendo como um tambor de guerra. O som do porão havia cessado, mas o eco ainda reverberava em sua mente como um pesadelo que se recusa a desaparecer. Ele desceu novamente, a mão trêmula no revólver. O porão estava exatamente como havia deixado. Amâncio Silveira permanecia imóvel na poltrona de couro, os olhos vazios fixos na mesa posta para três pessoas, mas algo havia mudado. A cadeira ao lado da mesa estava ligeiramente deslocada, como se alguém realmente tivesse se levantado há poucos segundos. Floriano examinou o chão empoeirado ao redor da mesa. Não havia pegadas além das suas próprias, nenhum sinal de movimento recente, apenas o silêncio sepulcral que habitava aquela casa há décadas.
Ele sabia que sua mente estava pregando peças. Quarenta anos de loucura concentrados naqueles cômodos estavam afetando seu julgamento profissional, mas não conseguia se livrar da sensação perturbadora de que não estava sozinho naquela casa, de que havia uma terceira presença, invisível, mas real.
A investigação foi oficialmente encerrada três dias depois. Os corpos das irmãs foram enterrados no cemitério municipal, ao lado do túmulo vazio que haviam erguido para o pai 40 anos atrás. A fortuna da família foi doada para instituições de caridade, conforme determinado por um testamento encontrado na sala secreta. A casa número 247 da Rua Voluntários da Pátria foi lacrada pelas autoridades. Ninguém queria comprar uma propriedade com uma história tão macabra. Ninguém queria viver onde uma família inteira havia sucumbido à loucura e à culpa.
Mas os vizinhos começaram a relatar coisas estranhas. Dona Palmira, que havia se mudado para a casa de uma sobrinha no centro da cidade, voltava ocasionalmente para verificar sua antiga propriedade. Ela jurava que via luzes fracas movendo-se pelos cômodos da casa lacrada durante as madrugadas mais frias. O carteiro Edmilson, transferido para outra rota por insistência própria, ainda passava pela Rua Voluntários da Pátria, quando visitava amigos na região. Ele contava que, às vezes, ouvia vozes vindas da casa vazia, três vozes conversando baixinho, como se a família Silveira ainda estivesse reunida para o jantar. O açougueiro Libório relatava que ocasionalmente encontrava a porta da frente da casa entreaberta pela manhã, mesmo sabendo que os soldados a haviam trancado cuidadosamente na noite anterior, como se alguém ainda entrasse e saísse daquela propriedade maldita.
Seis meses depois da descoberta, um incêndio misterioso consumiu completamente a casa das irmãs Silveira. As chamas surgiram durante uma madrugada sem vento, sem tempestade, sem qualquer explicação lógica. Quando os bombeiros chegaram, encontraram apenas cinzas e escombros, mas o mais perturbador foi o que não encontraram. O corpo mumificado de Amâncio Silveira havia desaparecido completamente. Nem mesmo ossos ou dentes resistiram ao fogo, como se ele nunca tivesse existido.
O delegado Floriano aposentou-se dois anos depois, assombrado por perguntas que jamais conseguiu responder. Em suas noites de insônia, ele se questionava sobre a natureza da culpa humana e os limites da devoção familiar. Como duas mulheres inteligentes haviam escolhido viver 40 anos com um morto em vez de enfrentar as consequências de um acidente? Como o amor pode se transformar em prisão? Como os segredos podem consumir vidas inteiras? Ele pensava sobre as cartas escritas com caligrafia masculina, sobre a caneta com tinta fresca encontrada ao lado do corpo mumificado, sobre os sons que ouvira no porão naquela tarde terrível. Algumas perguntas permaneciam sem resposta, assombrando sua mente como fantasmas que se recusam a partir.
Se Esperança havia se envenenado, quem escreveu a última carta encontrada sobre sua cama, a carta datada do dia seguinte à sua morte? A carta que dizia: “Papai, finalmente estamos juntos para sempre” numa caligrafia que não era dela, numa caligrafia que não era de Cordélia, numa caligrafia que ele havia reconhecido dos documentos antigos como sendo de Amâncio Silveira, a caligrafia de um homem morto há 40 anos.
Os moradores da Rua Voluntários da Pátria evitavam falar sobre a família Silveira. Era como se um pacto silencioso tivesse se estabelecido entre eles para enterrar aquela história junto com os corpos. Mas nas noites de inverno, quando o vento sul cortava as ruas de Curitiba como uma lâmina gelada, alguns vizinhos ainda juravam ouvir vozes vindas do terreno vazio onde antes ficava a casa. Vozes que conversavam sobre o passado, vozes que planejavam o futuro, vozes de uma família que finalmente havia se reunido para sempre. Três vozes que se recusavam a aceitar que a morte é o fim de todas as histórias. A verdade sobre o que realmente aconteceu naquela casa permanece enterrada junto com seus segredos. Talvez algumas famílias realmente sejam indestrutíveis. Talvez alguns laços sejam fortes demais para serem quebrados pela morte. Ou talvez a culpa e o remorso sejam capazes de criar realidades próprias. Mundos onde os mortos continuam vivendo e os vivos escolhem morrer. O que você acredita que aconteceu na casa das irmãs Silveira? Foram 40 anos de loucura coletiva, ou algo mais perturbador estava acontecendo naqueles cômodos silenciosos? Algumas verdades são pesadas demais para serem carregadas pelos vivos, e algumas famílias jamais realmente se separam, mesmo quando deveriam.