(1870, Porto Alegre) O Horripilante Caso de Elisa Fagundes

Atenção, bem-vindo a este percurso por um dos casos mais inquietantes registrados na história de Porto Alegre. Antes de iniciar, convido você a deixar nos comentários de onde está nos assistindo e a hora exata em que escuta esta narração. Interessa-nos saber até que lugares e em que momentos do dia ou da noite chegam estes relatos documentados.

No inverno de 1870, quando Porto Alegre ainda era uma cidade de contornos provinciais, com suas ruas de paralelepípedos e casarões coloniais abraçados pela neblina que subia do Guaíba, ocorreu um dos casos mais perturbadores já registrados na história do Rio Grande do Sul. Os documentos sobre este acontecimento permanecem guardados nos arquivos municipais, classificados e posteriormente esquecidos em 1962, após uma breve investigação conduzida pelo historiador Cláudio Mendes, que curiosamente abandonou sua carreira acadêmica logo após contato com estes registros. A rua da praia, como era

conhecida a atual rua dos Andradas, era o coração comercial da cidade. Casas de comércio, cafés e residências dos mais abastados comerciantes alinhavam-se ao longo de seu trajeto. Foi neste cenário que a família Fagundes estabeleceu residência em um sobrado de dois andares com vista parcial para o porto.

Ernesto Fagundes, viúvo e comerciante próspero de erva mate, vivia ali com sua única filha, Elisa, e três empregados, a governanta Helena Azambuja, uma senhora de aproximadamente 60 anos, o mordomo Geraldo Pinto, homem reservado de meia idade, e Júlia, uma jovem criada de origem alemã recém-chegada da região de São Leopoldo.

De acordo com os registros paroquiais da Igreja das Dores, Elisa havia completado 23 anos naquele inverno. Os mesmos registros indicam que ela havia sido batizada tardiamente aos 7 anos de idade, o que não era comum na época. Uma anotação à margem do livro de batismos feita pelo padre Anselmo menciona que a criança apresentava natureza reservada e temerosa. Este detalhe, aparentemente insignificante seria posteriormente conectado a outros elementos do caso por investigadores no final do século XIX.

Ernesto Fagundes era conhecido na comunidade como homem de negócios competente, embora excessivamente reservado para os padrões sociais da época. Relatórios da Associação Comercial de Porto Alegre indicam que ele raramente comparecia a eventos sociais, mesmo aqueles diretamente ligados ao seu comércio. Um jornal local, O Mercantil, em sua edição de 12 de maio de 1867 menciona que Fagundes mantém distância calculada dos assuntos comunitários, preferindo o isolamento de sua residência. e contando com intermediários para seus negócios mais

importantes. Esta reclusão, inicialmente atribuída ao luto pela morte da esposa Maria Augusta, havia se estendido por mais de 15 anos. Os vizinhos da família Fagundes raramente viam Elisa. Quando questionados anos depois, vários moradores da rua da praia afirmaram que a jovem aparecia apenas ocasionalmente à janela do segundo andar. sempre ao entardecer e por breves momentos.

A senora Joaquina Vasconcelos, proprietária de uma casa vizinha, afirmou em depoimento datado de 28 de agosto de 1870. A menina tinha aspecto pálido e olhar distante. Raramente descia à rua e quando o fazia estava sempre acompanhada pelo pai ou pela governanta, nunca sozinha. As aparições de Elisa na sociedade portoalegrense eram tão raras que geravam comentários.

Há um relato no diário pessoal de Amélia Teixeira, filha de um importante comerciante local, sobre um raro encontro com Elisa durante uma missa na catedral. A senorita Fagundes permaneceu imóvel durante toda a celebração. Seus lábios não se moviam nas orações e seus olhos fixavam-se no altar como se buscassem algo além.

Quando tentei cumprimentá-la na saída, ela apenas baixou o olhar e apressou o passo, seguida de perto por sua governanta, que me lançou um olhar de advertência. O que aconteceu na noite de 23 de julho de 1870 permaneceria como uma lacuna perturbadora nos registros policiais da época, se não fosse por um relatório detalhado encontrado em 1958 durante a reforma do antigo prédio da delegacia central.

Este documento, assinado pelo delegado Horácio Silveira descreve o chamado urgente que recebeu por volta das 23 horas daquela noite. Segundo o relatório, o mordomo Geraldo Pinto chegou à delegacia em estado de agitação extrema, relatando gritos vindos do quarto de Elisa.

Quando o delegado chegou ao sobrado da rua da praia, encontrou uma cena que descreveu como de inquietante anormalidade. A casa estava em perfeita ordem, sem sinais de luta ou violência. Ernesto Fagundes recebeu as autoridades com uma calma que o delegado descreveu como perturbadora diante das circunstâncias. Quando questionado sobre sua filha, respondeu simplesmente que Elisa havia partido para visitar parentes em Pelotas e que o mordomo havia se equivocado quanto aos supostos gritos.

A governanta Helena confirmou a versão de Ernesto, acrescentando que a jovem havia partido na diligência da tarde. O delegado, entretanto, notou que não havia bagagem preparada, nem qualquer outro sinal de uma viagem planejada. Quando solicitou verificar o quarto de Elisa, Ernesto inicialmente hesitou, mas acabou permitindo a inspeção após o delegado mencionar a possibilidade de retornar com um mandado judicial.

O quarto de Elisa, localizado no segundo andar da residência, estava impecavelmente arrumado. A cama feita, o guarda-roupa fechado, os objetos pessoais organizados sobre a penteadeira. Um detalhe, entretanto, chamou a atenção do delegado, um livro de orações aberto sobre a mesa de cabeceira com várias páginas arrancadas.

Quando questionado sobre isso, Ernesto explicou que sua filha costumava recortar passagens bíblicas para meditação, um hábito que havia adquirido após a morte da mãe. O relato oficial do delegado encerra-se com a conclusão de que não havia indícios de crime e que o mordomo provavelmente confundiira os sons do vento, particularmente forte naquela noite, com gritos humanos.

Geraldo Pinto foi dispensado do serviço na manhã seguinte, segundo registros da paróquia local, onde buscou abrigo temporário. Não fosse por um diário encontrado em 1961, durante a demolição de uma antiga construção na rua Riachuelo, o caso de Elisa Fagundes teria permanecido como apenas mais um mistério sem solução na história de Porto Alegre.

O diário, identificado como pertencente a Júlia, a criada da família Fagundes, continha anotações em alemão gótico que foram posteriormente traduzidas pelo professor Wilhelm Schmid da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As anotações de Júlia revelam uma atmosfera de tensão crescente na Casa dos Fagundes, nos meses que antecederam o desaparecimento de Elisa.

Em uma entrada datada de 18 de abril de 1870, ela escreve: “A senhorita passa horas olhando pela janela, sempre na direção do Guaíba. Quando perguntei se esperava por alguém, ela sorriu de maneira estranha e disse que aguardava apenas o momento certo. Não compreendi o significado dessas palavras, mas algo em seu olhar me causou um arrepio.

Em outra anotação, datada de 2 de maio, Júlia relata: “Hoje, enquanto arrumava o quarto da senorita Elisa, encontrei várias cartas escondidas sob o colchão. Não li seu conteúdo, pois estavam em envelope lacrado, mas todos tinham o mesmo destinatário. Alberto Rodrigues, rua da ladeira, número 23. Este endereço, segundo registros municipais da época, pertencia a uma pequena hospedaria próxima ao porto, frequentada principalmente por marinheiros e viajantes de passagem.

A entrada mais perturbadora do Diário de Júlia, datada de 19 de julho, 4 dias antes do desaparecimento de Elisa, descreve uma conversa que a criada acidentalmente ouviu entre Ernesto Fagundes e a governanta Helena. Ele dizia que não poderia permitir tal desgraça, que a honra da família estava acima de qualquer outro valor.

A senora Helena concordava, dizendo que a situação havia se tornado insustentável e que medidas drásticas eram necessárias. Quando me perceberam no corredor, ambos silenciaram imediatamente. O olhar que o Senr. Fagundes me lançou fez meu sangue gelar. A última entrada no Diário de Júlia, datada de 23 de julho, é breve e críptica.

Os gritos começaram por volta das 9 horas. A senora Helena mandou-me ficar em meu quarto, trancando a porta por fora. Os sons eram tão angustiantes que cobri meus ouvidos com o travesseiro, mas ainda assim podia ouvi-los. Depois veio o silêncio, mais terrível que os gritos: “Temo por minha vida”. Esta seria a última anotação de Júlia.

Segundo registros paroquiais, ela deixou o serviço na Casa dos Fagundes em 24 de julho, um dia após o desaparecimento de Elisa. O livro de registros da paróquia alemã em São Leopoldo indica que ela retornou à comunidade de origem, mas não há menções posteriores sobre seu destino. O caso tomou um rumo inesperado em novembro de 1870, quando um pescador encontrou nas margens do Guaíba, próximo à região conhecida como Ponta do Dionísio, restos de vestimentas que foram posteriormente identificadas como pertencentes a Elisa Fagundes. Um exame mais detalhado da área revelou, enterrado na lama da

margem, um medalhão de prata com as iniciais EF gravadas, reconhecido por vizinhos como um objeto frequentemente usado pela jovem. O delegado Horácio Silveira reabriu a investigação, desta vez concentrando-se na hipótese de que Elisa poderia ter cometido suicídio.

Ernesto Fagundes, quando confrontado com esta possibilidade, mostrou-se irredutível em negá-la, insistindo que sua filha estava vivendo com parentes em pelotas. Quando as autoridades verificaram esta informação, descobriram que a família de fato possuía parentes naquela cidade, mas nenhum deles havia visto ou recebido Elisa.

A pressão sobre Ernesto aumentou quando o delegado mencionou o nome de Alberto Rodrigues, baseado nas informações do diário de Júlia, que havia sido encontrado por acaso, por outro inquilino da casa, onde ela se hospedara brevemente após deixar o serviço dos fagundes. Este diário havia sido entregue às autoridades em outubro de 1870. Confrontado com este nome, Ernesto inicialmente negou conhecê-lo.

Entretanto, quando o delegado revelou que havia localizado Alberto, um jovem comerciante de origem portuguesa que frequentemente viajava entre Porto Alegre e Rio Grande, e que este admitira manter correspondência secreta com Elisa por mais de um ano. A postura de Ernesto mudou drasticamente.

Segundo o relato policial, Ernesto empalideceu visivelmente e solicitou um momento a sós. Quando o interrogatório foi retomado horas depois, ele ofereceu uma nova versão dos fatos. admitiu que havia descoberto as cartas trocadas entre sua filha e Alberto, revelando um relacionamento que considerava inadequado e degradante. Conforme seu depoimento, houve de fato uma discussão acalorada na noite de 23 de julho, após a qual Elisa deixou a casa voluntariamente, presumivelmente, para encontrar-se com Alberto.

Ernesto afirmou não ter mais notícias dela desde então e expressou sua crença de que o casal havia fugido juntos. Esta versão seria desafiada pelo próprio Alberto Rodrigues, que em depoimento prestado em 30 de novembro afirmou: “Recebi uma carta de Elisa na manhã de 23 de julho, na qual ela expressava temor por sua segurança e mencionava planos de seu pai para enviá-la a um convento em São Paulo.

Ela solicitava que eu a esperasse no CIS às 10 horas daquela noite, com planos de fugirmos para o Rio de Janeiro. Aguardei até o amanhecer, mas ela nunca apareceu. A carta mencionada por Alberto, que ele entregou às autoridades continha uma passagem particularmente inquietante. Meu pai descobriu sobre nós. Sua ira é terrível, mas mais assustadora é a calma com que agora me trata, como se já houvesse decidido meu destino.

A governanta evita meu olhar e ouço conversas em sussurros que cessam quando me aproximo. Temo que estejam preparando algo que destruirá nossa felicidade para sempre. A investigação ganhou um novo e perturbador elemento quando o antigo mordomo Geraldo Pinto, que havia se mudado para Rio Grande após deixar o serviço dos fagundes, procurou as autoridades em dezembro de 1870.

Seu depoimento preservado nos arquivos policiais apresenta detalhes que lançam luz sobre os eventos daquela noite. Segundo Geraldo, por volta das 21 horas do dia 23 de julho, ele ouviu uma discussão acalorada vinda do escritório de Ernesto, onde este se encontrava com Elisa.

As vozes elevaram-se, seguidas por um barulho de objetos sendo derrubados. Preocupado, o mordomo aproximou-se da porta, momento em que ouviu Ernesto dizer: “Prefiro vê-la morta, a deshonrada, por um aventureiro sem nome”. A resposta de Elisa foi clara: “Então terá que me matar, pai, pois não renunciarei ao meu amor.

” Geraldo relatou que se afastou da porta quando ouviu o passo se aproximando, fingindo estar apenas de passagem pelo corredor. Aproximadamente meia hora depois, ouviu gritos vindos do quarto de Elisa no segundo andar. Ao subir as escadas, encontrou a porta trancada. Os gritos cessaram abruptamente, seguidos por sons de arrastar e de água corrente, conforme seu depoimento.

Quando a senora Helena saiu do quarto, estava carregando lençóis manchados que tentou esconder de minha vista. Suas mãos tremiam e havia manchas escuras em seu avental. Quionei-a sobre a senrita Elisa e ela respondeu que a jovem estava indisposta e não deveria ser incomodada. O olhar que me lançou continha uma advertência clara.

Geraldo acrescentou que, por volta das 23 horas, observou Ernesto e o coxeiro particular da família, João Silveira, carregando um grande baú para a carruagem. Quando questionou sobre o que faziam aquela hora tardia, Ernesto respondeu secamente que estava enviando alguns pertences da filha para Pelotas, onde ela iria em breve.

O mordomo notou que o baú era pesado o suficiente para exigir o esforço dos dois homens e que havia cordas amarradas ao seu redor como se temessem que se abrisse durante o trajeto. Este depoimento provocou uma reviravolta na investigação. O delegado Horácio Silveira ordenou imediatamente uma busca completa na residência dos Fagundes e nas margens do Guaíba, particularmente na área da ponta do Dionísio, onde as vestimentas de Elisa haviam sido encontradas anteriormente.

A busca na casa não revelou evidências conclusivas, embora um exame minucioso do quarto de Elisa tenha descoberto manchas escuras no açoalho sob o tapete que análises preliminares da época sugeriram ser sangue. No escritório de Ernesto, autoridades encontraram um conjunto de cartas escondidas em um compartimento secreto da escrivaninha, trocadas entre ele e o diretor de um sanatório em São Paulo, discutindo arranjos para a internação de uma jovem de comportamento moralmente desviante. As buscas às margens do Guaíba,

entretanto, produziram o elemento mais perturbador do caso. Em 15 de dezembro de 1870, escavações na área onde as vestimentas haviam sido encontradas revelaram restos humanos parcialmente decompostos, enterrados aproximadamente 1 m abaixo da superfície. A identificação formal era impossível com os recursos da época, mas a presença de longos cabelos negros, semelhantes aos de Elisa, conforme descrições, e fragmentos de um vestido azul, que vizinhos reconheceram como pertencente à jovem, levaram à conclusão

de que os restos eram dela. O laudo médico assinado pelo Dr. Francisco Almeida, em 18 de dezembro, aponta para ferimentos consistentes com golpes de objeto contundente na região do crânio como provável causa da morte. O documento também menciona marcas de cordas nos ossos dos pulsos e tornozelos, sugerindo que a vítima foi amarrada antes ou após a morte.

Ernesto Fagundes foi formalmente acusado do assassinato de sua filha em 20 de dezembro de 1870. A governanta Helena Azambuja, considerada cúmplice, foi igualmente indiciada. O coxeiro João Silveira, após intenso interrogatório, confessou ter ajudado a transportar o corpo, mas alegou desconhecer o conteúdo do baú no momento do transporte.

Ele se tornou testemunha de acusação em troca de redução de pena. O julgamento que deveria ocorrer em março de 1871 nunca chegou a acontecer. Em 28 de janeiro, Ernesto Fagundes foi encontrado morto em sua cela na casa de detenção de Porto Alegre. O relatório oficial indica suicídio por enforcamento como causa da morte.

Uma nota encontrada em sua cela, preservada nos arquivos judiciais, contém apenas uma frase: “O que fiz, fiz para preservar a honra do nome Fagundes.” Helena Azambuja, que aguardava julgamento em uma cela separada, recusou-se a alimentar-se após saber da morte de Ernesto, falecendo por inanição em 5 de fevereiro, conforme atestado médico da época.

não deixou qualquer declaração ou confissão. O caso de Elisa Fagundes permaneceu como um dos mais perturbadores da história criminal de Porto Alegre durante o século XIX. Relatos de moradores das proximidades da ponta do Dionísio descrevem ter ouvido: “Em noites de vento forte são semelhantes a lamentos vindos da margem do rio.

Estes relatos, entretanto, pertencem ao domínio do folclore local, sem base documental que o sustente. O sobrado da família Fagundes, na rua da praia permaneceu desocupado por quase duas décadas após os eventos de 1870. Em 1892, foi finalmente vendido para uma família de comerciantes portugueses após significativa redução no preço original.

Segundo o jornal O mercantil de 7 de maio daquele ano, os novos proprietários realizaram extensas reformas no imóvel. incluindo a completa remodelação do quarto que havia pertencido a Elisa. Um detalhe final e perturbador veio à luz em 1959, quando uma caixa de documentos foi descoberta durante a renovação da antiga sede do cartório central de Porto Alegre.

Entre os documentos estava um envelope lacrado, contendo uma única folha de papel, identificada como parte do livro de orações de Elisa, encontrado sobre sua mesa de cabeceira na noite de seu desaparecimento. A folha, parcialmente manchada e com as bordas desgastadas continha uma anotação manuscrita na margem, aparentemente feita pela própria Elisa.

Se algo me acontecer, procurem no lugar onde as águas encontram a terra. Não foi por deshonra, mas por amor que enfrentei meu destino. Que Deus perdoe a todos nós. Esta nota nunca chegou às autoridades durante a investigação original. O funcionário do cartório, que a encontrou em 1870, conforme revelado em seu diário pessoal descoberto junto com os documentos, optou por ocultá-la por temer represáalhas da influente família Fagundes.

O funcionário Sebastião Oliveira escreveu: “Algumas verdades são perigosas demais para serem reveladas, mesmo em nome da justiça. Guardo este segredo comigo, mas não posso destruí-lo, pois seria cúmplice de um silenciamento ainda maior. O historiador Cláudio Mendes, que em 1962 conduziu a última investigação formal sobre o caso antes de seu arquivamento definitivo, escreveu em suas anotações pessoais: “O horror do caso de Elisa Fagundes não reside apenas no ato brutal que encerrou sua vida, mas na conspiração de silêncio que o cercou. Uma jovem foi apagada não apenas da

existência, mas também da memória coletiva, em nome de uma honra familiar que valia mais que a vida humana. A ponta do Dionísio, local onde os restos de Elisa foram encontrados, foi posteriormente incorporada à área portuária durante as expansões do início do século XX.

Hoje é impossível identificar o local exato onde seu corpo foi enterrado. O sobrado da rua da praia foi demolido na década de 1940, dando lugar a um edifício comercial que ainda existe no centro histórico de Porto Alegre. Em 1968, durante escavações para a fundação de um novo prédio próximo ao antigo porto, trabalhadores encontraram um pequeno medalhão de prata enterrado aproximadamente 2 m abaixo da superfície.

O objeto que tinha as iniciais AR gravadas em um lado e e F no outro foi enviado ao museu histórico da cidade, onde permanece até hoje. Uma inscrição interna, quase ilegível devido à corrosão, ainda pode ser parcialmente decifrada para sempre unidos. Alberto Rodrigues, o jovem que amava Elisa, deixou Porto Alegre após o julgamento e estabeleceu-se em Montevidel, conforme registros de imigração da época.

Nunca se casou, dedicando-se ao comércio de importação até sua morte em 1916. Entre seus pertences pessoais, conforme inventário preservado nos arquivos uruguaios, estava um retrato em miniatura de uma jovem de cabelos negros, sem identificação, que mantinha em sua mesa de cabeceira. O caso de Elisa Fagundes, embora formalmente encerrado, continua a repercutir como um eco distante do passado de Porto Alegre.

É um lembrete sombrio de uma época em que o valor da honra familiar poderia suplantar o valor da vida, especialmente a vida de uma mulher que ousava desafiar as convenções sociais em busca de sua própria felicidade. Nos arquivos empoeirados e nas memórias fragmentadas de uma cidade que se transformou, a história de Elisa permanece como um sussurro quase inaudível, um lamento que o vento ocasionalmente traz quando sopra sobre as águas escuras do Guaíba, onde um dia uma jovem foi silenciada para sempre. Quem visita hoje o centro histórico de Porto Alegre, caminhando pela movimentada rua dos Andradas,

antiga rua da praia, dificilmente imagina as histórias sombrias que seus velhos edifícios presenciaram. O tempo cobriu com novas camadas os horrores do passado. Mas para aqueles que sabem escutar os silêncios da história, as vozes daqueles que foram injustamente silenciados ainda ecoam, pedindo para que suas histórias não sejam esquecidas.

O caso de Elisa Fagundes, como tantos outros, nos lembra que o verdadeiro horror não reside no sobrenatural ou no fantástico, mas nas profundezas da alma humana, na capacidade de pais destruírem filhos em nome de princípios abstratos, na colaboração silenciosa daqueles que testemunham o mal e escolhem agir no apagamento sistemático dos que desafiaram as regras de seu tempo.

Talvez seja por isso que, mesmo após mais de 150 anos, a história de Elisa ainda causa desconforto, não por ser um conto de fantasmas ou de criaturas sobrenaturais, mas por ser um espelho perturbadoramente fiel da escuridão que habita dentro de nós. Uma escuridão muito mais antiga e persistente que qualquer lenda urbana ou superstição popular.

E quando o vento sopra forte sobre o guaíba, nas noites frias de inverno, a quem diga que ainda se pode ouvir, muito baixinho, o eco de um último grito de desespero, de uma jovem que, por amar demais, acabou silenciada para sempre nas águas turvas que abraçam Porto Alegre. Os investigadores que revisitaram o caso na década de 1960 encontraram um elemento adicional que lança novas luzes sobre o contexto daquela família.

Em documentos eclesiásticos da paróquia Nossa Senhora das Dores, datados de 1854, há um registro que menciona Maria Augusta Fagundes, mãe de Elisa, internada por se meses em uma casa de repouso, mantida por freiras nos arredores de Porto Alegre. O motivo declarado era melancolia extrema e comportamento errático após o nascimento da filha.

Este registro sugere que a casa dos Fagundes já havia sido o palco de outros silenciamentos femininos muito antes do trágico fim de Elisa. Em um caderno de anotações pertencente a um médico da época, Dr. Joaquim Menezes, encontrado entre os arquivos da antiga Santa Casa de Misericórdia, a uma entrada datada de março de 1855, que menciona: “A senhora F, após tratamento com banhos frios e isolamento, retornou ao lar aparentemente recuperada, embora com espírito significativamente quebrantado.” O marido expressa satisfação com o resultado, afirmando que a calma

retornou ao lar. Questiono-me sobre o preço de tal calma. Esta entrada lança uma sombra ainda mais perturbadora sobre o caráter de Ernesto Fagundes e sugere um padrão de comportamento controlador que se estendeu de esposa para filha. A governanta Helena Azambuja, conforme descoberto em registros da paróquia, havia sido contratada logo após o retorno de Maria Augusta da casa de repouso, possivelmente para garantir a continuidade da ordem na residência.

O historiador Cláudio Mendes, antes de abandonar sua carreira acadêmica, após a investigação do caso, escreveu em suas anotações pessoais: “A história de Elisa Fagundes é, em essência, a história de duas mulheres aprisionadas pelo mesmo homem. Primeiro a mãe, depois a filha.

A primeira quebrada até a submissão, a segunda destruída por resistir. O verdadeiro horror reside na continuidade deste ciclo, na normalização social que o permitiu. Uma carta encontrada entre os pertences de Maria Augusta, preservada por uma antiga criada da família e doada ao Arquivo Histórico em 1965, fornece um vislumbre perturbador da dinâmica familiar.

Dirigida a sua irmã em São Paulo, mas aparentemente nunca enviada, a carta datada de setembro de 1856 diz: “Vivo como sombra em minha própria casa, Cecília. Minha filha é a única luz, mas temo pelo seu futuro sob este teto. Ernesto controla cada aspecto de nossas vidas com mão de ferro velada por luvas de seda perante a sociedade.

Se pudesse, fugiria com minha pequena para bem longe, mas sei que ele nos encontraria. Seu poder e influência são grandes demais. Maria Augusta faleceu em 1858, oficialmente de Febrefo Foide, conforme a testa o registro de óbito da paróquia. Entretanto, um comentário marginal feito pelo padre, que ministrou os últimos sacramentos, preservado em seu diário pessoal, levanta questões inquietantes.

A senora Fagundes partiu deste mundo com expressão de profunda angústia. Durante o sacramento, em momento de lucidez entre delírios febr, segurou minha mão com força surpreendente e sussurrou: “Salve minha filha dele, padre. Não compreendi o significado destas palavras à época, mas agora me pergunto se não deveria ter agido.

Este diário foi encontrado na biblioteca pessoal do Petrancselmo, após seu falecimento em 1882. e posteriormente incorporado aos arquivos diocesanos, onde permaneceu esquecido por décadas. Os documentos sugerem que, após a morte da mãe, Elisa cresceu sob a vigilância constante do pai e da governanta.

Os poucos registros de sua educação indicam que ela foi instruída em casa, sem frequentar escolas ou participar da vida social típica de jovens de sua classe. Um livro de registros de um professor particular de piano, maestro Giuseppe Verde, sem relação com o famoso compositor italiano, menciona que foi contratado para dar aulas à menina entre 1862 e 1864, mas que as lições foram abruptamente interrompidas quando Ernesto considerou que a música estava fomentando sensibilidades excessivas na jovem, pois O isolamento de Elisa parece ter sido quase completo até 1869, quando os registros mostram que ela

começou a acompanhar o pai ocasionalmente em visitas ao porto para supervisionar carregamentos de erva mate. Foi provavelmente durante uma dessas raras saídas que ela conheceu Alberto Rodrigues, o jovem comerciante português que se tornaria seu amor secreto e, indiretamente a causa de sua morte.

Uma pesquisa nos arquivos portuários realizada em 1966 por um estudante de história da UFRGS revelou que Alberto Rodrigues chegou a Porto Alegre em janeiro de 1869 para estabelecer uma filial do negócio familiar de importação e exportação. Seu escritório ficava próximo ao armazém, onde Ernesto Fagundes estocava sua erva mate antes do embarque para Argentina e Uruguai.

Um funcionário do porto, Antônio Pereira, em depoimento tardio, registrado em 1872, afirmou ter visto trocas de olhares e sorrisos discretos entre Elisa e Alberto durante uma visita de inspeção em março de 1869. Segundo ele, a jovem parecia ganhar vida na presença do rapaz, como flor que finalmente encontra o sol após longo inverno.

Pereira também mencionou ter observado em uma ocasião posterior, Alberto, entregando discretamente um pequeno bilhete a Elisa, quando esta deixou cair propositalmente seu lenço perto dele. Este testemunho, embora tardio, alinha-se com as evidências encontradas nas cartas trocadas entre os jovens, sugerindo que o relacionamento começou por volta desta época e manteve-se através de correspondência secreta por mais de um ano até seu trágico desfecho.

As cartas de Alberto a Elisa, das quais apenas três sobreviveram, encontradas escondidas no forro de uma antiga caixa de joias pertencente à Elisa, descoberta durante a reforma do sobrado em 1892, revelam um relacionamento intenso, mas respeitoso. Em uma delas, datada de setembro de 1869, ele escreve: “Sei que as circunstâncias de sua vida impõem barreiras que parecem intransponíveis, minha querida Elisa, mas acredito firmemente que existe um futuro onde poderemos caminhar juntos à luz do dia, sem temores ou segredos. Peço apenas que não perca a esperança

nesse amanhã, que virá tão certamente quanto o sol nascerá amanhã. Em outra carta de fevereiro de 1870, apenas 5 meses antes da tragédia, Alberto menciona planos concretos. Os preparativos para nossa partida estão quase concluídos.

Meu primo no Rio de Janeiro confirmou que podemos ficar em sua casa pelo tempo necessário até estabelecermos nossa própria residência. De lá, se preferir, podemos seguir para Portugal, onde minha família nos receberá de braços abertos. O navio parte no início de agosto. Tenha coragem por mais algumas semanas. A terceira carta, sem data precisa, mas provavelmente de junho ou início de julho de 1870, tem tom mais urgente.

Suas preocupações sobre a crescente suspeita de seu pai me inquietam profundamente. Se ele de fato interceptou alguma de nossas mensagens, não podemos esperar até agosto. Estou preparando nossa partida para o final deste mês. Enviarei detalhes específicos em breve. destrua esta carta após lê-la. O plano de fuga, conforme reconstruído pelos investigadores baseados nestas evidências e no testemunho posterior de Alberto era relativamente simples.

Elisa deixaria a casa paterna na noite de 23 de julho, encontrando Alberto no Cais, de onde partiriam no primeiro navio para o Rio de Janeiro, na manhã seguinte. De lá seguiriam para Portugal, onde pretendiam casar-se. O que nenhum dos jovens poderia prever era a extensão do controle e da obsessão de Ernesto Fagundes pela honra familiar. Quando descobriu o relacionamento da filha, provavelmente através de alguma carta interceptada, conforme temia Elisa, sua reação foi de uma violência calculada que choca mesmo pelos padrões da época.

Um elemento adicional do caso, descoberto apenas em 1967, durante pesquisas no cartório de notas de Porto Alegre, revela que Ernesto havia arranjado, apenas três semanas antes da morte de Elisa, um casamento para a filha com Teodoro Mendes, viúvo de 58 anos e sócio comercial de longa data.

Um contrato preliminar assinado por ambos os homens em primeiro de julho de 1870 estabelecia os termos de um dote substancial e a data do casamento para 15 de agosto daquele ano. Este arranjo, feito sem o conhecimento ou consentimento de Elisa, adiciona uma camada extra de urgência e desespero à situação.

Quando Elisa soube do casamento arranjado, possivelmente na mesma ocasião em que seu pai a confrontou sobre Alberto, ela deve ter percebido que seu tempo estava se esgotando rapidamente. A violência final que silenciou Elisa permanece parcialmente velada pelos limites da investigação da época, mas os relatórios médicos sugerem um ataque brutal, provavelmente durante ou após uma discussão acalorada sobre sua recusa em aceitar o casamento arranjado e sua intenção de fugir com Alberto.

O fato de que seu corpo foi encontrado com marcas de cordas nos pulsos e tornozelos sugere que ela pode ter sido imobilizada, possivelmente ainda viva, antes do golpe fatal na cabeça. O médico Dr. Francisco Almeida, responsável pelo exame dos restos mortais, escreveu em um relatório complementar, não incluído no documento oficial por considerações de decoro.

A posição dos restos e as marcas preservadas sugerem que a vítima foi contida enquanto ainda oferecia resistência. A natureza e a distribuição dos ferimentos são consistentes com um ataque movido por raiva intensa, possivelmente desencadeado por confronto verbal significativo.

A colaboração da governanta Helena Azambuja no crime e na subsequente ocultação do corpo representa um exemplo perturbador do que os historiadores sociais posteriormente caracterizariam como cumplicidade institucionalizada, em que figuras de autoridade na esfera doméstica participavam ativamente da opressão e ocasionalmente da eliminação de mulheres que desafiavam as normas patriarcais.

Em seus escritos pessoais encontrados após sua morte na prisão, não há expressões de remorço, apenas lamentações sobre como a imprudência da jovem trouxe deshonra e ruína para todos nós, e afirmações de que fiz apenas o que qualquer pessoa de princípios faria para proteger o nome de uma família respeitável.

O coxeiro João Silveira, único sobrevivente direto dos eventos daquela noite, viveu com o peso de sua participação involuntária por décadas. Em 1910, já idoso e gravemente doente, ele ditou uma declaração a um escrivão público, posteriormente preservada nos arquivos da Santa Casa onde faleceu.

Neste documento, ele descreve como ao ajudar Ernesto a carregar o pesado baú para a carruagem, notou manchas escuras se formando no fundo do receptáculo e um odor metálico que reconheceu instintivamente. Naquele momento, escreveu, soube que carregava algo terrível, mas o medo me impediu de questionar ou resistir.

Durante toda a viagem até a margem do rio, o Sr. Fagundes permaneceu em silêncio absoluto, segurando uma pistola sobre o colo. Quando chegamos, ele apenas disse: “Carregue o baú até aquela área mais escura e depois volte para a carruagem. Se valoriza sua vida, esquecerá tudo o que viu esta noite.” Obedeci aterrorizado, e passei os anos seguintes tentando, sem sucesso, esquecer o peso daquele baú e o que sabia que continha.

João Silveira, após cumprir uma pena reduzida de 5 anos por cumplicidade no crime, mudou-se para o interior do estado, onde viveu em relativo anonimato até sua morte em 1910. Alberto Rodrigues, o jovem que amava Elisa e esperava construir uma vida com ela longe das restrições de Porto Alegre, nunca se recuperou completamente da perda.

Conforme relatado por seu primo José Manuel Rodriguez, em uma carta preservada nos arquivos familiares em Lisboa, Alberto deixou o Brasil como homem quebrado, carregando um peso invisível que curvava seus ombros mesmo na juventude. Nunca mais o vi sorrir com verdadeira alegria. E embora tenha prosperado nos negócios, uma parte dele permaneceu para sempre naquela noite de julho na beira do Guaíba, esperando por alguém que nunca chegou.

Em sua última viagem a Porto Alegre em 1905, Alberto visitou o local onde os restos de Elisa haviam sido encontrados. já então irreconhecível devido às obras de ampliação do porto. Segundo testemunha da época, ele permaneceu ali por horas em silêncio contemplativo antes de deixar cair na água o pequeno retrato de Elisa, que sempre carregava consigo.

Foi sua despedida final da mulher que amara e perdera tragicamente 35 anos antes. O medalhão encontrado durante as escavações de 1968, com as iniciais de ambos gravadas e a inscrição para sempre unidos era provavelmente um presente de Alberto que Elisa planejava levar consigo na fuga. Sua presença próxima ao local onde o corpo foi encontrado sugere que ela talvez o estivesse usando ou carregando na noite de sua morte.

Um símbolo silencioso de esperança e amor que a acompanhou até seu fim trágico. O caso de Elisa Fagundes, quando examinado no contexto mais amplo da história social brasileira do século XIX, revela padrões perturbadores de controle patriarcal sobre corpos e vidas femininas. A historiadora Maria Helena Machado, em seu estudo Silêncios Históricos Mulheres no Brasil imperial, publicado em 1966, cita o caso como exemplo extremo, mas não isolado, de como o sistema social da época permitia e até legitimava a violência contra mulheres que tentavam exercer autonomia pessoal. O sobrado onde Elisa viveu e morreu, permaneceu

por décadas como um lembrete silencioso da tragédia até sua demolição em 1940. Antigos moradores do centro de Porto Alegre relatam que o edifício desenvolveu uma reputação sinistra após os eventos de 1870, com sucessivos proprietários permanecendo por períodos curtos antes de venderem a propriedade.

uma empregada que trabalhou na casa durante a década de 1890, quando o sobrado pertencia à família portuguesa que o comprou após longo período de abandono, relatou a neta, que posteriormente compartilhou o relato com pesquisadores em 1964, que o segundo andar da casa permanecia inexplicavelmente frio, mesmo nos dias mais quentes de verão. especialmente o quarto que havia pertencido à moça assassinada.

Estes relatos, embora coloridos pela tradição oral e potencialmente embelezados com o passar do tempo, refletem como a história de Elisa Fagundes penetrou no tecido social da cidade, transformando-se em uma espécie de memória coletiva não oficial, que persistiu mesmo quando os documentos formais foram arquivados e esquecidos.

O historiador Cláudio Mendes, antes de abandonar sua carreira acadêmica e mudar-se para o interior do Rio Grande do Sul, onde viveu como professor primário até sua morte em 1979, deixou um comentário final sobre o caso em suas anotações. A história de Elisa não é apenas sobre um assassinato, mas sobre como uma sociedade inteira pode ser cúmplice no silenciamento sistemático de seus membros mais vulneráveis.

Os verdadeiros monstros não são criaturas sobrenaturais, mas homens comuns investidos de poder absoluto sobre outros seres humanos e sistemas sociais que olham para o outro lado quando esse poder é abusado. A Porto Alegre Contemporânea, com seus arranhacéus e avenidas movimentadas, guarda poucos traços visíveis dos eventos de 1870.

O Guaíba continua a fluir impassível, carregando em suas águas turvas os segredos de gerações passadas. A antiga rua da praia, agora rua dos Andradas, mantém alguns de seus casarões históricos, mas a maioria foi substituída por construções modernas, apagando as cicatrizes físicas do passado.

Entretanto, para aqueles que conhecem a história, que se debruçaram sobre os documentos empoeirados e seguiram os fios tênues de evidência através das décadas, a presença de Elisa Fagundes ainda pode ser sentida nos ventos que sopram do rio, nos silêncios que se formam entre os ruídos da cidade moderna, no eco distante de uma jovem que ousou sonhar com liberdade e pagou o preço máximo por sua coragem.

Em 1970, exatos 100 anos após a morte de Elisa, um pequeno grupo de historiadores e estudantes da UFRGS realizou uma cerimônia simples à beira do Guaíba, próximo ao local aproximado onde seu corpo foi encontrado. Não houve discursos elaborados ou homenagens grandiosas, apenas um momento de silêncio e a colocação de um pequeno buquê de flores na água.

Um gesto simbólico de reconhecimento para alguém que por tanto tempo foi apagada não apenas da vida, mas também da memória coletiva. O professor de história Carlos Silveira, que organizou a cerimônia, explicou seu significado em entrevista ao jornal local. Revisitar estas histórias dolorosas não é exercício de mórbida curiosidade, mas um dever de memória.

Ao reconhecer como Elisa e tantas outras mulheres foram silenciadas, criamos espaço para que as vozes do presente possam ser ouvidas. O passado não pode ser mudado, mas pode ser reconhecido. E nesse reconhecimento reside a possibilidade de um futuro diferente. O caso de Elisa Fagundes, embora ocorrido há mais de 150 anos, continua a ressoar com questões contemporâneas sobre poder, controle e autonomia pessoal.

É um lembrete sombrio de como estruturas de opressão podem se manifestar no mais íntimo das relações humanas, transformando lares em prisões e amor em sentença de morte. Os documentos que contam sua história repousam agora nos arquivos históricos de Porto Alegre, preservados como testemunho silencioso de uma vida abreviada pela violência patriarcal.

Para os pesquisadores que ocasionalmente revisitam estes papéis amarelados, Elisa não é apenas um nome em um relatório policial ou uma estatística de crime do século XIX, mas uma mulher real que amou, sonhou e resistiu, mesmo sabendo que o preço dessa resistência poderia ser e foi sua própria vida.

E assim a história de Elisa Fagundes permanece como um eco distante nas margens do Guaíba, um sussurro quase inaudível entre os ruídos da cidade moderna, lembrando a todos que queiram ouvir que os verdadeiros horrores não residem no sobrenatural ou no fantástico, mas nas profundezas da alma humana e nas estruturas sociais que permitem e perpetuam a opressão.

Em uma cidade que cresceu e se transformou, que enterrou seu passado sob camadas de concreto e modernidade, ainda existe espaço para que histórias como a de Elisa sejam lembradas não como entretenimento mórbido, mas como exercício necessário de memória coletiva e alerta permanente contra a repetição de antigas opressões sob novas formas.

Porque o verdadeiro terror, como nos ensina o caso de Elisa Fagundes, não está nos fantasmas ou nas assombrações, mas no silêncio cúmplice, que permite que vidas sejam destroçadas em nome da honra, da tradição ou de qualquer outro valor que coloque convenções sociais acima da dignidade humana. E quando o vento sopra forte sobre as águas do Guaíba nas noites de inverno, talvez valha a pena parar e escutar.

Não em busca de lamentos sobrenaturais ou manifestações fantasmagóricas, mas como gesto de respeito a todas as elisas, que ao longo da história foram silenciadas por ousar sonhar com uma vida além das paredes que as aprisionavam. M.

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