
VocĂȘ jĂĄ imaginou como era a vida no tempo em que o comboio era o coração das cidades? Naquela manhĂŁ quente, no interior esquecido do Brasil, uma mulher foi deixada sozinha na plataforma, segurando um bebĂ© que nem nome tinha. LĂvia Duarte apertava o pequeno corpo contra o peito, os cabelos grudados pela poeira da viagem, os olhos marejados. O comboio partiu e o silĂȘncio que ficou parecia um grito. As pessoas olhavam e cochichavam, mas ninguĂ©m se aproximava da jovem, sentada no chĂŁo, que apenas olhava na direção por onde o comboio sumira. O tempo passou devagar, e o sol começou a cair, tingindo o cĂ©u de alaranjado.
Foi entĂŁo que o som de cascos se aproximou. Um cavalo castanho coberto de pĂł parou diante dela. O homem que o montava era jovem, forte, com um olhar firme e uma barba por fazer. Era Caio Montenegro, dono da Fazenda Serra Branca.
â Boa tarde, moça â disse ele, descendo lentamente do cavalo. â EstĂĄ tudo bem?
Ela nĂŁo respondeu, apenas o olhou, os olhos vermelhos de chorar.
â Posso ajudar? â insistiu, tirando o chapĂ©u em sinal de respeito. â Me desculpe, mas â ele apontou para o bebĂ© â parece que vocĂȘs dois precisam, sim.
Por um instante, os olhares se cruzaram. LĂvia viu sinceridade naquele estranho. Ele viu dor e cansaço em uma mulher que parecia ter perdido tudo.
â NĂŁo preciso de ajuda â murmurou LĂvia, com a voz fraca.
â Venha, lĂĄ tem ĂĄgua, comida e sombra. Depois decide o que quer fazer.
LĂvia olhou o horizonte vazio e, sem ter mais para onde ir, aceitou. Enquanto ele a ajudava a subir, uma rajada de vento levantou poeira, cobrindo a plataforma como um manto. O comboio jĂĄ havia partido, mas o destino deles estava apenas começando.
O caminho atĂ© Ă Fazenda Serra Branca era longo e silencioso. LĂvia segurava o bebĂ© contra o peito, sentindo o corpo doer, mas o olhar de Caio, firme e sereno, lhe trazia uma paz que hĂĄ muito nĂŁo sentia. Ele conduzia o cavalo com calma, respeitando o silĂȘncio dela.
â NĂŁo precisa ter medo â disse ele finalmente. â NinguĂ©m vai te fazer mal lĂĄ.
â Eu jĂĄ ouvi isso antes â respondeu LĂvia com um fio de voz. Caio nĂŁo insistiu. Entendia que havia dores que o tempo ainda nĂŁo permitia tocar.
Quando chegaram à fazenda, a lua jå clareava o terreiro. A casa, grande de madeira, simples, mas bem cuidada, tinha cheiro de café recém-passado e lenha queimando no fogão. Dona Nair, a empregada idosa, veio até a varanda e arregalou os olhos.
â Uma viajante â respondeu Caio. â EstĂĄ a precisar de ajuda. Arruma um quarto e esquenta um prato para ela.
LĂvia entrou com passos hesitantes. No canto da sala, um retrato emoldurado chamava a atenção: um homem mais velho, com o mesmo olhar determinado de Caio, e uma mulher. A falecida esposa de Caio, Isabel, de semblante sereno, com um bebĂ© nos braços.
â Era seu pai? â perguntou LĂvia.
Caio assentiu com um suspiro. â Era. Faleceu hĂĄ dois anos. Desde entĂŁo ficou sĂł eu e a terra. E ela nĂŁo fala, mas Ă© braba.
LĂvia sorriu pela primeira vez, um sorriso pequeno, tĂmido, mas sincero.
â Sabe â começou Caio, depois de um tempo â, a vida aqui Ă© simples, mas Ă© dura. Se quiser ficar uns dias, pode. NinguĂ©m vai te julgar.
â NĂŁo quero ser peso para ninguĂ©m.
â Peso Ă© o que a gente carrega no coração, moça. Um prato de comida nĂŁo pesa, nĂŁo. â Ele se levantou, ajeitou o chapĂ©u e disse: â AmanhĂŁ cedo te mostro a fazenda. O sol nasce bonito por aqui.
LĂvia apenas anuiu. Quando ele saiu, ela olhou o bebĂ© dormindo e murmurou baixinho: âParece que o destino ainda nĂŁo desistiu da gente, meu filho.â
A partir dali, o que antes era apenas acolhimento começou a se transformar em algo mais profundo. No ritmo do trabalho, LĂvia começou a aprender o compasso da fazenda, nĂŁo como hĂłspede, mas como alguĂ©m que queria merecer o pĂŁo de cada dia. Ela nĂŁo era mais a mulher da estação, era a mulher que, sem prometer nada, estava começando a pertencer.
O tempo em Serra Branca corria diferente, e a cumplicidade silenciosa entre Caio e LĂvia se tornava notĂłria. Numa tarde, no riacho, Caio mostrou-lhe a ĂĄgua que vinha do alto do morro. âMeu pai dizia que ela traz sorte para quem acredita.â LĂvia suspirou. âEu tambĂ©m jĂĄ acreditei, mas quando a gente Ă© deixada para trĂĄs, parece que Deus esquece da gente por uns dias.â Caio parou, olhou para ela e disse: âĂs vezes Deus sĂł muda o caminho pra gente achar o lugar certo.â
LĂvia, pela primeira vez, contou um pedaço de sua histĂłria. â Eu vim de longe. Achava que tinha encontrado um amor, um futuro, mas o comboio levou tudo. Ele me deixou sem olhar para trĂĄs e com um filho nos braços.
â Nem todo mundo vira as costas, LĂvia. Ăs vezes o que a gente perde Ă© o que faz espaço para o que ainda vai chegar.
Os dias se seguiram, mas o ar de Serra Branca começou a rarear. A seca apertou de vez. O chĂŁo rachava, e o gado magro mugia. LĂvia, debruçada sobre o berço improvisado, abanava o bebĂ© com um pedaço de palha seca. O menino, pĂĄlido e febril, gemia baixinho. A febre nĂŁo baixava.
â Ele nĂŁo pode morrer. NĂŁo, agora nĂŁo. Depois de tudo que a gente passou!
Caio respirou fundo. â Eu vou atĂ© o vilarejo buscar o curandeiro.
â SĂŁo duas lĂ©guas atĂ© lĂĄ, homem! O cavalo nĂŁo aguenta!
â Ele aguenta sim. E se nĂŁo aguentar, eu vou a pĂ©. VocĂȘ confia em mim?
â Confio.
â EntĂŁo deixa comigo.
Horas depois, ele voltou com o curandeiro. O vento frio da noite castigava a fazenda. Quando o curandeiro sorriu cansado, disse: âEle vai viver. Mas precisa de descanso e cuidado.â LĂvia desabou num choro de alĂvio nos braços de Caio. âVocĂȘ salvou a vida dele.â âFoi vocĂȘ que nĂŁo desistiu,â respondeu Caio com voz baixa. O bebĂ©, mais calmo, respirava fundo. âAinda sem nome, hein?â comentou o curandeiro. âMenino assim, forte desse jeito, merece um nome bonito.â LĂvia olhou para o pequeno, depois para Caio. âEsperança! Ă isso que ele trouxe para mim e talvez para todos nĂłs.â
Os cochichos do vilarejo, contudo, voltaram a atravessar a cerca. Mulher que se joga no fogo por homem viĂșvo, nĂŁo Ă© de confiança. LĂvia tentou ir embora, mas Caio a deteve. âAqui nĂŁo. A fazenda Ă© minha e minha porta nĂŁo fecha para quem me estendeu verdade.â
Um dia, LĂvia encontrou Caio no curral e disse sem vacilar: âEu escolho ficar, nĂŁo por dĂvida, mas por amor. O que ele me ofereceu antes era sombra. Aqui eu encontrei raiz.â Caio se aproximou devagar, segurou o rosto dela e respondeu: âEntĂŁo que essa raiz cresça e que ninguĂ©m nunca mais arranque.â Ele a beijou devagar, profundo, como quem sela um destino.
Mas o destino ainda guardava uma peça. Numa tarde, ao trocar os lençóis do berço, LĂvia sentiu algo duro costurado na beirada do cobertor. Um papel amarelado. A quem encontrar esta criança? Peço perdĂŁo e fĂ©. O destino o colocarĂĄ no caminho certo. Quem o acolher encontrarĂĄ tambĂ©m sua prĂłpria salvação. Maria da Penha Duarte. LĂvia gelou. Maria da Penha Duarte. O mesmo sobrenome que o dela.
â Caio â ela disse, trĂ©mula â, a minha mĂŁe desapareceu quando eu era menina.
Naquela mesma noite, Caio encontrou-a sentada Ă mesa com o bilhete e um envelope que chegara do cartĂłrio. A carta trazia o timbre de Maria da Penha Duarte, e dizia: O terreno conhecido como Serra Branca pertence por direito ao Ășltimo herdeiro legĂtimo da famĂlia Duarte, desaparecido hĂĄ vinte anos. Caio Montenegro, nascido Caio Duarte, filho de Maria da Penha Duarte e JosĂ© Montenegro. Se estiver lendo isto, meu filho, saiba. O destino nos separou, mas quis nos unir de outro modo.
O silĂȘncio caiu pesado. LĂvia cobriu a boca com as mĂŁos. Caio, seu nome. Ele lia e relia sem acreditar. O bilhete que encontrei costurado no cobertor era dela, da sua mĂŁe. LĂvia assentiu. Caio olhou para Esperança. âEla escreveu que quem acolhesse o menino encontraria sua prĂłpria salvação.â Olhou para LĂvia. âE eu a encontrei em vocĂȘs.â
O passado, enfim, deixava de ser ferida. O bebĂ© abandonado na estação era o elo que ligava duas famĂlias perdidas.
Na capela da fazenda, simples e iluminada por lampiĂ”es, Caio e LĂvia trocaram votos diante de Dona Nair e dos peĂ”es. âEu prometo,â disse Caio, com voz firme, ânunca mais deixar que a vida te faça sentir sozinha.â LĂvia respondeu com os olhos marejados: âE eu prometo te lembrar todos os dias que atĂ© da dor nasce amor.â
O escrivĂŁo trouxe os papĂ©is de Lagoa Serena, as terras fĂ©rteis que a mĂŁe de Caio lhe deixara. NĂŁo seria sĂł a riqueza de uma famĂlia, seria respiro da regiĂŁo. A fazenda nĂŁo seria mais apenas Serra Branca, mas Serra da Esperança.
Anos depois, LĂvia, Caio e Esperança caminhavam pelo rancho. A terra verdejante e a ĂĄgua corrente eram testemunhas de que o amor Ă© igual Ă terra. Pode secar, pode rachar, mas se tiver raiz, ele sempre volta. E o que começou como um pedido de socorro, uma noite de urgĂȘncia, virou ali, diante do Brasil seco e teimoso, uma vida inteira de escolha. A recompensa prometida nĂŁo era o ouro, nem a riqueza, era o renascimento da vida, o reencontro com o amor e o milagre de recomeçar com dignidade.