“EU POSSO FAZER VOCÊ ANDAR DE NOVO” — ELA RIU… MAS O QUE ACONTECEU DEPOIS CHOCOU A TODOS!

Uma menina sem teto disse: “Eu posso fazer você andar de novo?” A milionária cadeirante riu sem levar a sério, mas o que a menina revelou em seguida deixou a milionária completamente surpresa. Isadora está sentada na cadeira de rodas, empurrada por Marcos pelo calçadão do parque.

 O sol da manhã faz o brilho da água do lago dançar nos olhos dela, e o barulho das crianças correndo mistura-se ao canto dos passarinhos. Ela respira fundo, aproveita a brisa leve e sorri com satisfação. Aproveita o momento, acordou cedo para viver um dia diferente e queria sentir liberdade mesmo presa ali. Tudo parece normal até uma vozinha chamar a atenção dela.

 A menina aparece vindo da direção dos arredores do lago. De cabelos sujos, roupa velha e tênis rasgados, ela está se escorando no corrimão. Ana olha a cena com curiosidade. uma menina tão frágil, tão diferente do que ela está acostumada a ver no parque. E parte é isso que mais chama a atenção. A garota não fala alto, mas chega perto, segura o braço de Isadora e solta algo surpreendente.

 Eu posso fazer você andar de novo? A frase sai calma, firme, como se fosse algo que ela tivesse certeza de que podia cumprir. Isadora dá um susto, aperta o braço do esposo, que a empurra para longe. Marcos franze a testa, olha para a menina com desprezo. Ele diz para ela se afastar que ali não é lugar de criança pedindo atenção desse jeito.

 A mesma voz firme de Ana responde: “Eu posso?” Eu vi o remédio que o seu marido deu para você. Isadora sente um frio correr pela espinha. O susto vem menos pelo medo, mais pela verdade dentro da voz da menina. A presença dela é forte, impossível ignorar. Marcos se curva, fala alto com ironia, perguntando se aquela pequena pilantra quer dinheiro ou comida.

 A menina balança a cabeça, olha para o rosto de Isadora e solta de novo, sem receio. Eu não quero dinheiro, eu só quero que você acredite. O remédio que seu marido deu, ele estraga as pernas. Marcos rosna e puxa a cadeira. Manda a menina ir embora, mas ela recua devagar, firme nos pés, sem hesitar. Ana quase se encosta na cadeira, olha nos olhos de Isadora e diz: “Mas eu posso te mostrar se você quiser.

” Nada mais. O parque continua cheio. Ninguém parece notar que algo diferente está rolando. As pessoas se afastam, entram e saem dos quiosques, cuidam das crianças, jogam bola. O barulho volta a ser algo normal e a vida segue como se nada tivesse acontecido. Mas para Isadora, tudo mudou. O coração aperta.

 A voz dela treme um pouco quando pergunta pra menina respirando pesado. Como assim você pode? Ana tem os ombros largos demais para uma criança de 11 anos que vive na rua. A pele da menina está marcada por sujeira. Algumas feridas pequenas perto das mãos e nos joelhos. Ela cruza os braços, olha para Isadora e responde com firmeza: “Eu sei o que você tá tomando.

 O remédio é igual ao que meu pai dava para minha mãe quando ela começou a perder o movimento. Isadora engole em seco. A menina continua. Faz minhas pernas tremerem.” Ela ficou paralisada. Morreu assim. Meu pai depois sumiu. Por isso eu tô aqui. O silêncio paira. Nem o barulho do parque invade esse instante entre as duas.

 A presença de Ana no parque parece estranha. Como ela sabia que remédio era? Como viu Marcos dando? A cabeça de Isadora começa a girar. Os olhos dela ficam marejados. A respiração acelera e a menina solta um último. Eu não tô inventando. Marcos repele a cena tirando a cadeira dali. Ele fala com voz seca que aquela menina está enganando, que vai chamar a segurança.

 Ana dá um passo para trás, mas continua ali, olhando para Isadora com o jeito de quem espera algo. Marco balança a cabeça, sai andando sem olhar para trás, empurrando a cadeira forte com pressa de sair dali. Isadora fica quieta. As pernas dela não se mexem. A cadeira está parada. Ela parece ter encolhido, se sentido frágil.

 Ela olha pra menina, segura a mão dela mesmo suja, aperta de leve e pergunta quase sem voz: “Como você sabe disso?” Ana respira fundo e narra como viu o frasco do remédio no bolso de Marcos quando ele voltou da farmácia e colocou a bolsa no banco do carro. Ele usou o mesmo remédio que meu pai dava para minha mãe. Isadora fecha os olhos, respira com cuidado.

 O coração não para de bater louco. Também escuta sobre a morte da mãe de Ana, como ela era jovem, com cabelo escuro, sorriso leve, como adoecia devagar, caía da agonia de não poder mais andar. E como o pai aparecia com aquele remédio. Depois a menina conta que acordou no meio da noite, viu o pai colocando algo na bebida da mãe. Ela tampara os olhos quando a mãe caiu no chão e depois o pai sumiu.

 A garota não fala com pesar, só fala de forma concreta, natural, como se contasse o que comeu no café. Isadora sente a garganta secar. Sua vida ganha uma rachadura. Ela olha para as costas da menina que balanceia a cabeça para lá e para cá, como se reler algo na memória. Escuta o som dos próprios batimentos. Quando ela abre a boca para perguntar mais, a menina já se virou e saiu devagar pelo parque de novo.

 Aquela promessa paira no ar. Isadora fica lá parada, olhando o rastro da menina sumindo entre as árvores. O parque parece grande, ela sente medo e uma curiosidade que ela nunca sentiu antes. Isadora ficou em silêncio o caminho inteiro de volta. Marcos falava alguma coisa sobre almoçar fora, mas ela nem prestava atenção.

 Tava pensando só naquela menina, na fala dela, no jeito, naquilo tudo que saiu do nada, mas entrou como se já estivesse esperando uma chance. Quando chegaram em casa, ela pediu para ir pro quarto descansar. disse que estava com dor de cabeça. Ele nem discutiu, só fez um sinal com a cabeça e seguiu pro escritório.

 No quarto, ela ficou olhando pro teto por um bom tempo, tentou não pensar, tentou até rir daquilo. Uma menina que apareceu do nada e disse que ela podia andar de novo. Sério? Só podia ser loucura. Ela se virou na cama, olhou paraas pernas imóveis ali paradas, como sempre estiveram nos últimos anos, apertou os olhos, soltou um riso fraco. Isso não era filme. Ela sabia muito bem o que os médicos tinham dito.

 A medula lesionada, o diagnóstico, não tinha como. Mas mesmo tentando não dar importância, ela não conseguia esquecer o olhar da menina, nem a forma como falou, como se tivesse certeza do que dizia. Aquilo grudou na mente dela, igual música ruim que fica tocando o dia inteiro.

 Ela esfregou o rosto, pegou o celular, pensou em procurar algo sobre o tal remédio, mas desistiu e a acabar se assustando por besteira. jogou o celular pro lado e puxou o cobertor. Talvez fosse só uma coincidência. No jantar, ela comentou por alto. Falou da menina como quem fala de uma coisa engraçada. Hoje uma garotinha de rua disse que podia me fazer andar de novo. Soltou, dando uma risada forçada. Marcos nem riu, perguntou se ela deu dinheiro.

 Ela disse que não, que só conversou um pouco. Ele levantou a sobrancelha, deu de ombros e disse que era perigoso esse tipo de gente que criança de ruamente engana, manipula. Você é muito ingênuo às vezes. Completou cortando o bife no prato. Isadora não respondeu, só ficou encarando o copo de suco.

 A menina não tinha pedido nada, nem comida, nem ajuda. Só tinha falado o que sabia. Será que alguém ensinou aquilo para ela? Será que podia mesmo ser real? Naquela noite, ela sonhou com a menina, sonhou com a mãe dela, mesmo sem nunca ter visto. No sonho, as duas estavam numa casa apertada, o chão sujo, uma TV antiga ligada com chiado e a mulher chorava sentada no sofá.

 A menina vinha por trás e dizia: “É esse o remédio, mãe!”, Eu vi ele escondendo e a mulher pálida, só fechava os olhos. Isadora acordou com o peito apertado, como se tivesse corrido por horas. Durante o café, ela mexeu no armário e pegou o frasco que Marcos usava para aplicar o remédio. Olhou pra etiqueta. Parecia tudo normal.

 Nome estranho como sempre, mas era aquele que o médico tinha falado, não era? Ela tentou lembrar da consulta. Foi ele que levou. Foi ele que conversou. Ela só ouviu depois. Ela nunca teve certeza do nome certo. O remédio vinha sempre pelas mãos dele. Guardou o frasco de novo com cuidado e, pela primeira vez se deu conta de que nunca tinha feito uma pergunta direta sobre o remédio.

 Nem pro médico, nem pro Marcos. Sempre confiou. Sempre achou que era assim, mas agora não tinha mais certeza de nada. Mais tarde, naquele dia, ela ligou a TV e tentou assistir qualquer coisa, só para distrair, mas tudo parecia ter a ver com o que ela estava sentindo. Até num filme bobo que passou, tinha uma personagem que descobria uma mentira grande da própria família.

 Ela desligou no meio, não queria saber de drama. Quando Marcos chegou com um novo frasco, dizendo que era reposição do que estava acabando, ela perguntou quase sem pensar: “Você lembra o nome mesmo desse remédio?” Ele disse o nome rápido, como se tivesse decorado. Ela fez que sim com a cabeça, mas por dentro ficou tentando gravar para pesquisar depois.

 Sentiu que ele percebeu porque a encarou por um segundo a mais do que o normal. Foi aí que ela começou a notar o quanto ele observava tudo, cada movimento, cada respiração, quando ela pegava o telefone, quando mexia nas coisas, não era só cuidado, era controle. E aquilo incomodou de um jeito que ela nunca tinha sentido antes.

O carinho dele agora parecia uma cerca. Naquela noite, Isadora decidiu escrever num caderninho escondido no fundo da gaveta. Anotou a data. o que a menina tinha dito, o nome do remédio e tudo o que lembrava do dia. Escreveu sem pensar muito, como quem precisa tirar o peso de dentro. Quando terminou, guardou de novo e ficou olhando pro teto.

 Ela não sabia ainda o que era verdade, não sabia o que aquela menina queria. Mas uma coisa era certa, alguma coisa estava errada. E por mais absurda que parecesse a ideia de que ela poderia voltar a andar, mais absurda ainda era a ideia de que uma criança qualquer saberia tanto assim sobre a vida dela. E isso, isso ela não conseguia ignorar.

 No dia seguinte, o céu estava meio nublado e o vento parecia mais frio do que o normal. Isadora pediu para sair de novo. Disse que queria ir ao parque de novo, andar um pouco, pegar um ar. Marcos estranhou, claro. Era raro ela querer repetir o passeio no dia seguinte, mas ele não falou nada, só pegou a chave do carro e disse que em 20 minutos estariam saindo.

Durante o caminho, ela ficou quieta, olhando pela janela. O parque se aproximava e no fundo ela sabia que queria ver a menina de novo. Quando chegaram, o lugar estava mais vazio. Uns casais sentados nos bancos, alguns corredores, gente passeando com cachorro. Marcos empurrou a cadeira com calma, andando por um caminho diferente do dia anterior. Mas ela estava atenta.

Os olhos de Isadora corriam de um lado pro outro, procurando aquela menina. Nada. Ficaram quase uma hora ali andando devagar. Quando o sol começou a aparecer entre as nuvens, Marcos sugeriu irem embora. Foi aí que Ana surgiu. Do nada, do mesmo jeito de antes, veio devagar, saiu de trás de uma cerca baixa perto de um arbusto, com a mesma roupa suja do dia anterior. Parecia estar esperando o momento certo.

Se aproximou com calma e parou na frente de Isadora. Não falou nada, só ficou ali parada, encarando. Marcos fez menção de tirar a menina de novo dali, mas Isadora levantou a mão devagar e pediu para ele esperar um pouco. Ele cruzou os braços desconfiado. Disse que não tinha tempo para aquilo.

 Ela insistiu, pediu para ele ir até o kiosque comprar uma água, que ela ficaria ali só um minuto. Marcos bufou, revirou os olhos e foi. Assim que ele saiu do campo de visão, Ana se abaixou perto da cadeira de rodas, colocou a mão na borda do apoio e chegou bem perto do rosto de Isadora. Os olhos da menina estavam firmes, sem desviar.

 Ela falou com a voz baixa, mas clara o bastante para Isadora entender tudo. Ele tá colocando o mesmo remédio, igualzinho. Ele quer que você continue assim. Isadora sentiu o estômago embrulhar. Não conseguia dizer nada, só olhava pra menina com o coração disparado. Ana continuou. Minha mãe ficou igual, começou a sentir as pernas pesadas, depois foi piorando e ele falava que era culpa dela, que ela tava inventando. Até que ela parou de andar igual você, igualzinho.

 Ela fez uma pausa, respirou fundo. Eu vi a caixinha no bolso dele, é o mesmo nome. Meu pai dava escondido, dizia que era vitamina, só que depois descobri. Ele dava para minha mãe e ria quando ela tropeçava. Depois ela parou de andar de vez. Aí ele sumiu e eu fiquei sozinha. Isadora sentia o peito apertar. As palavras da menina vinham com tanta verdade e com tanta dor crua que era impossível não acreditar.

 E o pior era perceber que muito daquilo fazia sentido. Ela sempre achou estranho como as coisas aconteceram rápido. Como a piora nas pernas veio logo depois que começou o tratamento com Marcos cuidando de tudo, mas nunca pensou que pudesse ser de propósito. Isso era coisa de filme, de gente maluca, não de uma vida real, não da vida dela. Ana não piscava a boca firme.

 Eu não sei porque ele tá fazendo isso com você. Mas tá. E se você continuar tomando, não vai melhorar nunca. Vai piorar, igual a minha mãe. Nesse momento, Isadora encostou a cabeça no encosto da cadeira, respirava fundo, tentava organizar o que estava ouvindo, mas tudo parecia um borrão. Marcos apareceu de novo ao longe com uma garrafa de água na mão. Ana viu e recuou.

 Ele tá vindo, mas me escuta, por favor. Me encontra amanhã aqui nesse mesmo lugar. Eu posso te mostrar tudo. Antes que Isadora pudesse responder, a menina saiu correndo, sumindo por trás das árvores. Marcos chegou segundos depois. Ela voltou? Ele perguntou, fingindo desinteresse. A mesma menina, o que ela queria agora? Isadora não respondeu de cara, pegou a garrafa de água, agradeceu e disse que queria ir para casa. Ele não insistiu.

Empurrou a cadeira de volta pro carro. Durante o trajeto, o silêncio entre os dois era mais pesado que o carro inteiro. Em casa, Isadora foi direto pro quarto. Não quis comer, disse que estava cansada e quando ficou sozinha chorou. Chorou sem fazer barulho, com raiva, com medo e com dúvida.

 Aquilo tudo podia ser mentira? Uma menina tentando se vingar do próprio passado, inventando uma história, ou podia ser a verdade mais assustadora que ela já tinha encarado? Ela não sabia, mas alguma coisa dentro dela dizia que precisava descobrir. E rápido, no dia seguinte, Isadora acordou mais cedo do que o normal. Ela não dormiu direito.

 Ficou a noite inteira virando na cama, sem conseguir parar de pensar naquilo tudo. A imagem da menina ali do lado dela falando aquelas coisas com tanta firmeza mexeu de um jeito que ela não estava acostumada. A cabeça dela parecia um turbilhão. Não tinha paz. Por mais que tentasse achar que era só invenção, só coincidência, alguma coisa dentro dela dizia que não era.

 E essa sensação era o que mais incomodava. Ela ficou um tempo parada, olhando pro teto. A luz do sol começava a entrar pelas frestas da cortina. Lá fora, o barulho da cidade acordando dentro do quarto, silêncio. Um silêncio estranho, pesado. Levantou devagar, empurrou a cadeira até o banheiro e lavou o rosto.

 Olhou no espelho por uns segundos, como se estivesse tentando se enxergar de verdade. Tinha algo nos olhos dela que não via há muito tempo. Dúvida. Uma dúvida que vinha crescendo aos poucos, mas agora tava ali enorme, ocupando tudo. Marcos apareceu na porta do quarto com um sorriso, trazendo o remédio e um copo d’água. Hora da dose, disse com naturalidade. Ela pegou o copo, olhou pro comprimido na mão dele.

 Era pequeno, branco, sem marca. Parecia inofensivo, mas agora ela não conseguia engolir tão fácil assim. recebeu o remédio, mas ficou parada com o copo na outra mão. “Você já tomou isso?”, perguntou Marcos Riu. “Claro que não, amor. Isso é para você. Por quê?” Ela disfarçou. Disse que era só curiosidade. Ele ficou olhando por um segundo.

 Depois falou que o médico receitou aquilo com base nos últimos exames, que era coisa técnica, difícil de explicar. e ainda completou que ela não precisava se preocupar com esses detalhes. “Só toma confia em mim”, ele disse. “E esse confia em mim bateu diferente agora”. Doeu, porque antes ela confiava sem pensar, agora ela pensava e pensar já era perigoso.

 Fingiu que tomou, levou o copo à boca, mas guardou o comprimido na mão fechada. Depois, quando ele saiu, jogou no vaso e deu descarga. E ali foi a primeira vez que ela desobedeceu uma ordem de Marcos em muito tempo. Sentiu o coração acelerar, uma mistura de medo e alívio, como se estivesse fazendo algo errado, mas ao mesmo tempo certo. Passou a manhã tentando lembrar tudo sobre o início do tratamento.

 Tentava puxar da memória detalhes pequenos, mas importantes, como o nome do remédio. A primeira consulta, o que o médico falou. Mas tudo parecia embaçado. Era Marcos quem explicava tudo. Ele que falava com os médicos, que pegava as receitas, que comprava o que precisava. Ela só tomava, só confiava.

 Começou a pensar nas pequenas coisas que antes pareciam cuidado, mas agora começavam a parecer outra coisa, como o fato de Marcos não deixá-la sozinha com ninguém. Sempre acompanhava nas consultas, sempre ficava de olho nas conversas. como se tivesse medo do que ela pudesse descobrir ou dizer. E às vezes em que ela perguntava algo sobre o próprio tratamento e ele mudava de assunto, sempre dizendo que era melhor assim.

Isadora abriu o armário do banheiro e pegou os frascos. Tinha três iguais, sem nome muito claro, com uma etiqueta colada por cima da original. Ela tentou tirar uma das etiquetas, mas rasgou. Por baixo dava para ver só um pedaço do nome verdadeiro. Algo ali não batia. Sentiu um arrepio.

 Ligou o computador e procurou no histórico se tinha algum site que ela mesma tivesse acessado sobre esse remédio. Nada, nenhuma pesquisa, como se ela nunca tivesse tentado entender o que tomava. E talvez nunca mesmo tenha tentado, porque confiava, e agora isso doía. Enquanto o almoço era preparado, ela ficou em silêncio. Marcos falava sobre coisas aleatórias, comentava sobre a economia, sobre o noticiário, sobre os planos do fim de semana.

 Tudo tão normal, mas dentro dela nada estava normal. O som da voz dele parecia vir de longe. Ela só pensava na menina, na forma que ela falava da mãe, nas palavras ele quer que você continue assim. Era impossível esquecer. À tarde, fingiu que ia descansar. Marcos foi trabalhar no escritório.

 Assim que ficou sozinha, pegou o celular e começou a pesquisar. Procurou o nome do pedaço que viu no rótulo rasgado. Depois juntou com outras palavras que lembrava. Achou um medicamento antigo usado em tratamentos psiquiátricos, que podia causar efeitos colaterais graves, se usado por muito tempo. Um deles, perda de força muscular, tremores, dificuldade de locomoção. Ela sentiu um aperto no peito.

 E se fosse isso? E se ela estava sendo dopada aos poucos, há meses? E se a paralisia não fosse total? E se o corpo dela tivesse sido sabotado? A cabeça girava? Precisava de ar, precisava de alguém. Mas quem? Não podia ligar pra família. Se contasse para Laura, a irmã, talvez fosse demais.

 Laura nunca gostou de Marcos, mas sempre achou que era só implicância. E se ela tivesse razão, desde o começo, o fim da tarde chegou rápido. Marcos preparou o chá, como sempre, trouxe com biscoitos. Ela agradeceu, mas ficou olhando pro líquido com medo. Ele sentou na frente dela, sorriu, perguntou se ela tava se sentindo melhor. Ela respondeu que sim.

Fingiu. Estava se sentindo pior, mas não ia mostrar. Agora tinha uma coisa diferente nela, dúvida. E essa dúvida era mais forte do que qualquer remédio. Era o que a mantinha acordada, ligada, desconfiada. Algo tinha sido plantado naquele dia no parque e agora estava crescendo rápido dentro da mente e dentro do peito. A verdade talvez estivesse mais perto do que ela imaginava.

Mas para chegar nela, Isadora teria que enfrentar o que nunca teve coragem de encarar. Ana estava sentada atrás do banco de madeira que ficava do lado oposto ao lago, naquele canto do parque, onde quase ninguém passava. Era começo de noite, o céu já puxava para um azul mais escuro e as luzes dos postes começavam a acender. Ela abraçava os joelhos, encostada no tronco de uma árvore.

 O frio da calçada passava por dentro da calça fina, mas ela nem ligava. já tava acostumada com isso. A cabeça dela tava longe, longe dali, longe daquele parque, longe de tudo. Fechou os olhos e tentou lembrar do som da risada da mãe. Era baixa, leve, quase uma musiquinha boba. A mãe de Ana gostava de dançar na cozinha enquanto cozinhava.

 Era o jeito que ela tinha de esquecer os problemas, mesmo quando tudo estava desabando. Ana ainda se lembrava de um dia específico, quando a luz tinha sido cortada, e a mãe acendeu, umas velas, colocou música no celular e dançou com ela no meio da sala escura, como se o mundo fosse bonito. Mas essa lembrança vinha sempre misturada com outra que era bem mais pesada. A mãe começou a ficar estranha de repente.

Primeiro era só um cansaço diferente, depois as pernas pareciam pesar. Ela dizia que sentia como se tivesse areia dentro delas. O pai de Ana apareceu com um remédio dizendo que era para ajudar. Dava sempre no mesmo horário. Dizia que era coisa de médico. Mas Ana nunca viu receita, nunca viu médico, só o remédio. E a mãe cada vez pior.

 Ela lembrava do dia que a mãe caiu no banheiro e ficou no chão por quase uma hora. O pai disse que era drama. Disse que ela precisava reagir, mas ela nem conseguia levantar. Ana teve que ajudar, puxando pelo braço. A mãe chorava, mas o pai não se mexia. só assistia. As brigas começaram a ficar piores. Gritaria. Porta batendo. Silêncio.

Pesado. Ana se escondia embaixo da cama. Um dia ouviu o barulho de vidro quebrando, saiu correndo do quarto e viu a mãe caída na cozinha, o copo no chão. O pai tava parado do lado, dizendo que ela tinha se jogado, que tava fingindo, mas Ana viu. Viu ele colocando o remédio no suco dela antes.

 A mãe nunca viu, ela só bebia. Depois daquilo, a mãe ficou direto na cama. Não andava mais, só se arrastava para ir até o banheiro. Ana, que cuidava, que dava água, que trocava roupa. O pai quase nem olhava mais para elas, só saía e voltava tarde com cheiro de bebida e outro perfume. Um dia ele não voltou, sumiu, não deu notícia, não deixou nada.

 Ana ficou ali com a mãe, sem comida, sem luz, sem nada. A mãe foi ficando mais fraca, mais magra, mais apagada. Até que um dia não acordou. Ana tentou balançar, tentou chamar, mas ela já estava gelada. A menina ficou do lado do corpo da mãe até escurecer. Depois saiu andando pela rua, sem saber para onde ir.

 Passou a morar perto do mercado. Depois dormiu num ponto de ônibus por umas semanas. Teve que correr de uns caras uma vez. gente ruim que gosta de assustar criança na rua. Ganhou um pedaço de pão de uma senhora, pegou um cobertor velho num terreno baldio e ali foi ficando, crescendo no meio do medo, no meio da sujeira, no meio da solidão.

 O que fez Ana continuar não foi coragem, foi raiva. Raiva do pai, do remédio, da covardia. Quando viu aquele mesmo nome de remédio no bolso do homem que empurrava a cadeira da mulher no parque e a memória voltou como um tapa. Ela reconheceu na hora. O frasco, a cor, até o jeito de esconder era igual. Ela teve certeza.

 Não sabia quem era aquela mulher, mas o jeito que ela olhava para as pernas paradas era o mesmo olhar da mãe, cansado, confuso, como se tivesse perdido uma parte de si. Aquilo mexeu com Ana de um jeito que ela nem soube explicar. Era como se tivesse voltado no tempo, como se pudesse fazer agora o que não conseguiu fazer pela própria mãe. Por isso que ela foi até Isadora, não por pena, não por caridade, mas porque sabia o que ia acontecer se ninguém falasse nada.

 Sabia que se continuasse tomando aquele remédio, Isadora ia acabar igual. parada, fraca, esquecida, duvidando da própria cabeça. E isso Ana não queria ver de novo. Ela puxou a mochila velha do lado, abriu com cuidado e pegou o papel onde tinha anotado o nome que lembrava. Passou dias tentando escrever certinho. Não sabia ler tudo, mas decorou as letras.

 Andou por farmácias, tentava perguntar. Alguns atendentes não davam bola, outros mandavam ela sair. Um dia, uma moça explicou que aquele remédio era perigoso, que causava dependência e aquilo confirmou tudo. Ana ficou mais um tempo sentada, abraçada nos joelhos, olhando o movimento do parque diminuir. A noite já estava caindo de vez, gente indo embora, o barulho da rua aumentando.

 Ela não sabia o que ia acontecer no dia seguinte. Não sabia se Isadora ia aparecer de novo, mas se aparecesse, ela ia mostrar tudo do jeito que desse, porque aquela mulher não merecia terminar igual à mãe dela. E ela ia fazer o que ninguém fez antes. Ela ia impedir. Isadora passou a manhã fingindo normalidade.

 Tomou café com Marcos, falou sobre coisas bobas, riu sem vontade. Por dentro, a cabeça dela estava a 1000, mas por fora se forçava a parecer calma. Era a única forma de ele não perceber que algo tinha mudado. A estratégia era simples, observar sem chamar atenção. Isso exigia um controle que ela nem sabia que tinha.

 Depois que ele saiu para resolver umas coisas fora de casa, ela aproveitou, rodou a cadeira até o escritório dele, a porta como sempre trancada, mas ele tinha o costume de largar a chave num pote de vidro em cima da estante da sala. Ela lembrou disso e foi direto. Pegou a chave com cuidado, com medo de derrubar qualquer coisa e fazer barulho. Abriu a porta do escritório com o coração disparado.

Nunca tinha entrado lá sozinha. Era um daqueles espaços que parecia neutro, mas tinha a cara dele em cada canto. Um ambiente limpo demais, organizado demais, como se fosse montado para mostrar que ali morava um cara confiável. Mas agora cada detalhe parecia suspeito. Começou pelos armários.

 Abriu gaveta por gaveta, pastas, papéis, contratos, extratos de banco, nada fora do comum. Quase desistiu até que encontrou uma caixa preta no fundo do último armário. Dentro, vários frascos de remédio iguais aos que ela tomava, todos com etiquetas coladas por cima das originais. Ela pegou um deles e com cuidado tentou tirar a etiqueta. A cola estava grudada, mas aos poucos foi conseguindo.

 Por baixo apareceu o nome verdadeiro do remédio. Não era o que ela achava que tomava, era outro. Ela pegou o celular e digitou ali mesmo. O site abriu rápido. Um remédio forte usado em casos psiquiátricos com diversos efeitos colaterais graves, especialmente se tomado sem necessidade. Um deles, perda de movimento muscular.

 O estômago dela virou, se encostou na mesa, sentindo a mão suar. Voltou a pesquisar, agora lendo tudo com mais calma. A cada linha mais certeza. Era o mesmo nome que Ana tinha falado. Era exatamente o que ela estava tomando há mais de um ano. E tudo sem saber. Sentiu um nó na garganta. O pior de tudo era perceber que ela nunca teve controle sobre o próprio corpo.

 Achava que era a doença, mas era outra coisa. Era ele. Fechou tudo com cuidado, guardou no mesmo lugar, trancou a porta, levou a chave de volta pro pote. Quando terminou, parecia que tinha passado um furacão por dentro dela, mas por fora nada mudou. Voltou pro quarto, colocou um cobertor sobre as pernas, pegou um livro e fingiu que estava lendo.

 Assim ficou por horas, mas ela não lia. Ela pensava. Marcos chegou antes do fim da tarde, como sempre, com a mesma cara de sempre, perguntou se estava tudo bem. Ela disse que sim. E quando ele trouxe o remédio mais tarde, ela tomou como quem toma água, mas não engoliu. Esperou ele sair do quarto e cuspiu no lenço, jogando no lixo do banheiro depois.

 Agora ela sabia o que fazer e sabia que precisava ser discreta. Nos dias seguintes, ela passou a guardar cada cápsula que ele dava. escondia num potinho dentro de uma caixa de joias antiga, anotava o dia, o horário, começou a montar um tipo de arquivo só dela. Também passou a reparar mais nas reações do corpo.

 E aos poucos, mesmo que muito devagar, percebeu pequenas mudanças. Um formigamento leve no pé esquerdo, uma coceira que antes não sentia, coisas mínimas, mas que antes pareciam impossíveis. Ela não falou com Ana ainda. Estava esperando o momento certo, mas já sabia que precisava da ajuda dela. A menina tinha vivido aquilo, sabia detalhes que ninguém sabia.

 Isadora sabia que não podia mais confiar em ninguém da casa, nem nos empregados. Porque se Marcos fazia isso há tanto tempo, podia ter gente envolvida, gente que nem ela imaginava. Começou a desconfiar até dos próprios passos. reviu as câmeras da casa num acesso que ele deixou aberto uma vez. Percebeu que o sistema gravava tudo e ali entendeu que Marcos sabia de tudo o que ela fazia. Por tu, isso agia tão seguro, por isso era tão calmo.

 Ele achava que ela nunca ia perceber, mas agora ela tinha percebido e estava acordada. Não era mais a mesma mulher que só aceitava tudo. Agora ela tinha dúvida e a dúvida virou certeza. Ela só precisava do tempo certo para agir, porque se ele descobrisse que ela sabia, as coisas iam ficar perigosas, muito perigosas.

Nos dias seguintes, Isadora começou a juntar peças. Era como montar um quebra-cabeça antigo, onde algumas partes estavam meio gastas e outras completamente fora do lugar. Mas ela tinha aprendido uma coisa importante, observar em silêncio fazia diferença. E era isso que ela vinha fazendo desde que entrou pela primeira vez no escritório de Marcos. A rotina dele não mudava muito.

 Sai de manhã, volta antes do jantar, cuida dos remédios, pergunta se ela tá bem e passa a noite no celular ou no computador. Mas agora cada movimento dele parecia mais ensaiado, como se tudo fosse parte de uma cena. E foi isso que fez ela começar a notar umas coisas que antes passavam batido.

 Naquela quarta-feira, por exemplo, Marcos chegou mais cedo em casa, disse que uma reunião tinha sido adiada. Isadora estava na sala com o caderno aberto no colo. Ele entrou sorrindo, com a mesma leveza de sempre, colocou uma sacola em cima da mesa e disse que comprou o remédio novo. Disse isso como quem fala, que trouxe pão da padaria.

 Só que na semana anterior ele já tinha dito que o estoque estava cheio. Ela lembrou bem disso. Foi o dia que ele reclamou do preço alto na farmácia e agora aparecia com mais, ela perguntou tentando parecer casual. Mas não tinha mais daquele monte que você trouxe semana passada? Ele respondeu na hora com a mesma confiança de sempre. Ah, é que eu gosto de manter um estoque, nunca se sabe.

 Mas o jeito que ele respondeu foi rápido demais, quase ensaiado. E aí a ficha caiu. Ele estava se preparando para alguma coisa, talvez para reforçar a medicação, talvez para fugir se tudo desse errado. A dúvida virou alarme. Na noite seguinte, ela ficou mais tempo na cozinha com a funcionária da casa, uma senhora simples que trabalhava ali fazia anos. sempre foi quieta, mas naquele dia parecia disposta a conversar.

 Isadora puxou o assunto aos poucos, falando da rotina, perguntando coisas pequenas, até que soltou de leve. Você lembra quando eu comecei a tomar esses remédios? Foi logo depois da consulta com aquele neurologista, né? Det pensou um pouco e respondeu. Acho que sim.

 Quer dizer, foi o doutor que o Marcos marcou, não foi? Isadora confirmou, mas perguntou o nome do médico. Det travou. Disse que não lembrava e completou. Eu nunca vi ele aqui. Você chegou a ir no consultório dele? Isadora congelou. Por que não? Ela não tinha ido. Marco sempre trazia as informações. Dizia que o médico era super requisitado e que os laudos vinham direto por e-mail. Só que agora tudo isso parecia estranho demais.

No dia seguinte, ela pegou o tablet da casa, que também era usado por Marcos, e começou a procurar os tais e-mails com os laudos do médico. Usou o nome que ele sempre dizia: “Doutor Vilela”. Procurou nas mensagens, nos arquivos salvos. Nada, nenhum PDF, nenhum nome, só mensagens de farmácia e compras online.

 Então ela digitou o nome do tal doutor no Google. Nenhum resultado, nenhuma clínica, nenhuma referência. Era como se ele nunca tivesse existido. O medo começou a bater forte, mas junto com ele veio outra coisa: raiva, muita raiva. Como ela podia ter deixado alguém controlar tanto a vida dela sem questionar? Como podia ter acreditado cegamente em tudo? Ela sempre foi independente antes do acidente, forte, decidida e agora estava ali presa, enganada, como se fosse uma criança sem voz. No jantar, ela testou de novo.

Perguntou para Marcos se ele lembrava do nome completo do médico. Ele deu uma risada leve, balançou a cabeça e respondeu: “Isadora, você tá com mania de querer saber tudo agora?” Ela insistiu. É só para guardar aqui no celular, caso eu precise no futuro. Ele ainda com o sorriso no rosto, respondeu: “Doutr. Vilela de Andrade, se não me engano.

” Ela anotou, mas mal sabia ele que já tinha procurado esse nome em tudo quanto era lugar e não existia. Ela também começou a reparar nas doses. Cada vez que ele dava o remédio, dizia que era uma cápsula por dia, mas em algumas noites aparecia com dois comprimidos. Às vezes dizia que era reforço, outras vezes que era porque ela estava reclamando demais das dores, só que ela não tava, pelo contrário, andava até fingindo que tava bem, justamente para não levantar suspeita.

 Então, por que aumentar? Outra coisa que chamou atenção foi o frasco de remédio que ela achou no carro, caído entre o banco e a porta. pegou rápido antes que ele visse. Era um frasco usado, sem tampa, com o mesmo nome do remédio que ela descobriu nos sites.

 Ou seja, ele tava administrando por conta própria, sem receita, sem orientação nenhuma. Era perigoso, era criminoso. Mais tarde, sozinha no quarto, Isadora se olhou no espelho. Pela primeira vez em muito tempo, ela viu alguém diferente ali. Não a mulher frágil que achavam que ela era, mas uma mulher que estava acordando, que estava sentindo as peças se mexerem. E quanto mais olhava, mais certeza tinha.

 Alguma coisa grande estava escondida e ela ia descobrir porque agora ela estava vendo. Agora tudo começava a fazer sentido. Era uma tarde quente, com o céu limpo e sem uma nuvem no céu. Isadora já estava sentada na cadeira de rodas, com o cabelo preso num coque baixo e os olhos escondidos por um óculos escuro.

 Ela fingia que aproveitava o passeio como qualquer outro, mas por dentro cada minuto era uma espera. tinha combinado de sair sozinha com o motorista da casa. Disse para Marcos que queria comprar umas roupas num shopping próximo. Ele não desconfiou. Não tinha motivo para isso ainda, mas o plano era outro. No meio do caminho, pediu pro motorista parar no parque.

 Disse que queria tomar um sorvete e dar uma volta. Ele estranhou, mas ela foi firme. Ele a deixou ali e ficou esperando dentro do carro. Isadora girou a cadeira até o ponto onde tinha visto Ana pela última vez. Olhou pros lados, pro chão, pras árvores. Nada. O tempo foi passando. 10, 15, 20 minutos.

 O sol já batia forte e o cheiro de pipoca misturado com o do mato fazia o estômago dela embrulhar. A dúvida começou a incomodar. Será que Ana viria mesmo? E se não aparecesse? E se tudo aquilo fosse só a imaginação dela, misturando lembrança com medo? Mas quando estava quase desistindo, escutou passos leves vindo do lado esquerdo e ali estava ela. Ana apareceu com a mesma roupa gasta, mas o cabelo preso num rabo de cavalo bagunçado.

 Estava com um olhar mais sério, como se tivesse esperado esse momento também. Se aproximou com calma e parou bem na frente da cadeira. “Eu sabia que você ia voltar”, falou Ana. E dessa vez não parecia uma criança, parecia alguém com história para contar. Isadora respirou fundo, olhou direto nos olhos dela e respondeu: “Eu quero entender tudo, mas preciso que você me diga devagar.

 Desde o começo, Ana sentou no chão, na sombra da árvore mais próxima, pegou uma sacolinha plástica e tirou de dentro um frasco velho. Era um frasco de remédio, todo arranhado com a tampa quebrada. Esse era o da minha mãe. Eu guardei. Achei no dia que o meu pai sumiu. É igual ao seu. Isadora pegou o frasco com cuidado, olhou a etiqueta. Era o mesmo nome que ela tinha achado nos remédios escondidos do Marcos.

A mesma droga, a mesma mentira. A menina continuou. Ele dizia que era para ajudar, que a mamãe ia ficar bem, mas ela foi piorando. No começo só andava devagar. Depois começou a cair, depois não levantava mais. Ele falava que era culpa dela, que ela era preguiçosa, que não se esforçava. Isadora sentiu o estômago apertar. Era como ouvir a própria história sendo contada por outra pessoa.

 Só que agora ela via do lado de fora e doía mais ainda. Eu ficava olhando ele misturar no suco dela. Um dia vi ele colocando mais de uma vez no mesmo copo. Aí comecei a esconder os copos. Fingia que jogava fora. Mas já era tarde. Ela já não sentia mais as pernas. E ele, ele só sumiu, nunca mais voltou. Isadora ficou em silêncio.

 A voz dela parecia ter travado. Só conseguia escutar e tentar entender. Ana puxou um pedaço de papel dobrado. Isso aqui foi uma moça da farmácia que me deu. Mostrei o nome do remédio para ela. Ela me explicou o que era. Que se tomasse por muito tempo podia causar tudo isso. Isadora pegou o papel.

 leu cada linha, não entendeu tudo, mas entendeu o suficiente. “Eu guardei esse papel por anos”, disse Ana. “E quando vi você lá naquele dia com aquele homem do lado com aquele frasco no bolso dele, que eu soube? Soube que estava acontecendo tudo de novo e eu não ia deixar”. Isadora se inclinou pra frente e pegou a mão da menina. A mão era pequena, magra, com a pele áspera.

 “Por que você tá me ajudando? Ela perguntou. Ana respondeu sem piscar. Porque ninguém ajudou minha mãe e porque você me ouviu, mesmo sem me conhecer. Elas ficaram um tempo assim, em silêncio, só o som das folhas, o barulho distante de uma bicicleta passando. A cidade continuava girando, mas ali parecia que o tempo tinha parado por alguns minutos.

 Isadora então respirou fundo e disse: “Você pode me ajudar a provar isso, a juntar tudo?” Ana confirmou com a cabeça. Eu lembro de tudo, dos nomes, dos detalhes e tem mais. Eu sei onde ele comprava os remédios. Um lugar escondido, sem receita. Eu posso te mostrar. Ela não sabia exatamente como faria aquilo, mas agora tinha uma coisa que não tinha antes, uma aliada.

 E talvez fosse só isso que ela precisava para começar a virar o jogo. Isadora e Ana estavam sentadas na beirada de um jardim abandonado atrás do parque. A grama era alta, tinha uns bancos velhos quebrados e um muro grafitado, mas ali era calmo. Ninguém passava, ninguém ouvia.

 Era o lugar perfeito para conversar longe de olhares. Ana tirou do bolso um papel dobrado, muitas vezes, todo amassado, entregou para Isadora. Eu escrevi tudo que lembro. Não sei escrever direito, mas você vai entender. Isadora abriu com cuidado. As palavras estavam tortas, algumas faltando letras, mas dava para ler.

 Tinha nomes de lugares, nomes de pessoas e um monte de observações. O jeito como Ana lembrava de tudo era impressionante. Meu pai comprava o remédio numa farmácia perto do terminal velho. Não era farmácia normal, era tipo aquelas lojinhas escondidas, sabe? Ele só ia lá de noite. Tinha um cara que entregava direto para ele no carro, na porta dos fundos. Uma vez eu fui escondida, vi tudo.

 Ela fechou os olhos por um instante, como se estivesse voltando no tempo. O frasco era marrom escuro com tampa de rosca. O rótulo era meio torto, dava para ver que era colado por cima de outro. Eu fiquei com um frasco e escondi debaixo da cama. Quando ele sumiu, eu peguei para mostrar para alguém, mas ninguém acreditava.

Diziam que criança inventa coisa, mas eu lembro. Era esse nome aqui, ó. Apontou com o dedo pro papel. Isadora leu da zopinol 100 m. Nunca tinha ouvido falar, mas reconheceu o nome da pesquisa que fez. Era aquele mesmo remédio de uso psiquiátrico. Só que a forma como Ana descreveu cada detalhe fez a pele de Isadora arrepiar.

 Era o mesmo frasco, a mesma tampa, o mesmo rótulo colado, igualzinho ao que ela encontrou escondido no escritório de Marcos. E ele dava do mesmo jeito, dissolvido na água, no suco, às vezes até no café. Minha mãe dizia que o gosto era estranho, mas ele dizia que era porque o remédio era forte. Ela acreditava igual você acreditou. Ana falou sem julgamento, mas com um peso na voz. Isadora abaixou. a cabeça.

Aquilo doía, não só pelo que Marcos fez, mas por ter deixado isso acontecer sem desconfiar. “Você chegou a ver ele preparando?”, ela perguntou. Ana fez que sim. Uma vez eu vi ele colocando dois comprimidos no copo dela. Depois mexeu bem devagar até sumir. Ficou com uma cor meio esbranquiçada. Eu fui lá, tomei um gole escondido.

 A minha boca ficou dormente. Me deu dor de cabeça depois, mas eu não falei nada. Tinha medo. Isadora ficou em silêncio. Tudo aquilo era tão pesado que parecia mentira. Mas o jeito como Ana contava não tinha como duvidar. Não era criança inventando história. Era alguém que viveu na pele. Ana continuou. Teve um dia que ela tentou levantar, ela tava tentando melhorar, sabe? Começou a parar de tomar o suco. Dizia que queria tentar sozinha. Ele percebeu.

 Aí começou a dar escondido. Um dia ela caiu feio no banheiro, ficou lá gritando. Ele não ajudou, só ficou olhando, dizendo que era castigo, que ela precisava obedecer. Eu gritei com ele, ele me bateu. Isadora sentiu o peito apertar e depois perguntou com a voz baixa.

 Depois ela foi ficando mais fraca, mais triste, até que parou de tentar. Só ficava na cama. Um dia dormiu e não acordou. Ele sumiu no dia seguinte, me deixou lá. Eu saí pela rua e nunca mais voltei. As palavras da menina ficavam pesadas no ar. Parecia que o silêncio do lugar segurava cada frase. Por mais tempo, Isadora pegou o papel de novo, anotou outras coisas enquanto Ana ia lembrando.

Ele usava um perfume forte, tipo de homem rico. A roupa dele sempre cheirava isso e ele dirigia um carro prata desses grandes, com vidro escuro, igual ao do seu marido. Isadora congelou. Era o mesmo tipo de carro que Marcos usava. Era muita coincidência, tanta que já não parecia mais coincidência.

 “Você lembra do rosto dele?”, perguntou quase sem respirar. Ana não respondeu de imediato, ficou olhando pro chão, depois levantou os olhos e disse: “Eu lembro de pouca coisa. Ele não deixava a gente olhar direto, mas eu lembro da boca dele. Era fina, com uma cicatriz bem no canto do lado esquerdo. Pequena, mas dava para ver.

” Isadora colocou a mão na própria boca, tentando controlar a respiração. Marcos tinha uma cicatriz pequena do lado esquerdo da boca. Ele dizia que era de um acidente na infância. Sempre contou essa história como se fosse uma piada. Agora não tinha graça nenhuma.

 Ela guardou o papel com cuidado, abraçou o corpo, tentando segurar o frio que bateu mesmo no calor. Ana se aproximou devagar. Você tá com medo, né? Isadora respondeu com a voz trêmula: “Tô, mas também tô com raiva.” Ana balançou a cabeça devagar. Então usa isso porque ele não vai parar. Homens assim nunca param. Eles só mudam de alvo. O vento passou mais forte.

 E naquele momento, Isadora teve certeza de uma coisa. Tudo o que Ana disse era verdade. Cada detalhe, cada palavra. A menina lembrava com precisão demais para ser invenção. Agora ela só precisava juntar isso tudo e provar antes que fosse tarde. Laura entrou na casa com aquele jeito direto que sempre teve, nem esperou o portão fechar e já foi chamando.

 Isa, cadê você? A voz ecoou pela sala. Era sexta-feira à tarde, dia de visita da irmã. Desde que Isadora tinha perdido os movimentos das pernas, Laura fazia questão de aparecer pelo S, menos uma vez por semana, às vezes para conversar, às vezes só para ver com os próprios olhos se estava tudo bem.

 E naquela tarde ela estava mais inquieta do que o normal. Isadora apareceu na porta do corredor, empurrando a cadeira com calma, sorriso meio cansado. Tô aqui. Laura andou até ela e deu um beijo na testa. Tá sozinha? Isadora confirmou com a cabeça. Marcos saiu, foi resolver umas coisas no banco. Laura assentiu, mas não respondeu de imediato.

 Sentaram-se na varanda da casa que dava para um pequeno jardim bem cuidado, coisa que sempre agradou Marcos, mas nunca foi muito a cara de Isadora. Laura começou a falar de coisas do trabalho, como sempre fazia para quebrar o gelo. Mas o olhar dela não ficava firme, vivia desviando e inquieto. Isadora percebeu não era só papo de rotina. E então, sem muita enrolação, Laura soltou. Você confia mesmo no Marcos? Isadora não respondeu de imediato, ficou olhando para as próprias mãos no colo.

 Por que essa pergunta agora? Laura respirou fundo. Porque tem coisa que não tá me cheirando bem, Isa, desde o começo, para ser honesta, mas ultimamente tá demais. Isadora virou pra irmã e encarou. O que exatamente você tá achando estranho? Laura se ajeitou na cadeira, como se estivesse organizando os pensamentos. Primeiro, esse remédio que ele insiste que você tome.

 Você já parou para perguntar pro médico por ele não muda a medicação? Mesmo com você reclamando dos efeitos, Isadora engoliu em seco. Eu nunca falei com o médico direto. Marco sempre fala por mim. Então Laura continuou. Isso já é estranho. Ele controla tudo. Consulta, remédio, sua agenda, até as visitas. Ele sempre tá no meio.

 E outro dia, quando fui na farmácia pegar um medicamento meu, ouvi o nome daquele remédio seu na conversa entre duas atendentes. Diziam que é de uso controlado, coisa séria, com um monte de efeito colateral. Isso me acendeu um alerta. Isadora respirou fundo. Laura não sabia da investigação dela com Ana. Ainda não, mas talvez estivesse na hora.

 Lembra da menina que apareceu no parque aquele dia? perguntou Isadora, virando um pouco o corpo pra irmã. Claro, aquela menininha magrinha, o que tem ela? Ela apareceu de novo várias vezes, na verdade, e me contou coisas, Laura, coisas sobre o remédio, sobre um homem que fazia com a mãe dela o que o Marcos está fazendo comigo. Laura franziu o senho.

 Como assim? O que ele tá fazendo com você? me mantendo assim, sem andar, sem força, me dando um remédio que não é o que ele diz que é. Laura gelou, ficou uns segundos muda. Você tá dizendo que ele tá te dopando? Por quê? Isadora respondeu sem tirar os olhos do jardim. Eu não sei, mas tô descobrindo. E a menina tá me ajudando.

Ela viveu isso. Ela lembra dos detalhes, do frasco, do nome, do jeito que o pai dela agia. É igual. Laura levantou devagar, começou a andar de um lado pro outro. A mente dela parecia explodir. Você tem certeza disso, Isa? Porque se for verdade, a gente precisa agir agora. Isso é crime, é doença, é loucura.

 Eu tenho quase certeza e tô juntando provas. Eu vi frascos escondidos, pesquisei os nomes, conversei com a menina, tudo bate. Laura parou, virou de frente. Você quer ajuda? Isadora olhou para ela com firmeza. Quero, mas a gente precisa ser esperta. Se ele descobrir que tô investigando, ele pode agir antes. Tá.

Primeira coisa, Laura disse pegando o celular. Vamos ver se consigo descobrir alguma coisa sobre esse médico que ele fala tanto. Como é mesmo o nome? Dr. Vilela de Andrade. Laura digitou. Ficou alguns segundos rolando a tela. Não tem ninguém com esse nome aqui. Nenhum CRM, nenhuma clínica.

 Isa, esse médico não existe. Isadora assentiu. Eu já tinha pesquisado, mas queria ver você confirmar. Laura sentou de novo. Então, a gente tá lidando com um cara que inventou um médico, falsificou receitas e tá te envenenando aos poucos. É isso. A tarde seguiu com as duas trocando informações, traçando planos.

 Laura prometeu conseguir a ajuda de um contato que trabalhava numa clínica de reabilitação. Disse que podia dar uma opinião médica real, sem precisar passar por Marcos e que também conhecia alguém que podia analisar os comprimidos. Isadora sentiu um alívio estranho no peito. Pela primeira vez não estava sozinha nessa.

 Tinha Ana, agora tinha Laura. E por mais que o medo ainda fosse grande, a coragem estava crescendo, porque com alguém do lado até a escuridão assusta menos. Laura passou parte da manhã conversando com um amigo dela que trabalha em um hospital. Ele se chama Diego e também conhece vários médicos da cidade. Ela explicou toda a situação, falou do tal Dr.

 Vilela, do remédio estranho e de toda a história da menina. Diego ficou em silêncio um instante e depois disse que ia procurar algo sobre Marcos. Laura prometeu enviar uma foto dele e o nome completo. No começo da tarde, Diego mandou uma mensagem. Encontrei algo suspeito. O coração de Laura parou por um segundo, mas ela abriu a mensagem rápido. Havia uma notícia antiga de uns 10 anos atrás sobre um cara chamado Marcos Henrique Soares, o mesmo nome do seu marido, envolvido em uma denúncia por maus tratos a uma ex-parceira.

A mulher tinha tentado pedir medida protetiva, dizia que ele gostava de controlar tudo, que isolava ela, que fazia ela tomar remédio sem receita, dizendo que era para ela ficar calma, mas que no fim só a deixava pior. Ela dizia que se sentia fraca, confusa, dependente e a denúncia tinha sido arquivada por falta de provas. A mulher não tinha conseguido mostrar nada concreto.

 Laura leu tudo e sentiu um frio na espinha. Era igual à história de Isadora. A denúncia falava até de um episódio em que a vítima acordou sem lembrar de ter assinado documentos em favor dele e dizia que Marcos tinha mudado de cidade pouco tempo depois, sem explicar nada. Ela chamou Isadora. A irmã entrou devagar, assustada. Laura mostrou a tela do celular.

 Os olhos de Isadora se encheram de lágrimas e raiva. Naquele instante não era mais só o remédio ou a dúvida, era um padrão. Uma história se repetindo. Isadora sentiu o peito apertar. Como ele tinha conseguido ir tão longe naquela época e ninguém desconfiar. E como ela mesma tinha deixado esse cara entrar na vida dela.

 Laura planejou o próximo passo. Pediu que Isadora anotasse tudo que lembrava do tempo em que estavam casados. datas, conversas, consultas. Depois pediu para ela juntar os frascos que ainda tinha escondidos e manter tudo guardado com cuidado, sem avisar Marcos. Era prova, era algo do qual ele não poderia escapar.

 Isadora fez, separou quatro frascos diferentes, colocou cada um dentro de um envelope, escreveu data aproximada e ora, guardou tudo num lugar seguro numa gaveta trancada no quarto dela. Fez cópia das mensagens que tinha do investigador particular que ia contratar. Colocou no mesmo lugar. No final da tarde, Laura ligou de volta para Diego. Ele disse que podia ajudar com o laudo médico.

 Era um exame que analisava a composição dos comprimidos para descobrir se tinha substância tóxica ou sedativa, mas para isso precisavam levar um frasco de remédio. Laura sugeriu que Isadora pedisse ao farmacêutico da farmácia que fizesse uma análise discreta, só para descartar. Ele topou ajudar sem levantar suspeita. Naquela noite, Isadora tentou dormir, mas não conseguiu.

 A cabeça girava, um peso novo tinha sido colocado em cima dela. Ela pensou em Marcos, no cara do passado, naquela ex-parceira que tinha passado por tudo que ela mesma estava passando. Pensou na filha da ex, no medo que ela deve ter sentido e sentiu vontade de lutar.

 Ela se encolheu na cama, puxou o cobertor até o queixo e fechou os olhos tentando pensar no dia seguinte, porque era ali que tudo ia mudar. Agora ela não tinha dúvida mais, tinha história, tinha prova e ia usar isso para recuperar a própria vida, impedir que mais alguém fosse vítima. Isadora acordou antes do sol nascer. ficou um tempo deitada, só olhando o teto. O quarto ainda estava escuro, mas ela já sabia que o dia ia ser diferente.

Era como se uma urgência estivesse gritando dentro dela. Precisava encontrar alguma coisa que deixasse tudo claro de uma vez. Não bastava mais a palavra da menina, nem as suspeitas. Ela queria algo concreto escrito e ela tinha certeza de que Marcos escondia mais do que frascos de remédio. Esperou ele sair.

 Disse que ia passar o dia inteiro fora por causa de uma reunião com investidores. Assim que ouviu o portão bater, Isadora foi direto pro escritório, pegou a chave escondida, aquela mesma da outra vez, e destrancou a porta com as mãos trêmulas. sentou em frente à escrivaninha, olhou o computador e pensou se devia ou não mexer, mas antes de ligar, resolveu vasculhar tudo de novo.

 Começou pelo armário de arquivos. Já tinha olhado antes, mas agora era diferente. Agora ela tinha mais atenção nos detalhes. Abriu gavetas, tirou pastas, foliou contratos. Tudo parecia comum até que achou uma pasta preta sem etiqueta. Dentro, folhas dobradas, alguns papéis colados com clipes e no meio deles um envelope pardo com o nome dela escrito à mão.

 A mão dela tremia quando puxou o envelope, abriu com cuidado e tirou os documentos de dentro. Era uma procuração, um papel autorizando Marcos a tomar decisões por ela, inclusive vender bens, movimentar contas, fazer transferências. O pior, tava assinado com a assinatura dela, mas ela não lembrava de ter assinado aquilo, nunca. Folhou mais rápido.

 Tinha também uma autorização médica, um documento que permitia que Marcos respondesse por ela em decisões de tratamento. Assinado, carimbado. E mais uma vez ela não lembrava de nada daquilo. Pareciam ter sido feitos no mesmo dia, mesma caneta, mesma data. Era tudo planejado, era tudo forjado. Ela ficou parada por uns segundos com o papel na mão, sem saber o que fazer.

 Era como se o chão tivesse saído debaixo da cadeira. A raiva subiu como um fogo no peito, mas ela respirou fundo. Guardou tudo de volta no envelope. Precisava pensar com calma. Pegou o celular, tirou foto de tudo, mandou pra Laura, depois continuou. Revirou uma gaveta que ficava mais escondida, com tranca.

 Dessa vez achou a chave presa num fundo falso da gaveta de cima. Abriu e ali dentro achou uma caixa com etiquetas cortadas. Eram as etiquetas verdadeiras dos frascos de remédio. Marcos cortava e trocava pelas falsas, imprimidas com nomes genéricos. Tinha uma pequena impressora portátil escondida ali com rolos de etiqueta e adesivo. Isadora tirou foto de tudo, coração batendo tão forte que doía no peito.

 Tinha encontrado exatamente o que precisava. Provas. A mentira estava toda ali. A farça montada com cuidado para manter ela controlada. Quieta, imóvel. Ela fechou a caixa, colocou no mesmo lugar, voltou tudo como tava. Quando terminou, trancou o escritório e guardou a chave no mesmo lugar de antes. No caminho de volta pro quarto, parou no espelho do corredor.

 Olhou pra própria imagem por um tempo. Ainda parecia ela, mas agora com um brilho nos olhos que fazia tempo que não aparecia. Um brilho de quem estava acordada. Mais tarde, Marcos chegou como se nada tivesse acontecido. Deu beijo na testa, perguntou se ela tava bem, trouxe um bombom da rua, disse que lembrou dela quando viu.

 Ela sorriu, fingiu que estava tudo certo, mas por dentro cada palavra dele soava falsa. E agora ela tinha certeza, porque viu com os próprios olhos. E uma vez que se vê, não tem mais como desver. A noite mandou mensagem paraa Laura. Tenho tudo. Etiquetas, documentos, assinaturas falsas. Agora a gente pode agir.

 Laura respondeu: “Amanhã a gente se encontra. Vamos levar isso pro Diego e depois é a nossa vez”. Isadora apagou a luz do quarto, mas o coração dela seguia aceso. O dia estava abafado, sem vento, o tipo de dia que já nasce pesado. Isadora acordou com a garganta seca e uma sensação estranha no peito.

 Era como se alguma coisa estivesse empurrando de dentro, querendo sair. Passou a manhã inquieta, mexendo nas coisas do quarto, ligando e desligando a TV, sem prestar atenção em nada. Laura tinha ligado mais cedo, perguntado se tava tudo certo pro encontro com o Diego no dia seguinte. Ela respondeu que sim, mas tinha outra coisa na cabeça. Ela precisava ver até onde Marcos ia com as mentiras.

Precisava provocar, sentir a reação dele. O almoço foi servido na varanda. Marcos preparou pessoalmente como gostava de fazer quando queria mostrar que era o marido perfeito. Fez uma massa simples e colocou duas taças de vinho na mesa, dizendo que era para celebrar a vida.

 Isadora sorriu, mas por dentro sentia nojo. Não do vinho, nem da comida, mas do teatro. Tudo era ensaiado, calculado, como se ele estivesse o tempo todo tentando manter um papel. No meio da refeição, ela largou o garfo e soltou a pergunta. Marcos, você já foi casado antes de mim, né? Ele congelou por um segundo, mas recuperou rápido.

 Já por quê? E o que aconteceu com ela? Marcos bebeu um gole do vinho antes de responder. A gente se separou, coisa antiga. Ela era instável, tinha problemas emocionais. Eu tentei ajudar, mas chegou um ponto que não dava mais. Isadora balançou a cabeça devagar. Ela te acusou de alguma coisa? Ele arqueou uma sobrancelha.

 Como assim? Que história é essa? É só uma pergunta. Não, não é só uma pergunta. Você tá com alguma coisa na cabeça. Fala logo, Isadora. O que é que você quer saber? Ela olhou direto nos olhos dele. Eu quero saber porque tem documentos meus com assinatura falsa no seu escritório. Por que tem etiquetas cortadas de remédio escondidas numa caixa? Porque eu nunca conheci esse médico que você diz que me trata.

 O rosto de Marcos mudou na hora. O sorriso sumiu. O olhar ficou duro. Ele largou o talher sobre o prato com força. Você andou mexendo nas minhas coisas. Eu andei procurando a verdade. Ele ficou de pé, andou até a beira da varanda e ficou de costas por alguns segundos.

 Quando voltou a encará-la, a voz era calma, mas tinha uma ameaça escondida. Você tá paranóica. Esse remédio é o que o médico passou. Se você tá desconfiando de mim, é porque sua cabeça não tá boa. Isso é um sintoma, Isadora. A confusão, a agressividade. Eu tô tentando te ajudar, mas você tá piorando. Ela sentiu o estômago revirar. Ele tava usando o mesmo discurso de sempre, inverter as coisas, jogar a culpa nela, mas agora ela não era mais a mulher de antes.

 Eu não tô confusa, tô lúcida e tô vendo quem você é de verdade. Marcos se aproximou devagar, como se falasse com uma criança. Você tá doente, amor? Não percebe? Tá sendo influenciada? Essa menina de rua, essa sua irmã, estão colocando coisas na sua cabeça. Você precisa confiar em mim, como sempre confiou. Isadora respirou fundo. E é exatamente por confiar que eu tô assim, mas não mais.

 O clima ficou pesado. Marcos não disse mais nada. Pegou a taça, virou o resto do vinho num gole só e entrou para dentro da casa. Isadora ficou ali com o coração batendo rápido, mas com uma estranha sensação de alívio. Pela primeira vez, ela falou na cara dele. Não escondeu, não fingiu e agora sabia o que ele faria.

 Tentaria controlar ainda mais. Mais tarde, ele voltou ao quarto com um sorriso forçado. Disse que amava ela, que só queria o bem dela. Disse que estava pensando em levar ela para uma clínica nova, especializada em reabilitação para ver se ajudava. Mas ela sabia o que isso significava: internar, silenciar, tirar de cena, apagar tudo que ela descobriu. Ela sorriu de volta, fingiu aceitar.

disse que ia pensar, mas por dentro já estava decidida. No dia seguinte encontraria Laura e entregaria tudo ao Diego. Já não era mais sobre medo, era sobre justiça, sobre liberdade, sobre recuperar o que era dela, a própria vida. Isadora sabia que não podia mais esperar.

 Depois daquele almoço, tenso, depois da forma como Marcos reagiu, ela entendeu que estava vivendo com um inimigo dentro da própria casa. Não era mais questão de desconfiança, era questão de sobrevivência. E para isso ela precisava sair dali e rápido. Ligou para Laura assim que ficou sozinha no quarto. A irmã atendeu na primeira chamada. Ele tá planejando me levar para uma clínica. Isadora falou direto.

 “Você vai sair daí hoje?” Laura respondeu sem nem pensar. Elas combinaram tudo em poucos minutos. Laura iria até a casa de campo da família, um lugar afastado que elas usavam nas férias da infância. Quase ninguém lembrava daquele lugar. Era simples, mas seguro. Laura levaria Ana com ela. A menina já estava avisada. Estava esperando por isso. Isadora desligou e começou a arrumar uma pequena mala.

 Sol essencial. Algumas roupas, os frascos de remédio escondidos, os documentos que provavam tudo, o celular, o carregador, o caderno com todas as anotações. Escondeu tudo num fundo falso da cadeira de rodas que Laura tinha mandado fazer para ela semanas antes. Um espaço pequeno, mas perfeito para esconder o que mais importava.

 Marcos chegou em casa no fim da tarde, com a mesma cara de sempre, como se nada tivesse acontecido. Disse que marcou a tal consulta na clínica paraa semana seguinte, que era um lugar maravilhoso e que tinha certeza de que ela ia melhorar. Isadora fingiu interesse, fez perguntas, quis saber detalhes. Ele caiu direitinho.

 Não percebeu que ela já estava com um pé fora dali. Naquela noite, Isadora disse que queria dormir cedo, que estava cansada. Marcos deu um beijo na testa e saiu do quarto, achando que tinha tudo sob controle. Mas assim que a casa ficou em silêncio, ela mandou a mensagem paraa Laura. Pronta. Às 2as da manhã, Laura parou o carro a duas quadras da casa.

 Ana estava com ela no banco de trás. Vestia uma blusa larga e um boné. Os olhos dela estavam atentos. como se soubessem que aquilo não era brincadeira. Isadora esperou o sinal de que tudo estava limpo, saiu pela porta lateral com a cadeira de rodas e foi até o fim do jardim. Ali, Laura a esperava com uma cadeira dobrável no porta-malas e Ana segurava uma lanterna com a luz baixa.

Em poucos minutos, elas colocaram Isadora dentro do carro, abaixada, coberta com uma manta. Saíram dali sem ninguém perceber. No caminho ninguém falava muito. Ana segurava a mão de Isadora no banco de trás. A estrada estava escura, com poucas luzes, mas o silêncio ali parecia bom. Um silêncio que vinha junto com o alívio.

 Chegaram na casa de campo por volta das 3:30. O lugar estava fechado há muito tempo, mas Laura já tinha passado por lá mais cedo para limpar um pouco, arrumar as camas, estocar comida. Era simples, com móveis antigos e cheiro de madeira, mas era seguro. Isadora desceu do carro com ajuda.

 Ana abriu a porta da frente e correu para acender as luzes. A casa era pequena, com dois quartos, uma sala e uma cozinha. A janela da frente dava para uma estradinha de terra. Era o lugar perfeito para se esconder por alguns dias. Isadora se sentou no sofá e tirou a manta. A gente conseguiu”, ela disse, meio sem acreditar. Laura trancou a porta.

 Agora a gente vai montar tudo, mostrar quem ele é de verdade. Ana sentou no chão ao lado do sofá e puxou da mochila um caderno com anotações dela. “Eu tenho mais coisa para contar.” Mais coisa que lembrei. Elas ficaram ali madrugada dentro organizando provas, anotando datas, pensando nos próximos passos. A fuga tinha sido só o começo.

 A luta de verdade estava só começando e agora elas estavam juntas. Isadora sentiu o coração apertado enquanto esperava no carro estacionado em frente à clínica pequena, meio escondida por janelas escuras. Era sábado de manhã, quase ninguém por ali. Ela segurava firme na mão de Ana, que tremia por dentro, mas disfarçava a ansiedade.

Laura estava no banco da frente, olhando o celular com a expressão focada. A investigação médica começaria ali. Eles tinham marcado sob pretexto de exames de rotina e a clínica comprada por Laura aceitava receber o remédio para análise sem alard. Se confirmassem a substância tóxica, seria a prova final.

 Entraram na sala de espera silenciosamente. A recepcionista olhou com simpatia. Isadora entregou o envelope com o frasco e explicou que tinha um exame de rotina. Em breve chamamos, ela ouviu. Sentou e tentou respirar fundo. A ficha caiu de novo. Ela não era mais vítima, mas uma investigadora. Ana sentou ao lado dela, segurou sua mão.

 Isadora apertou de volta. A menina deu um sorriso fraco e disse: “Vai dar certo.” Foi o suficiente para acalmar um pouco. Veio um médico de jaleco branco e disse que a amostra ia ser levada para o laboratório. Pediu que esperassem num salão separado. A sala era clara, com livros e certificados na parede, tudo para passar segurança.

 Laura cruzou os braços, suspirou e disse: “Agora é confiar”. Depois de quase duas horas, o médico voltou com um envelope com o símbolo da clínica. Chamou as três para a sala dele. Aqui estão os resultados, disse. Entregou o envelope com cuidado. O tremor atingiu os dedos de Isadora. Laura abriu e pegou o laudo. Indicava substância potente usada em tratamentos psiquiátricos.

Um sedativo que em uso prolongado pode causar atrofia muscular, fraqueza e até paralisia. Efeitos que combinavam perigosamente com o que Isadora vivia. O silêncio foi pesado. Silver buscou conter a emoção da irmã na sala. Isadora leu em voz alta. Foram detectados metabolites compatíveis comopinol, substância de uso controlado. Era exatamente o que Ana lembrou no papel dela. Era o mesmo remédio.

Laura olhou para Ana, então para Isadora. Sem palavras, já estava claro. Tinham a prova que precisavam. O laudo falava em efeitos neuromusculares reversíveis após descontinuação, mas só se interrompido rápido. Aliança que Marcos criou estava se desfazendo.

 O médico explicou como a análise funcionava, equiparando pH, moléculas e força do remédio. O envelope vinha com assinatura do laboratório e selo de autenticidade da clínica. Era prova legal, não só para confrontar marcos, mas para uso em tribunal. Isadora fechou os olhos por um momento, relembrou o rosto de Ana, o olhar firme no parque, a úmida raiva de Laura. Pensou na vida que teve até o acidente, no sorriso que ela não conseguia mais dar de verdade.

“Vamos agir”, disse, abrindo o envelope e guardando tudo de volta no envelope interno. Saíram da sala com passos firmes. Queriam mais evidência. precisavam juntar os documentos, testemunhos, tudo que explicasse a farça completa. Mas pela primeira vez Isadora sentia seu corpo mais leve. A dúvida não a impedia mais.

 A verdade agora tinha nome. Do lado de fora, o solva mais forte. Laura fez sinal para o motorista vir. Ana veio perto de Isadora, que colocou a mão no ombro da menina. A gente venceu mais essa etapa”, disse com a voz tremida, mas cheia de determinação. A investigação médica foi a prova que elas precisavam para terminar aquilo de uma vez.

 Na manhã seguinte, aí à clínica, Laura acordou antes do sol nascer. Dormira no sofá da sala da casa de campo, com um cobertor fino jogado por cima. O corpo ainda estava dolorido, mas a cabeça tava a mil. Ela se levantou devagar, foi até a cozinha, preparou um café forte e sentou à mesa com um caderno aberto. Tava na hora de ir mais fundo. Já não bastava só ajudar.

 Agora ela queria fazer parte de tudo de verdade. Isadora ainda dormia no quarto e Ana cochilava no colchão ao lado. As duas estavam exaustas e com razão, mas Laura não podia parar. pegou o celular e começou a organizar todos os arquivos, mensagens, laudos, fotos dos frascos, datas. Criou uma pasta no e-mail e outra no penrive.

 Guardava tudo em dois lugares, com medo de perder qualquer prova. Ao longo da manhã, ela fez mais uma ligação pro Diego, o amigo médico. Disse que precisava de alguém de confiança, um advogado, alguém que pudesse orientar sobre os próximos passos. Diego disse que conhecia uma pessoa certa, uma advogada que já tinha lidado com casos parecidos de abuso psicológico e dependência forçada por medicação.

Marcou um encontro para dali dois dias em um café discreto. Laura desligou, respirou fundo e olhou pela janela. O vento balançava as folhas e o som era calmo. Mas por dentro ela sentia tudo menos calma. Sentia um fogo que crescia. pela irmã, pela menina, por todas as coisas erradas que deixaram passar. Ela lembrou do passado.

 Do dia em que Isadora contou que estava se casando com Marcos. Ela não gostou do cara logo de cara. Parecia simpático demais, prestativo demais. O tipo que sempre quer mostrar que é o melhor em tudo. Teve um momento específico em que ele olhou para ela e deu aquele sorriso frio. E ali ela soube que algo não batia.

Mas como dizer isso pra irmã que estava apaixonada, que acreditava no amor? Agora tudo fazia sentido. Os detalhes, os sumissos, as respostas prontas. Laura anotou tudo que conseguia lembrar. Momentos em que Marcos interrompeu conversas, trocou compromissos, se intrometeu em decisões.

 Ela precisava juntar essas lembranças também, porque muitas vezes é nos pequenos momentos que a verdade aparece. Ao longo do dia, ela organizou também os horários para continuar cuidando da casa de campo, sem levantar suspeita. Mandou mensagens para conhecidos, dizendo que tirou uns dias de folga para relaxar.

 Comprou mantimentos online com entrega no sítio vizinho, combinando de buscar mais tarde. Até isso ela pensou. Ninguém podia saber que Isadora estava ali. Na parte da tarde, Isadora acordou. Laura foi até o quarto, sentou ao lado da cama e entregou o laudo da clínica novamente, agora junto com uma ficha que ela mesma criou com os nomes de todos os envolvidos até agora.

 Marcos, o tal médico falso, a farmácia clandestina que Ana citou e os endereços anotados no papel velho da menina. Eu quero ajudar mais, não só ficar esperando. Eu posso ir atrás dessa farmácia, conversar com o dono, ver se ele entrega alguma coisa. Se não entregarem, a gente tenta filmar escondido. Se alguém reconhece o Marcos, melhor ainda.

Isadora ficou olhando pra irmã por uns segundos. Aquilo mexeu com ela. Você não precisa se meter até esse ponto, Lau. Eu quero respondeu firme. Você é minha irmã e ninguém mexe com você sem pagar caro por isso. Ana apareceu na porta com os olhos inchados de sono, mas ouvindo tudo, sentou perto das duas e Laura colocou a mão no ombro dela. E com você também, pequena.

 Você é a peça mais forte de tudo isso. Naquele fim de tarde, Laura saiu sozinha para tentar reconhecer o endereço da farmácia que Ana tinha descrito. Foi dirigindo devagar, olhando cada placa, cada portinha escondida. Quando finalmente achou, estacionou distante, observando de longe. Era do jeito que a menina tinha dito.

 Discreta com uma entrada lateral escondida, vitrine sem nome claro, ela não entrou. Sabia que precisava de um plano antes, mas anotou tudo. As placas, os carros na frente, o número da casa ao lado, a movimentação. Tirou fotos, mandou para Isadora. No caminho de volta, dirigiu em silêncio, mas com um pensamento só.

Agora ela não ia mais sair daquilo. Não ia soltar a mão da irmã, ia até o fim. Doa a quem doer. Quando chegou, encontrou Ana rindo de uma piada que Isadora contou. A cena simples encheu os olhos dela de água, porque pela primeira vez em muito tempo, a casa estava viva de novo.

 E ela faria tudo para manter aquilo, tudo mesmo. A casa de campo estava silenciosa, só com o som do forno e a respiração de Isadora. Laura e Ana tinham saído para buscar mais provas, deixando ela cuidando de alguns papéis. Era o primeiro dia de liberdade ali, mas a paz já vinha com medo. Por volta das 17s, alguém bateu forte na porta.

 O coração de Isadora disparou. Não esperava visitas. Levantou a cabeça, tentou ouvir quem era, mas ficou em silêncio. Bateu de novo mais forte. Ela se levantou devagar, sentindo as pernas pesarem. Quando abriu, viu dois homens sérios com cara de quem não vinha convidado. Um estava com um crachá, clínica Santa Helena. O outro segurava uma pequena maleta.

 Um deles disse: “Boa tarde, senhora. Viemos buscá-la. É sobre seu tratamento.” A voz tinha tom diferente. Não acolhia, mandava. Isadora tentou disfarçar, convidou para entrar, mas algo naquele jeito bruto já soava errado. O homem do crachá abriu a maleta e tirou uns papéis. Pareciam receitas médicas assinaturas.

Dr. Vilela mandou que trazêsemos o prontuário completo para a reavaliação em nossa clínica parceira. A voz era firme. Isadora sentiu a garganta secar. Era o que ela mais temia. ser levada para um lugar onde ninguém iria saber quem ela era, sem poder ver Laura e Ana. Respirou fundo, procurou o celular, mas viu que estava em cima da mesa, quase longe demais.

 Os homens esperavam, então ela respondeu fingindo calma. Eu preciso falar com minha irmã antes. Posso ligar para ela? O homem com maleta a interrompeu. Não é necessário, senhora. Já temos autorização assinada por você. Ele mostrou um papel. A tal procuração forjada, a assinatura dela parece igual, mas era falsa.

 O frio tomou conta do corpo dela. Aquilo era real. Aquilo tinha sido planejado, aquilo podia acabar com tudo. Mesmo assim, ela se forçou a sorrir. Vou ligar sim, só um minuto. Pegou o celular, digitou rápido, Laura, enquanto chamava, segurava o papel com raiva. Mas a ligação deu caído. O homem sorriu. Tecnicamente vou te levar hoje. É o protocolo. Puxou uma cadeira, se sentou ao lado dela.

 Isadora sentiu a sombra da ameaça no ar. Nesse momento, Ana surgiu por trás, tinha voltado mais cedo e escutou. Correu até Isadora e abaixou a cabeça na mesa. Tia, por favor. Os homens olharam pra menina, franziram a testa, pareciam confusos. O mais velho se levantou. Isso não é da sua conta, menina. Tentou afastá-la.

 Ana ergueu o rosto e olhou nos olhos dele. Minha mãe morreu por remédio. Eu vou impedir que façam isso de novo. Ele ficou dois segundos sem falar, depois virou para Isadora. Senhora, vamos. Era uma ordem. Isadora respirou fundo. A história tinha chegado ali. O plano de Marcos ia adiante.

 Ela segurou firme a mão de Ana, levantou a cabeça e respondeu: “Não vou a lugar nenhum, não sozinha, até minha irmã chegar. Não saio daqui.” O silêncio dominou o ambiente. A sala ficou pequena demais para tanta tensão. Os homens se entreolharam. Um ligou por rádio. A porta ficou entreaberta. Minutos depois, ouviram o motor de um carro chegando rápido. Laura dirigindo, batendo no portão.

 Imediatamente os homens se retiraram. Disseram que iam aguardar do lado de fora, mas não voltaram mais. Laura entrou correndo com Ana, mandou-as entrarem rápido. Isadora fechou a porta, trancou a chave, deu um suspiro que parecia um grito. As duas correram para abraçá-la. Eles quase te levaram. Laura falou com a voz tremendo.

 Isadora simplesmente chorou. Do lado de fora, ouviam o motor acelerar e sumir na estrada de terra. Dentro, a casa que tinha sido refúgio virou trincheira. Mas agora elas sabiam que o inimigo podia estar em qualquer lugar e como era necessário proteger umas as outras a qualquer custo. No dia seguinte, o clima na casa de campo estava mais tenso que nunca.

 Desde a visita dos dois homens dizendo que iam levar Isadora, ninguém conseguia dormir direito. Laura trancava as portas com cadeado, deixava o carro sempre abastecido e dormia com o celular na mão. Ana ficou mais quieta, parecia entender o risco, mesmo sendo tão nova. Naquela manhã, Isadora estava sentada na varanda sentindo o vento bater no rosto.

Por um momento, tentou lembrar como era antes de tudo aquilo, antes de Marcos, antes da cadeira, antes do medo. Senti a vontade de gritar, mas só fechou os olhos e respirou fundo. Foi então que o celular de Laura tocou. Era Diego, o médico. Preciso te ver, urgente.

 Consegui um contato com um delegado de confiança. Ele quer os documentos agora. Laura arregalou os olhos. Mas é perigoso sair daqui, Diego. Eles já tentaram levar a Isa. Do outro lado da linha, a voz dele foi firme. Então vamos até vocês, mas vamos de forma segura. Combinaram tudo. Diego traria o delegado disfarçado, sem farda, num carro comum.

 Iam fingir ser parentes visitando a casa. Chegariam por uma estrada lateral sem passar pela frente. Só pediram que Isadora estivesse pronta com os documentos para entregar tudo de uma vez. Duas horas depois, o carro apareceu. Um sedã prata com os vidros escuros. Isadora viu pela janela e sentiu o coração disparar. É agora disse Laura e Ana ajudaram a organizar tudo.

 Envelope com provas, frascos de remédio, laudos médicos, prints de conversa, tudo num fichário grosso. O carro parou e desceram dois homens. Um era Diego, o outro tinha cara de quem já viu muita coisa. Moreno, com barba por fazer roupas simples, se apresentou como júnior, delegado de crimes contra pessoas. Ouvi a história. Já vi coisa parecida, mas não com tanto detalhe.

 A gente pode ir atrás dele, mas precisa de mais uma coisa. Ah, disse, palavra da Isadora. Oficial no papel. Isadora assentiu. Vamos fazer isso agora. Só que não deu tempo. Um carro preto surgiu do nada, derrapando na entrada da estrada. Veio rápido. Alguém desceu antes mesmo de parar. Era Marcos. Ele gritava, apontava o dedo. Ela está sendo sequestrada.

 Essa mulher tá doente. Volta comigo agora, Isa. O delegado se colocou na frente dela. Senhor, abaixe a voz. Estamos em apuração. A senora Isadora está em segurança. Marcos ignorou. Segurança com essa gente, com essa menina de rua, ela precisa de ajuda. Eu sou o marido dela. Laura foi pra frente também.

 Não toca nela não mais. Marcos tentou avançar, mas o delegado mostrou o crachá, mesmo sem uniforme. Mais um passo e você vai comigo. A senhora tem denúncia contra você, assinada e registrada. Tá cercado. Marcos parou. Pela primeira vez parecia perdido. Não esperava que Isadora tivesse ido tão longe. Ela sentada na cadeira, olhou para ele com uma calma estranha.

Não falou alto, não gritou, só disse: “Você perdeu”. Ele tentou argumentar, tentou fazer drama, mas ninguém mais ali acreditava. Ninguém caía na encenação. O delegado pediu reforço pelo rádio. Outro carro chegou minutos depois. Marcos foi levado algemado, ainda gritando que era inocente, que tudo era armação.

 Mas o que ele não sabia é que agora tinha testemunhas, documentos, provas. e não tinha mais controle. Ana correu para abraçar Isadora. Laura se ajoelhou do lado e as três choraram juntas de alívio, de cansaço, de raiva, mas principalmente de vitória. O resgate não foi só físico, foi emocional, foi uma arrancada da escuridão, um passo gigante paraa liberdade. E naquele momento Isadora soube.

 Ela tinha voltado a ser dona da própria vida. Dois dias depois da prisão de Marcos, Isadora acordou com o sol entrando forte pela janela da casa de campo. Não foi um despertar comum, foi um daqueles onde o corpo ainda lembra do susto, mas a cabeça já começa a sentir alívio. Ela respirou fundo, olhou ao redor e viu que Laura ainda dormia no sofá da sala, com a perna pendurada, como sempre.

 Ana já estava acordada, rabiscando no caderno velho dela aquele que carregava como um cofre. Isadora foi até a cozinha e começou a preparar um café. Sozinha. fez tudo com calma, prestando atenção no movimento das mãos, no cheiro, no som, do bul esquentando. Por alguns minutos, só isso já era a vitória. Sentir o controle voltando, mesmo que em pequenos detalhes.

 Depois do café, elas arrumaram a mesa e ligaram o computador. Era hora de organizar tudo oficialmente. Laura abriu uma pasta no notebook chamada Justiça. Dentro dela colocou tudo em ordem. Laudos médicos com o nome da substância que causava os sintomas, fotos dos frascos adulterados, as etiquetas falsas e originais, o print da denúncia antiga da ex de Marcos, que agora fazia sentido total.

 Diego tinha enviado também a transcrição do laudo oficial do laboratório, mostrando que a substância estava ativa no sangue de Isadora e que os sintomas batiam com o que ela sentia. Mas o que deixou tudo mais claro, mais forte foi o vídeo que Ana tinha gravado sem que ninguém soubesse.

 Ela filmou Marcos dias antes do lado de fora da casa de campo, conversando com os homens que tentaram levar Isadora. A imagem não era perfeita, mas o som estava limpo. Dava para ouvir ele dizendo: “Levem ela hoje, antes que comece a espalhar.” Mentira. Eu cuido disso depois. O delegado ouviu isso e soltou. Aqui a gente tem a cereja do bolo. Também tinham a cópia da procuração falsa.

 O perito comparou as assinaturas e confirmou: “Foi forjada”. Isadora nunca tinha assinado aquele documento e se tinha algo que ninguém podia negar, era isso. Falsificar a assinatura para se passar por responsável médico era crime pesado. Junto com isso, veio a ligação que Laura conseguiu de um ex-funcionário da tal farmácia clandestina. O homem, com a voz disfarçada, contou que vendia os remédios para um homem de terno, carro caro, sempre à noite.

Confirmou o nome da substância, o tipo de entrega, e ainda reconheceu Marcos por uma foto mostrada por Diego. A gravação ficou salva em dois pendrives. Um seria entregue direto no fórum, o outro guardado no cofre de casa. Isadora ficou sentada observando tudo aquilo. Ela não dizia muita coisa.

 Só balançava a cabeça, mexia os dedos devagar no braço da cadeira. Vez ou outra, olhava para Ana. A menina agora estava com a cabeça encostada na parede, os olhos fechando, cansada, mas aliviada também. No fim da tarde, Laura organizou tudo numa pasta de couro. Cada documento com seu postit, cada página numerada. O delegado viria no dia seguinte para pegar.

 Tudo seria anexado ao inquérito e Marcos responderia por tentativa de homicídio, falsidade ideológica e mais uma série de crimes. Isadora olhou pela janela e disse: “Como quem fala para si mesma, ele quase destruiu minha vida inteira” e eu deixei. Laura respondeu na hora firme. Você confiou? Ele se aproveitou. A culpa nunca foi sua.

 Ana, que escutava de canto, completou. Agora acabou. E por um instante o silêncio ali foi diferente. Não era mais silêncio de medo, era de alívio, de missão cumprida, de começo de um novo capítulo, sem marcos, sem controle, sem mentira. Naquela noite, Isadora dormiu sem travar os dentes, sem se mexer inquieta.

 Dormiu como quem sabe que no dia seguinte o mundo começa de outro jeito e ela, pela primeira vez em muito tempo, seria quem guiava o próprio caminho. A primeira matéria saiu numa segunda-feira de manhã. Uma jornalista de um canal local que era amiga da advogada de Laura, recebeu as informações com exclusividade.

 Título da Manchete: Milionária foi envenenada lentamente pelo próprio marido, com remédio controlado. A foto de Isadora, sentada na cadeira de rodas aparecia no canto da tela. A reportagem dizia tudo. A manipulação, os documentos falsos, o remédio escondido, o laudo médico, a gravação com a voz de Marcos.

 Nos primeiros minutos depois da matéria ir ao ar, o celular de Laura explodiu de notificações. Mensagens de conhecidos, vizinhos, parentes que estavam sem saber de nada. Gente revoltada, chocada, emocionada. Algumas pessoas lembravam do casal como exemplo de amor, de parceria, agora não acreditavam no que viam.

 Isadora recebeu ligações da imprensa, mas não quis falar com ninguém no primeiro dia. Passou a maior parte do tempo sentada na varanda da casa de campo, com o celular desligado e a cabeça longe. Ver tudo aquilo se espalhando era estranho, de certa forma era libertador, mas também era como se estivesse entrando na parte mais dolorosa da vida dela. À noite, o caso já estava em rede nacional.

 Um programa sensacionalista fez uma edição especial com o título O marido perfeito, que era um vilão silencioso. Colocaram imagens antigas de festas, viagens, entrevistas com pessoas que conheceram Marcos. Uma vizinha contou que sempre achou ele calmo demais. Um ex-funcionário disse que o patrão era educado, mas seco. Tudo parecia parte de um roteiro de filme, mas era verdade.

 Na internet, a reação foi ainda mais rápida. No Twitter, a #gigojustiça porizadora chegou ao topo dos assuntos mais comentados do país em menos de 4 horas. Vídeos com trechos da reportagem da entrevista do delegado e até memes com o rosto de Marcos viralizaram. Alguns falavam do perigo de relacionamentos abusivos silenciosos.

Outros relembravam casos parecidos. Gente do país inteiro comentava, compartilhava, queria saber mais, mas teve quem duvidasse também. Sempre tem. Alguns perfis tentaram defender Marcos, dizendo que Isadora queria se aparecer, que tudo isso era um plano para conseguir atenção ou dinheiro. Teve até um ex-colega de faculdade dele que foi à TV falar que Marcos era brilhante demais para fazer uma coisa dessas.

Esses comentários deixaram Laura furiosa, mas Isadora, vendo de longe, só balançava a cabeça. Eles não têm ideia do que é viver com medo todos os dias. No segundo dia, Isadora decidiu que precisava falar, ligou pra jornalista que fez a primeira matéria, aceitou dar uma entrevista exclusiva. Foi simples, sem maquiagem, sem cenário bonito.

 Ela sentou na varanda de casa com Ana e Laura ao lado e falou por quase 40 minutos. contou o que viveu, como começou a desconfiar, como a menina de rua mudou tudo. O trecho mais forte foi quando ela falou da sensação de impotência. Eu achava que tava doente, achava que era meu corpo me traindo, mas era ele todos os dias me medicando, mentindo, controlando tudo. E eu só percebi porque uma menina que perdeu a mãe teve coragem de me contar a verdade.

Ana ficou calada durante a gravação, mas apertou a mão de Isadora com força. Era como se dissesse: “Tô aqui”. No dia seguinte, a entrevista foi ao ar. A repercussão foi ainda maior. Sites de notícias compartilharam trechos, celebridades comentaram. Até médicos vieram a público reforçar a gravidade da situação.

 Um deles deu entrevista explicando que o remédio usado realmente causava os sintomas descritos e que o uso prolongado sem acompanhamento médico era perigoso, e sim podia paralisar uma pessoa. Mais denúncias começaram a aparecer. Outras mulheres mandaram mensagens dizendo que passaram por histórias parecidas, com maridos que as fizeram tomar remédio sem saber, que as isolaram, que as fizeram duvidar da própria sanidade. A história de Isadora virou símbolo.

 No fim daquela semana, Isadora recebeu um convite para participar de um debate sobre violência invisível e abuso silencioso. Não aceitou, ainda era cedo, mas pediu que Ana fosse homenageada no lugar dela. E no sábado, a menina subiu num pequeno palco de um evento social e ouviu aplausos de pé. Chorou, tímida, sem saber o que fazer. Só olhou pra plateia e disse: “Eu só falei a verdade.

 Ninguém esperava tanto de uma criança de 11 anos. Mas ali, naquele instante, o país inteiro entendeu que coragem não tem idade e que a verdade, por mais dolorosa que seja, precisa ser dita.” Sempre. Três semanas depois da prisão de Marcos, Isadora acordou com uma sensação estranha nas pernas.

 Era um formigamento fraco, como se algo ali estivesse tentando voltar à vida. Sentou devagar na cama, apoiou os braços nos joelhos e ficou só sentindo. Nos últimos dias isso tinha acontecido algumas vezes. Pequenos sinais. Primeiro o calor voltando nos pés, depois uma coceira no calcanhar. Agora esse formigamento. Na consulta com Diego, ela contou tudo.

 Ele ficou calado por um instante, depois disse: “Pode ser um bom sinal. Seu corpo tá começando a reagir. Isadora não quis se empolgar, mas no fundo uma esperança antiga começava a dar as caras. Tímida, mas real. Com a medicação suspensa, os médicos agora podiam avaliar com clareza os danos e as notícias eram melhores do que esperavam.

 O uso prolongado da substância tinha causado uma atrofia forte, sim, mas não era definitiva. Se ela conseguisse iniciar um tratamento novo com fisioterapia intensa, havia chance de recuperar parte do movimento. Isadora chorou de alívio, de medo, de esperança, tudo ao mesmo tempo. Laura ficou sabendo no mesmo dia. Você vai andar, Isa.

 Vai andar de novo? Ana pulou do sofá e correu para abraçar Isadora. As duas se agarraram como se não quisessem nunca mais soltar. A menina apertou o rosto no peito dela e disse: “Eu falei que ia dar certo. A notícia da recuperação não saiu na mídia de imediato. Isadora pediu sigilo. Queria viver esse processo em paz, sem câmera, sem manchete. Mas claro que com o tempo o boato começou a circular.

 Um fisioterapeuta conhecido publicou uma foto dela no centro de reabilitação com a legenda. Nunca duvide poder da verdade. A imagem viralizou. Isadora aparecia sentada, com as pernas esticadas e um pequeno equipamento preso nos joelhos. Os comentários se dividiram entre gente que torcia com todo o coração e outros que achavam que ela estava forçando uma recuperação só para chamar atenção.

 Ela não se importava mais. Durante uma sessão, o terapeuta disse que queria testar algo, um suporte novo com barras de apoio e cintos de estabilidade. Ela topou, colocaram os equipamentos, posicionaram ela com cuidado. Ana ficou num canto, Laura gravando tudo. Isadora segurou a barra com as duas mãos, apertou com força. O fisioterapeuta contou até três e ela tentou.

 Não foi bonito, não foi firme, mas foi real. O pé direito deu um pequeno empurrão no chão, fraco, quase imperceptível, mas suficiente para fazer o corpo dela se mexer pra frente. Ela soltou um grito de susto e emoção ao mesmo tempo. O fisioterapeuta sorriu. É isso. Tá voltando. Você deu seu primeiro passo. Ana correu e abraçou ela pelas pernas.

 Laura não conseguiu segurar o choro. Era como se o tempo tivesse voltado, como se tudo aquilo que tinham vivido cada dia de medo, de dúvida, de dor, tivesse levado até ali. A médica da clínica pediu uma nova bateria de exames. Os resultados mostraram um avanço discreto, mas constante. Ela estava ganhando força muscular. A possibilidade de andar de novo não era mais sonho, era um processo.

 Na volta para casa, Ana olhou para ela no carro e disse: “Você lembra o que eu disse no primeiro dia?” Isadora sorriu. “Lembro. Você achou que eu tava brincando e agora eu sei que não tava.” As duas deram risada, um riso leve, sem peso, daqueles que vem quando a dor começa a sair do corpo. Laura dirigia em silêncio, com os olhos marejados.

Naquela noite, Isadora se deitou diferente. Com o corpo cansado, sim, mas com a alma leve. Sentia as pernas como parte dela de novo. E sonhou pela primeira vez em anos, que corria, não voava, não flutuava. Corria, sentia o chão sobre os pés, o vento no rosto, o coração livre. acordou com um sorriso no rosto.

 E dessa vez não foi sonho, foi só o começo do que ainda viria. A primeira audiência aconteceu num prédio velho do fórum da cidade. O corredor estava cheio, mas tudo parecia parado quando Isadora entrou pela porta lateral com Laura empurrando sua cadeira e Ana do lado segurando a bolsa dela. Os olhos de todos se viraram para elas. Algumas pessoas já sabiam quem era, outras coxixavam.

Marcos chegou algemado com expressão cínica e o cabelo arrumado como se fosse para um jantar elegante. Vestia terno escuro e sapato engrachado. Quando viu Isadora, tentou forçar um sorriso, mas os olhos entregavam outra coisa. Desespero escondido, um nervosismo que nem ele sabia disfarçar mais. A sala era simples, mas pesada.

 Mesa do juiz, cadeira pro réu, promotor, advogada de defesa, advogada de acusação, que agora também representava Isadora. Quando a juíza entrou, o silêncio tomou conta. Tudo ficou sério de uma hora para outra. A advogada de Isadora começou apresentando os documentos. Laudo médico, vídeo da conversa de Marcos com os homens da falsa clínica, gravações das ameaças, provas da assinatura forjada, os frascos de remédio com rótulos adulterados, tudo. Cada item colocado sobre a mesa era como um tijolo desmontando a máscara de Marcos. Ele

tentava manter a pose, mas suava. A cada nova prova, mexia no colarinho, ajeitava a postura. Quando mostraram o vídeo da farmácia clandestina com um dos ex-funcionários dizendo que reconhecia Marcos como o comprador, ele abaixou a cabeça. A defesa tentou alegar insanidade, dizendo que Marcos acreditava que estava ajudando.

 Disseram que ele teve um surto após a lesão de Isadora e que passou a agir por impulso. Mas o delegado que investigou o caso logo foi chamado e confirmou. Tudo era planejado. Os remédios eram comprados há meses com dinheiro escondido em contas paralelas. A procuração foi feita com falsificação de assinatura e data.

 Nada de surto, era frieza. Então, Isadora foi chamada para depor. Entrou com as mãos firmes no colo. Falou baixo, mas clara. Contou cada passo desde o dia que conheceu Marcos, passando pela mudança na saúde, a perda da autonomia. A desconfiança, o encontro com Ana, a descoberta dos documentos, até o dia da fuga. A sala ficou em silêncio, nenhum barulho, nem os estalos de caneta, só a voz dela contando como um homem conseguiu controlar a vida de uma mulher sem levantar a voz.

Ele sorria o tempo todo, dizia que me amava, me dava chá, me deitava, me abraçava. Mas tudo isso era para eu não sair do lugar, literalmente. Quando Ana entrou para testemunhar, o impacto foi ainda maior. A juíza pediu uma pausa depois do depoimento da menina. Ana não chorou, falou firme. Ele fez com a minha mãe o que fez com a Isa, só que minha mãe não sobreviveu.

 Disse isso com os olhos duros e depois disso ninguém teve mais dúvida de quem era Marcos. Ao final da audiência, a juíza autorizou a prisão preventiva até o julgamento definitivo. Mas antes de sair da sala, Marcos perdeu o controle, começou a gritar, chamou Isadora de ingrata, disse que salvou ela, que fez tudo por amor.

Tentou arrancar as algemas, tentou correr, foi contido por dois policiais, saiu xingando. Isadora não reagiu, só olhou em silêncio, porque ali, naquele grito desesperado, ela viu a verdadeira face de Marcos, a parte que ele escondeu por anos e que agora não tinha mais onde se esconder. Do lado de fora, a imprensa já esperava.

 Laura avisou que ninguém daria entrevista naquele dia. Isadora só queria ir para casa, sentar na varanda, sentir o vento e ficar em paz por um instante. Porque a queda de Marcos não era só dele, era a libertação dela também. Amanhã começou com o canto dos pássaros lá fora e a luz entrando pela janela da sala da casa de campo.

 Ana acordou cedo, levou um tempo até se lembrar onde estava e o que tinha acontecido. Olhou para Isadora e Laura dormindo no sofá e sentiu um calor no peito. Era o começo de uma nova vida, não só para elas, mas principalmente para ela. Ela se levantou devagar, calçou o chinelo que a irmã tinha trazido, pegou o casaco que sempre usava e foi até a cozinha.

 Laura já tinha deixado café e pão na mesa. “Bom dia”, disse ela sorrindo. Sem pressa, sentou e mordeu o pão, sentindo-se segura por ali. Pela primeira vez, aquele espaço não parecia estranho ou só temporário, parecia lar. Mais tarde, a advogada de Laura apareceu para alinhar os últimos detalhes da adoção.

 A casa de família aberta, Isadora como guardiã, Ana como filha adotiva. O processo já estava sendo preparado. Era o passo final para que tudo ganhasse forma de verdade. A menina ouviu cada palavra e sorriu. Parecia tímido, mas trouxe alívio. No fim da tarde, começaram a organizar o quarto dela. Escolheram os móveis que estivessem por lá da infância de Isadora, a cama antiga de solteiro, uma escrivaninha que ficava no sotão, brinquedos que Isadora tinha guardado.

 A menina ajudou a montar tudo, colocou seus desenhos na parede, organizou a estante. Era o primeiro espaço só dela depois de tanto tempo sem ter um lugar para chamar de seu. Durante a montagem, Isadora reparou num detalhe que a emocionou. Ana tinha desenhado as duas de mãos dadas correndo num campo florido. A trilha de liberdade. A irmã ficou sem palavras.

 Foi o momento de ver que, no fundo, a menina carregava o desejo de ser protagonista da própria história. E agora podia ser. Mas tarde foram juntas ao primeiro dia de aula de Ana na nova escola. Era uma escola pública perto da casa. As três foram andando. Ana com mochila nova, Isadora empurrando a cadeira, Laura caminhando ao lado. Os professores receberam a menina com sorrisos.

 Viram que ela estava meio tímida, mas com olhos curiosos. Tudo parecia estar alinhando para ela se sentir parte dali, como se sempre tivesse pertencido. Quando ela entrou na sala, virou-se para Isadora e disse baixinho: “Obrigada”. As duas se olharam. entenderam que aquela palavra era maior do que qualquer outra.

 Era gratidão, era confiança, era futuro. Ao meio-dia, voltaram para casa e almoçaram juntas. Conversaram sobre amigos, escola, o que ela gostava de estudar. Isadora e Laura escutavam. faziam planos de coisas simples. A primeira festa de aniversário, uma viagem pro sítio, um projeto de aprender guitarra, coisas pequenas que faziam grande diferença.

Naquele dia, a calma dominou a casa. Parecia que o passado complicado estava lá fora, ficando para trás. E dentro havia leveza, uma sensação de segurança e possibilidade que nunca existiu antes. Mais tarde à tarde, Ana foi brincar no quintal.

 pegou um caderno grande e começou a desenhar sua nova casa com as três juntas e flores ao redor. Isadora sentou na varanda para observar. Respirou fundo, sentiu paz. Sabia que não ia ser fácil. Ainda havia desafios, burocracia, talvez olhares estranhos da vizinhança, mas pela primeira vez ela se sentia forte para encarar tudo isso e sabia que ao lado dela estava a menina que mudou tudo.

 Quando o sol começou a descer, Laura chamou as duas para dentro. Prepararam pipoca e assistiram a um filme juntas. Riram, conversaram sobre a nova rotina, deixaram de lado por algumas horas a palavra perigo. Era só o lar delas construído com cuidado, pedaço por pedaço. Antes de dormir, Ana foi até a cama de Isadora e deu um beijo. Boa noite, tia Isa.

 A voz era doce, como se aquela ligação tivesse sido escrita há tempos. Isadora acariciou o cabelo dela e respondeu: “Boa noite, meu anjo.” Laura entrou logo em seguida, fechou a porta com cuidado, o silêncio tomou conta, cada uma no seu quarto, mas com o mesmo pensamento. Dali paraa frente, a vida era delas, de verdade. E o começo era só o começo. Amanhã começou calma.

 Com o sol entrando pela janela da casa de campo, Isadora desceu para a sala, colocou a cadeira de rodas perto da porta e esperou o fisioterapeuta chegar. Era o dia que ela tanto esperava, o dia dos primeiros passos. Quando o profissional entrou, cumprimentou com respeito e montou um suporte especial. Tinha barras de apoio firmes, cintos seguros, um par de muletas adaptadas. Os olhos de Isadora se encheram de emoção.

Laura e Ana estavam ao lado, com o coração acelerado. Ela se posicionou firme, segurando as barras. O fisioterapeuta explicou cada movimento com calma. Respira fundo, coloca o peso nos pés. Isadora olhou para Ana, que balançou a cabeça, um vai que dá silencioso. Respirou fundo e tentou. O pé direito tocou o chão firme. Era só o começo, mas aconteceu.

 Ela sentiu a perna tremer, mas não caiu e então começou a dar o segundo passo. Trepidante, inseguro, mas real. Laura começou a chorar baixinho, aliviada. Ana pulou e bateu palmas, rindo. Ela tá andando. A sala encheu de energia boa. O fisioterapeuta sorriu. Primeiros passos, Isadora. Continua assim. Ela deu três passos nesse suporte, com a cadeira logo atrás por segurança.

 Cada passo um esforço, cada passo um progresso. Parecia devagar, mas para ela era voar. Depois trocaram pelas muletas. Ela apoiou as mãos. caminhou um corredor curto, talvez uns 5 metros. Parou no final, respirando alto. Um sorriso grande tomou o rosto dela. “Consegui”, disse com a voz emocionada. E ninguém mais segurou a emoção.

 Laura abraçou ela forte. Ana correu junto. A mãe troupe de vitória ali, composta por três mulheres unidas pelo mesmo desejo. Liberdade. Naquele dia, ela caminhou cinco vezes, sempre com assistência. Sentiu os músculos queimarem. Sentiu as lágrimas nos olhos. Sentiu que cada passo era uma vitória contra tudo que passou.

À tarde, mandaram um vídeo curto para o grupo que ajudou no caso, o delegado Diego, a advogada, apoiadores. A mensagem era simples. Hoje ela andou pela primeira vez e vieram várias respostas, comemorações, mensagens de carinho, incentivo. Quando a noite chegou, a casa ficou silenciosa de novo, cada uma no seu espaço, refletindo.

 Pela primeira vez, Isadora não sentiu a cadeira como prisão, sentiu como opção. Antes de dormir, ela pediu para Laura e Ana irem até a varanda. Juntas olharam o céu estrelado. Ana disse baixinho. Ela andou. Isadora passou a mão no cabelo das duas e respondeu: “Agora a gente vai longe.” E ali, naquele momento, o futuro parecia infinito.

 Poderia ter tropeços, dores, desafios ainda. Mas os primeiros passos foram dados e com eles veio a certeza de que ela estava voltando pra vida. Com cada passo conquistado, ela reescrevia a própria história, escrevendo em liberdade.

 

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