Você já parou para pensar no que realmente acontecia dentro das fazendas quando ninguém estava olhando? Eu vou te contar uma história que vai te deixar sem palavras. Um homem que dividia sua própria esposa com sete escravos. Cada um deles tinha um dia da semana reservada, segunda, terça, quarta e assim por diante.
Parece ficção, eu também achei que era, mas os documentos que eu encontrei provam o contrário. E o pior de tudo, isso não era tão incomum quanto você imagina. Antes de continuar, se inscreve no canal e deixa aquele like, porque aqui a gente sempre traz essas histórias que ninguém tem coragem de contar.
histórias reais, pesadas, que mostram o lado mais brutal da humanidade. E me conta nos comentários de onde você tá assistindo. Eu sempre lei todos. Agora vem comigo, porque essa história vai muito além do que você tá imaginando. Meu nome não importa muito, mas o que eu faço, sim.
Eu passo meses, às vezes anos, investigando documentos antigos, cartas, registros de fazendas, testamentos, processos judiciais esquecidos em artigos empoerados do interior do Brasil. Eu viajo para cidades pequenas, converso com funcionários de cartórios que nunca viram ninguém interessado naqueles papéis velhos. Passo horas lendo manuscritos com caligrafia quase legível, tentando decifrar o que aconteceu séculos atrás.
E foi assim, depois de quase um ano de pesquisa, que eu encontrei o caso de Joaquim Tavares da Silva. Esse nome provavelmente não diz nada para você e não deveria mesmo. Ele nunca foi famoso, nunca entrou pros livros de história que a gente estuda na escola, nunca teve estátua, nunca teve rua com o nome dele.
Mas o que ele fez? O sistema doentio que ele criou dentro da fazenda dele era tão perturbador que até seus próprios vizinhos, gente que também era dona de escravos e que via atrocidades todos os dias, achavam aquilo demais. Achavam que ele tinha passado de todos os limites, mesmo numa época onde os limites praticamente não existiam.
Joaquim Tavares da Silva era dono de uma fazenda de café no interior do Rio de Janeiro, mais especificamente no Vale do Paraíba, numa região que fica entre Vassouras e Barra do Piraí, por volta de 1840. Naquela época, o Vale do Paraíba era o coração da produção de café no Brasil.
Era de lá que saía o café que enriquecia o império, que pagava as contas da coroa, que sustentava toda uma elite de fazendeiros que viviam como pequenos reis nas suas terras. A fazenda dele não era gigante, não era a maior da região, mas tinha um tamanho considerável. Eram cerca de 200 alqueires de terra, com cafezais que se estendiam até onde a vista alcançava, casre imponente, cenzalas, tulha, terreiro de café, moenda. E trabalhando em tudo isso, ele tinha uns 50 escravos.
Homens, mulheres, crianças, todos presos ali, sem escolha, sem voz, sem nada. Acordavam antes do sol nascer, trabalhavam o dia inteiro debaixo do sol escaldante, voltavam quando já estava escuro, comiam um pouco de anguinho e dormiam no chão duro da cenzala. E no dia seguinte, tudo de novo, todo dia, todos os dias, até morrer ou até serem vendidos para outra fazenda. E no meio disso tudo estava Maria Luía.
a esposa dele, uma mulher branca, de família tão bem dona de terras lá de Rezende, que tinha se casado com Joaquim quando tinha apenas 16 anos. Casamento arranjado, como era costume na época. As famílias se reuniam, conversavam sobre dotes, sobre terras, sobre alianças e decidiam o futuro dos filhos como se estivessem negociando a venda de uma propriedade.
Maria Luía não escolheu se casar com Joaquim. Ela mal conhecia quando o pai dela anunciou noivada. tinha visto ele talvez três ou quatro vezes em festas e encontros sociais. Ele era 20 anos mais velho que ela, um homem sério, de poucas palavras, que passava maior parte do tempo cuidando dos negócios da fazenda.
Mas ele tinha terras, tinha dinheiro, tinha uma boa reputação na região e isso era o que importava pro pai dela. Então ela se casou, colocou o vestido branco, foi até a igreja, disse sim na frente do padre e se tornou a senora Tavares da Silva. E achava que ia ter uma vida normal.
Achava que ia cuidar da casa grande, ter filhos, ir à missa todo domingo, receber visitas das outras esposas de fazendeiros, envelhecer ao lado do marido. Mas não foi isso que aconteceu. Maria Luía era descrita pelos poucos relatos que sobraram como uma mulher bonita, de cabelos castanhos compridos que ela prendia num coco, pelara que queimava fácil no sol do Vale do Paraíba, olhos verdes, jeito quieto e delicado. Ela tinha sido criada dentro dos padrões da época.

Aprendeu a tocar piano, a bordar, a recitar poesia em francês, todas aquelas coisas que as moças de família boa aprendiam para serem boas esposas. Ela era religiosa, rezava o terço todo dia, lia a Bíblia, tinha uma fé sincera. E quando se casou com Joaquim, ela levou essa fé com ela. Achava que Deus ia abençoar o casamento, que ia dar a ela uma família feliz, mas com o tempo ela percebeu que tinha se casado com um homem que não era o que parecia.
Joaquim era educado em público, sempre dizia as coisas certas, sempre agia de acordo com o que a sociedade esperava dele. Mas em casa, quando era só ele e ela, era diferente. Ele era frio, distante, quase nunca conversava com ela.
Passava horas trancado no escritório, mexendo em papéis, fazendo anotações, lendo livros que ele mandava buscar do Rio de Janeiro e quase nunca tocava nela. Nos primeiros meses de casamento, isso deixou Maria Luía confusa. Ela tinha sido criada acreditando que o marido ia querer ter filhos logo, que essa era a função dela. Mas Joaquim parecia não ter interesse nenhum e ela não sabia o que fazer.
Não tinha com quem falar, não podia voltar paraa casa dos pais e dizer que o casamento não estava dando certo. Isso ia ser uma vergonha pra família inteira. Então ela ficou quieta, tentou ser uma boa esposa, tentou agradar ele, mas nada mudava. Ela quase nunca falava com as outras mulheres da região nas festas e encontros sociais.
Sempre estava um passo atrás do marido. Olhar para baixo, postura curvada, como se quisesse desaparecer. Usava vestidos escuros, de cores apagadas, nada chamativo. Não usava joias, não penteava o cabelo de forma elaborada. Era como se ela tivesse tentando se tornar invisível.
As outras esposas de fazendeiros comentavam entre si que ela parecia assustada, que tinha algo estranho nela. Algumas diziam que ela era apenas tímida. que era nova, que ia se acostumar com a vida de casada. Outras achavam que tinha algo mais, mas ninguém perguntava. Não era educado, não era seguro. Você não se metia nos assuntos de outra família, principalmente quando essa família tinha poder e terras.
E Joaquim Tavares tinha poder. Ele era respeitado na região. Era um dos membros mais importantes da irmandade da igreja local. contribuía financeiramente para várias obras de caridade. Era visto como um pilar da comunidade. Ninguém ia questionar ele. O que ninguém sabia, ou pelo menos fingia não saber, era que Joaquim Tavares tinha criado um sistema, um esquema perturbador, meticulosamente planejado, que envolvia Maria Luía e sete dos escravos da fazenda dele.
Não eram escravos quaisquer, eram homens que ele escolheu especificamente depois de meses observando, analisando, fazendo anotações sobre cada um. Ele queria homens fortes, jovens, saudáveis, homens que ele achava que representavam diferentes características, diferentes tipos. Ele tinha uma obsessão doentia com o que ele chamava de estudos sobre a natureza humana.
Ele lia livros de pseudociência europeia, teorias racistas que tentavam justificar a escravidão através de explicações biológicas absurdas. E ele queria fazer os próprios experimentos, queria observar, queria documentar, queria provar teorias malucas que existiam só na cabeça dele. E para isso ele precisava de sujeitos. E ele tinha, ele tinha 50 escravos que eram propriedade dele, que não podiam dizer não, que não tinham direito nenhum.
E ele tinha uma esposa que também não podia dizer não. E cada um deles tinha um dia da semana. Segunda-feira era João, terça-feira era Benedito, quarta-feira era José, quinta-feira era Miguel, sexta-feira era Antônio, sábado era Francisco e domingo era Joaquim. Mas não.
Joaquinho fazendeu era outro escravo com o mesmo nome do senhor, algo que Joaquim Tavares achava engraçado, uma piada particular dele que mostrava o tipo de homem que ele era. Joaquim Tavares não participava dessas situações. Ele apenas observava, controlava, decidia quando, como, onde. Fazia anotações no caderno preto dele, desenhava esquemas, comparava, tratava seres humanos como se fossem animais num experimento. E Maria Luía, Maria Luía não tinha escolha nenhuma.
Ela era tão prisioneira quanto os escravos, só que de uma forma diferente. Ela não podia fugir, não podia pedir ajuda, não podia contar para ninguém, porque quem ia acreditar nela? Quem ia questionar o marido dela? Um homem respeitado, contra a palavra de uma mulher? E Joaquim Tavares era duas coisas.
Você pode estar se perguntando como isso veio à tona, como uma coisa dessas ficou registrada, se era tão secreto, se Joaquim fazia tanto esforço para esconder? A resposta é simples e ao mesmo tempo, complicada. Em 1847, Maria Luía morreu. A causa oficial foi febre amarela, que naquela época estava matando muita gente no Vale do Paraíba. A doença tinha vindo com navios do Rio de Janeiro e se espalhado pelas fazendas, matando escravos, matando senhores, não fazia distinção.
Era uma época de muito medo, de muito desespero. As pessoas se trancavam em casa, tentavam se proteger, mas não adiantava muito. A febre chegava de qualquer jeito. E quando Maria Luía começou a ter os sintomas, os olhos amarelados, a febre alta, o corpo todo doendo, todo mundo achou que era só mais uma vítima da epidemia.
Joaquim chamou o médico da região um homem chamado Fernando Augusto, mas não tinha muito o que fazer. Medicina naquela época era limitada. A maioria das doenças não tinha cura, não tinha tratamento adequado. As pessoas apenas esperavam para ver se o corpo ia aguantar ou não.
Mas teve outro homem que foi chamado nos últimos dias de Maria Luía, o padre Antônio José da Cruz. Ele era o pároco da igreja local, um homem de uns 60 anos, cabelos brancos, que conhecia todo mundo na região. Ele tinha batizado Maria Luía quando ela era criança lá em Rezende, antes de se ela mudar pra fazenda de Joaquim. E quando soube que ela estava morrendo, ele foi até a fazenda para dar a extrema unção.
O último sacramento era obrigação dele como padre. Ele entrou no quarto onde Maria Luía estava deitada, um quarto grande, mas escuro, com as janelas fechadas para impedir que a doença se espalhasse, segundo acreditavam na época. Maria Luía estava muito frata, quase não conseguia falar, a pele amarelada, os lábios rascados.
O padre Antônio sentou ao lado da cama, segurou a mão dela e começou a rezar. E foi nesse momento que ele percebeu algo. Ele viu marcas nos braços dela, matomas, alguns velhos, outros mais recentes. Ele afastou um pouco o lençol e viu mais marcas no pescoço, nos ombros, sinais claros de violência.
Ele ficou preocupado, perguntou a ela com a voz baixa para Joaquim, que estava do outro lado do quasto, não ouvir se alguém tinha machucado ela. Maria Luía apenas olhou para ele e começou a chorar. Lágrimas descendo pelo rosto pálido, sem fazer barulho, só chorando. O padre Antônio perguntou de novo, disse que ela podia confiar nele, que ele era servo de Deus, que tudo que ela dissesse ficaria em segredo da confissão, mas Maria Luía não falou.
Ela apenas sussurrou com uma voz tão baixa que o padre quase não ouviu que Deus já sabia de tudo, que Deus tinha visto tudo, que ela só queria que aquilo acabasse. E depois disso, ela fechou os olhos e não falou mais nada. morreu algumas horas depois naquela mesma noite com o padre Antônio rezando ao lado dela. O padre ficou perturbado.
Ele tinha visto muita coisa na vida dele. Tinha dado extrema unção para centenas de pessoas. Tinha ouvido confissões de todo tipo, mas aquilo tinha algo diferente. Ele sabia que Maria Luía tinha sofrido algo terrível e ele desconfiava de Joaquim. Mas não tinha prova, não tinha nada concreto. Então ele fez o que podia fazer.
Ele escreveu no diário pessoal dele. O padre Antônio tinha o costume de anotar as coisas importantes que aconteciam na paróquia, os batizados, os casamentos, os enterros e também as coisas que o preocupavam. E naquele dia ele escreveu sobre Maria Luía, escreveu sobre as marcas, escreveu sobre o choro dela, escreveu que tinha algo muito errado acontecendo na fazenda de Joaquim Tavares, mas que ele não sabia o que fazer.
Esse diário só foi descoberto décadas depois, quando a igreja local foi reformada em 1920 e poucos e encontraram uma caixa de madeira escondida no sótam com vários documentos antigos, incluindo o diário do padre Antônio. Foi um dos documentos que eu usei para reconstruir essa história. Depois da morte de Maria Luía, um dos escravos, o tal do José, tentou fugir. José tinha 41 anos na época.
Ele era um homem alto, forte, que trabalhava na lavoura de café desde que tinha sido comprado por Joaquim anos atrás. Ele tinha vindo de outra fazenda, lá do interior de Minas Gerais, depois que o antigo dono dele morreu e a família vendeu todos os escravos para pagar dívidas. José tinha deixado para trás uma vida inteira quando foi vendido. Tinha deixado amigos, tinha deixado uma esposa que ele nunca mais viu.
E na fazenda de Joaquim, ele tinha se casado de novo com uma escrava chamada Josefa, que trabalhava na casa grande como cozinheira. Eles tinham três filhos pequenos e José aguentava tudo, todos os horrores, todas as humilhações por causa deles. Mas quando Maria Luía morreu, algo quebrou dentro dele. Ele percebeu que aquilo nunca ia acabar, que Joaquim ia continuar fazendo aquilo talvez até piorar e ele não aguentava mais.
Então ele decidiu fugir. Era uma noite de lua nova, tudo escuro. José esperou todo mundo dormir, se levantou devagar para não acordar ninguém na cenzala e saiu. Ele não levou nada. Não podia levar nada sem fazer barulho, apenas saiu e começou a correr. Correu em direção às matas que ficavam no limite da fazenda, aquelas matas fechadas, cheias de árvores, onde diziam que tinha onça, que tinha cobra. Mas José não ligava.
Qualquer coisa era melhor que ficar ali. Ele tinha ouvido histórias sobre quilombos, comunidades de escravos fugidos que viviam escondidos nas montanhas, onde a pessoa podia ser livre, podia viver em paz. Ele não sabia exatamente onde ficavam esses quilombos, mas sabia que eram em algum lugar nas matas. Então foi para lá.
Correu a noite inteira, tropeçando em raízes, se arranhando em galhos, mas não parou. Quando o sol nasceu, ele estava longe da fazenda. Encontrou um riacho, bebeu água, descansou um pouco e continuou andando. Ele fez isso por cinco dias. Cinco dias comendo o que encontrava.
Frutas do mato, raízes, dormindo debaixo de árvores, sempre andando, tentando se afastar o máximo possível. Mas ele não conhecia bem a região. Acabou andando em círculos sem perceber. E no quinto dia, um capitão do mato chamado Custódio Ferreira encontrou ele. Custódio Ferreira era um homem que vivia de caçar escravos fugidos. Era o trabalho dele.
Os fazendeiros pagavam para ele encontrar os escravos que tinham fugido e trazer de volta. Ele era bom no que fazia. Conhecia as matas, sabia rastrear, tinha cachorros treinados. E quando soube que tinha um escravo fugido da fazenda de Joaquim Tavares, ele saiu atrás. Levou três dias para encontrar José. Quando achou, José estava fraco, com fome, os pés sangrando de tanto andar descalço no mato, ele não teve força para resistir. Custódia o amarrou, colocou uma corda no pescoço dele e começou a arrastar ele de volta.
A caminhada de volta durou dois dias. José quase não conseguia andar, tropeçava o tempo todo, mas Custódio não tinha pena, era o trabalho dele. Quando chegaram na fazenda, Joaquim estava esperando e ele estava furioso. Joaquim mandou fazer o espancamento em público, na frente de todos os outros escravos, como aviso. Era assim que funcionava.
Quando um escravo fugia e era capturado, ele tinha que ser punido publicamente para que os outros vissem e tivessem medo de tentar a mesma coisa. Joaquim mandou amarrar José num poste que ficava no meio do terreiro, aquele lugar onde secavam o café, chamou todos os escravos para assistir.
Chamou o feitor, um homem chamado Sebastião, que era conhecido por ser brutal, e mandou começar. Sebastião pegou o chicote, aquele chicote de couro cru que os feitores usavam e começou a bater. A primeira chicotada rasgou a camisa de José, a segunda rasgou a pele, a terceira fez o sangue começar a escorrer. José gritou, gritou muito no começo, mas depois de um tempo ele parou de gritar. Ficou quieto, o corpo todo tremendo, mas quieto.
E foi nesse momento, com a vida escapando dele, que ele começou a falar. Ele começou devagar, a voz fraca, mas foi ficando mais alta. Ele contou tudo. Falou sobre Maria Luía, falou sobre o sete, falou sobre segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. Falou sobre Joaquim observando. Falou sobre o caderno preto.
Falou sobre a casa nos fundos da propriedade, falou como era obrigado, como todos eram obrigados, como não podiam recusar. falou sobre as ameaças, falou sobre o sofrimento, falou tudo porque sabia que ia uma ver mesmo e queria que alguém soubesse, queria que a verdade saísse. Queria que pelo menos uma pessoa entendesse porque ele tinha fugido. Os outros escravos que estavam assistindo ficaram em choque.
Alguns já desconfiavam que tinha algo estranho com aquele sete, mas nunca souberam exatamente o quê. Custódio Ferreira, o capitão do mato que tinha capturado José, também estava lá. E ele ficou chocado. Ele tinha visto muita coisa na vida dele. Tinha caçado centenas de escravos fugidos. Tinha visto crueldade de todo tipo.
Fazendeiros que torturavam escravos por diversão, que marcavam eles com ferro quente, que vendiam crianças separando das mães todo tipo de horror. Mas aquilo era diferente. Aquilo era doentil demais até pros padrões da época. Joaquim tentou fazer José calar a boca, gritou para Sebastião continuar batendo, mas José não parou de falar.
Falou até não ter mais força e aí desmaiou. Foi levado de volta para cenzá-la, mas não sobreviveu. Morreu naquela noite, o corpo todo destruído pelas chicotadas, mas também pelo que carregava por dentro durante anos. Custódio Ferreira ficou tão perturbado com o que ouviu que fez algo incomum. Ele anotou.
Ele escreveu num papel com a letra dele meio torta, porque ele não tinha muita educação formal, tudo o que José tinha falado e levou isso pro cartório da comarca, onde foi registrado como parte do processo de captura e punição de escravo fugido. Normalmente, esse tipo de documento era bem simples. Só dizia o nome do escravo, o nome do dono, a data da captura, quanto foi pago pro capitão do mato.
Mas Custódio fez questão de incluir o depoimento de José. E o escrivão do cartório, um homem chamado Manuel Rodriguez, leu aquilo e também ficou perturbado, mas não fez nada. Por que? O que ia fazer? Denunciar Joaquim Tavares, um fazendeiro rico e poderoso, baseado na palavra de um escravo morto, seria a ruína dele. Então, ele apenas arquivou o documento junto com todos os outros e lá ficou por décadas até eu encontrar. Mas vamos voltar um pouco.
Vamos entender como isso começou. Como um homem chega ao ponto de fazer algo assim com a própria esposa e com pessoas que tecnicamente possuía. A resposta está na mentalidade da época, mas também na mente doente de Joaquim Tavares. Ele não era apenas cruel, ele era metódico, ele era inteligente, ele tinha estudado, tinha lido livros, tinha ideias, ideias perigosas. Ele acreditava que tinha controle total sobre tudo e todos ao redor dele.
E ele queria provar isso, queria exercer esse poder da forma mais absoluta possível. Para ele, aquilo não era só sobre satisfação pessoal ou perversão. Era sobre poder. Era sobre provar que ele podia fazer o que quisesse, que ninguém ia impedir ele, que ele era Deus dentro da fazenda dele. Ele tinha crescido numa família de fazendeiros. O pai dele também tinha escravos, também tinha terras.
Ele tinha aprendido desde criança que os escravos não eram pessoas de verdade, eram propriedade, eram coisas. Essa era a mentalidade que a sociedade da época cultivava. Os fazendeiros eram ensinados a ver os escravos como animais de trabalho, sem sentimentos, sem alma, sem humanidade. E a igreja até ajudava nisso, dizendo que a escravidão era natural, que era a vontade de Deus, que os negros tinham sido amaldiçoados e, por isso, mereciam servir.
Então, Joaquim cresceu acreditando nisso, mas ele foi além. Ele começou a se interessar por teorias pseudocientíficas que vinham da Europa, teorias sobre raças, sobre hierarquias humanas, sobre biologia. Ele lia autores que tentavam justificar a escravidão através de argumentos supostamente científicos, dizendo que existiam raças superiores e inferiores, que os negros eram biologicamente diferentes e que era natural que fossem escravizados.
Tudo mentira. Claro, tudo o racismo disfarçado de ciência, mas na época muita gente acreditava e Joaquim acreditava, ou pelo menos fingia acreditar para justificar o que ele queria fazer. Quando ele se casou com Maria Luía, ele já tinha essas ideias na cabeça há anos. Ele já tinha escolhido os sete escravos.
Ele só tava esperando a oportunidade certa. E o casamento deu essa oportunidade porque agora ele tinha uma esposa, alguém que também era propriedade dele de certa forma, não legalmente como os escravos, mas na prática as mulheres naquela época tinham muito poucos direitos. Uma mulher casada não podia ter propriedade em nome próprio.
Não podia trabalhar sem autorização do marido, não podia viajar sozinha, não podia tomar decisões importantes. Ela era vista quase como uma criança que precisava ser cuidada e controlada pelo homem. E Joaquim sabia disso. Ele sabia que podia fazer o que quisesse com Maria Luía e ninguém ia questionar. Então ele esperou, esperou o primeiro ano de casamento passar. Esperou ela se acostumar com a vida na fazenda.
Esperou ela se sentir isolada, longe da família, dependente dele. E aí ele agiu. Foi numa noite de março de 1841. Joaquim chamou Maria Luía para conversar no escritório dele, uma sala que ficava no segundo andar da Casagrande, cheia de livros e papéis. Ele fechou a porta com chave, mandou ela sentar numa cadeira de madeira escura que tinha na frente da mesa e começou a explicar.
Ele falou sobre as teorias que ele tinha lido, sobre natureza humana, sobre raças, sobre experimentos. Ele disse que queria fazer um estudo, que queria observar o que aconteceria se uma mulher branca, de boa família se relacionasse com homens negros, escravos.
Ele disse que era paraa ciência, que era para entender melhor a humanidade, que os resultados poderiam ser importantes. Maria Luía não entendeu no começo. Achava que ele estava falando de forma abstrata, teórica, mas aí Joaquim deixou claro. Ele disse que ela ia participar, que ela ia se relacionar com sete escravos que ele tinha escolhido, um para cada dia da semana, e que ele ia observar e documentar tudo. Maria Luía ficou em choque.
Ela não conseguiu falar no começo, só conseguiu olhar para ele, tentando entender se aquilo era uma piada, se ele tava testando ela de alguma forma, mas Joaquim estava sério, completamente sério. Então ela começou a dizer que não, que aquilo era absurdo, que era imoral, que era pecado mortal, que ela nunca ia fazer uma coisa dessas, que ele estava louco. Mas Joaquim não mudou de expressão.
Ele apenas esperou ela terminar de falar. E aí ele mudou de tom. A voz ficou mais fria, mais ameaçadora. Ele disse que se ela não cooperasse, ele ia garantir que ela nunca mais visse a família dela, que ia espalhar mentira sobre ela, que ia dizer que ela estava traindo ele, que tava louca, que tinha uma doença mental, que precisava ser internada numa instituição.
Naquela época existiam asilos para mulheres consideradas histéricas ou loucas. Lugares horríveis onde as mulheres eram trancadas, às vezes amarradas, tratadas pior que animais. E o marido podia internar a esposa nesses lugares com muita facilidade. Bastava a palavra dele. E Maria Luía sabia disso. Joaquim continuou. Disse que se ela não cooperasse, ninguém ia acreditar nela.
que ele era um homem respeitado, que ela era apenas uma mulher jovem e frágil, que, óbvio que as pessoas iam acreditar nele e não nela, e ele estava certo. Naquela época, a palavra de um homem valia muito mais que a de uma mulher, principalmente se o homem fosse rico e poderoso. E Joaquim era as duas coisas.
Maria Luía começou a chorar, implorou, caiu de joelhos, rezou, pediu para ele não fazer aquilo, disse que ia ser uma boa esposa, que ia fazer qualquer coisa, menos aquilo. Mas Joaquim não voltou atrás. Ele levantou ela do chão, abriu a porta e disse que na segunda-feira seguinte ia começar, que ela devia se preparar e saiu do escritório, deixando ela ali destruída, sem saber o que fazer.
Maria Luía passou os dias seguintes num estado de desespero. Ela pensou em fugir, mas para onde? Ela não conhecia ninguém na região, além das outras esposas de fazendeiros. E como ela explicar para elas como ela ia pedir ajuda sem contar o que estava acontecendo. E mesmo que contasse, elas iam acreditar ou iam achar que ela era louca.
Ela pensou em se matar, pensou nisso várias vezes, mas a religião dela não permitia. Ela acreditava que o suicídio era pecado mortal, que ela ia pro inferno se fizesse isso. Então, ela ficou presa, presa entre o horror que ia acontecer e o medo de fazer qualquer coisa para impedir. E na segunda-feira seguinte começou: João foi o primeiro. Ele foi levado até uma casa de pau a pique que ficava nos fundos da propriedade, longe da cenzala, longe da casa grande, escondida no meio das árvores.
Era uma casa pequena, só um cômodo, com uma cama, uma mesa, uma cadeira, nada mais. Joaquim tinha preparado aquele lugar especificamente para isso. Ele levou Maria Luía até lá primeiro. Ela tava pálida, tremendo, os olhos vermelhos de tanto chorar. Joaquim colocou ela dentro da casa e disse para ela esperar. Depois fui até a Senzala e chamou João.
João era um homem de 32 anos. Ele tinha vindo da África quando era criança, numa daquelas viagens horríveis nos navios negreiros que traziam milhares de pessoas acorrentadas, amontoadas, muitas morrendo no caminho. Ele se lembrava vagamente da travessia, dos gritos, do oxeiro de morte, do balanço do navio, da escuridão.
Tinha chegado no porto do Rio de Janeiro quando tinha uns 8 anos. foi vendido num aulão. Passou por várias fazendas até chegar na de Joaquim. Agora ele trabalhava na lavoura de café, acordava antes do sol nascer, passava o dia inteiro colhendo grãos, carregando cestos pesados, voltava quando já estava escuro. Ele tinha esposa, uma mulher chamada Teresa e três filhos pequenos.
Eles viviam juntos na cenzala. Dormiam todos no mesmo espaço pequeno, dividiam a pouca comida que recebiam. João fazia de tudo para proteger a família. Aguentava o trabalho pesado, aguentava as esticotadas quando o feitor achava que ele estava devagar demais. Aguentava tudo porque tinha que sobreviver pelos filhos.
Quando Joaquim chamou ele naquela noite de segunda-feira, João ficou confuso. Não era normal o senhor chamar um escravo sozinho à noite. Normalmente, quando isso acontecia, era porque alguém tinha feito algo errado e ia ser punido. Mas João não tinha feito nada. Ele tentou pensar em alguma coisa, algum erro que pudesse ter cometido, mas não conseguiu lembrar de nada.
Mesmo assim, ele não podia recusar. Quando o Senhor chamava, você ia. Então ele seguiu Joaquim até aquela casa nos fundos. Quando entraram, ele viu Maria Luía ali. Ela tava sentada na cama, olhando pro chão, não levantou os olhos quando ele entrou. Joaquim fechou a porta com chave. Ele mandou ela sentar numa cadeira de madeira escura que tinha na frente da mesa e começou a explicar.
Ele falou sobre as teorias que ele tinha lido, sobre natureza humana, sobre raças, sobre experimentos. Ele disse que queria fazer um estudo, que queria observar o que aconteceria se uma mulher branca, de boa família, se relacionasse com homens negros. escravos. Ele disse que era paraa ciência, que era para entender melhor a humanidade, que os resultados poderiam ser importantes. Maria Luía não entendeu no começo.
Achava que ele tava falando de forma abstrata, teórica, mas aí Joaquim deixou claro. Ele disse que ela ia participar. que ela ia se relacionar com os sete escravos que ele tinha escolhido, um para cada dia da semana, e que ele ia observar e documentar tudo. Maria Luía ficou em choque. Ela não conseguiu falar no começo, só conseguiu olhar para ele, tentando entender se aquilo era uma piada, se ele tava testando ela de alguma forma. Mas Joaquim estava sério, completamente sério.
Então ela começou a dizer que não, que aquilo era absurdo, que era imoral, que era pecado mortal, que ela nunca ia fazer uma coisa dessas, que ele tava louco. Mas Joaquim não mudou de expressão. Ele apenas esperou ela terminar de falar. E aí ele mudou de tom. A voz ficou mais fria, mais ameaçadora. Ele disse que se ela não cooperasse, ele ia garantir que ela nunca mais visse a família dela, que ia espalhar mentira sobre ela, que ia dizer que ela tinha traído ele, que tava louca, que tinha uma doença mental, que precisava ser
internada numa instituição. Naquela época existiam asilos para mulheres consideradas histéricas ou loucas, lugares horríveis onde as mulheres eram trancadas, às vezes amarradas, tratadas pior que animais. E o marido podia internar a esposa nesses lugares com muita facilidade. Bastava a palavra dele e Maria Luía sabia disso. Joaquim continuou.
Disse que se ela contasse para alguém, ninguém ia acreditar nela, que ele era um homem respeitado, que ela era apenas uma mulher jovem e frágil, que, óbvio, que as pessoas iam acreditar nele e não nela. E ele estava certo. Naquela época, a palavra de um homem valia muito mais que a de uma mulher, principalmente se o homem fosse rico e poderoso.
E Joaquim era as duas coisas. Maria Luía começou a chorar, implorou, caiu de joelhos, rezou, pediu para ele não fazer aquilo, disse que ia ser uma boa esposa, que ia fazer qualquer coisa, menos aquilo. Mas Joaquim não voltou atrás. Ele levantou ela do chão, abriu a porta e disse que na segunda-feira seguinte ia começar, que ela devia se preparar e saiu do escritório, deixando ela ali destruída, sem saber o que fazer. Maria Luía passou os dias seguintes num estado de desespero.
Ela pensou em fugir, mas para onde? Ela não conhecia ninguém na região além das outras esposas de fazendeiros. E como ela ia explicar para elas? Como ia pedir ajuda sem contar o que estava acontecendo? E mesmo que contasse, elas iam acreditar ou iam achar que ela era louca? Ela pensou em se matar. Pensou nisso várias vezes, mas a religião dela não permitia.
Ela acreditava que o suicídio era pecado mortal, que ela ia pro inferno se fizesse isso. Então, ela ficou presa, presa entre o horror que ia acontecer e o medo de fazer qualquer coisa para impedir. E na segunda-feira seguinte começou: João foi o primeiro. Ele foi levado até uma casa de pau a pique que ficava nos fundos da propriedade, longe da cinzala, longe da casa grande, escondida no meio das árvores.
Era uma casa pequena, só um cômodo, com uma cama, uma mesa e uma cadeira, nada mais. Joaquim tinha preparado aquele lugar especificamente para isso. Ele levou Maria Luía até lá primeiro. Ela estava pálida, tremendo, os olhos vermelhos de tanto chorar. Joaquim a colocou dentro da casa e disse para ela esperar. Depois foi até a cenzala e chamou João. João era um homem de 32 anos.
Ele tinha vindo da África quando era criança, numa daquelas viagens horríveis nos navios negreiros que traziam milhares de pessoas acorrentadas, amontoadas, muitas morrendo no caminho. Ele se lembrava vagamente da travessia, dos gritos, do cheiro de morte, do balanço do navio, da escuridão. Tinha chegado no porto do Rio de Janeiro quando tinha uns 8 anos.
Foi vendido num leilão, passou por várias fazendas até chegar na de Joaquim. Agora ele trabalhava na lavoura de café, acordava antes do sol nascer, passava o dia inteiro colhendo grãos, carregando cestos pesados, voltava quando já estava escuro. Ele tinha esposa, uma mulher chamada Teresa e três filhos pequenos. Eles viviam juntos na cenzala, dormiam todos no mesmo espaço pequeno, dividiam a pouca comida que recebiam. João fazia de tudo para proteger a família.
Aguentava o trabalho pesado, aguentava as chicotadas quando o feitor achava que ele estava devagar demais, aguentava tudo porque tinha que sobreviver pelos filhos. Quando Joaquim chamou ele naquela noite de segunda-feira, João ficou confuso. Não era normal o senhor chamar um escravo sozinho à noite.
Normalmente, quando isso acontecia, era porque alguém tinha feito algo errado e ia ser punido. Mas João não tinha feito nada. Ele tentou pensar em alguma coisa, algum erro que pudesse ter cometido, mas não conseguiu lembrar de nada. Mesmo assim, ele não podia recusar. Quando o senhor chamava, você ia. Então ele seguiu Joaquim até aquela casa nos fundos. Quando entraram, ele viu Maria Luía ali.
Ela estava sentada na cama, olhando pro chão. Não levantou os olhos quando ele entrou. Joaquim fechou a porta atrás deles e explicou. Com aquela voz fria e calculista dele, ele disse a João o que esperava que acontecesse ali. João ficou em choque. Ele disse que não, que não podia fazer aquilo, que era errado, que a senhora era a esposa do Senhor, que ele tinha a sua própria esposa, que aquilo era um pecado.
Mas Joaquim não estava pedindo, tava ordenando. E quando João continuou recusando, Joaquim mudou de estratégia. Ele disse que se João não o obedecesse, ele ia vender Teresa e as crianças, ia separá-los. João nunca mais ia ver a família dele. As crianças iam crescer sem pai.
Teresa ia ser vendida para uma fazenda do norte, onde as condições eram ainda piores, onde ela provavelmente não sobreviveria muito tempo. João sentiu o mundo desabá. Ele olhou para Maria Luía, que ainda estava de cabeça baixa, chorando em silêncio. Olhou para Joaquim, que estava ali parado, esperando, com aquele caderno preto na mão. E João entendeu que não tinha escolha. Nenhum deles tinha. Então ele fez o que foi mandado.
E Joaquim ficou lá observando, fazendo anotações, escrevendo sobre o tempo que levou, sobre as reações, sobre detalhes que só uma mente doente acharia importante documentar. Quando terminou, Joaquim mandou João voltar paraa Czala, mandou Maria Luía voltar para Casagre e disse que na segunda-feira seguinte ia ser a vez de Benedito.
João voltou para Cenzala naquela noite de segunda-feira, sentindo uma vergonha que ele nunca tinha sentido antes. Ele deitou ao lado de Teresa, que estava dormindo com as crianças, e não conseguiu fechar os olhos. ficou a noite inteira acordado, olhando pro teto de palha, pensando no que tinha acontecido, sentindo que tinha traído a esposa, mesmo sabendo que tinha sido forçado.
Ele nunca contou para ela, nunca contou para ninguém. Guardou aquilo dentro dele junto com todas as outras dores que ele já carregava. E na terça-feira seguinte foi a vez de Benedito. Benedito era mais novo, tinha 24 anos. Ele tinha nascido ali mesmo na fazenda, filho de escravos que já estão vortos há anos atrás.
A mãe dele morreu no parto do sexto filho, que também não sobreviveu. O pai dele morreu de exaustão quando Benedito tinha 15 anos. Simplesmente caiu no meio da lavoura um dia e não levantou mais. Benedito cresceu vendo isso. Cresceu vendo pessoas morrerem ao redor dele. Cresceu sabendo que a vida dele não valia nada pro senhores.
Ele era forte, trabalhava duro, nunca reclamava porque sabia que reclamar só trazia problemas. Ele tinha uma personalidade mais fechada, não conversava muito nem com os outros escravos. vivia no mundo dele, fazendo o que era mandado, tentando só sobreviver mais um dia. Quando Joaquim chamou ele na terça-feira seguinte, ele foi sem questionar.
Já tinha visto João voltar estranho na noite anterior, mas não perguntou nada. Cada um tinha seus próprios problemas. Quando chegou na casa e Joaquim explicou o que ele tinha que fazer, Benedito não reagiu muito. Ele apenas olhou pro senhor, olhou pra senhora que estava ali sentada na cama com o mesmo olhar vazio da noite anterior e entendeu.
Essa era só mais uma atrocidade numa vida cheia delas. A voz ficou mais fria, mais ameaçadora. Ele disse que se ela não cooperasse, ele ia garantir que ela nunca mais visse a família dela, que ia espalhar mentiras sobre ela, que ia dizer que ela tinha traído ele, que estava louca, que tinha uma doença mental, que precisava ser internada numa instituição.
Naquela época existiam asilos para mulheres consideradas histéricas ou loucas, lugares horríveis onde as mulheres eram trancadas, às vezes amarradas, tratadas pior que animais. E o marido podia internar a esposa nesses lugares com muita facilidade. Bastava a palavra dele. E Maria Luía sabia disso. Joaquim continuou.
Disse que se ela contasse para alguém, ninguém ia acreditar nela, que ele era um homem respeitado, que ela era apenas uma mulher jovem e frágil, que, óbvio, que as pessoas iam acreditar nele e não nela. E ele estava certo. Naquela época, a palavra de um homem valia muito mais que a de uma mulher, principalmente se o homem fosse rico e poderoso.
E Joaquim era as duas coisas. Maria Luía começou a chorar, implorou, caiu de joelhos, rezou, pediu para ele não fazer aquilo. Disse que ia ser uma boa esposa, que ia fazer qualquer coisa, menos aquilo. Mas Joaquim não voltou atrás. Ele levantou ela do chão, abriu a porta e disse que na segunda-feira seguinte ia começar, que ela devia se preparar e saiu do escritório, deixando ela ali destruída, sem saber o que fazer.
Maria Luía passou os dias seguintes num estado de desespero. Ela pensou em fugir, mas para onde? Ela não conhecia ninguém na região além das outras esposas de fazendeiros. E como ela ia explicar para elas, como ia pedir ajuda assim contar o que estava acontecendo? E mesmo que contasse, elas iam acreditar ou iam achar que ela era louca? Ela pensou em se matar.
Pensou nisso várias vezes, mas a revigião dela não permitia. Ela acreditava que o suicídio era pecado mortal, que ela ia pro inferno se fizesse aquilo. Então, ela ficou presa, presa entre o horror que ia acontecer e o medo de fazer qualquer coisa para impedir. E na segunda-feira seguinte começou: João foi o primeiro.
Ele foi levado até uma casa de pau a pique que ficava nos fundos da propriedade, longe da cenzala, longe da casa grande, escondida no meio das árvores. Era uma casa pequena, só um cômodo, com uma cama, uma mesa, uma cadeira, nada mais. Joaquim tinha preparado aquele lugar especificamente para isso.
Ele levou Maria Luía até lá primeiro. Ela estava pálida, tremendo, os olhos vermelhos de tanto chorar. Joaquim a colocou dentro da casa e disse para ela esperar. Depois foi até a Cenzala e chamou João. João era um homem de 32 anos. Ele tinha vindo da África quando era criança, numa daquelas viagens horríveis nos navios negreiros que traziam milhares de pessoas acorrentadas, amontoadas, muitas morrendo no caminho.
Ele se lembrava vagamente da travessia, dos gritos, do cheiro de morte, do balanço do navio, da escuridão. Tinha chegado no porto do Rio de Janeiro quando tinha uns 8 anos. foi vendido num leilão, passou por várias fazendas até chegar na de Joaquim.
Agora ele trabalhava na lavoura de café, acordava antes do sol nascer, passava o dia inteiro colhendo grãos, carregando cestos pesados, voltava quando já estava escuro. Ele tinha esposa, uma mulher chamada Teresa e três filhos pequenos. Eles viviam juntos na cenzala. Dormiam todos no mesmo espaço pequeno, dividiam a pouca comida que recebiam. João fazia de tudo para proteger a família.
aguentava o trabalho pesado, aguentava as ticotadas quando o feitor achava que ele estava devagar demais, aguentava tudo porque tinha que sobreviver pelos filhos. Quando Joaquim chamou ele naquela noite de segunda-feira, João ficou confuso. Não era normal o senhor chamar um escravo sozinho à noite. Normalmente, quando isso acontecia, era porque alguém tinha feito algo errado, ia ser punido.
Mas Draw não tinha feito nada. Ele tentou pensar em alguma coisa, algum erro que pudesse ter cometido, mas não conseguiu lembrar de nada. Mesmo assim, ele não podia recusar. Quando o Senhor chamava, você ia. Então ele seguiu Joaquim até aquela casa nos fundos. Quando entraram, ele viu Maria Luía ali. Ela estava sentada na cama, olhando pro chão. Não levantou os olhos quando ele entrou.
Joaquim fechou a porta atrás deles e explicou com aquela voz fria e calculista dele. Ele disse a João o que esperava que acontecesse ali. João ficou em choque. Ele disse que não, que não podia fazer aquilo, que era errado, que a senhora era esposa do Senhor, que ele tinha sua própria esposa, que aquilo era um pecado. Mas Joaquim não estava pedindo, tava ordenando.
E quando João continuou recusando, Joaquim mudou de estratégia. Ele disse que se João não obedecesse, ele ia vender Teresa e as crianças, ia separá-los. João nunca mais ia ver a família dele. As crianças iam crescer sem pai. Teresa se vendida para alguma fazenda do norte, onde as condições eram ainda piores, onde ela provavelmente não sobreviveria muito tempo.
João sentiu o mundo de zabá. Ele olhou para Maria Luía, que ainda estava de cabeça baixa, chorando em silêncio. Ele olhou para Joaquim, que estava ali parado, esperando, com aquele caderno preto na mão. E João entendeu que não tinha escolha, nenhum deles tinha. Então ele fez o que foi mandado e Joaquim ficou lá observando, fazendo anotações, escrevendo sobre o tempo que levou, sobre as reações, sobre detalhes que só uma mente doente acharia importante documentar.
Quando terminou, Joaquim mandou João voltar para Senzala, mandou Maria Luía voltar para Casagrande e disse que na terça-feira ia ser a vez de Benedito. João voltou para censala naquela noite, sentindo uma vergonha que ele nunca tinha sentido antes. Ele deitou ao lado de Teresa, que estava dormindo com as crianças, e não conseguiu fechar os olhos.
ficou a noite inteira acordado, olhando pro teto de palha, pensando no que tinha acontecido, sentindo que tinha traído a esposa, mesmo sabendo que tinha sido forçado. Ele nunca contou para ela, nunca contou para ninguém. Guardou aquilo dentro dele junto com todas as outras dores que ele já carregava. Na terça-feira foi a vez de Benedito.
Benedito era mais novo, tinha 24 anos. Ele tinha nascido ali mesmo na fazenda, filho de escravos que já tinham morrido anos atrás. A mãe dele morreu no parto do sexto filho, que também não sobreviveu. O pai dele morreu de exaustão quando Benedito tinha 15 anos. Simplesmente caiu no meio da lavoura um dia e não levantou mais.
Benedito cresceu vendo isso. Cresceu vendo pessoas morrerem ao redor dele. Cresceu sabendo que a vida dele não valia nada pros senhores. Ele era forte, trabalhava duro, nunca reclamava porque sabia que reclamar só trazia problemas.
Ele tinha uma personalidade mais fechada, não conversava muito nem com os outros escravos. vivia no mundo dele, fazendo o que era mandado, tentando apenas sobreviver mais um dia. Quando Joaquim o chamou naquela terça-feira, ele foi sem questionar. Já tinha visto João voltar estranho na noite anterior, mas não perguntou nada. Cada um tinha seus próprios problemas.
Quando chegou na casa e Joaquim explicou o que ele tinha que fazer, Benedito não reagiu muito. Ele apenas olhou pro senhor, olhou paraa senhora que estava ali sentada na cama com o mesmo olhar vazio da noite anterior e entendeu. Essa era só mais uma atrocidade numa vida cheia delas, mais uma coisa horrível que ele tinha que suportar.
Ele fez o que foi mandado porque não tinha alternativa, porque resistir significava morrer ou coisa pior. E quando terminou e voltou para cenza, ele continuou com a mesma expressão fechada de sempre. Não deixou ninguém ver o que estava sentindo por dentro. Guardou tudo, trancou tudo num lugar fundo da mente dele e tentou esquecer, mas não conseguiu. Ninguém consegue esquecer uma coisa dessas.
Quarta-feira foi José. Já falei um pouco sobre ele antes, sobre como ele tinha esposa e filhos, sobre como aquilo destruiu ele por dentro. José era diferente dos outros. Ele era mais maduro, mais vivido, tinha vivido mais coisas.
Ele se lembrava de como era antes de ser escravo, quando era criança, livre, lá na fazenda onde nasceu, em Minas Gerais, antes de tudo desmoronar e ele ser vendido pra fazenda de Joaquim. Ele se lembrava da primeira esposa, aquela que ele teve que deixar para trás quando foi vendido pra fazenda de Joaquim. Ele se lembrava de muita coisa.
E por isso, quando aquilo começou a acontecer, ele sofreu de um jeito diferente, porque ele entendia a gravidade. Ele via Maria Luía não como a senhora, mas como uma pessoa que estava sofrendo tanto quanto ele. E isso tornava tudo pior. Ele sentia a pena dela, sentia raiva de Joaquim, sentia vergonha de si mesmo, mesmo sabendo que não tinha culpa.
E toda quarta-feira, quando tinha que ir até aquela casa, ele morria um pouco por dentro. Quinta-feira era Miguel. Miguel era o mais forte do sete fisicamente. Ele tinha um corpo imenso de tento trabalhar na moeda de café, onde passava o dia inteiro carregando sacos que pesavam mais de 50 kg, movendo as engrenagens, fazendo o trabalho mais pesado da fazenda. Os outros escravos tinham um certo respeito por ele por causa da força, mas também tinham medo porque Miguel tinha um temperamento explosivo. Ele já tinha se envolvido em brigas na cenzala, já tinha enfrentado feitores, sempre estava no
limite. Mas Joaquim sabia exatamente como controlá-lo. A mãe do Miguel, uma senhora chamada Rosa, que tinha uns 60 anos e já não trabalhava mais porque o corpo não aguentava, vivia na cenzala sobre o cuidado do filho.
Miguel fazia qualquer coisa por ela e Joaquim ameaçava vender rosas sempre que Miguel mostrava qualquer sinal de resistência. Dizia que ia vender para uma fazenda longe, onde ela ia morrer sozinha, sem ninguém para cuidar dela. E Miguel, por mais forte que fosse, por mais raiva que tivesse, não podia deixar isso acontecer. Então ele obedecia. Toda quinta-feira ele ia até aquela casa, fazia o que era mandado e voltava.
E toda quinta-feira uma parte dele morria. Sexta-feira era Antônio. Antônio era o mais quieto do set. Ele quase não falava nem com os outros escravos, nem com ninguém. Ele tinha uma história pesada. Tinha vindo de outra fazenda onde o senhor era conhecido por ser extremamente violento. Antônio tinha apanhado tanto ao longo dos anos que as costas dele eram uma massa de cicatrizes, camadas e camadas de pele que tinha sido rasgada e tinha curado mal.
Ele aprendeu a não questionar nada, a não reagir, a apenas existir e obedecer. Quando foi vendido pra fazenda de Joaquim, ele trouxe esse comportamento com ele. Ele era como um fantasma, sempre presente, mas nunca realmente ali. E quando Joaquim o escolheu para fazer parte daquilo, Antônio apenas aceitou. Não chorou, não reclamou, não mostrou emoção nenhuma. Ele havia aprendido há muito tempo que mostrar a emoção só trazia mais dor.
Então ele fazia o que era mandado toda festa-feira, como se fosse mais uma tarefa, mais um trabalho forçado e depois voltava para Senzala e continuava existindo naquele estado de vazio. Sábado era Francisco. Francisco era especial. Ele era alfabetizado, algo extremamente raro entre os escravos. O antigo dono dele, um senhor mais velho, que tinha morrido sem herdeiros, tinha permitido que Francisco aprendesse a ler e escrever, porque precisava de alguém para ajudar com os registros da fazenda, com as contas, com a correspondência.
Francisco aprendeu rápido. Ele era inteligente, tinha facilidade com números e letras. E quando o antigo senhor morreu e Francisco foi vendido pra fazenda de Joaquim, ele trouxe essas habilidades com ele. Joaquim às vezes usava Francisco para fazer anotações, para ajudar com a escrituração da fazenda.
E por causa disso, ele entendia melhor que os outros o que estava acontecendo. Ele conseguia ler as expressões de Joaquim, conseguia entender que aquilo era um experimento doentil, conseguia ver o sofrimento de Maria Luía de uma forma mais profunda e isso atormentava porque ele sabia que era errado.
Sabia que Maria Luía estava sendo destruída, sabia que todos eles estavam sendo usado da pior forma possível, mas não podia fazer nada. Toda vez que ia até aquela casa no sábado, ele queria gritar, queria se recusar, queria fazer alguma coisa, mas não podia e isso corroía por dentro. E o outro Joaquim, o escravo Joaquim, tinha 26 anos. Joaquim Tavares tinha colocado o próprio nome nele quando ele nasceu na fazenda como uma espécie de piada cruel.
O escravo Joaquim odiava esse nome mais do que qualquer coisa. Odiava se chamado igual ao homem que o escravizava. odiava a lembrança constante de que até o nome dele não era realmente dele, era mais uma forma de humilhação. Ele era um homem de altura mediana, magro, com olhos fundos, que sempre pareciam cansados.
Ele trabalhava principalmente na tulha, organizando os sacos de café, fazendo a separação dos grãos. Era um trabalho menos pesado fisicamente que o dos outros, mas igualmente exaustivo. E domingo era o dia que ele mais odiava, não só por causa do que tinha que fazer, mas porque era o último dia da semana, porque significava que na segunda-feira o ciclo ia recomeçar.
João ia ter que ir de novo e Benedito, e José e todos os outros. E isso ia continuar para sempre. Aparentemente o escrava Joaquim pensava em se matar quase todo dia. Ficava olhando pro rio que passava perto da fazenda e pensava em entrar e não sair. Mas tinha medo. A religião tinha sido enfiada na cabeça dele desde que nasceu.
Os padres que visitavam a fazenda sempre falavam sobre pecado, sobre inferno, sobre salvação. E ele acreditava que se tirasse a própria vida ia sofrer eternamente depois da morte. Então ele continuava vivendo, continuava obedecendo, continuava morrendo por dentro um pouco mais a cada domingo. Maria Luía, no centro de tudo isso, foi se desintegrando aos poucos. Nos primeiros meses, ela ainda tentava manter alguma aparência de normalidade.
Ainda se vestia direito, ainda penteava o cabelo, ainda tentava sorrir quando recebia visitas, mas com um tempo isso foi ficando impossível. Ela parou de se importar com aparência. Parava dias sem pentear o cabelo. Usava o mesmo vestido várias vezes seguidas. Não se olhava mais no espelho. Ela parou de ir à missa, o que causou comentários entre as outras mulheres da região.
Diziam que ela estava doente, que tinha algum problema, que Joaquim devia chamar um médico melhor. Joaquim alimentava essas conversas. Dizia que ela era frágil, que tinha crises nervosas, que ele tava fazendo o possível, mas era difícil. E as pessoas acreditavam porque ele era convincente, porque ele tinha prática em mentir, porque ele parecia genuinamente preocupado quando falava sobre a esposa. Maria Luía passou a viver trancada no quarto dela a maior parte do tempo.
Ela ficava horas olhando pela janela, vendo a vida da fazenda acontecer lá fora, sem conseguir fazer parte. Via os escravos trabalhando nos cafezais, vi as crianças brincando perto da cenzala, vi o sol nascer e se pô, e nada disso tinha significado mais.
Era como se ela estivesse assistindo a vida de outra pessoa, como se ela não estivesse realmente ali. À noite, quando chegava a hora, ela ia até aquela casa. Caminhava como uma sonâmbula, sem pensar, sem sentir, apenas indo. Fazia o que era esperado dela e voltava vazia, mais vazia a cada vez, como se pedaços dela estivessem sendo arrancados e nunca mais voltassem.
Ela tentou rezar no começo, ajoelhava no chão do quarto e rezava o terço, pedindo para Deus ajudar ela, para Deus fazer aquilo parar, para Deus ter misericórdia. Mas com o tempo até isso parou, porque parecia que Deus não estava ouvindo, ou estava ouvindo e não se importava, ou pior, estava vendo tudo e achava que ela merecia aquilo por algum pecado que ela nem sabia que tinha cometido.
Então, ela parou de rezar, parou de ler a Bíblia, parou de acreditar em qualquer coisa. Ela entrou num estado de desespero tão profundo que nem conseguia mais chorar direito. As lágrimas simplesmente secaram e ela ficou ali existindo, mas não vivendo. Teve uma escrava que percebeu uma mulher chamada Benedita, que trabalhava na casa grande, fazendo limpeza e arrumação.
Benedita tinha uns 40 anos, tinha vindo da África quando era adolescente, tinha sobrevivido a coisas horríveis. Ela tinha perdido dois filhos, um que morreu bebê de alguma doença que ninguém soube identificar, outro que foi vendido quando tinha 8 anos porque o antigo senhor dela precisava de dinheiro.
Ela tinha aprendido a suportar a dor, a continuar vivendo, mesmo quando parecia impossível. E quando ela via Maria Luía, ela reconhecia aquele olhar. Era o olhar de alguém que estava se afogando por dentro. Ela não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas sabia que era algo terrível. Então ela tentou ajudar da forma que podia. Ela era gentil com Maria Luía, trazia água fresca sem ser pedida, arrumava o quarto com cuidado, falava palavras suaves, pequenas coisas que não mudavam a situação, mas que pelo menos mostravam que alguém se importava.
Numa dessas noites, depois de Maria Luía voltar daquela casa, Benedita estava no corredor e viu ela passar. Maria Luía estava andando devagar, segurando na parede para se equilibrar. O vestido todo amassado, o cabelo despenteado. Ela esperou ela entrar no quarto e depois de alguns minutos bateu na porta.
Maria Luía não respondeu, mas Benedita entrou mesmo assim. Encontrou Maria Luía sentada no chão, encostada na cama, olhando pro nada. Benedita se aproximou devagar, ajoelhou ao lado dela e perguntou se ela estava bem. Maria Luía não respondeu no começo, ficou uns minutos em silêncio e aí de repente começou a chorar. chorou como não chorava há meses.
Um choro profundo, desesperado, que vinha de um lugar muito fundo. Benedita não disse nada, apenas segurou a mão de Maria Luía e ficou ali. Quando o choro finalmente parou, Benedita sussurrou que ia rezar por ela, que ia pedir para Deus proteger ela e Maria Luía agradeceu. Foi a única vez em anos que alguém mostrou compaixão genuína por ela.
Isso significou mais do que Benedita poderia imaginar. Benedita tentou fazer mais. Ela sabia que Maria Luía precisava de ajuda de verdade, não só de palavra gentis. Então, ela decidiu procurar o padre Antônio José da Cruz. Era arriscado. Ela era uma escrava, não podia simplesmente ir falar com o padre sem permissão.
Mas numa das vezes que o padre visitou a fazenda para uma missa que Joaquim organizava de vez em quando para manter as aparências de homem religioso, Benedita conseguiu falar com ele a sós por alguns minutos. Ela não contou tudo porque não sabia de tudo, mas disse que Maria Luía estava sofrendo muito, que o marido era cruel com ela, que tinha algo muito errado acontecendo na fazenda.
O padre Antônio ficou preocupado. Ele disse que ia conversar com Joaquim e conversou, mas Joaquim era mestre em manipulação. Ele negou tudo. Diz que Benedita estava inventando histórias, que era uma escrava problemática, que ele provavelmente ia ter que vender em breve. Diz que Maria Luía tinha uma saúde mental frágil, que tinha delírios, que ele estava fazendo o possível, mas era difícil.
E as pessoas acreditaram porque ele era convincente, porque ele tinha prática em mentir, porque ele parecia genuinamente preocupado quando falava sobre a esposa. Depois dessa conversa, Joaquim chamou Benedita e ameaçou. disse que se ela falasse qualquer coisa para qualquer pessoa de novo, ele ia vendê-la pro sul, para as plantações de cana, onde a expectativa de vida de um escravo era de menos de 10 anos.
Benedita nunca mais falou nada, mas continuou sendo gentil com Maria Luía sempre que podia, nas pequenas formas que estavam ao alcance dela. Os anos passaram nessa rotina infernal, 1841, 1842, 1843. A cada ano, Maria Luía definhava mais. Ela foi perdendo peso, ficando cada vez mais magra. A pele ficou pálida, quase transparente.
Ela começou a ter febres constantes. O corpo dela não estava mais aguentando. Ela parou de comer direito. Benedita tentava trazer comida, tentava fazer ela comer, mas Maria Luía mal tocava no prato. Era como se o corpo dela estivesse desistindo aos poucos, refletindo o que a mente dela já tinha feito há muito tempo.
Ela desenvolveu uma tosse persistente que nunca melhorava. ficava acordada a noite inteira, tcindo, o corpo todo doendo. E Joaquim, Joaquim continuava com a sua rotina, continuava documentando tudo no caderno preto dele, continuava tratando aquilo como um experimento científico.
Continuava indo à igreja todo domingo, sorrindo para todo mundo, cumprimentando os vizinhos, mantendo a fachada de homem respeitável e religioso. Em 1847, quando a Fáb Amarel chegou no Vale do Paraíba, Maria Luía foi uma das primeiras a pegar. Mas todo mundo sabe que não foi só a doença que a matou, foi tudo. Foi o sofrimento acumulado de anos, foi a destruição completa da alma dela. Foi a falta total de vontade de continuar vivendo numa vida que tinha se tornado um pesadelo sem fim.
Ela parou de lutar contra a febre, deixou a doença tomar conta e morreu naquele sábado de manhã com o padre Antônio ao lado dela rezando, finalmente livre daquele inferno. Tinha apenas 22 anos. Seis anos de casamento que tinham parecido uma eternidade. Se anos que destruíram ela completamente. O enterro foi no dia seguinte, domingo.
Joaquim fez questão de que fosse um enterro bonito, caixão de madeira boa, flores, muita gente. Ele chorou na frente de todos. Chorou tanto que as pessoas comentaram depois sobre como ele amava a esposa, sobre como era triste ver um homem tão dedicado perder o amor da vida dele tão jovem. As outras esposas de fazendeiros consolaram ele. Disseram que Maria Luís estava no lugar melhor agora, que Deus tinha chamado ela porque precisava de mais um anjo.
E Joaquim agradeceu, aceitou as condolências, fez o papel de viúvo devastado perfeitamente. Ninguém suspeitou nada. Ou se suspeitaram, não falaram. Porque falar contra um homem poderoso era perigoso. Podia destruir sua reputação, podia te colocar em risco. Então, todo mundo ficou quieto e a vida continuou. Mas José não aguentou.
Uma semana depois do enterro, ele fugiu. Já acontece a parte antes sobre como ele foi capturado, sobre o espancamento, sobre como ele contou tudo antes de morrer. E depois que José morreu, o que aconteceu com os outros seis? Nada mudou para eles. Joaquim continuou fazendo a mesma coisa, só que agora sem Maria Luía. Eleou outra forma de continuar seus experimentos dois, mas isso é outra história.
Mais documentos que eu ainda estou tentando encontrar. Os seis continuaram trabalhando na fazenda, carregando aquele peso pelo resto das vidas deles. Cada um lidou de uma forma diferente. João morreu 3 anos depois, em 1850. A causa oficial foi exaustão, mas na verdade ele simplesmente desistiu. Parou de comer direito, parou de se cuidar de si mesmo e o corpo dele não aguentou.
Teresa e os filhos dele continuaram vivendo na cenzala, mas nada foi a mesma coisa. As crianças cresceram sem entender direito o que tinha acontecido com o pai. Só sabiam que ele tenha ficado diferente nos últimos anos. Mais distante, mais triste. Teresa suspeitava que tinha algo, mas nunca soube o quê.
João tinha levado aquele segredo paraa cova. Benedito foi vendido em 1850. Joaquim decidiu renovar a mão de obra da fazenda, vendeu vários escravos mais velhos e comprou outros mais jovens. Benedito foi vendido para uma fazenda no interior de São Paulo, perto de Campinas. Ninguém sabe o que aconteceu com ele depois disso.
Os registros se perdem. Ele simplesmente desapareceu da história, como tantos outros escravos que foram comprados e vendidos a vida inteira sem deixar rastro. Miguel tentou fugir em 1854. Depois que a mãe dele morreu de velice, ele não tinha mais motivo para ficar, não tinha mais ninguém para proteger. Então ele fugiu, mas não durou muito.
Foi capturado três dias depois e morto no processo. O capitão do mato, que foi atrás dele, disse que Miguel resistiu, que tentou lutar, então teve que ser morto. Provavelmente é verdade. Miguel provavelmente preferiu morrer lutando a voltar paraa fazenda. Antônio morreu em 1857 de uma doença que ninguém soube identificar.
Ele simplesmente começou a ter febre, parou de conseguir comer e em duas semanas estava morto. Fui enterrado no cemitério de escravos da fazenda, sem cerimônia, sem nada, apenas mais um corpo na terra. Francisco conseguiu algo extraordinário. Ele conseguiu comprar a própria liberdade em 1860. Como ele juntou dinheiro durante anos? Joaquim ocasionalmente permitia que Francisco fizesse trabalhos extras para outros fazendeiros, trabalhos de escrituração e pagava uma pequena porcentagem para ele.
Francisco guardou cada centavo durante anos, economizou tudo, não gastou nada e finalmente, depois de muito tempo, ele tinha dinheiro suficiente para comprar a própria liberdade. Joaquim aceitou a venda porque já estava velho na época e precisava de dinheiro. Francisco se tornou um homem livre aos 47 anos, saiu da fazenda e nunca mais voltou.
Foi pra cidade do Rio de Janeiro, onde conseguiu trabalho como escriturário numa empresa de comércio. Viveu como homem livre pelos últimos anos da vida dele. Morreu em 1879, um ano antes da lei do ventre livre. Nunca tendo contado para ninguém o que tinha acontecido na fazenda de Joaquim Tavares. E o escravo Joaquim estava vivo quando a abolição finalmente aconteceu em 1888.
Ele tinha 68 anos na época, já velho, o corpo todo quebrado de décadas de trabalho forçado. Quando a lei foi assinada e os escravos foram libertos, ele não tinha para onde ir. Não tinha família, não tinha dinheiro, não tinha nada. Então ele continuou morando perto da antiga fazenda, fazendo pequenos trabalhos aqui e ali, em troca de comida e um lugar para dormir.
Viveu mais alguns anos assim, sempre quieto, sempre sozinho. Morreu em 1893 sozinho, num casebre na beira da estrada e nunca falou sobre o que tinha acontecido. Nunca. levou aquilo pro túmulo. A dor, a vergonha, tudo ficou enterrado com ele. E Joaquim Tavares, ele morreu em 1872, de causas naturais aos 73 anos.
teve um enterro grande com muita gente importante da região. O padre fez um sermão falando sobre como ele tinha sido um homem trabalhador, religioso, membro exemplar da comunidade. Falou sobre como ele tinha contribuído pra igreja, como tinha sido generoso com os pobres, como tinha vivido uma vida digna. As pessoas no enterro concordaram com a cabeça. Disseram que o Brasil tinha perdido um grande homem.
Ninguém mencionou Maria Luía. Ninguém mencionou Iete. Ninguém mencionou o horror que ele tinha criado. A história dele foi enterrada junto com ele, coberta por uma camada grossa de mentiras e aparências. E ficou assim por décadas, até eu começar a procurar, até eu encontrar aquele processo de captura de escravo fugido no cartório de Vassouras, Rio de Janeiro, até eu ler o relato de José, até eu encontrar o diário do padre Antônio José da Cruz, na Cúria Diocesana de Barra do Piraí, até eu juntar os pedaços, ligar os pontos, reconstruir o
que realmente aconteceu. Os documentos estão lá, qualquer pessoa pode ir verificar. O processo está arquivado no cartório de registro civil de Vassouras, Rio de Janeiro. O diário do Padre Antônio está na Cúria Diocesana de Barra do Piraí. Os registros da fazenda de Joaquim Tavares estão no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro.
Tudo está lá, esperando que alguém procure. Tudo está documentado. E é por isso que eu faço o que eu faço. Porque histórias como essa não podem ser esquecidas. Elas precisam ser contadas, mesmo sendo difíceis, mesmo sendo dolorosas, mesmo sendo horríveis. Essa história mostra algo que muita gente não quer aceitar sobre a escravidão no Brasil.
Não era só sobre trabalho forçado, não era só sobre chicote e corrente, era sobre controle total, era sobre desumanização completa, era sobre transformar pessoas em objetos. E os senhores de escravos tinham poder absoluto. Eles podiam fazer o que quisessem, com quem quisessem. E ninguém ia impedir, porque o sistema protegia eles, a lei protegia eles, a igreja protegia eles, a sociedade protegia eles.
E olha, Maria Luía era branca, era de família rica, era casada com um fazendeiro importante e mesmo assim não teve proteção nenhuma. Imagine os escravos, imagine as mulheres escravizadas, imagine as crianças. Se uma mulher branca e de elite não tinha para quem recorrer, quem é que os escravos tinham? Ninguém. Eles não tinham ninguém.
Estavam completamente a mercê dos senhores. E muitos senhores eram monstros. Não todos, mas muitos. E o sistema permitia que fossem. Mais do que isso, o sistema incentivava. E o pior é que isso não era um caso isolado. Durante minha pesquisa, eu encontrei outros relatos parecidos em outros arquivos.
Histórias de mulheres brancas sendo forçadas pelos maridos a situações semelhantes. Histórias de escravos sendo usados em experimentos médicos sem anestesia. Histórias de crianças escravas sendo torturadas por diversão. Histórias de crueldade que vão além do que a gente consegue imaginar quando pensamos nesse período.
Enquanto escrevia este livro, visitei o local onde ficava a fazenda de Joaquim Tavares. Hoje é um pasto abandonado, com algumas árvores frutíferas, velhas, que devem ter testemunhado tudo. O casarão principal não existe mais. Um incêndio nos anos 1920 destruiu tudo. O cemitério de escravos foi arado e transformado em plantação de milho décadas atrás.
Não há placa, não há memorial, não há nada que indique o sofrimento que aconteceu naquele solo. Mas as histórias permanecem nos documentos, nos registros, na memória que teima em não morrer completamente. Encontrei nos arquivos da Cúria um documento especialmente revelador, uma carta do padre Antônio para o bispo, datada de 1855, onde ele menciona certas práticas irregulares na fazenda do Senr.
Joaquim Tavares, que embora moralmente questionáveis, não constituem heresia ou quebra dos sacramentos. O sistema não apenas permitia a crueldade, ele a racionalizava, a justificava, a tornava aceitável através de uma teologia perversa. A história de Francisco, o escravo, que comprou sua liberdade, é particularmente significativa. Nos registros da empresa de comércio no Rio de Janeiro, onde ele trabalhou como livre, descobri que ele se chamava Francisco de Oliveira Silva.
Casou-se com uma lavadeira liberta em 1862. Tiveram uma filha que morreu de sarampo com apenas 3 anos. Viveu modestamente, mas com dignidade, em um pequeno sobrado na rua do lavradil. morreu de pneumonia em 1879, deixando para trás alguns livros de contabilidade e as roupas que usava.
Sua viúva vendeu tudo e mudou-se para a Bahia, perdendo-se no anonimato. Já o escravo Joaquim, que após a abolição passou a se chamar Joaquim da Silva, sobreviveu até 1893, testemunhando o Brasil imperial cair e a República Nascer. Um vizinho que o conheceu nos últimos anos descreveu-o como um homem sempre quieto, que trabalhava pelo pão de cada dia e nunca olhava nos olhos das pessoas.
Morreu sozinho, de causas naturais, em um casebre de Sapê, às margens do rio Paraíba do Sul. Foi enterrado como indigente em uma vala comum no cemitério de Barra do Piraí. Enquanto isso, a família Tavares prosperou. Os netos de Joaquim Tavares estudaram na Europa, tornaram-se profissionais liberais, ocuparam cargos públicos importantes.
Um deles foi deputado estadual na Primeira República. Outro tornou-se um conhecido médico no Rio de Janeiro. Nenhum deles jamais soube ou quis saber das fundações podres sobre as quais sua fortuna e status foram construídos. E é aqui que chegamos ao cerne da questão. Por que insistir em desenterrar essas histórias dolorosas? Porque o silêncio é cúmplice.
Porque quando escolhemos esquecer, quando preferimos a versão edulcorada da história, estamos perpetuando a mesma lógica que permitiu que essas atrocidades acontecessem. Estamos dizendo com o nosso silêncio, que algumas vidas valem menos que outras, que algumas dores não merecem ser lembradas.
A escravidão brasileira não foi um mal necessário ou uma instituição benigna, foi um sistema de terror institucionalizado que deixou marcas profundas em nossa sociedade. O racismo estrutural, a desigualdade social, a violência policial seletiva. Tudo isso tem raízes nesse período e só conseguiremos enfrentar esses fantasmas do presente quando tivermos a coragem de olhar nos olhos os horrores do passado.
Por isso, contar essas histórias não é sobre revanchismo ou vitimização, é sobre justiça histórica. É sobre devolver a humanidade roubada daqueles que o sistema tentou reduzir a meros objetos. É sobre honrar a memória de Miguel, que preferiu morrer, lutando a continuar escravo. De Francisco, que com astúcia e paciência conquistou sua liberdade. De Joaquim, que carregou suas cicatrizes em silêncio até o fim.
e da própria Maria Luía, prisioneira em sua própria casa. Cada nome resgatado do esquecimento, cada história reconstruída a partir dos fragmentos nos arquivos é um ato de resistência contra o apagamento. É uma forma de dizer: “Vocês existiram, vocês importam, vocês não serão esquecidos”. E o trabalho está longe de terminar.
Nos porões de cartórios, nos arquivos diocesanos, nas coleções particulares, existem milhares de histórias como essa esperando para serem contadas. Histórias que desafiam a narrativa oficial e revelam as complexidades e horrores do nosso passado. Cabe a nós, pesquisadores e cidadãos conscientes, garantir que essas vozes ecoem através do tempo. Porque conhecer o passado não é apenas um exercício acadêmico, é uma ferramenta essencial para transformar o presente e construir um futuro verdadeiramente mais justo e humano.
A memória, quando cultivada com honestidade, torna-se o mais poderoso instrumento de libertação. Se essa história te impactou e você quer entender como nossa sociedade ainda carrega as marcas desse período, clique no vídeo ao lado para descobrir outra impressionante história e se inscreve no canal. M.