“Foste Vendida Para Mim, Agora Abra Essas Pernas” — O Fazendeiro da Montanha Ordena à Noiva por…

Foi vendida para mim. Agora abra essas pernas”, ordenou o fazendeiro da montanha. Mas o que aconteceu depois foi inacreditável. O sol aino caía implacável sobre a praça empoeirada de São Sebastião das Pedras, como um castigo divino que ninguém mais tinha forças para questionar.

Isaura Andrade mantinha os olhos fixos no chão de terra batida, sentindo o peso de cada olhar curioso, cada sussurro maldoso que cortava o ar quente como navalha afiada. Ao seu lado, seu pai oscilava levemente, o hálito ainda carregado da cachaça que bebera desde o amanhecer, tentando afogar a vergonha que agora se espalhava publicamente como mancha de sangue em tecido branco.

O leiloeiro, um homem magro, de bigodes retorcidos e vozes tridente, erguia o martelo de madeira sobre o tablado improvisado. 20 alqueires de terra boa para algodão. Quem dá mais? Quem dá mais pelos últimos bens da família Andrade? Isaura cerrou os punhos, as unhas cravando nas palmas das mãos. 20 alqueires. Era tudo o que restava das terras que um dia pertenceram ao avô.

Terras que haviam alimentado três gerações, onde ela correra descalça na infância, onde sua mãe fora enterrada 5 anos antes. Agora reduzidas a lote de leilão por causa da fraqueza de um homem que não soubera honrar o nome que carregava. “1 contos!”, gritou alguém da pequena multidão. “1 contos e meio.” Outro arrematou. Seu pai, capitão Evaristo Andrade, título que já não tinha mais significado algum, além de lembrar tempos melhores, gemeu baixinho ao seu lado. Minha filha, perdoe seu pai, perdoe este velho tolo.

Isaura não respondeu. Não havia palavras que pudessem expressar a mistura de raiva, desespero e piedade que sentia. Tr anos. Bastaram três anos de má gestão, jogatina nos cassinos clandestinos do vilarejo vizinho e empréstimos com aotas, sem escrúpulos, para destruir o legado de uma família inteira. A grande seca de 1872 dera o golpe inicial, queimando as plantações de algodão que eram a sustentação do Zandrade, mas fora a mão fraca e embriagada de seu pai, que assinara a sentença final.

20 contos de réis. A voz nova cortou o murmúrio da multidão como trovão distante. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Isaura ergueu os olhos pela primeira vez, procurando a fonte daquela voz grave, daquela quantia absurda que ultrapassava em muito o valor real das terras desgastadas pela seca.

No canto da praça, a sombra de uma gameleira antiga, três homens a cavalo observavam a cena. O do centro era impossível de ignorar. alto, ombros largos que pareciam capazes de carregar o mundo, vestido completamente de preto. Apesar do calor infernal, um chapéu de couro de abas largas ocultava parcialmente seu rosto, mas Isaura podia ver a linha dura da mandíbula, a cicatriz que descia do canto do olho esquerdo até o queixo, marcando a pele morena como um raio petrificado. “É ele”, sussurrou alguém atrás dela. O

leão do Araripe, Coronel Tertuliano Cabral. Outro completou o nome dito em tom reverente e temeroso. Isaura sentiu o sangue gelar nas veias. Todos no sertão conheciam aquele nome, ainda que poucos o tivessem visto pessoalmente. Tertuliano Cabral, o homem que surgira do nada 10 anos antes, com ouro suficiente para comprar a fazenda Pedra Grande, no alto da serra do Araripe.

O homem sobre quem corriam as histórias mais sinistras, que fora cangaceiro, que matara 15 homens em combate, que enforcara a primeira esposa com as próprias mãos por traição. “Boatos, diziam alguns. Verdades”, juravam outros. O leiloeiro pigarreou claramente nervoso. 20 contos. Algum lance maior? Algum lance maior, senhores? Ninguém ousou abrir a boca.

Vendido, vendido ao coronel Tertuliano Cabral por 20 contos de réis. O martelo bateu três vezes e com cada batida, Isaura sentiu uma parte de sua história se despedaçar. Seu pai soluçou abertamente agora, sem dignidade, sem contenção. Ela o segurou pelo braço, impedindo que desabasse ali mesmo diante de todos. Foi então que os três cavaleiros se aproximaram. Os cascos dos animais levantavam pequenas nuvens de poeira vermelha a cada passo.

Quando pararam diante do tablado, Tertuliano Cabral desceu do cavalo com movimento fluido, contrário ao que se esperaria de um homem de seu tamanho. Devia ter pouco mais de 35 anos, calculou Isaura. Mas havia algo em seus olhos escuros, quase negros, que parecia muito mais antigo. Capitão Evaristo. Sua voz era grave, controlada, cada sílaba articulada com precisão. Creio que temos assuntos a acertar.

O pai de Zaura tremia visivelmente. Cocoronel Cabral, Senhor, eu eu agradeço imensamente pela compra das terras. O senhor foi muito generoso, muito mais que o justo. Generoso. Tertuliano inclinou a cabela levemente e algo que poderia ser um sorriso ou uma careta tocou brevemente seus lábios. Não me conhece bem, então não sou homem de generosidade gratuita, capitão.

Ele acenou com a cabeça e um de seus homens, um sujeito baixo de pele curtida pelo sol e olhos de gavião, trouxe uma pasta de couro. Tertuliano a abriu calmamente, retirando papéis que desenrolou com cuidado. Suas terras valiam no máximo, 12 contos. Paguei 20, mas não foi pelas terras que paguei esse valor.

Ele ergueu os olhos e pela primeira vez seu olhar encontrou diretamente o de Isaura. Foi como ser atravessada por lâmina gelada. Foi pela dívida completa que o Senhor tem comigo. Evaristo empalideceu ainda mais. Dívida. Mas, senhor, eu nunca três anos atrás o senhor procurou Daniel Tavares, o agiota de Serra Branca.

Pediu emprestado 15 contos para replantar seu algodal após a seca. Assinou nota promissória com juros de 10% ao mês. Tertuliano folhou os papéis com calma, metodicamente cruel. Daniel Tavares me vendeu essa dívida há do anos com todos os juros acumulados. Hoje, capitão, o senhor me deve exatamente 38 contos de réis. O mundo pareceu inclinar sob os pés de Isaura.

38 contos, uma fortuna, uma quantia impossível de pagar em 10 vidas de trabalho honesto. Mas, mas eu não sabia. Tavares nunca me disse que tinha vendido a dívida. Eu pensei, o que o senhor pensou não me interessa. Tertuliano enrolou os papéis novamente. O que me interessa é receber o que me é devido. Como o senhor não tem como pagar em dinheiro ou em terras, já que as acabo de adquirir por valor insuficiente, teremos que encontrar outra forma de quitar sua dívida. O silêncio na praça era sepulcral.

Isaura podia sentir os olhos de todos sobre eles, ávidos pela tragédia alheia, como urubus sobre carniça. Eu eu posso trabalhar. Evaristo agarrou-se à possibilidade, como o homem se afogando agarra qualquer pedaço de madeira. Posso trabalhar em suas terras, coronel. Sou bom com gado, com plantação.

Posso? O senhor é bêbado e jogador, capitão. Não tenho uso para homens fracos em minha fazenda. A frieza na voz de Tertuliano não deixava margem para a argumentação, mas tenho uso para ela. O dedo de Tertuliano apontou diretamente para Isaura. O mundo parou. Não. A voz saiu fraca dos lábios de Evaristo, mas cresceu em desespero. Não, senhor, não, minha filha. Ela não tem culpa. Pegue-me como escravo. Me açoite, me mate se quiser.

Mas não toque em minha exaura. Ninguém falou em tocar. Tertuliano deu um passo à frente e Isaura percebeu pela primeira vez a verdadeira dimensão daquele homem. Era como estar diante de uma montanha de carne e osso. Falei em casamento. O choque foi como bofetada coletiva. Murmúrios explodiram por toda a praça. Casa, casamento! Evaristo piscou confuso, tentando processar as palavras. Sou viúvo há 3 anos.

Preciso de esposa para cuidar de minha casa, para dar-me herdeiros, para cumprir os deveres que uma mulher deve ao seu marido. Tertuliano falava como se estivesse discutindo a compra de gado. Sua filha é jovem, saudável, pelo que posso ver, e tem alguma educação, segundo minhas informações. Servirá. Servirá. A voz de Zaura cortou o ar pela primeira vez, surpreendendo até a si mesma.

Sou gente, não saco de farinha para ser avaliado e servir ou não servir. Os olhos de Tertuliano se estreitaram levemente e ela viu um lampejo de algo. Surpresa, interesse, cruzar aquele rosto de pedra. Tem língua afiada também. Isso pode ser problema.

Ele cruzou os braços sobre o peito largo, mas nada que não se corrija com o tempo apropriado. Coronel, por favor. Evaristo tentou novamente a voz embargada. Ela é apenas uma menina. Tem 19 anos, segundo os registros da igreja, idade mais que apropriada para o matrimônio. Tertuliano voltou sua atenção para o pai de Isaura. Aqui está a minha proposta e é a única que farei. Sua filha casa comigo.

Em troca, perdoo toda a dívida, os 38 contos que o Senhor me deve. Além disso, fornecerei uma renda mensal de R.000 réis para o sustento de seus outros filhos. Isaura sentiu o coração disparar. Seus irmãos. Manuel de 8 anos, pequeno Pedro de seis, e Carolina, a caçula de apenas quatro. Crianças que haviam passado fome no último inverno, que vestiam trapos, que olhavam para ela com olhos grandes demais, em rostos magros demais.

“E se eu recusar?”, Ela ouviu sua própria voz perguntar, embora soubesse que não havia escolha real, Tertuliano a encarou diretamente. Não havia crueldade em seus olhos, mas também não havia piedade. Apenas uma frieza fatual, como quem observa o céu para prever se choverá.

Então executarei a dívida conforme a lei me permite. Seu pai irá para a cadeia em Crato, onde apodrecerá até morrer. Você e seus irmãos ficarão sem teto, sem terra, sem nada. Conheço bem o destino de moças bonitas sem proteção no sertão. Ele fez uma pausa. Não é destino que desejaria para minhas piores inimigas. A armadilha estava fechada, perfeitamente construída, sem saída possível.

Isaura olhou para o pai, que chorava abertamente agora, patético em sua fraqueza. Olhou para a multidão ao redor, rostos que ela conhecia desde criança, vizinhos que agora observavam sua desgraça com aquela mistura de pena e alívio mórbido de quem agradece por não ser a vítima da vez. Olhou para o céu azul e implacável, onde nenhum deus parecia estar ouvindo.

E finalmente olhou para Tertuliano Cabral, o leão do Araripe, o homem que seria seu dono disfarçado de marido. “Quanto tempo tenho para me preparar?”, perguntou a voz surpreendentemente firme. Três dias a cerimônia será realizada na capela da fazenda Pedra Grande. Depois disso, você não voltará mais a esta vila.

Posso ao menos me despedir de meus irmãos? Pode, mas que fique claro desde já, Senrita Andrade. Ele se aproximou e ela teve que erguer o queixo para manter o contato visual. Uma vez que se torne minha esposa, pertencerá a mim completamente. Não haverá volta, não haverá fuga, não haverá arrependimento. O que é meu guardo e o que guardo não solto jamais.

Está entendido? Isaura engoliu em seco, mas não desviou os olhos. Entendido, senhor. Bom, ele recuou, acenando para seus homens. Mandarei uma carruagem buscá-la daqui a três dias ao amanhecer. Traga apenas o necessário. Todo o resto será providenciado.

Tertuliano montou seu cavalo negro com a mesma fluidez com que descera e antes de partir olhou uma última vez para ela. Uma última coisa, senhorita Isaura. Sua voz tinha um tom diferente agora, algo que ela não conseguia identificar. Não me faça arrependido dessa escolha. Sou o homem de poucos perdões. E então ele partiu, seguido por seus homens, deixando apenas o rastro de poeira vermelha e o peso esmagador do destino que acabara de ser selado.

A casa dos Andrade, que um dia fora a mais imponente de São Sebastião das Pedras, agora parecia murchar sob o sol como planta sem água. Paredes que precisavam de caiação, telhas quebradas, o jardim que a mãe de Isaura cultivara com tanto amor, transformado em terra seca e rachada.

Era o retrato perfeito da decadência de uma família. Isaura entrou pela porta lateral, evitando a sala principal, onde sabia que o pai estaria se embebedando ainda mais, tentando afogar a culpa e a vergonha. seguiu direto para os fundos, onde ficavam os quartos das crianças. “Isa! Isa voltou!” A voz aguda de Carolina ecoou pelo corredor e em segundos três pequenos furacões humanos se lançaram contra ela.

Isaura ajoelhou-se, abraçando os três irmãos com força, sentindo as lágrimas finalmente escaparem. Aqui, longe dos olhos da vila, longe da necessidade de se manter forte, ela podia desabar. Por que está chorando, Isa?”, perguntou Manuel, o mais velho dos meninos, seus olhos castanhos, cheios de preocupação. “Papai disse que você vai casar com um homem muito rico. Deveria estar feliz.

” “Estou feliz.” Ela mentiu, beijando o topo da cabeça do irmão. “São lágrimas de alegria.” “Mentira”, disse Carolina com a franqueza brutal das crianças pequenas. “Você tá triste? Eu sei quando você tá triste, Pedro. sempre o mais quieto, apenas se aconchegou mais contra ela, seus dedinhos agarrando o tecido poído do vestido de Isaura.

“Venham”, ela disse, levantando-se e pegando a mão de Carolina. “Vamos ao quarto de vocês. Preciso conversar com vocês sobre uma coisa importante. O quarto que as três crianças dividiam era pequeno e escasso, mas Isaura havia tentado mantê-lo o mais acolhedor possível. cortinas remendadas mais limpas, bonecas de pano que ela mesma fizera, desenhos de Manuel pregados na parede, pequenos esforços para criar alguma normalidade em meio ao caos que suas vidas haviam se tornado.

Ela sentou-se na única cama, puxando os três para perto. “Vocês sabem que papai tem tido dificuldades, não sabem?”, começou cuidadosamente. E que, por isso, temos passado por momentos difíceis. Eu sei que às vezes não tem comida, disse Manuel com seriedade. E que você dá sua parte pra gente? O coração de Isaura apertou. As crianças percebiam mais do que ela gostaria.

Pois é, mas agora isso vai mudar. Vou me casar com um homem muito poderoso e ele prometeu cuidar de vocês. Vocês terão comida todos os dias, roupas novas, talvez até possam voltar a estudar. Mas você vai embora?” A voz de Pedro era tão baixa que mal se ouvia. “Vou vou morar muito longe daqui, na Serra do Araripe.

Quando você volta?” A pergunta inocente de Carolina foi como faca no coração. Eu não sei, meu amor. Talvez demore muito tempo. Não quero que você vá. Carolina começou a chorar. Quero que você fique aqui. Não gosto desse homem que tá te levando. Isaura a abraçou forte, sentindo as próprias lágrimas voltarem. Eu sei, meu bem, eu sei, mas preciso ir.

É a única forma de garantir que vocês fiquem bem, que tenham o que comer, que tenham um futuro. Isso é por nossa causa? Manuel perguntou. E havia uma compreensão além de seus 8 anos em seus olhos. Você tá se sacrificando por nós? Não é sacrifício quando é por amor”, Isaura respondeu.

E pela primeira vez, desde que aceitara a proposta de Tertuliano, sentiu que talvez houvesse algum sentido naquilo tudo. “Vocês são tudo o que tenho. Mamãe me fez prometer que cuidaria de vocês e é isso que estou fazendo.” Eles ficaram ali por horas, agarrados uns aos outros.

Eaura contou histórias, cantou cantigas que a mãe cantava, fez promessas que não sabia se poderia cumprir. Quando o sol começou a descer no horizonte, pintando o céu de laranja e vermelho, ela finalmente os colocou para dormir. Isa chamou Manuel quando ela já estava na porta. Sim, você vai ser feliz com esse homem. Isaura ficou em silêncio por um longo momento.

Vou tentar. Manu, vou tentar muito. Os três dias seguintes passaram num borrão de preparativos mínimos e despedidas dolorosas. Isaura tinha pouco para levar, alguns vestidos remendados, os brincos de prata que haviam sido de sua mãe, o rosário de contas pretas e o livro de orações que aprendera a ler com dificuldade.

No terceiro dia, antes do amanhecer, ela estava pronta. A carruagem que chegou era surpreendentemente elegante para uma região tão árida, preta, com detalhes em metal polido, puxada por quatro cavalos fortes. O coxeiro era um homem idoso, de rosto marcado por cicatrizes, que a cumprimentou com um aceno respeitoso, mas distante.

Dona Isaura, sou Sebastião, capataz da fazenda Pedra Grande. Vim buscá-la como o coronel ordenou. Isaura assentiu pegando sua pequena trouxa de pertences. Ao se virar, viu o pai na porta da casa, oscilando levemente o rosto inchado e vermelho. Exaura, minha filha. Não, pai. Ela ergueu a mão, impedindo que ele se aproximasse.

Não há nada que o Senhor possa dizer agora que mude qualquer coisa. Apenas cuide deles. Cuide de Manuel, Pedro e Carolina. é a única coisa que peço. Eu sinto muito, tanto, tanto. Eu sei. E ela sabia mesmo. Podia ver nos olhos embriagados do pai todo o arrependimento, toda a culpa, toda a consciência do que havia feito. Mas isso não mudava nada. Adeus, pai.

Ela subiu na carruagem sem olhar para trás, mesmo quando ouviu os soluços quebrados do homem que a criara. Não podia se permitir olhar para trás. Se olhasse, desabaria completamente. A viagem foi longa e silenciosa. Sebastião não era homem de conversa eura estava grata por isso. Ela observava pela janela da carruagem a paisagem árida do sertão passar, as poucas árvores retorcidas, os vilarejos esparços, as chapadas ao longe.

À medida que subiam em direção à serra, a paisagem mudava gradualmente. O ar ficava um pouco mais fresco, apareciam mais árvores, a terra tinha tonalidades diferentes. A serra do Araripe era conhecida por ser um oasis no meio da secura nordestina, onde nascentes e vegetação mais densa criavam um microclima único.

Já era fim de tarde quando finalmente chegaram aos portões da fazenda Pedra Grande. Isaura sentiu o coração apertar ao ver a propriedade pela primeira vez. Não era simplesmente uma fazenda, era uma fortaleza. Muros altos de pedra cercavam a propriedade principal com torres de vigilância nos cantos.

O casarão principal era imenso, construído em estilo colonial, mas com modificações que claramente serviam a propósitos defensivos. Janelas estreitas, paredes espessas, uma só entrada frontal larga. O coronel gosta de segurança”, comentou Sebastião, notando o olhar de Zaura. “Tem muitos inimigos.

” “Por quê?” Ela se ouviu perguntar: “Homem, não fica rico e poderoso no sertão sem fazer inimigos, moça?” E o coronel? Bem, ele tem um passado que muitos não esqueceram. A carruagem parou diante da entrada principal. Criados já esperavam. Homens e mulheres de rostos sérios alinhados em duas fileiras. No topo da escadaria de pedra, uma figura se destacava.

Era uma mulher de meia idade, vestida de preto da cabeça aos pés, com uma postura que irradiava a autoridade, cabelos grisalhos presos em coque apertado, olhos escuros que avaliavam Isaura com a precisão de quem pesa ouro. Dona Jacira, Sebastião anunciou ao ajudar Isaura a descer, a governanta. A mulher desceu às escadas com passos medidos.

Senhorita Andrade, bem-vinda à fazenda Pedra Grande. Sou Jacira dos Santos, responsável pela casa e pelos criados. O coronel me encarregou de prepará-la para a cerimônia. Cerimônia agora? Esta noite? O padre Anselmo já chegou. O coronel não vê sentido em adiar o inevitável. A voz de Jacira era firme, mas não cruel. Venha. precisa se banhar e vestir adequadamente.

Isaura foi conduzida para dentro do casarão e o que viu a impressionou profundamente. O interior era surpreendentemente refinado. Pisos de tábua corrida encerada, móveis de madeira nobre, quadros nas paredes, lustres de cristal. Não era a rusticidade que ela esperava. Jacira a levou por um corredor até um quarto amplo.

Estes serão seus aposentos por enquanto. Por enquanto, após a cerimônia, você se mudará para os aposentos do coronel, naturalmente. Jacira abriu um armário, revelando vestidos que Isaura nunca sonhara possuir. Escolhi estas roupas baseadas nas medidas que me foram fornecidas. Espero que sirvam. Como? Como vocês conseguiram minhas medidas? O coronel tem seus métodos.

Jacira puxou um vestido de seda branca, simples, mas elegante. Este será para a cerimônia. Agora venha. A banheira já deve estar pronta. As próximas horas passaram num turbilhão. Isaura foi banhada, perfumada, seus cabelos longos e negros escovados até brilharem, trançados e presos com delicadeza. O vestido de noiva, se é que podia ser chamado assim, caía perfeitamente em seu corpo, realçando curvas que ela nem sabia que tinha.

Quando finalmente se viu no espelho, mal reconheceu a própria imagem. Não era mais a moça do sertão em Trapos, era outra pessoa. Está na hora! Anunciou Jacira. O coronel espera na capela. Com pernas trêmulas, Isaura foi conduzida através do casarão até uma ala lateral, onde ficava uma capela privativa, pequena, mas bem cuidada, com santos nas paredes e o cheiro característico de incenso.

E lá, diante do altar, vestido completamente de preto, exceto pela camisa branca, estava Tertuliano Cabral. Ele se virou quando ela entrou e pela primeira vez Isaura o viu sem o chapéu. Cabelos negros cortados curtos, fios grisalhos nas têmporas, a cicatriz ainda mais impressionante à luz das velas. Mas o que a surpreendeu foi a expressão em seus olhos quando a viu.

Algo passou por aquele olhar de pedra, algo muito breve, mas que poderia ter sido admiração. Senrita Andrade, ele disse, sua voz ecoando no espaço pequeno. Está pronta? Não. Ela queria gritar. não estava pronta para nada daquilo, mas apenas a sentiu. O padre Anselmo, um homem baixo e nervoso, conduziu a cerimônia com pressa evidente.

Estava claro que não queria estar ali, que fazia aquilo apenas porque não ousava recusar um pedido do coronel Tertuliano Cabral. As palavras tradicionais foram ditas, os votos trocados. Iaura ouvia sua própria voz como se viesse de muito longe, prometendo coisas que não sentia, aceitando um destino que não escolhera. “Eu os declaro marido e mulher”, finalizou o padre, visivelmente aliviado. “O que Deus uniu não separe o homem.

” Tertuliano se aproximou e Isaura teve que inclinar a cabeça para trás para encará-lo. Ele era ainda maior de perto e exalava um cheiro de couro, tabaco e algo mais, algo masculino que ela não sabia identificar. “Minha esposa”, ele disse, e havia algo de possessivo naquele tomio percorrer a espinha de Isaura. Ele se inclinou e ela fechou os olhos instintivamente.

O beijo foi breve, quase casto, apenas um roçar de lábios, mas foi suficiente para fazer seu coração disparar. Quando ele se afastou, havia um lampejo diferente em seus olhos. Venha, há um jantar preparado. O jantar foi servido numa sala de jantar imensa, com uma mesa que facilmente acomodaria 20 pessoas, mas que agora tinha apenas dois lugares dispostos, um em cada ponta.

Isaura sentou-se, desconfortável com o vestido fino, com os talheres de prata, com todo aquele luxo que contrastava brutalmente com a pobreza que deixara para trás. A comida era farta. Carne de carneiro assada, baião de dois, pirão, coalhada, rapadura para sobremesa. Seu estômago reclamou de fome, mas sua garganta parecia fechada.

Tertuliano comia metodicamente, sem pressa, mas sem prazer aparente. Era como se estivesse cumprindo uma função necessária, não desfrutando de uma refeição. “Não gosta da comida?”, Ele perguntou sem erguer os olhos do prato. É, é muita comida. Isaura respondeu. Acostume-se, aqui não passará fome. Ele finalmente Suas roupas antigas serão queimadas. Jacira providenciará um guarda-roupa completo. Você terá uma mesada mensal para gastos pessoais.

Pode pedir livros, tecidos, o que quiser dentro da razão. Sou sua esposa ou sua propriedade? As palavras saíram antes que ela pudesse contê-las. O silêncio que se seguiu foi tenso. Tertuliano colocou os talheres com cuidado, limpou a boca no guardanapo de linho e então se recostou na cadeira, olhos fixos nela. No papel que assinamos hoje, você é minha esposa.

Na prática, ele fez uma pausa. É um pouco dos dois. Isso é justo? Não, não é. Mas é a realidade da situação que você e seu pai criaram. Ele se levantou, contornando a mesa com passos lentos. Pode me odiar se quiser. Muitos me odeiam. Mas entenda uma coisa, Isaura. Posso chamá-la de Isaura, não posso? Ela a sentiu tensa. Exaura.

Ele continuou agora parado ao lado de sua cadeira, tão próximo que ela podia sentir o calor de seu corpo. Não sou um monstro. Não bato em mulheres, não as humilho publicamente, não sou cruel sem razão, mas também não sou homem gentil ou romântico. Cresci duro, vivi duro e sou duro.

Se você me respeitar, será tratada com respeito, se me desafiar. Ele se inclinou, a voz baixando para quase um sussurro. Descobrirá que sou homem de pouca paciência. Isaura e engoliu em seco, mas forçou-se a encontrar seus olhos. E se eu lhe perguntar algo, responderia com honestidade? Ele ergueu uma sobrancelha surpreso. Depende da pergunta.

É verdade? O que dizem sobre você? Que matou 15 homens, que foi cangaceiro, que matou sua primeira esposa? Por um longo momento, Tertuliano não disse nada. Então, lentamente ele sorriu. Um sorriso sem humor, apenas uma curvatura dos lábios que não chegava aos olhos. Não foram 15, foram. Fui cangaceiro dos 14 aos 22 anos. E quanto à minha primeira esposa, o sorriso desapareceu completamente.

Ela morreu. As circunstâncias não são da sua conta. Ele se afastou, caminhando em direção à porta. Jacira a levará aos nossos aposentos. Estarei lá em uma hora. Sugiro que use esse tempo para se preparar mentalmente para o que virá. Fui claro o suficiente na praça sobre o que espero de uma esposa.

E então ele saiu, deixando Isaura sozinha com seu prato cheio e seu coração apertado. Jacira apareceu minutos depois. Seu rosto impassível como sempre. Venha, menina, vou mostrar seus novos aposentos. Os aposentos do coronel ficavam no segundo andar, numa ala isolada do resto da casa.

Jacira abriu as portas duplas de madeira maciça, revelando um cômodo que era maior que toda a casa onde esaura crescera. Uma cama enorme dominava o centro com docel de madeira escura e cortinas de tecido pesado. Havia um armário imenso, uma penteadeira com espelho, cadeiras estofadas, um pequeno escritório com estante de livros e uma porta lateral que Jacira indicou ser o banheiro privativo.

“Isto já foi o quarto dele e da primeira esposa”, Jacira comentou vendo a expressão de Isaura. Depois que ela morreu, ele mudou muita coisa, queimou quase tudo que era dela, mas a estrutura permaneceu. Como? E como ela morreu? Isaura se ouviu perguntar. Jacira a estudou por um longo momento. Há coisas que é melhor você descobrir por conta própria menina ou não descobrir nunca.

O passado tem dentes afiados e às vezes é melhor deixá-lo enterrado. Ele a matou. Ele, Jasira, suspirou, parecendo escolher as palavras com cuidado. Fez o que qualquer homem de honra faria numa situação impossível. Foi ela quem escolheu seu destino, não ele. Isso é tudo que direi sobre o assunto. Ela se dirigiu ao armário, retirando uma camisola de tecido fino e branco. Vista isso.

Solte seus cabelos e lembre-se, a primeira vez é sempre difícil para uma moça, mas passa, tudo passa. Com essas palavras pouco reconfortantes, Jacira saiu fechando a porta atrás de si. Isaura ficou sozinha no quarto imenso, segurando a camisola, sentindo o peso do que estava por vir.

Ela não era ingênua, sabia o que acontecia entre marido e mulher. Tinha ouvido as mulheres casadas sussurrando, rindo às vezes, outras vezes reclamando, mas saber e experienciar eram coisas muito diferentes. Com mãos trêmulas, ela se despiu do vestido de noiva, dobrando-o cuidadosamente. Vestiu a camisola. O tecido era tão fino que se sentia nua de qualquer forma.

Soltou os cabelos como Jacira instruíra, os fios negros caindo em ondas até a cintura. Então sentou-se na beira da cama enorme e esperou. Os minutos se arrastaram como horas. Cada som da casa fazia seu coração pular. Finalmente houviu passos no corredor, pesados, medidos, inconfundíveis. A porta se abriu. Tertuliano entrou e havia algo diferente nele.

Agora tinha tirado o palitó preto. A camisa branca estava parcialmente aberta, revelando o topo de um peito musculoso e marcado por cicatrizes. Seus cabelos estavam levemente desalinhados, como se tivesse passado as mãos por eles repetidas vezes. Ele fechou a porta atrás de si com um clique definitivo da fechadura.

Então se virou e a encarou. “Foste vendida para mim”, ele disse, a voz baixa e grave, cada palavra pesando como chumbo. Agora abra essas pernas. Isaura sentiu o sangue gelar e ferver ao mesmo tempo. Havia comando absoluto naquelas palavras, mas também, se ela não estivesse enganada, havia algo mais.

Uma atenção, uma expectativa, um teste. Ela se levantou lentamente, os joelhos fracos, mas a coluna ereta. “Sou sua esposa”, disse com uma firmeza que não sabia possuir. “Não, se quer que eu abra as pernas, terá que me pedir, não me ordenar como se fosse um de seus capangas”. O silêncio que se seguiu foi absoluto.

Os olhos de Tertuliano se estreitaram. A mandíbula se tensionou por um momento terrível. Isaura pensou que ele fosse explodir em fúria, mas então algo completamente inesperado aconteceu. Ele riu. Foi uma risada baixa, gutural, surpreendida. Tem coragem, garota? Vou lhe dar isso.

Tem mais coragem que a maioria dos homens que conheci. Ele deu um passo à frente e depois outro. Isaura forçou-se a não recuar, mesmo quando cada instinto gritava para correr. Muito bem, ele disse quando estava apenas um braço de distância. Por favor, Isaura, abra as pernas para mim. Deixe-me consumar este casamento.

Deixe-me tomar o que agora é meu por direito e por lei. Havia zombaria na forma como disse, ou havia respeito? Isaura não tinha certeza. mas sabia que havia chegado a um momento decisivo. Podia se submeter completamente, tornando-se apenas mais um objeto de propriedade daquele homem, ou podia manter algum grão de dignidade, alguma fagulha de si mesma.

“Está bem”, ela disse finalmente, “mas com uma condição. Condição?” Ele ergueu uma sobrancelha. Você não está em posição de fazer condições. Apenas uma, ela insistiu. Seja gentil. Esta é minha primeira vez. Não sei o que fazer. Não sei como. Como agradar um homem.

Se você é mesmo o homem de honra que diz ser, será gentil apenas desta vez. Tertuliano a estudou por um longo momento, então lentamente ergueu a mão e Isaura se preparou para um tapa que não veio. Em vez disso, ele tocou seu rosto com surpreendente delicadeza, os dedos calejados roçando sua bochecha. “Tem razão”, ele murmurou. “E havia algo diferente em sua voz agora.

Algo quase humano. Tem razão em pedir isso e eu tentarei. E então ele a beijou. Não foi como o beijo breve na capela. Este foi profundo, exigente, consumidor. Isaura sentiu suas pernas fraquejarem, suas mãos instintivamente se agarrando aos ombros largos dele para não cair.

Quando ele a ergueu nos braços, como se não pesasse nada, carregando-a para a cama enorme, Isaura fechou os olhos e rezou uma prece silenciosa. O que quer que viesse a seguir, definiria o resto de sua vida. E enquanto sentia o peso do corpo de Tertuliano sobre o seu, suas mãos grandes explorando, sua boca, deixando rastros de fogo em sua pele, exaura Andrade.

Agora exaura Cabral, entregou-se ao inevitável. Algumas batalhas não podiam ser vencidas, mas talvez, apenas talvez pudessem ser sobrevividas e, quem sabe eventualmente transformadas em algo mais. Isaura acordou com o sol já alto, seus raios penetrando pelas frestas das cortinas pesadas e desenhando listras douradas no chão de madeira encerada.

Por um momento, desorientada, não soube onde estava. Então, a realidade caiu sobre ela como pedra. Estava na fazenda Pedra Grande. Era a esposa do coronel Tertuliano Cabral e a noite anterior. Ela fechou os olhos, sentindo o calor subir em suas bochechas. A noite anterior foram uma sucessão de sensações que não sabia nomear.

Dor inicial, sim, mas também algo mais. Tertuliano cumprira sua palavra de ser gentil, ao menos começo. Suas mãos, que poderiam facilmente quebrar ossos, haviam tocado sua pele com surpreendente cuidado. Sua boca, que ordenara com tanta frieza, sussurrara palavras baixas, quase reconfortantes. Mas no final, quando a paixão o dominara completamente, houvera ferocidade, uma intensidade animal que a assustara.

E para sua própria surpresa e vergonha também despertara algo nela que não sabia existir. Isaura abriu os olhos e virou a cabeça. O outro lado da cama estava vazio, os lençóis já frios. Tertuliano acordara cedo e partira sem despertá-la. Sobre o travesseiro dele havia uma única rosa vermelha.

Não as rosas cultivadas de jardins aristocráticos, mas uma rosa silvestre do sertão, pequena e resiliente, com espinhos ainda intactos. Ela pegou a flor, girando-a entre os dedos. Que tipo de homem deixava uma rosa para sua esposa depois de uma noite como aquela? Um romântico envergonhado ou simplesmente alguém cumprindo o ritual esperado? Uma batida discreta na porta a fez se sentar rapidamente, puxando os lençóis para cobrir-se.

“Entre”, disse, tentando soar mais firme do que se sentia. Jacira entrou, trazendo uma bandeja com café, pão, queijo coalho e frutas. Seus olhos experientes percorreram Isaura brevemente, notando, sem dúvida, as marcas avermelhadas no pescoço, os cabelos desalinhados, a rosa na mão. “Bom dia, senhora”, disse, colocando a bandeja sobre uma mesinha lateral.

O coronel ordenou que a deixassem descansar esta manhã, mas é hora de levantar. Há muito que aprender sobre a administração desta casa. Administração? Isaura piscou confusa. Pensei que a senhora sou a governanta, sim, mas a senhora é a dona da casa agora. O coronel espera que assuma suas responsabilidades.

Jacira abriu as cortinas completamente e a luz inundou o quarto. Vista-se. Tomarei a liberdade de escolher roupas apropriadas para você. Enquanto Isaura comia, percebendo com surpresa que estava faminta, Jacira organizou sobre a cama um vestido simples, mas de boa qualidade, em tecido de algodão azul escuro, apropriado para o dia a dia.

“O coronel já está trabalhando?”, Isaura se ouviu perguntar. Ele acorda antes do sol, cavalga pela propriedade, inspeciona o gado, conversa com os capatazes, verifica as plantações. Jacira ajudou Isaura a vestir-se, abotoando as costas do vestido com eficiência. É homem que não conhece descanso. Diz que homem ocioso é homem morto.

E a primeira esposa, ela também acordava cedo. Jacira pausou suas mãos imóveis nos últimos botões. Dona Mariana era diferente, muito diferente da senhora. Como assim? Era filha de fazendeiro rico, acostumada a luxos, a criados, a não fazer nada além de bordar e tocar piano. Jacira terminou de abotoar o vestido. Odiava esta fazenda. Odiava o isolamento, odiava. Ela hesitou. Odiava o coronel.

Então, por que se casou com ele? Casamento arranjado. O pai dela devia favores ao coronel. Foi uma transação, como tantas outras. Jacira pegou uma escova e começou a domar os cabelos rebeldes de Isaura. Mas ao contrário da senhora, dona Mariana não tinha razões nobres. Não tinha irmãos para proteger, família para salvar.

Tinha apenas orgulho ferido por ser forçada a casar-se com um homem que ela considerava inferior. Inferior? Mas ele é rico, poderoso? Sim, mas não é de família tradicional. Não tem sobrenome que abra portas nos salões do Recife ou de Fortaleza. Para gente como dona Mariana, isso importava mais que qualquer fortuna. Jacira prendeu os cabelos de Isaura em um coque simples, mas elegante. Ela nunca deixou que ele esquecesse disso.

Isaura absorveu essas informações em silêncio. Uma imagem estava se formando. Um casamento amargo, uma mulher ressentida, um homem orgulhoso demais para mostrar que as farpas o atingiam. Como ela morreu, Jacira? A governanta ficou em silêncio por um longo momento. “Veneno”, disse finalmente.

“Tomou veneno, mas se foi por própria mão ou”, ela deixou a frase inacabada. Antes que Isaura pudesse pressionar por mais informações, Jacira já estava conduzindo-a para fora do quarto. Venha. Vou mostrar-lhe a casa, tudo que precisa saber para administrá-la adequadamente. A fazenda Pedra Grande era ainda mais impressionante à luz do dia.

O casarão tinha três andares, dezenas de cômodos e Jira guiou Isaura por cada um deles, com explicações precisas sobre suas funções. Havia a grande sala de estar com móveis pesados de jacarandá e quadros nas paredes. Paisagens do sertão, retratos de santos, mas nenhuma imagem de família. A sala de jantar onde haviam comido na noite anterior.

Uma biblioteca que fez Isaura parar abruptamente na porta. O coronel sabe ler? perguntou, espantada com as centenas de volumes que enchiam as estantes do chão ao teto. Sabe ler, escrever, fazer contas melhor que muitos comerciantes. Aprendeu sozinho. Havia algo como orgulho na voz de Jacira. Passa horas aqui à noite lendo. Diz que um homem ignorante é um homem controlado.

Isaura entrou devagar, os dedos roçando as lombadas de couro dos livros. Havia romances franceses tratados de agricultura, livros de história, até alguns volumes de poesia. Era uma coleção que faria inveja a muitas famílias aristocráticas. “A senhora sabe ler?”, Jacira perguntou. “Um pouco, admitiu. Minha mãe me ensinou o básico antes de morrer, mas não tive muito acesso a livros.

O coronel disse que a senhora pode usar a biblioteca quando quiser. Apenas deve manter os livros em ordem. Era uma generosidade inesperada. Eaura sentiu algo se suavizar em seu peito. Talvez houvesse mais naquele homem do que a dureza que mostrava ao mundo. Continuaram o tour. Jairra mostrou a cozinha enorme, com fogão a lenha, despensa bem abastecida, e três cozinheiras que trabalhavam sob a supervisão de uma mulher corpulenta chamada Sebastiana.

Depois os aposentos dos criados, a lavanderia, as dependências externas. Do lado de fora, Isaura pode ver a verdadeira extensão da propriedade. Curreis com gados ebu, pastagens que se estendiam até onde a vista alcançava, plantações de algodão em filas ordenadas, uma construção grande que Jacira identificou como a antiga censala.

Ainda há escravos aqui? Isaura perguntou desconfortável. Não. O coronel libertou todos quando comprou a fazenda há 10 anos. Disse que não queria sangue escravo em suas terras. Jácira apontou para algumas casas pequenas, mas bem construídas ao longe. Ofereceu o trabalho livre para quem quisesse ficar. A maioria ficou. Pagamentos são justos.

Tratamento é duro, mas não cruel. Era outro aspecto surpreendente. A escravidão ainda era legal e praticada em todo o Brasil em 1872, mas Tertuliano escolhera trabalho livre por convicção, por pragmatismo ou por conhecer muito bem o que era não ter liberdade. Quando retornaram à casa, já era meiodia.

Jacira conduziu Isaura até um pequeno escritório no térrio. Este será seu espaço e que administrará os gastos da casa, supervisionará o trabalho dos criados, planejará as refeições, gerenciará o estoque da dispensa. Ela abriu um livro de contas grosso. Tudo deve ser registrado. O coronel revisa os livros uma vez por mês.

Aura sentou-se à escrivaninha foliando o livro. A caligrafia anterior de Mariana, presumiu, era elegante, mas desleixada, com muitas páginas em branco, números que não batiam. Tertuliano devia ter sido paciente com a primeira esposa ou simplesmente não se importava o suficiente para corrigi-la. Posso fazer perguntas quando tiver dúvidas? Pode, mas tente resolver sozinha primeiro. O coronel aprecia a iniciativa. Jacira se dirigiu à porta, então pausou.

Uma última coisa, senhora. Há partes da casa que são proibidas. Proibidas. O terceiro andar. As portas ficam trancadas, mas mesmo se não estivessem, nunca suba lá. O coronel foi muito claro sobre isso. Por quê? O que há lá? Coisas do passado. Coisas que é melhor deixar quietas.

Jacira saiu antes queura pudesse perguntar mais. Sozinha no escritório, Isaura olhou pela janela. Podia haver homens trabalhando nos campos, o gado pastando tranquilo, a serra verde ao fundo. Era bonito, devia admitir, e muito diferente do vilarejo empoeirado onde crescera, mas também era uma prisão luxuosa, sim, mas prisão mesmo assim.

Isaura passou à tarde familiarizando-se com os livros de contas, fazendo listas, tentando entender a complexa administração daquela propriedade enorme. Sebastiana, a cozinheira chefe, subiu para discutir o menu da semana e Isaura se viu tomando decisões sobre coisas que nunca considerara antes, quantos quilos de carne seria necessário, quando reabastecer o estoque de farinha, se deviam abaterinhas.

Era exaustivo, mas também curiosamente satisfatório. Pela primeira vez em anos, sentia que tinha controle sobre algo, mesmo que fosse apenas o cardápio de uma casa. O sol já descia no horizonte quando ouviu cavalos no pátio frontal. Seu coração acelerou automaticamente. Tertuliano estava voltando.

Ela se levantou, alisando o vestido, incerta se devia ir ao seu encontro ou esperar que ele a procurasse. Antes que pudesse decidir, ouviu vozes masculinas, múltiplas. Aproximou-se da janela e viu tertuliano descendo do cavalo, conversando com três homens que não reconhecia. Um deles em particular chamou sua atenção.

Era tão alto quanto Tertuliano, talvez até um pouco mais, mas onde seu marido era músculos sólidos. Este homem era magro, quase cadavérico. Vestia-se bem, roupas caras, mas havia algo predatório em seus movimentos. Ela os viu entrar na casa e momentos depois, Jacira bateu a porta do escritório. O coronel solicita sua presença na sala de estar.

Isaura seguiu a governanta, o estômago apertado por nervosismo. Quando entraram na sala, os quatro homens estavam de pé, segurando copos com o que parecia ser cachaça. A conversa cessou imediatamente quando ela apareceu. Tertuliano virou-se. Estava sujo da jornada de trabalho, camisa manchada de suor e poeira, mas de alguma forma sua presença dominava o espaço ainda mais que na noite anterior.

Zaura,” ele disse, e o uso de seu primeiro nome na frente dos outros homens a surpreendeu. “Venha, há pessoas que deve conhecer”. Ela se aproximou e Tertuliano colocou a mão em suas costas. Um gesto possessivo, mas também protetor. Ela não tinha certeza. “Minha esposa Isaura Cabral”, ele anunciou.

Isaura, estes são homens com quem faço negócios. Estevão Costa, dono de terras na Paraíba, apontou para um homem baixo e gordo. Miguel Bandeira, comerciante de Crato, um sujeito de meia idade com bigodes, e Pascoal Macedo, criador de Gado do Vale, o homem cadavérico.

Zaura estendeu a mão educadamente para cada um, mas quando chegou a Pascoal Macedo, algo naqueles olhos claros demais, quase transparentes, fez sua pele arrepiar. “Um prazer, senora Cabral”, ele disse, a voz suave demais, segurando sua mão segundo além do apropriado. “O coronel é homem de sorte. Beleza como a sua é rara nestes sertões áridos. É gentil de sua parte.

” Ela respondeu, retirando a mão. Gentileza, não tem nada a ver. Macedo sorriu. E havia algo de predador naquele sorriso. Apenas constato fatos. Não é mesmo tertuliano? Desta vez escolheu melhor que da outra. O silêncio que se seguiu foi tenso. Isaura sentiu a mão de Tertuliano apertar levemente suas costas e, quando olhou para ele, viu a mandíbula tensionada, os olhos escurecidos.

Cuidado com sua língua, pascoal. Tertuliano disse baixo. Está em minha casa. Apenas um elogio entre amigos. Macedo ergueu as mãos em gesto conciliatório, mas seus olhos brilhavam com malícia mal disfarçada. Sem ofensa pretendida. Ofensa foi tomada mesmo assim. Tertuliano virou-se para Isaura. Pode se retirar. Temos negócios a discutir.

Era uma dispensa clara, mas Isaura estava aliviada. Havia algo tóxico naquela sala, particularmente na presença de Pascoal Macedo. Ela fez uma pequena reverência e saiu, mas não pôde evitar ouvir o começo da conversa quando a porta se fechava. Cuidado, Tertuliano. Era a voz de Macedo. Mulheres bonitas são problema. atraem atenção, causam ciúmes.

Sua primeira esposa que o diga: “Ó, espere, ela não pode mais, não é?” O som de algo quebrando, um copo cestilhaçando e então a voz de Tertuliano baixa e letal: “Termine essa frase, Pascoal, e será a última coisa que dirá com todos os dentes na boca”. Isaura se afastou rapidamente da porta, o coração disparado.

Que tipo de história havia entre esses homens? E por que sentia que Pascoal Macedo seria muito mais que um mero incômodo em sua vida? O jantar daquela noite foi tenso. Dertuliano comia em silêncio e Isaura podia ver a raiva ainda fervendo sob a superfície. Seus movimentos eram controlados demais, precisos demais. sinais de alguém se segurando com esforço. “Pascoal Macedo é seu amigo?”, ela se ouviu perguntar, quebrando o silêncio.

Tertuliano ergueu os olhos lentamente. “Não, não sou homem de muitos amigos e ele definitivamente não é um deles.” Então, por que estava aqui? Negócios. Às vezes, precisamos lidar com pessoas que desprezamos por necessidade comercial. Ele colocou os talheres com cuidado, mas não se preocupe com ele.

Não se aproxime, não converse, não dê confiança. Pascoal Macedo é cobra, bonito por fora, venenoso no ataque. Ele disse algo sobre sua primeira esposa. O silêncio que se seguiu foi carregado. Tertuliano se recostou na cadeira, os olhos estudando exaura com intensidade, que a fez querer desviar o olhar. Mas ela se forçou a sustentá-lo. “Quer saber sobre Mariana?”, não era pergunta, era constatação. É natural, mas não hoje. Não agora.

Ele se levantou. “Venha, quero mostrar-lhe algo.” Confusa, Isaura o seguiu para fora da casa. O sol já se pusera e a noite do sertão era surpreendentemente fresca na altitude da serra. Tertuliano a guiou por um caminho de pedras até uma pequena elevação atrás do casarão.

Ali, cercado por um muro baixo de pedras brancas, havia um cemitério particular. Apenas cinco lápides, todas simples. Tertuliano parou diante de uma delas. A luz da lua crescente Isaura conseguiu ler. Mariana Vasconcelos Cabral 1849 1869. Que Deus tenha piedade de sua alma. Tinha 20 anos quando morreu. Tertuliano disse a voz sem emoção aparente. Éramos casados há apenas um ano.

Isaura esperou, sentindo que se ficasse em silêncio, ele talvez continuasse e continuou. Era linda, mais bonita que você para ser honesto. Cabelos louros, olhos azuis, rara no sertão. Filha de coronel, respeitado, educada em convento, tocava piano como um anjo. Ele cruzou os braços e me odiava com cada fibra de seu ser. Por quê? Porque não era quem ela queria.

Ela amava outro homem, um tenente bonito e charmoso do Recife. Mas o pai dela tinha dívidas comigo e o pagamento foi ela. Ele sorriu sem humor. Irônico, não? História se repete. Isaura sentiu um calafrio que não tinha nada a ver com o vento frio da noite. Ela nunca me perdoou por arruinar, nunca aceitou este casamento.

E então ele pausou e pela primeira vez Isaura viu algo quebrar na fachada de pedra. Então ela tentou me matar. O quê? Veneno na comida. Arsênico para ser específico, suficiente para matar um boi. Ele passou a mão pela cicatriz no rosto. Não matou-o, obviamente, mas me deixou muito doente.

Doente o suficiente para que ela pensasse que poderia fugir. E você a matou por isso? Não. A palavra saiu dura. Eu a confrontei. Houve luta. Ela tentou me esfaquear. na confusão, caiu da sacada do terceiro andar. Ele finalmente olhou para Isaura. Foi acidente, mas ninguém acreditou, incluindo ela, suspeito, nos segundos antes de bater no chão. O silêncio se estendeu entre eles, pesado como chumbo.

“Por que está me contando isso?”, Isaura finalmente perguntou. Porque não quero segredos entre nós, não desse tipo. Ele se virou completamente para ela. E porque precisa entender, não sou homem fácil de amar. Meu passado é manchado de sangue e erro. Minha primeira esposa me odiou até a morte, literalmente.

Talvez você me odeie também. Talvez seja o destino de homens como eu. E que tipo de homem você é? Tertuliano deu um passo mais perto. O tipo que matou o primeiro homem aos 14 anos. O tipo que foi cangaceiro porque não tinha outra escolha. O tipo que roubou, matou, fez coisas terríveis para sobreviver.

Mas também ele pausou o tipo que tentou mudar, o tipo que usou o ouro que ganhei, não importa como, para construir algo legítimo, algo que durasse. Por que está me dizendo tudo isso? Porque você não é Mariana. Vi isso ontem, quando teve coragem de exigir respeito, mesmo estando em posição impossível. Você tem força que ela nunca teve.

E por que ele hesitou e pela primeira vez pareceu inseguro, porque não quero que me tema. Respeito sim, mas não medo. Isaura o estudou à luz da lua. Este homem era um paradoxo, brutal e gentil, duro e vulnerável, temível e estranhamente honesto. “Não sei se posso amar você”, ela disse finalmente, com a mesma honestidade crua que lhe oferecera.

Não, ainda, talvez nunca, mas posso tentar não odiá-lo. É o melhor que posso oferecer agora. Tertuliano riu. Uma risada genuína dessa vez, não amarga. É mais do que Mariana jamais ofereceu. Aceito. Ele ofereceu o braço e depois de breve hesitação, Isaura o aceitou.

caminharam de volta para a casa em silêncio, mas era um silêncio diferente, menos tenso, quase confortável. Quando chegaram ao quarto, Tertuliano a puxou para si, e, dessa vez, quando a beijou, havia algo diferente, menos comando, mais pergunta. E quando ela respondeu, abrindo-se para ele, foi escolha, ainda que limitada, não submissão. Aquela noite foi diferente da primeira, mais lenta, mais exploratória.

E quando finalmente adormeceu nos braços dele, exausta, mas estranhamente em paz, Isaura pensou que talvez, apenas talvez, houvesse esperança para aquele casamento impossível. Os dias seguintes estabeleceram uma rotina. Tertuliano acordava antes do sol, trabalhava até o entardecer, voltava sujo e cansado, mas sempre comparecia ao jantar.

Conversava um pouco, mas Isaura começava a entender seu ritmo, suas manias, seus silêncios. Ela, por sua vez, mergulhou na administração da casa. descobriu que gostava da organização, do desafio de manter tudo funcionando perfeitamente. Os criados a respeitavam. Parte por obrigação, parte porque ela os tratava com dignidade que Mariana nunca demonstrara.

Uma semana após o casamento, Isaura estava no escritório quando Jacira entrou trazendo uma caixa de madeira. Achei que a senhora pudesse querer isto”, disse colocando a caixa sobre a mesa. “O que é? Pertences de dona Mariana.” O coronel mandou queimar quase tudo, mas guardou algumas coisas, documentos, principalmente. Disse que talvez fossem úteis algum dia.

Curiosidade venceu cautela. Depois que Jacira saiu, Isaura abriu a caixa. Dentro havia papéis, registros de casamento, cartas. e no fundo um diário de capa de couro vermelho. Isaura pegou o diário com mãos trêmulas. Sabia que não devia ler. Era invasão de privacidade, mesmo de alguém morto. Mas a curiosidade era forte demais.

Abriu na primeira página, 15 de janeiro de 1868. Hoje foi o pior dia de minha vida. Papai me informou que serei entregue. Não há outra palavra ao coronel Tertuliano Cabral como pagamento de dívidas. Um excangaceiro, um assassino, um homem sem berço, sem educação, sem refinamento, preferia morrer a casar com tal criatura.

Isaura virou as páginas lendo passagens ao acaso. 10 de março de 1868. A cerimônia foi ontem. Chorei durante todo o tempo. Ele nem pareceu notar. Ou se notou, não se importou. À noite ele não consigo escrever. Jamais o perdoarei. Jamais amarei esta besta. 22 de julho de 1868. Recebi carta de Guilherme.

Meu doce, meu querido Guilherme, ainda me ama, ainda quer fugir comigo. Diz que encontrará uma forma. Preciso ter fé. Preciso aguentar este inferno apenas mais um pouco. 5 de dezembro de 1868. Pascoal Macedo veio visitar hoje. É amigo de Guilherme, diz que pode nos ajudar. Trouxe-me um presente, um pó branco que diz fazer qualquer um adormecer profundamente.

Disse que é apenas para ajudar com minha insônia, mas havia algo em seus olhos. Será que ele entende meu desespero? Será que ele me ajudaria a Isaura parou de ler o coração acelerado. Pascoal Macedo, o mesmo homem que visitara dias atrás. Ele dera veneno a Mariana ou apenas sugerira a ideia? Ela continuou lendo cada página, revelando mais da tragédia que se desenrolara.

20 de janeiro de 1869. Não aguento mais. Coloquei o pó na comida dele hoje. Uma dose grande. Tomara que funcione. Tomara que eu finalmente seja livre. 22 de janeiro de 1869. Ele não morreu. Como não morreu? Ele ficou doente, muito doente, mas não morreu. E agora ele sabe. Vi em seus olhos quando acordou. Ele sabe o que fiz. Deus ajuda-me. Preciso fugir.

A última entrada era do dia seguinte. apenas uma linha escrita com caligrafia desesperada. Ele está vindo e então nada mais. Isaura fechou o diário, as mãos tremendo. A história que Tertuliano contara era verdade. Mariana realmente tentara matá-lo e Pascoal Macedo estava envolvido. Ela guardou o diário de volta na caixa, mas uma carta solta caiu no chão. Pegou-a e viu que era recente.

Datada de apenas dois meses atrás. antes de seu casamento com Tertuliano. Era endereçada ao coronel e o remetente era Pascoal Macedo. Meu caro Tertuliano, soube que planeja casar-se novamente. Felicito-o pela coragem. Poucos homens se arriscariam a tal empreitada após tragédia como a sua.

Mas permita-me oferecer conselho. Escolha com cuidado desta vez. Beleza e juventude são tentadoras, mas podem trazer os mesmos problemas. Mariana era linda e veja no que deu. Caso precise de ajuda para avaliar a adequação de sua nova noiva, estou à disposição. Afinal, velhos amigos devem se ajudar mutuamente.

Com respeito, Pascoal Macedo Isaura sentiu náusea subir em sua garganta. avaliar adequação. Havia algo profundamente errado ali e a menção velada à morte de Mariana. Ela precisava contar a Tertuliano sobre o diário, mas algo assegurava. Se ele soubesse que ela descobrira o envolvimento de Macedo, o que faria? Mataria o homem? E então que problemas isso traria? Antes que pudesse decidir, ouviu cavalos no pátio, vozes, então algo que fez seu sangue gelar, tiros.

Isaura correu para a janela a tempo de ver três homens armados invadindo o pátio, atirando para o ar. Capangas de Tertuliano respondiam ao fogo. No meio do caos, ela viu seu marido, sem arma, surpreendido, correr para se abrigar atrás de um carriola. Um dos invasores apontou direto para ele. Sem pensar, Isaura gritou pela janela: “Tertuliano, cuidado.” O aviso salvou sua vida.

Ele se abaixou no momento exato em que a bala passou, silvando onde sua cabeça estivera segundos antes. Em questão de minutos, os capangas de Tertuliano dominaram a situação. Dois invasores foram mortos, um fugiu. Tertuliano entrou na casa como furacão, sangue de um corte na testa, olhos selvagens. Quando viu Isaura na porta do escritório, parou. Foi você quem gritou? Foi: “Salvou minha vida! Salvei.

Eles se encararam por um longo momento. Então, Tertuliano cruzou a distância entre eles em três passadas e a puxou para um abraço feroz, esmagador. “Obrigado”, ele murmurou contra seus cabelos. “Obrigado!” Eaura, abraçando-o de volta, sentindo o coração dele batendo forte contra o seu, percebeu com espanto e leve terror que estava começando a se importar com aquele homem.

Não amor, ainda não, mas algo perigosamente próximo. Os dias seguintes ao ataque foram tensos. Tertuliano dobrou a segurança da fazenda, colocando mais homens armados nas torres de vigia. reforçando os portões, estabelecendo patrulhas noturnas. Ele próprio raramente saía desarmado agora, sempre com um revólver na cintura e uma faca escondida na bota.

Isaura observava as mudanças com preocupação crescente. Durante o jantar, três noites após o ataque, finalmente reuniu coragem para perguntar: “Quem mandou aqueles homens?” Tertuliano ergueu os olhos do prato, a expressão fechada. Não tenho certeza, mas tenho suspeitas. Pascoal Macedo. O garfo parou no ar.

Por que pergunta isso? Isaura hesitou, então decidiu que já era hora de revelar o que descobrira. Encontrei o diário de Mariana e uma carta dele para você. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Tertuliano colocou os talheres com cuidado estudado. Movimentos precisos demais, controlados demais.

Jacira deu a você a caixa? Não era pergunta. Deu. Eu sei que não devia ter lido, mas não. Ele ergueu a mão. Não se desculpe. Tinha direito de saber. Mariana foi minha esposa, mas você é minha esposa agora. Seus fantasmas são seus também. Ele se levantou, caminhando até a janela. O que o diário disse? Que Macedo deu o veneno a ela, ou menos a encorajou. Eu sabia.

A voz de Tertuliano era baixa, perigosa. Sempre soube que ele estava envolvido, mas não tinha provas. Mariana morreu antes que pudesse confessar. E a carta foi ameaça velada. Macedo tem ciúme doentio de mim há anos. Não por amizade ou afeto, por poder. Tertuliano se virou. Viemos do mesmo lugar, Esaura.

Ambos éramos filhos bastardos, rejeitados por pais que não nos reconheceram. Ambos nos juntamos ao cangaço, jovens, mas eu saí. Usei o ouro que ganhamos para construir algo legítimo. Ele continuou no crime, mas disfarçado de fazendeiro respeitável. Então vocês eram amigos, irmãos de armas por um tempo. Compartilhamos fome, perigo, sangue. Sua expressão se endureceu.

Mas Pascoal nunca aceitou que eu prosperasse mais que ele. E quando me casei com Mariana, filha de homem importante, seu ressentimento cresceu. Acho que ele a seduziu deliberadamente, envenenou sua mente contra mim, tanto quanto forneceu o veneno real. Isaura absorveu essas informações, as peças do quebra-cabeça se encaixando. E agora ele quer me destruir, tomar o que construí.

E você? Tertuliano cruzou a distância entre eles, tomando suas mãos. Você seria prêmio especial. Tem como olhou para você como cobra avaliando o rato. Um calafrio percorreu Isaura. O que vamos fazer? Vamos. Tertuliano sorriu pequeno, mas genuíno. Gosto que diga vamos, mas a resposta é nada. Por enquanto. Nada. Mas ele não tenho provas.

Se eu o acusar ou atacar sem evidências concretas, parecerei o vilão. Macedo é respeitado na região, tem aliados poderosos. Ele apertou suas mãos. Não, precisamos ser espertos, deixá-lo se expor e, enquanto isso, mantê-la segura. Não sou criança que precisa ser protegida. Não, não é. Algo mudou em seus olhos. Respeito. Ela percebeu. Provou isso quando me avisou do perigo.

Mas mesmo guerreiros experientes precisam de cautela. E você? Ele tocou seu rosto. Você é preciosa demais para arriscar. O termo a surpreendeu. Preciosa. Não como propriedade, mas como algo valorizado. Tertuliano, posso perguntar algo pessoal? Pode. Por que você saiu do cangaço? O que aconteceu? Ele soltou suas mãos, voltando para a mesa.

Por um longo momento, pensou que ele não responderia. Então, começou a falar. tinha 22 anos, já matara 12 homens, alguns em combate, alguns em emboscadas, um por pura vingança. Sua voz era distante, como se relembrasse vida de outra pessoa. Estávamos atacando uma fazenda no interior de Pernambuco.

Informações diziam que o dono era rico, mantinha ouro na casa. Seria roubo fácil. Ele pausou, os dedos apertando o copo de cachaça, mas as informações estavam erradas. Não havia ouro, apenas uma família, pai, mãe, cinco filhos. O mais velho tinha talvez 10 anos. Ele bebeu de uma vez. Meu líder ordenou que matássemos todos. Não deixar testemunhas. Isaura sentiu o estômago revirar. Recusei.

Pela primeira vez desobedeci ordem direta. Meu líder me chamou de fraco, de covarde. Pascoal. Ele praticamente cuspiu o nome, concordou com o líder. Disse que eu estava ficando mole. Então eles mataram a família inteira enquanto eu assistia de arma em punho, mais paralisado. Meu Deus! Naquela noite esperei todos dormirem. Então peguei minha parte do ouro acumulado, três anos de roubos e fugi.

Sabia que me caçariam, que me matariam se encontrassem, mas não importava. Não podia mais ser aquilo. Ele olhou para ela. Você está casada com assassino, Exaura. Não se esqueça disso. Minhas mãos têm sangue que nunca sairá completamente. Mas você mudou. Tentou ser diferente. Tentei, não sei se consegui. Ele deu um sorriso amargo.

Às vezes, à noite ainda sonho com os rostos dos homens que matei. Às vezes acordo e, por um momento, não sei quem sou, o cangaceiro ou o fazendeiro. A linha é mais fina do que gostaria de admitir. Isaura se levantou, aproximando-se dele. Hesitante, colocou a mão sobre a dele. Todos temos fantasmas, todos carregamos culpas. O que importa é o que fazemos agora.

Tertuliano virou a mão entrelaçando seus dedos. É muito sábia para 19 anos. Não sou sábia, apenas tentando entender este casamento estranho que temos. Ela sorriu levemente. Somos dois estranhos forçados juntos por circunstâncias terríveis. Mas talvez, talvez possamos nos tornar algo mais que isso. O que quer ser? Não sei ainda. Parceiros, talvez aliados. Ela pausou. Amigos, amigos.

Tertuliano testou a palavra como se fosse conceito ali. Nunca tive esposa que fosse amiga, mas gosto da ideia. Ele a puxou para si, e o beijo que compartilharam foi diferente dos anteriores, menos urgente, mais terno. Quando ele a carregou para o quarto, foi com gentileza que ela não sabia que ele possuía.

E pela primeira vez, desde que chegara à fazenda Pedra Grande, Isaura sentiu que talvez estivesse construindo algo real com aquele homem impossível. Duas semanas se passaram em relativa paz. Isaura mergulhou ainda mais fundo na administração da fazenda, descobrindo talentos que não sabia possuir. Começou a fazer melhorias, reorganizou a dispensa para reduzir desperdício, negociou melhores preços com fornecedores locais.

Até sugeriu mudanças nas plantações que Tertuliano, surpreso, aceitou. tem cabeça para negócios”, ele comentou uma noite, revisando os livros de contas. “Melhor que muitos homens que conheço. Minha mãe sempre dizia que mulher inteligente aprende a contar cada tostão. Em tempos difíceis, foi o que nos manteve vivos”.

Tertuliano olhou para ela com expressão que Isaura estava começando a reconhecer, admiração misturada com algo mais profundo, algo que nenhum dos dois estava pronto para nomear, mas nem tudo eram números e administração. Uma tarde, explorando a casa enquanto Tertuliano trabalhava nos campos, Isaura se viu diante da escada que levava ao terceiro andar.

As portas lá em cima ficam trancadas. Jacira havia dito. Nunca suba lá. Mas a curiosidade era força poderosa eura descobrira que não gostava de portas trancadas, literais ou metafóricas. Subiu lentamente, cada degrau rangendo sobre seus pés. O terceiro andar era apenas um corredor longo com três portas. Tentou a primeira trancada, a segunda também trancada.

A terceira, porém, cedeu quando ela girou a maçaneta. O quarto era contrário ao resto da casa. Móveis cobertos com lençóis brancos, pó acumulado, ar abafado de espaço fechado há muito tempo, e nas paredes retratos. Isaura entrou devagar, removendo o lençol do primeiro quadro. Era pintura de mulher jovem e linda, cabelos louros em cachos elaborados, olhos azuis penetrantes, vestido verde esmeralda.

Mariana, sem dúvida. Outros quadros mostravam a mesma mulher em diferentes poses, sempre linda, sempre distante. Havia também da Guerreótipos a tecnologia cara de fotografia que só os muito ricos podiam pagar. Em uma delas, Mariana estava ao lado de um jovem oficial do exército, ambos sorrindo. No verso escrito em caligrafia feminina, eu e meu querido Guilherme, maio de 1867, um ano antes de seu casamento forçado com Tertuliano. Isaura explorou mais.

Havia um piano coberto, partituras musicais espalhadas, livros de poesia francesa, vestidos caros em um armário enorme e em uma escrivaninha mais cartas. Ela sabia que estava invadindo privacidade, vasculhando fantasmas que deviam permanecer enterrados, mas não conseguia parar.

As cartas eram de Guilherme para Mariana, escritas durante o casamento dela, cada uma mais desesperada que a anterior. Minha amada, não posso suportar saber que está com aquele bruto. Fuja comigo. Encontraremos forma de anular o casamento. Meu amor por você é eterno. Mariana, recebi sua carta. Entendo seu desespero. Pascoal Macedo é homem de recursos. Ele pode nos ajudar. Por favor, não faça nada precipitado. O plano de Macedo é arriscado. Espere.

Serei promovido logo. Terei meios para A última carta estava inacabada, não enviada. Datada de janeiro de 1869. Mariana soube o que tentou fazer. Pelo amor de Deus, fuja agora. Se Cabral descobrir, ele Isaura estava tão absorta na leitura que não ouviu os passos na escada. Não ouviu a porta se abrir completamente.

Só percebeu a presença de Tertuliano quando sua sombra caiu sobre ela. Virou-se sobressaltada, o coração disparando. Ele estava parado na entrada, a expressão ilegível. disse para não subir aqui. Eu sei, desculpe, eu curiosidade. Ele entrou no quarto, olhando ao redor, como se visse fantasmas em cada canto. É natural, mas doloroso. Por que mantém tudo isso? Por que não queimou como queimou o resto? Tertuliano tocou o piano coberto, seus dedos deixando rastros no pó. Culpa, talvez.

Lembrança de que até as coisas bonitas podem ser venenosas. Não sei. Ele se virou para ela. Está zangada por descobrir que ela amava outro homem? Não. Estou triste por ela, por você, por todos envolvidos nesta tragédia. Isaura colocou as cartas de volta. Ela nunca teve chance. Teve? Foi vendida, como eu fui vendida, forçada a casar com homem que não amava.

Pelo menos eu, ela pausou. Pelo menos você o quê? Pelo menos eu não amo outro. Não ten o coração partido por deixar para trás. Talvez isso nos dê chance melhor. Tertuliano a estudou por um longo momento. Sabe que posso trancá-la aqui, mantê-la prisioneira? Garantir que nunca fuja como Mariana tentou? Pode. Isaura concordou erguendo o queixo.

Mas não vai. Tão certa disso? Sim. Porque não sou Mariana, não tentarei envenená-lo, não tentarei fugir. Se este casamento vai funcionar, será porque ambos escolhemos fazê-lo funcionar. Você pode me manter presa fisicamente, mas nunca terá minha lealdade. Nunca terá. Ela hesitou sobre a palavra. Nunca terá meu coração. E se eu quiser seu coração? A pergunta a surpreendeu.

Eles ficaram ali entre os fantasmas de um amor morto e os primeiros brotos tênues de algo novo. E Isaura sentiu o mundo se reduzir apenas a eles dois. então terá que conquistá-lo. Ela disse finalmente, não pode ser dado sob coação, não pode ser comprado ou negociado, terá que ser conquistado.

Tertuliano deu um sorriso lento, o primeiro sorriso verdadeiramente feliz que ela vira nele. Desafio aceito. Ele estendeu a mão. Venha. Vamos sair deste museu de tristezas. Quero mostrar-lhe algo melhor. Isaura pegou sua mão e ele a conduziu para fora do quarto, fechando a porta atrás deles, mas não trancou. Uma pequena mudança, mas significativa.

Tertuliano a levou aos estábulos, onde os cavalos eram mantidos. Sabe cavalgar? Aprendi quando criança, mas faz anos. Então, está na hora de reaprender. Ele escolheu uma égua marrom de aparência dócil. Esta é a estrela gentil, perfeita, para recomeçar. Ele a ajudou a montar suas mãos firmes em sua cintura e, por um momento, ficaram assim, muito próximos.

Então ele montou seu próprio cavalo, o garanhão negro chamado Trovão, e acenou para que ela o segue. Cavalgaram pela propriedade Tertuliano, mostrando cada parte de suas terras. Os campos de algodão, onde trabalhadores livres cantavam enquanto colhiam. As pastagens onde o gado zebu pastava tranquilo, o açude que ele mandara construir, represando um córrego para garantir água durante as secas.

Comprei estas terras com ouro de sangue”, ele disse enquanto paravam no topo de uma colina, a propriedade inteira se estendendo abaixo deles. Mas tentei construir algo limpo, algo que durasse além de mim. Por quê? Qual era seu plano? No começo, apenas sobreviver. Provar que menino bastardo do sertão podia ser mais que ladrão ou morto antes dos 20. Ele olhou para a paisagem.

Depois não sei, talvez deixar algo de valor, talvez provar que podia mudar. E mudou. Mudei. Ele a encarou. Ainda tenho tentações. Ainda sinto raiva que me faz querer resolver problemas com violência. Ainda acordo pensando em formas de matar Pascoal Macedo e fazer parecer acidente, mas não faz não, porque sei que uma vez que cruze essa linha novamente, não haverá volta. Serei cangaceiro de novo, apenas com roupas melhores.

Ele suspirou. Você me mantém ancorado, Isaura. Sua presença, sua aprovação importam mais do que deviam. importam para mim também, ela admitiu, sua opinião, seu respeito. Não pensei que importariam, mas importam. Eles ficaram em silêncio, observando o sol começar a descer, pintando o céu de laranjas e vermelhos intensos.

“Posso ensinar você algo?”, Tertuliano perguntou de repente. “O quê?” a se defender, a tirar, usar faca, lutar, se necessário. Vendo sua expressão, ele explicou: “Não para atacar, para sobreviver. Se algo acontecer comigo, se Macedo ou outros inimigos atacarem, quero que saiba se proteger.” A ideia era ao mesmo tempo, assustadora e atraente.

Acha que sou capaz? Acho que é capaz de qualquer coisa que decida fazer. Ele estendeu a mão. Então, quer aprender? Isaura pegou sua mão. Nos dias seguintes, Tertuliano cumpriu sua promessa. Todas as tardes, após terminar seu trabalho nos campos, levava Isaura para trás dos estábulos, onde montara pequeno campo de treinamento. Começou com o básico, como segurar uma arma adequadamente, como mirar, como controlar o recuo.

Isaura descobriu que tinha mão firme e olho bom. Após uma semana, conseguia acertar alvos a 20 m com razoável consistência. Natural! Tertuliano comentou impressionado. Muitos homens treinados não atiram tão bem. Também ensinou luta corpo a corpo, movimentos simples, mas efetivos. Como quebrar agarrões, onde golpear para causar máxima dor? como usar o peso do oponente contra ele.

Homens subestimam mulheres. Ele explicava enquanto demonstrava técnicas. Acham que são fracas, indefesas. Use isso. Deixe-os pensar que venceram. Então ataque onde dói mais. Isaura absorvia cada lição com intensidade que a surpreendia. Não era apenas sobre defesa, era sobre controle, sobre não ser vítima, sobre ter escolha.

Uma tarde, após sessão particularmente intensa, ficaram sentados à sombra de uma árvore, dividindo o cantil de água. “Por que está fazendo isso?”, Isaura perguntou. “Ensinar-me a lutar. A maioria dos homens quereria a esposa dócil, submissa. Não sou a maioria dos homens. E você não é mulher dócil, por mais que tente fingir. Ele a encarou. Além disso, mulher forte é mais interessante que boneca de porcelana.

Mariana era linda, mas frágil. Quebrou sob primeira pressão real. Você Ele tocou seu rosto. Você tem aço na espinha. Só precisava aprender a usá-lo. Está me transformando em sua companheira de armas. Estou lhe dando ferramentas para ser o que quiser ser. Ele se levantou, estendendo a mão. Agora vamos de novo.

Dessa vez tente me derrubar de verdade. Isaura aceitou o desafio e, embora nunca conseguisse derrubar Tertuliano, ele era simplesmente grande e forte demais. começou a entender como seu corpo se movia, como antecipar ataques, como defender-se e algo mais acontecia durante esses treinos: a proximidade física, o contato constante, a confiança necessária para ensinar e aprender.

Tudo isso criava intimidade diferente das noites no quarto. Era parceria, não propriedade. Uma noite após jantar, Tertuliano a surpreendeu com presente. Livro novo encadernado em couro para você. Pensei que gostaria. Isaura abriu com cuidado. Era a coleção de poesias de Castro Alves, poeta brasileiro que estava ganhando fama.

Na primeira página, Tertuliano escrevera com caligrafia surpreendentemente elegante para Isaura, que tem força de guerreira e coração de poeta. Que este livro alimente sua alma tanto quanto seu treinamento alimenta sua coragem. T Ela olhou para ele, olhos ardendo com lágrimas inesperadas. Obrigada.

É, é o presente mais bonito que já recebi. Não é grande coisa. É sim. Ela se aproximou, beijando-o suavemente. É tudo. Naquela noite, quando fizeram amor, foi diferente de todas as outras vezes. Não havia urgência ou comando. Havia ternura, exploração mútua, prazer compartilhado. E quando Isaura adormeceu em seus braços, ouviu sussurrar algo que fingia não ter ouvido.

Estou me apaixonando por você. Ela fingiu dormir, mas seu coração cantava. A paz, porém, não duraria. Três semanas após o ataque inicial, Pascoal Macedo apareceu novamente na fazenda, dessa vez sozinho, sem capangas, com sorriso cortas educadas. Tertuliano, meu velho amigo. Ele cumprimentou como se nada de errado tivesse acontecido.

Vim fazer as pazes. Eles estavam na sala de estar. Isaura, avisada por Jacira, desceu para ficar ao lado de Tertuliano, posição de esposa, mas também de aliada. Macedo, Tertuliano respondeu à voz gelada, que paz haveria entre nós? A paz de homens sensatos que entendem que conflito é ruim para negócios.

Pascoal sentou-se sem ser convidado, cruzando as pernas com elegância estudada. Ouvi rumores perturbadores, dizem que me culpa pelo recente incidente. E culpo quem mais enviaria assassinos. Assassinos? Pascoal ergueu as sobrancelhas em choque perfeitamente teatral. Meu caro, tem inimigos que eu nem conheço. Seu passado é colorido.

Poderia ter sido qualquer um, mas foi você. Prove. O desafio era claro nos olhos claros de Macedo. Prove em tribunal, diante de testemunhas, com evidências. Até lá, são apenas acusações vazias de homem paranoico. Tertuliano deu um passo à frente e Isaura sentiu a violência emanando dele como calor de forno. Rapidamente colocou a mão em seu braço. Pequeno toque, mas suficiente para lembrá-lo de controle.

Ele pausou. músculos tensos, mas não avançou. Macedo notou a interação e algo perigoso brilhou em seu olhar. Ah, a bela senhora Cabral, como vai, minha cara? Adaptando-se bem à vida de casada? Muito bem, obrigada. Isaura respondeu com frieza polida. Ótimo, ótimo.

Ele se levantou, aproximando-se dela com movimentos de predador. Sabe, não pude deixar de notar como é diferente da pobre Mariana, mais forte, mais resiliente, é admirável. Deixe minha esposa fora disso, Tertuliano rosnou, apenas fazendo observação educada. Macedo estava agora muito próximo de Isaura, invadindo seu espaço pessoal deliberadamente.

Afinal, esposa é reflexo do marido e você, minha cara, reflete muito bem em Tertuliano. Quase o faz parecer domesticado. A palavra era insulto claro. Isaura viu a mandíbula de Tertuliano se apertar, os punhos se fecharem. Acho melhor se retirar, Senr. Macedo, ela disse, mantendo a voz firme, apesar do medo que sentia. Como pode ver, não é bem-vindo aqui.

Ah, mas vim trazer convite. Macedo tirou o envelope do bolso. Estou realizando grande festa em minha fazenda semana que vem. Todos os fazendeiros importantes da região estarão presentes. Seria inadequado se vocês faltassem. Ele estendeu o envelope para Isaura e quando ela pegou, seus dedos roçaram-os dela deliberadamente.

Espero vê-la lá, senora Cabral. Será oportunidade para conhecer a sociedade local e para dançar, talvez. Tertuliano nunca foi de dançar, mas tenho certeza que mulher encantadora como você aprecia uma boa valsa. Não iremos, Tertuliano declarou. Ohó, mas devem. O tom de Macedo mudou, ficando mais sério, mais ameaçador.

Vejam bem, recusar convite público de vizinho seria insulto grave, daria a impressão de que tem algo a esconder ou medo. Ele sorriu. E não queremos que as pessoas pensem que o grande coronel Tertuliano Cabral tem medo de algo. Queremos. Era armadilha, obviamente. Mas armadilha inteligente. Recusar. Seria admitir fraqueza publicamente. Ir seria caminhar direto para o perigo.

Pensaremos sobre isso. Isaura interviu antes que Tertuliano pudesse recusar novamente, mas cedo a estudou com interesse renovado. Esperta. Tertuliano teve sorte desta vez. Muito mais sorte do que merece. Ele se dirigiu à porta, então parou. Oh, uma última coisa. Soube que o tenente Guilherme Sá estará na festa.

Sabe quem é? Não sabe? O grande amor de Mariana. Será interessante ver como ele reage ao conhecer a nova senhora Cabral, especialmente considerando as circunstâncias da morte de sua amada. Com isso, Pascoal Macedo saiu, deixando o veneno de suas palavras, envenenando o ar.

Tertuliano ficou imóvel por um longo momento, então socou a parede com força suficiente para rachar o reboco. Ele está tentando nos provocar, Isaura disse calmamente, embora seu coração batesse acelerado. Quer que perca o controle, que faça algo estúpido. Eu sei. Tertuliano respirava pesadamente, mas saber torna mais fácil. Vamos à festa. O quê? Não, absolutamente não. Temos que ir. Isaura pegou o convite lendo as letras douradas.

Ele tem razão. Recusar seria mostrar fraqueza. E além disso, ela olhou para o marido. Quero conhecer Guilherme Sá. Quero ver o homem que Mariana amava tanto que tentou matar você por ele. Tertuliano a estudou. Por quê? Porque ainda há peças faltando nesta história e tenho sensação que Guilherme tem respostas que precisamos.

Ela tocou seu rosto. Confie em mim. Sei que é perigoso, mas às vezes precisa enfrentar o perigo de frente para neutralizá-lo. Lentamente, Tertuliano cobriu a mão dela com a sua. Está se tornando perigosamente corajosa, esposa. Aprendi com o melhor marido. Um sorriso tocou seus lábios. Pequeno, mas real.

Está bem, iremos. Mas você não sai do meu lado nem por um momento. Não planejava sair. Eles ficaram assim, próximos, unidos contra o perigo que se aproximava. Eaura percebeu que em algum momento, nas últimas semanas, sem perceber exatamente quando, parara de ser prisioneira de Tertuliano, tornara-se sua parceira e, talvez, apenas talvez, algo ainda mais significativo. A semana seguinte passou em preparativos tensos.

Jacira supervisionou a confecção de um vestido novo para Isaura. Seda azul escura com bordados delicados, decote elegante, mas não provocativo, corte que realçava sua figura sem ser escandaloso. Era o tipo de vestido que dizia: “Sou esposa de homem poderoso, me respeitem”.

Tertuliano também se preparou, embora de forma diferente. Dobrou o treinamento de Isaura, ensinando-lhe técnicas mais avançadas, e uma tarde presenteou-a com algo inesperado, uma pequena faca com cabo de madre pérola. Para esconder na liga da meia, ele explicou, demonstrando como prendê-la de forma que ficasse invisível, mas acessível.

Se algo acontecer, se alguém tentar machucá-la e eu não estiver por perto, não hesite. Corte e corra. Acha mesmo que será necessário? Espero que não, mas homem preparado é homem vivo. Ele ajustou a faca na coxa dela, seus dedos demorando um pouco mais que o necessário. Prometa-me que usará se precisar. Prometo. A noite da festa chegou com céu limpo e lua cheia.

A fazenda São Jerônimo, propriedade de Pascoal Macedo, ficava a 2 horas de viagem da pedra grande. Tertuliano insistiu em levar quatro capangas armados como escolta. Paranoia ou prudência? Isaura perguntou enquanto a carruagem balançava no caminho esburacado. Os dois. Tertuliano verificou seu revólver pela terceira vez. Macedo escolheu esta festa como campo de batalha.

Não sei exatamente que planeja, mas planeja algo. Isaura alisou o vestido nervosamente. E se Guilherme Sá me culpar pela morte de Mariana, então eu o lembrarei dos fatos. Mariana tentou me matar. Sua morte foi consequência de suas próprias ações, não minhas. Mas havia dor em sua voz ao dizer isso. Embora às vezes me pergunte se poderia ter feito diferente se tivesse sido menos duro, menos exigente. Não. Isaura pegou sua mão grande entre as suas. Não pode reescrever o passado.

Mariana fez escolhas. Você fez escolhas. Ambos pagaram preços. Mas isso acabou. Somos o presente agora. Ele entrelaçou seus dedos. Como ficou tão sábia? Nasci pobre. Pobreza ensina sabedoria rápido ou mata devagar. Ela sorriu levemente. Além disso, tenho professor excepcional.

Homem difícil, complicado, às vezes assustador, mas bom. No fundo, onde importa é bom. Tertuliano a puxou para um beijo profundo e intenso. Quando se separaram, ele disse baixo: “Não mereço você. Talvez não, mas me tem mesmo assim.” Ela tocou seu rosto, a cicatriz que já não a assustava mais. E não pretendo ir a lugar algum.

A fazenda São Jerônimo era impressionante, maior que a pedra grande, mais ostensiva, decorada com luxo que beirava o vulgar. Lanternas iluminavam os jardins, música de orquestra flutuava pela noite e dezenas de carruagens já estavam estacionadas quando chegaram. “Metade da elite do Ceará e Pernambuco está aqui”, Tertuliano murmurou. Macedo está exibindo poder.

Um criado de Libré conduziu-os ao salão principal, enorme, com piso de mármore importado, lustres de cristal, paredes cobertas por espelhos venezianos. Facilmente 100 pessoas circulavam conversando, rindo, bebendo champanhe francesa. Isaura sentiu todos os olhos se voltarem para eles quando entraram. O murmúrio cresceu.

Obviamente eram esperados, ou melhor, sua aparição era parte do entretenimento planejado. Pascoal Macedo se aproximou imediatamente, vestido em fraque preto impecável, sorriso largo no rosto cadavérico. Tertuliano, senhora Cabral, que prazer que aceitaram meu convite. Ele beijou a mão de Isaura, seus lábios frios contra sua pele. Está deslumbrante, minha cara.

Com certeza será a mulher mais linda desta festa. É gentil, Isaura respondeu, retirando a mão o mais rápido que a etiqueta permitia. Venham, venham, há pessoas que devem conhecer. Na Macedos conduziu pela multidão, fazendo apresentações. Fazendeiros ricos, comerciantes poderosos, até um juiz de fortaleza. Todos corteses, mas Isaura percebia os olhares curiosos, as avaliações silenciosas.

Era a nova esposa do coronel Cabral, a substituta de Mariana, objeto de curiosidade mórbida. Finalmente, Macedo parou diante de um grupo de homens jovens, todos em uniformes militares. E aqui estão os orgulhosos oficiais do segundo batalhão de infantaria. Cavalheiros, apresento o coronel Tertuliano Cabral e sua esposa, Isaura. Os oficiais cumprimentaram educadamente, mas um deles ficou paralisado, o rosto empalidecendo visivelmente.

Era homem bonito, talvez 28 anos, cabelos castanhos, olhos verdes, características delicadas que mulheres achariam atraentes. Tenente Guilherme Sá Macedo disse com prazer mal disfarçado. Creio que conheça o coronel Cabral e esta é sua nova esposa. Guilherme engoliu em seco o copo de champanhe tremendo em sua mão. Cocoronel, senhora. Sua voz estava embargada. É um prazer.

Prazer é meu Tertuliano disse com frieza glacial. Um silêncio desconfortável se instalou. Os outros oficiais perceberam atenção, murmurando desculpas e se afastando discretamente. Macedo, porém, permaneceu claramente apreciando o drama.

Tenente Sava justamente contando histórias encantadoras de seus tempos no Recife. Macedo disse: “Talvez possam se juntar a nós. Tenho certeza que tem muitas histórias interessantes também. Tertuliano de seus dias mais aventurosos. Era provocação óbvia. Tertuliano deu um passo à frente, mas o segurou pelo braço. “Na verdade”, ela disse com voz clara.

“Gostaria de conhecer melhor o tenente Sá. Qualquer amigo de vocês deve ser interessante. Ela sorriu para Guilherme. Posso roubar alguns minutos de seu tempo, tenente. Gostaria de conversar sobre assuntos menos pesados que política e guerra. Guilherme pareceu um animal preso em armadilha. Eu? Claro, senhora. Tertuliano a olhou surpreso, mas Isaura transmitiu confiança com os olhos.

Relutantemente, ele assentiu. Isaura conduziu Guilherme para uma varanda lateral, menos movimentada. A música da orquestra chegava abafada e o ar noturno era fresco. “Não tenho intenção de lhe causar desconforto”, ela começou gentilmente. “Mas preciso fazer perguntas e preciso que responda com honestidade.

” Guilherme olhou para ela com expressão atormentada. sobre Mariana. Sim. Ele suspirou profundamente, encostando-se na balaustrada. Ainda sonho com ela. Todas as noites vejo seu rosto, ouço sua risada e acordo sabendo que está morta e que parte da culpa é minha. Conte-me desde o início. E ele contou como conhecer a Mariana em baile no Recife três anos antes. Como se apaixonaram instantaneamente.

Amor de juventude intenso e puro. Como planejavam se casar, construir vida juntos. Mas o pai dela tinha dívidas, terríveis dívidas com agiotas, com jogadores, com homens perigosos. Guilherme apertou o copo com força e então apareceu Cabral, oferecendo pagar tudo em troca de Mariana. E vocês tentaram fugir? Tentamos três vezes, mas o pai dela sempre nos encontrava, sempre a trazia de volta. Na última vez ameaçou me matar, me acusar de sequestro.

Eu era tenente jovem. Minha carreira teria acabado. Vergonha pesava em cada palavra. Fui covarde. Deixei que a levassem. Isaura sentiu pena dele, pena genuína. Era apenas homem fraco, que amara muito e lutara pouco. E depois do casamento, ela me escrevia cartas desesperadas.

Dizia que Cabral era bruto, que a tratava como propriedade, que não conseguia suportar. Ele olhou para Isaura. Desculpe, sei que é sua esposa agora, mas continue. Pascoal Macedo apareceu, disse que era velho amigo de Cabral, que conhecia seus segredos. Ofereceu ajudar, disse que podia fornecer meios para Mariana se libertar. Veneno? Guilherme fechou os olhos. Sim, eu implorei para que não fizesse.

Disse que encontraríamos outra forma, mas ela estava desesperada. E mais cedo ele abriu os olhos e havia raiva neles agora. Macedo a encorajou. Plantou a ideia, forneceu os meios, garantiu que funcionaria, mas não funcionou, não. E quando Cabral sobreviveu, quando descobriu o que ela fizera, Guilherme engoliu com dificuldade. Recebi telegrama de Macedo dizendo que Mariana estava morta, caída da sacada.

Acidente, diziam. Mas eu sabia, sabia que ele a matara. Ele não matou. Isaura disse firmemente. Foi acidente durante confronto. Sim, mas acidente. Como pode ter certeza? Porque conheço meu marido e porque vi o diário de Marian. Li suas próprias palavras. Iaura deu um passo mais perto. Guilherme, Mariana fez escolha terrível. Tentou matar um homem.

As consequências foram trágicas, mas foram consequências de suas ações, não de crueldade deliberada de Tertuliano. Ele forçou um casamento que ela não queria. “Como eu fui forçada!”, Isaura respondeu calmamente. “Como incontáveis mulheres são forçadas todos os dias neste país. É injusto, sim. É cruel, sim.

” Mas Tertuliano não inventou este sistema, apenas operou dentro dele. Guilherme a estudou. Você o defende. Defendo a verdade. Ela pausou. E defendo meu marido, sim, porque aprendi quem ele realmente é. Não o monstro que Mariana via. Não o cangaceiro que o passado define, mas o homem que tenta ser melhor, mesmo carregando peso de erros antigos. Você o ama, Guilherme disse.

E não era acusação, era reconhecimento doloroso. Estou aprendendo a amar, Isaura admitiu. E ele está aprendendo a ser amado. É processo, difícil, imperfeito, mas real. Guilherme ficou em silêncio por um longo momento. Mariana teria chance se tivesse tentado ver além de seu ódio. Não sei. Talvez.

ou talvez eram simplesmente incompatíveis desde o início. Isaura tocou o braço dele gentilmente. Mas uma coisa sei, Pascoal Macedo manipulou vocês dois, usou o amor de Mariana e seu desespero como armas. E agora ela olhou para o salão iluminado com você. Tentando fazer de novo, com Tertuliano, usando emoções antigas para causar destruição nova.

Por o que ele ganha? Poder, vingança, a satisfação de destruir homem que considera rival. Isaura o encarou. Vai deixar que use você novamente? Guilherme endireitou os ombros e, pela primeira vez pareceu soldado que deveria ser. Não, não vou. Quando voltaram ao salão, a festa estava em pleno vigor. Casais dançavam valsas elaboradas. Outros conversavam em grupos. O champanhe fluía livremente. Tertuliano se aproximou imediatamente, olhos questionadores.

Isaura apenas assentiu levemente. Está tudo bem. Macedo, porém, não parecia satisfeito. Observava de longe, calculando, planejando o próximo movimento. “Posso ter esta dança?”, Tertuliano perguntou formalmente, oferecendo o braço. Não sei dançar valsa Isaura admitiu. Nem eu. Mas podemos fingir. Ele sorriu.

Raro, genuíno e mais importante, mantém você perto de mim. Ela aceitou e ele a conduziu para o centro do salão. A orquestra tocava música lenta, melancólica e Tertuliano aggiuiou com surpreendente graça para homem de seu tamanho. Conversou com Guilherme? Ele disse baixo. Descobriu algo útil? Descobri que Macedo manipulou Mariana deliberadamente.

Deu-lhe o veneno, encorajou-a a usá-lo, garantiu que não haveria consequências. Iaura manteve a voz baixa. E descobri que Guilherme é apenas homem fraco que amou demais e lutou de menos. Não é ameaça para nós. Bom, Tertuliano a girou e por um momento tudo mais desapareceu. Apenas eles dois, a música, o movimento. Está se tornando excelente investigador à esposa.

Tenho o bom professor em todas as áreas, marido. Eles dançaram em silêncio por alguns momentos e Isaura se permitiu simplesmente sentir a força dos braços dele ao redor dela, o ritmo compartilhado, a sensação estranha, mas agradável, de pertencer a alguém, não por obrigação, mas por escolha. A música terminou, aplausos educados ecoaram.

Mas antes que pudessem deixar a pista de dança, Pascoal Macedo apareceu, sorrindo aquele sorriso predador. Que cena tocante! Mas agora, Tertuliano, certamente não se importará se eu roubar sua esposa para uma dança. É tradição que o anfitrião dance com todas as damas presentes. Era armadilha novamente. Recusar seria insulto público, provocação deliberada.

Tertuliano olhou para Isaura, deixando a decisão com ela. Ela a sentiu levemente. Claro, Tertuliano disse com voz gelada. Uma dança, apenas uma. Macedo estendeu a mão e Isaura a aceitou, sentindo repulsa ao toque frio de seus dedos. Ele a conduziu para o centro da pista, enquanto a orquestra começava nova música. Finalmente, um momento a sós”, Macedo murmurou enquanto começavam a dançar, “Ou quase a sós, considerando os 50 pares de olhos nos observando.

O que quer, Senr Macedo?” Direto ao ponto. Aprecio isso. Ele a girou, puxando-a mais perto do que o apropriado. “Quero que entenda sua posição, minha cara senora Cabral. está casada com assassino, com ex-cangaceiro, com homem cuja fortunas foram construídas sobre cadáveres e sangue. Estou ciente do passado de meu marido.

Ah, mas está ciente do presente? Seus olhos claros a perfuravam. Está ciente de que Tertuliano ainda mantém contatos com contrabandistas? Que move armas ilegalmente através da fronteira? que suas mãos ainda estão sujas, apenas usa luvas melhores agora. Isaura manteve a expressão neutra, embora o coração batesse acelerado.

Seria verdade ou mais manipulação? Mesmo que fosse verdade, não me importaria. Não. Macedo sorriu. Nem mesmo sabendo que está em perigo constante, que inimigos dele se tornam seus inimigos, que a qualquer momento alguém pode decidir que melhor forma de machucá-lo é através de você. Está me ameaçando? Estou oferecendo escolha.

Ele agirou novamente, desta vez ainda mais perto, seus lábios, quase tocando seu ouvido. Deixe-o. Eu a protegerei. Dou minha palavra. Posso arranjar anulação do casamento. Posso enviar você e seus irmãos para lugar seguro. Tudo que precisa fazer é testemunhar contra ele, contar as autoridades sobre suas atividades ilegais. Isaura se afastou ligeiramente, olhando-o com frieza. E por que faria isso? O que ganha? Justiça.

Tertuliano merece pagar por seus crimes, por Mariana, por todos os outros que destruiu. Mentira. Isaura parou de dançar ali mesmo no meio da pista, forçando-o a parar também. Não se importa com justiça. Não se importava com Mariana. Só quer destruir Tertuliano porque ele tem o que você nunca conseguirá ter. redenção.

Ele mudou, cresceu, tornou-se mais que seu passado e você, ela deixou desprezo colorir sua voz. Você permanece exatamente o que sempre foi. Cobra, venenosa, traiçoeira e, no final, patética. O rosto de Macedo endureceu, a máscara de civilidade escorregando. Escolheu mal, senora Cabral? Não, pela primeira vez na vida, escolhi certo.

Ela se virou para sair, mas Macedo a agarrou pelo pulso, dedos cravando dolorosamente. Vai se arrepender. Prometo que vai se arrepender. Instantaneamente, Tertuliano estava ali arrancando a mão de Macedo de Isaura, empurrando o outro homem com força suficiente para fazê-lo cambalear para trás. Toque minha esposa novamente. Tertuliano disse com voz baixa, letal.

E arrancarei seu braço do corpo e alimentarei meus cães com ele o salão inteiro silenciou. Todos observavam. A orquestra parou de tocar. Macedo se recuperou, ajeitando o frac. O sorriso voltando, mas havia raiva pura em seus olhos agora. Ameaças em minha própria casa. Que falta de classe, Tertuliano.

Não é ameaça, é promessa. Tertuliano puxou Isaura para perto de si protetoramente. E agora estamos saindo. A hospitalidade desta casa me deixa nauseiado. Fugindo tão cedo, mas a noite mal começou. Mas cedo ergueu a voz para que todos ouvissem. Cavalheiros, senhoras, nossos estimados convidados estão partindo. Que pena.

E justo quando eu estava prestes a compartilhar história fascinante sobre como o coronel Cabral realmente fez sua fortuna. Algo sobre roubo de comboio militar, se não me engano. Tertuliano parou, corpo inteiro se tensionando como corda de violino prestes a romper. Não caia na provocação”, Isaura sussurrou urgentemente. “É isso que ele quer, testemunhas, conflito público.

Ele está difamando meu nome e você provará sua inocência de forma apropriada. Não aqui, não assim”. Tertuliano respirava pesadamente, fúria irradiando dele, mas lentamente, com esforço visível, ele se controlou. Boa noite, Macedo, ele disse finalmente, agradecemos a hospitalidade. Espero que possamos retribuir a cortesia em breve, sobropriados.

Eles saíram do salão sob olhares curiosos e murmúrios. Quando finalmente estavam na carruagem, seguros e em movimento, Tertuliano explodiu. Deveria ter quebrado seu pescoço ali mesmo diante de todos. Que importa testemunhas quando o homem merece morrer? E então você seria preso, enforcado, provavelmente, e eu ficaria sozinha.

Isaura pegou seu rosto entre as mãos, forçando-o a olhar para ela. Não deixe que ele destrua você. Não dê a ele essa vitória. Ele sabe demais sobre meu passado, sobre sobre coisas que fiz para sobreviver quando saí do cangaço. Coisas que poderiam me enforcar se provadas. Então, encontraremos forma de neutralizá-lo antes que possa usar esse conhecimento.

Isaura se surpreendeu com sua própria calma, sua própria determinação, mas com inteligência, com planejamento, não com violência impulsiva. Tertuliano a estudou na luz fraca da lua, filtrando pela janela da carruagem. Quando você se tornou tão forte? Quando me casei com homem que me ensinou que força não é apenas nos músculos, é na mente, no coração, na recusa de ser vítima, ela se aconchegou contra ele.

Somos equipe agora, parceiros. O que ameaça você, ameaça a mim, e eu protejo o que é meu. Tertuliano a abraçou forte, beijando seu topo de cabeça. Te amo! Ele disse simplesmente, sei que é cedo, sei que não mereço, mas te amo. Lágrimas queimaram nos olhos de Zaura. Também te amo. Deus me ajude, mas amo.

Eles ficaram assim abraçados enquanto a carruagem os levava para casa através da noite escura. Não sabiam que atrás deles três cavaleiros o seguiam. Homens armados enviados por Pascoal Macedo com ordem simples: “Matem Cabral! Tragam a mulher viva”.

O ataque veio quando estavam a meio caminho de casa, numa parte isolada do caminho, onde árvores se fechavam dos dois lados. Tiros rasgaram à noite. O coxeiro gritou, chicoteando os cavalos para acelerar. Os quatro capangas que os escoltavam responderam ao fogo, mas os atacantes eram muitos, não três, mas pelo menos 10 homens bem armados. Abaixe-se. Tertuliano empurrou Isaura para o chão da carruagem, cobrindo-a com seu corpo enquanto balas atravessavam as paredes de madeira.

Fora era caos, gritos, tiros, o relinchar aterrorizado dos cavalos. A carruagem balançava violentamente no caminho esburacado. Então veio o impacto. Algo atingiu as rodas, a carruagem oscilou perigosamente e então tombou. Isaura sentiu-se arremessada, batendo contra algo duro, dor explodindo em seu ombro.

Quando voltou a si, segundos depois, estava deitada de lado, o mundo inclinado em ângulo errado. Tertuliano estava sobre ela, sangue escorrendo de um corte na testa. Isaura, está bem? Fale comigo. Estou. Estou bem. Ela tentou se mexer, gemeu de dor. Meu ombro deslocado, provavelmente. Ele a ajudou a sentar, verificando rapidamente por outros ferimentos. Precisamos sair agora.

Ele chutou a porta da carruagem, agora virada para cima, arrancando-a das dobradiças. Depois, com cuidado mais rapidez, puxou Isaura para fora. O cenário era carnificina. Dois de seus capangas estavam mortos. Os outros dois lutavam bravamente, mas eram superados numericamente. O coxeiro havia fugido para a mata.

Corra! Tertuliano ordenou, empurrando Isaura em direção às árvores. Corra e não olhe para trás. Não vou deixar você. Não está deixando, está sobrevivendo. Eu te alcanço. Ele puxou o revólver, virando-se para enfrentar os atacantes. Corra. Isaura correu, penetrou na mata, galhos arranhando seu rosto e braços, o vestido de festa rasgando em espinhos.

Atrás dela ouviu mais tiros, gritos e então a voz de Tertuliano rugindo ordens. Ela tropeçou em raiz, caiu de joelhos, forçou-se a levantar. A dor em seu ombro era insuportável, mas o medo era maior. Tinha que continuar, tinha que sobreviver. correu por minutos que pareciam horas.

Finalmente, quando suas pernas não aguentavam mais, desabou atrás de um tronco grosso, tentando controlar a respiração ofegante. Silêncio. Os tiros haviam parado. Não, espere. Não era silêncio. Havia vozes, homens procurando, procurando por ela. A mulher veio por aqui. Encontrem ela, Macedo quer viva. E o Cabral? Morto.

Vi quando caiu, três tiros no peito. Não, não, não, não, não, não, não. Isaura mordeu o punho para conter o grito que ameaçava rasgar sua garganta. Tertuliano morto. Não podia ser. Não depois de tudo. Não, quando finalmente tinham encontrado algo real. Lágrimas escorriam silenciosamente por seu rosto, mas ela forçou-se a pensar.

Não podia desabar agora. tinha que sobreviver por ela, por seus irmãos, por Tertuliano para vingar se necessário. A faca. Ela ainda tinha a faca na liga da meia. Com dedos trêmulos, Isaura ergueu a saia rasgada, removendo a pequena arma. Não era muito, mas era algo. As vozes se aproximavam. Tem que estar por aqui. Não pode ter ido longe com aquele vestido.

Ela se encolheu mais atrás do tronco, faca apertada em sua mão boa. O coração batia tão alto que tinha certeza que eles ouviriam. Uma figura apareceu. Homem grande, armado com rifle. Ele vasculhava a mata com olhos de caçador, passou a centímetros dela, continuou andando. Isaura começou a relaxar e então ele parou, farejou o ar, virou-se lentamente. Ei, belezinha, ele sorriu, revelando dentes podres. Achei você.

Ele avançou rifle apontado para baixo. Não esperava resistência de mulher ferida e assustada. Erro fatal. Quando ele se inclinou para agarrá-la, Zaura atacou. A faca atravessou seu pescoço num movimento que Tertuliano ensinara. Rápido, preciso, letal. Sangue jorrou quente sobre sua mão.

O homem fez som gorgolejante, caindo de joelhos, olhos arregalados em surpresa. Isaura o observou morrer, paralisada por horror do que fizera. Ela havia matado um homem, tirado uma vida, mas não tinha tempo para processar. Outros homens estavam vindo, atraídos pelo barulho. Ela pegou o rifle do homem morto. Era pesado, desajeitado, com um braço só, mas melhor que apenas a faca.

Então correu novamente, mais profundamente na mata. Vagou pela noite, cada sombra um inimigo potencial, cada somencio de perigo. A lua fornecia luz suficiente para não cair, mas não suficiente para ver claramente. Eventualmente, as vozes dos caçadores ficaram mais distantes. Ou haviam desistido ou ela conseguira criar distância suficiente. Aura desabou ao pé de uma árvore, exausta, além de qualquer limite que conhecera. Seu ombro latejava em agonia.

O vestido estava arruinado, manchado de sangue dela e do homem que matara. Suas mãos tremiam incontrolavelmente e Tertuliano estava morto. As lágrimas voltaram agora em soluços que não podia conter. Ela chorara tão pouco desde que chegara à fazenda Pedra Grande, forçando-se a ser forte, mas agora, sozinha na escuridão, permitiu-se desabar completamente.

Amava-o contra toda a lógica, contra todas as circunstâncias, havia se apaixonado pelo homem impossível que a comprara como pagamento de dívida. E agora ele estava morto. Eventualmente, as lágrimas secaram. A noite continuou. indiferente a seu sofrimento. Isaura forçou-se a pensar. Não podia ficar aqui. Quando o sol nascesse, seria encontrada.

Tinha que se mover, encontrar ajuda, alertar as autoridades sobre Pascoal Macedo, vingar Tertuliano. Com esse pensamento dando força renovada, ela se levantou. Cada movimento era agonia, mas obrigou as pernas a se moverem. caminhou até o amanhecer começar a clarear o céu e então no horizonte viu fumaça subindo, civilização, talvez uma fazenda, um vilarejo, segurança.

Ela se arrastou naquela direção, cada passo uma vitória de vontade sobre corpo exausto. Estava a talvez 100 m da fonte da fumaça quando ouviu exaura. A voz era fraca, rouca, mas inconfundível. Ela girou tão rápido que quase caiu ali encostado em árvore, ensanguentado e pálido, mas definitivamente vivo, estava tertuliano. “Você, você está vivo!”, ela sussurrou, mal acreditando.

“Mal, mas vivo! Ele tentou sorrir, mas foi mais uma careta de dor. Coletes não param tudo, mas param o suficiente. Isaura correu para ele, ignorando a dor, abraçando-o com desespero. Pensei que tivesse morrido. Eles disseram. Queriam que você pensasse isso. Me deixaram para morrer. Ele a afastou gentilmente, estudando seu rosto.

Mas você sobreviveu sozinha, sabendo? Matei um homem. Eu sei. Vi o corpo. Não havia julgamento em sua voz, apenas compreensão. Como se sente? Mas faria de novo mais para sobreviver, para voltar para você. Ela tocou seu rosto. Nunca mais me deixe. Nunca mais. Nunca mais. Ele prometeu. E ali, sob o céu clareando, dois sobreviventes se apoiaram um no outro.

A guerra com Pascoal Macedo estava longe de acabar, mas agora ele havia cometido erro fatal. Havia transformado a esposa de Tertuliano de refém potencial em guerreira. E guerreiras não perdoam. A fumaça queura vira vinha de uma pequena fazenda, mais casinha que casarão, mas limpa e bem cuidada. A família que os acolheu eram agregados de Tertuliano, trabalhadores livres que cultivavam uma porção de suas terras em troca de parte da colheita.

Coronel, o homem João Batista correu para ajudá-los. Meu Deus, o que aconteceu? Emboscada. Tertuliano disse simplesmente, quase desabando: “Precisamos de abrigo apenas por algumas horas. A esposa de João, Maria das Dores, uma mulher robusta, de rosto bondoso, os conduziu para dentro. Sebastiana, esquente água. José, vá buscar a benzedeira, rápido.

Isaura ajudou Tertuliano a se sentar numa cadeira de madeira. À luz do dia, podia ver a extensão dos ferimentos, três buracos de bala no colete que salvara sua vida, mas as costelas por baixo estavam quebradas. Sangue de um corte profundo no braço ensopava sua camisa. Hematomas já escureciam sua pele.

“Precisa de médico”, ela disse, tentando manter a voz firme, apesar do pânico. “Não. Médico faria perguntas, alertaria autoridades.” Ele tuciu, gemendo de dor. Macedo tem aliados em todo lugar. Precisa parecer que morremos naquele ataque. Mas seus homens, os capangas, dois mortos, os outros dois provavelmente conseguiram escapar. Voltarão para a fazenda, darão o alarme. Ele pegou a mão dela.

Você precisa ir até lá, avisar Jacira, Sebastião, preparar defesas. Macedo virá atrás de nossas terras agora. Não vou deixar você. Tem que ir. Sou fardo agora. Movimentaria lento demais. Ele apertou sua mão. Confio em você mais do que em qualquer outro. Pode fazer isso. Maria das Dores voltou com água quente e panos limpos. Deixe-me ver esses ferimentos, coronel.

Enquanto a mulher trabalhava limpando, enfaixando, fazendo Tertuliano beber chá forte de ervas para dor, Isaura processava o que ele pedira. Voltar sozinha. para a fazenda Pedra Grande. Organizar defesas, assumir comando, era aterrorizante, era impossível, era exatamente o que faria. “João, ela chamou o homem.

Pode me emprestar cavalo e roupas mais práticas?” “Claro, senhora. Tenho calças e camisa que devem servir. 20 minutos depois, Isaura estava vestida em roupas masculinas. Desconfortável e estranho, mas infinitamente mais prático que vestido de festa rasgado. Tinha o rifle que tomara do atacante, faca na bota e determinação de ferro.

Volte por mim esta noite”, Tertuliano disse quando ela se preparava para partir, “Com carroça fechada, discreta, até lá estarei forte o suficiente para viajar. E se não estiver, estarei.” Não havia dúvida em sua voz. “Porque você estará me esperando em casa?” Isaura se inclinou, beijando-o com ternura que contrastava com a urgência da situação. Te amo.

Não morra enquanto estou fora. Te amo e nunca quebraria promessa para você. De Kates a cavalgada até a fazenda Pedra Grande foi um borrão de paisagem e urgência. Isaura forçou o cavalo emprestado, uma égua velha, mas resistente, ao limite de sua velocidade, parando apenas brevemente para descansar o animal. Chegou à fazenda ao meio-dia e o que viu a alarmou.

Os portões estavam abertos, sem guardas. O pátio estava vazio demais, silencioso demais. Isaura desmontou rifle em mãos, aproximando-se cautelosamente. Jacira, Sebastião, alguém. A porta da casa se abriu bruscamente e Sebastião apareceu. Rifle apontado, rosto tenso. Quando viu Isaura, baixou a arma. Graças a Deus. Pensamos que tivesse morrido com o coronel.

Tertuliano vive ferido, mas vive. Ela entrou rapidamente. O que aconteceu aqui? Jacira apareceu, rosto pálido, mas controlado. Dois dos capangas voltaram esta manhã, sangrando, quase mortos. Contaram sobre a emboscada. Disseram que você e o coronel foram mortos. Sua voz tremeu levemente. Mandei todos os trabalhadores para suas casas. Trancamos a propriedade. Não sabíamos o que fazer. Fizeram certo.

Isaura colocou o rifle sobre a mesa. Mas agora precisamos nos preparar. Pascoal Macedo acha que estamos mortos. Isso nos dá vantagem, elemento surpresa. Mas quando descobrir que sobrevivemos, virá com força total. O que quer que façamos, senhora? Sebastião perguntou. Senhora, não menina ou moça, senhora.

O peso do título do respeito assentou sobre seus ombros. Primeiro, precisamos trazer Tertuliano de volta com segurança. Sebastião, prepare uma carroça fechada, discreta. Leve dois homens de confiança absoluta. Vão buscar o coronel ao anoitecer. Ela apontou no mapa que Sebastião desenrolou. Ele está aqui na propriedade de João Batista.

Sim, senhora. Jacira. Precisamos de suprimentos médicos, ataduras, álcool, qualquer remédio que temos e comida que dê energia, carnes, caldos fortes. Já providencio. E quanto aos outros trabalhadores, os que mandou embora, ofereci continuar pagando salários, mesmo sem trabalho. A maioria aceitou e prometeu voltar quando fosse seguro.

Bom, mas precisamos de alguns de volta agora, homens que saibam lutar, que sejam leais. Isaura começou a andar de um lado para outro, pensando: “Quantos temos que podem pegar em armas? Talvez oito, 10 homens. Não são soldados treinados, mas trabalham duro. Conhecem a Terra. Será suficiente?” Por enquanto ela parou, olhando para os dois servidores mais antigos.

Sei que não fui criada aqui, que sou estranha, que cheguei há apenas dois meses, mas preciso que confiem em mim. Tertuliano confia e eu não vou decepcionar nem ele nem vocês. Jacira se aproximou colocando mão no ombro de Isaura. Gesto materno inesperado. Menina, vi muita coisa nesta vida. Vi mulheres fortes e mulheres fracas. Você Ela sorriu levemente.

Você tem fogo que Mariana nunca teve. Tem ferro na espinha. Seguiremos suas ordens. Obrigada. Isaura sentiu lágrimas ameaçarem, mas as conteve. Não havia tempo para fraqueza. Então vamos trabalhar. As horas seguintes foram frenesi de preparação. Isaura descobriu que tinha talento para a organização que nunca soubera possuir.

Anos observando a mãe gerenciar família pobre, fazendo cada recurso durar, cada decisão contar. Tudo isso agora servia. mandou homens verificarem e reforçarem todos os pontos fracos das defesas. As muralhas foram inspecionadas, buracos reparados, torres de vigia receberam suprimentos, água, comida, munição, armas foram distribuídas e verificadas.

Na casa, Jacira supervisionou a transformação de um quarto térrio em enfermaria improvisada. Lençóis foram rasgados para ataduras. Água foi fervida e armazenada. Instrumentos cirúrgicos, tesouras, facas pequenas foram esterilizados em fogo. Isaura também mandou mensagem para São Sebastião das Pedras, para seus irmãos. Uma carta curta, mas clara. Queridos Manuel, Pedro e Carolina, aconteceu algo grave.

Não posso explicar tudo agora, mas saibam que estou bem e que Tertuliano também está bem. Mas precisamos de tempo para resolver certos problemas. Estarão seguros. O dinheiro continuará chegando. Mas não tentem vir até aqui e não falem com ninguém sobre onde estou. Especialmente não falem com um homem chamado Pascoal Macedo.

Se ele aparecer perguntando: “Amo vocês, tudo ficará bem”. Isaura. Quando o sol começou a descer, Sebastião partiu com a carroça e dois homens. Isaura ficou na varanda, observando-os desaparecerem na distância, rezando silenciosamente para que voltassem seguros. Vem, menina. Jacira a chamou. Precisa comer algo. Não comeu nada o dia todo. Não tenho fome. Não importa.

Guerreiros comem mesmo sem fome, porque sabem que precisarão das forças depois. Ela puxou Isaura gentilmente. Venha. Na cozinha, Sebastiana preparara caldo de galinha forte, pão fresco, queijo. Isaura forçou-se a comer e, para sua surpresa, o corpo agradeceu pela nutrição.

Jacira, ela perguntou enquanto comia. Você criou Tertuliano? Criei sim, desde que era menino de 8 anos. A governanta suspirou, olhos perdidos em memórias. Ele apareceu um dia sujo, esfomeado, coberto de hematomas, filho bastardo de senhor de engenho que o espancava quando bebia. Fugia de casa constantemente. Como veio parar aqui? Aqui ainda não existia.

Eu trabalhava noutra fazenda, era cozinheira. Senti pena do menino. Dei-lhe comida escondido. Eventualmente o pai descobriu onde ele se refugiava. Veio buscá-lo. Jacira apertou os lábios. O que vi aquele homem fazer com aquela criança? Nunca esquecerei. Espancou o Tertuliano diante de todos, chamou-o de bastardo inútil.

Disse que seria melhor se nunca tivesse nascido. Isaura sentiu raiva queimar em seu peito e ninguém fez nada. O que podíamos fazer? Ele era o Senhor. Tinha poder de vida e morte sobre todos nós. Jacira bebeu água como se tentasse lavar gosto ruim da boca. Tertuliano fugiu de novo naquela noite. Desta vez nunca mais voltou.

Tinha 8 anos. Como sobreviveu? Roubando, mendigando. Eventualmente juntou-se a grupo de cangaceiros. Tinha 14 quando isso aconteceu. Não o vi por muitos anos. E então ela sorriu levemente. Então ele apareceu de novo, homem feito, rico, e me ofereceu trabalho nesta fazenda que acabara de comprar. Ele te buscou especificamente.

Buscou? Disse que eu fora a única pessoa que demonstrara bondade quando era criança, que isso nunca esquecera. Lágrimas brilhavam nos olhos de Jacira. Ele tem coração bom, sabe? enterrado sob camadas de dureza e dor, mas está lá. Você o encontrou. Você o alcançou de forma que Mariana nunca conseguiu. Porque não tive escolha inicialmente. Fui forçada a olhar além da superfície.

Isaura terminou o caldo e descobri que homem assustador por fora pode ser surpreendentemente gentil por dentro. Ele mudou desde que você chegou. Sorri mais. Fala mais. Parece mais leve de alguma forma. Jacira limpou os olhos. Cuide dele, menina. Cuide de meu menino com minha vida. Isaura prometeu. Escuridão caira completamente quando ouviram o som de rodas no caminho.

Isaura correu para o portão, rifle em mãos, coração disparado. A carroça de Sebastião apareceu e ela quase desabou de alívio. “Conseguimos!”, Sebastião gritou. Trouxemos o coronel. Tertuliano estava deitado na parte de trás da carroça, consciente, mas claramente sofrendo. Quando viu Isaura, seus olhos se iluminaram. Disse que voltaria, ela disse, subindo na carroça para examiná-lo.

“Sempre volte”, ele murmurou. “Sempre levaram-no cuidadosamente para o quarto preparado.” Jacira assumiu, removendo as ataduras improvisadas, inspecionando os ferimentos à luz adequada. Três costelas quebradas, ela diagnosticou. Corte profundo no braço, mas limpo. Muitos hematomas, mas nada que tempo e descanso não curem. Quanto tempo? Tertuliano perguntou.

Duas semanas para estar funcional, um mês para estar curado completamente. Não tenho duas semanas, mas cedo pode atacar a qualquer momento. Então terá que confiar em sua esposa para liderar defesas até que possa andar. Jacira foi inflexível. Porque se tentar se levantar agora, só vai piorar os ferimentos e ficar inútil por ainda mais tempo.

Tertuliano olhou para Isaura. Você pode fazer isso? Posso? Vou. Ela pegou sua mão, ensinou-me a lutar, a atirar, a pensar estrategicamente. Agora confie que aprendi bem. Ele a puxou para um beijo, gentil por causa da dor, mas carregado de emoção. “Minha guerreira, seu general”, ela corrigiu com pequeno sorriso.

Os três dias seguintes foram período estranho, calma, aparente, mas com tensão constante de tempestade, prestes a estourar. Tertuliano se recuperava lentamente, frustrante intensamente. Homem acostumado à ação, forçado a ficar deitado, dependendo de outros. Mas Isaura mantinha-o atualizado sobretudo, tomando decisões, mas consultando-o quando apropriado.

Distribui os homens em turnos de vigia, ela relatava à noite, sentada ao lado de sua cama. 4 horas cada para que ninguém fique exausto demais. Verifiquei os suprimentos de munição. Temos suficiente para a batalha prolongada, se necessário. E comida? Água. Já estocou comida para um mês. O açud está cheio. Podemos aguentar cerco se for preciso.

Macedo não vai cercar. Vai atacar diretamente, tentando avaçalar com números. Tertuliano mudou de posição, gemendo. Ele é impaciente, quer vitória rápida, então usaremos isso contra ele. Tertuliano a estudou. Está ficando perigosamente boa em estratégia militar. Tive bom professor. Ela sorriu, mas então ficou séria. Tertuliano, preciso lhe contar algo.

Na noite da emboscada, eu eu matei um homem. Eu sei como vi o corpo. Depois reconheci a técnica exatamente como ensinei. Ele apertou sua mão. Como se sente sobre isso? Terrível. Ainda vejo seu rosto quando fecho os olhos. Ela pausou. Mas também sei que faria de novo. Ele ia me capturar, me machucar, talvez matar. Escolhi minha vida sobre a dele.

É assim que funciona no mundo real. Não é glorioso como nos livros, é sujo, assustador e deixa marcas na alma. Ele puxoua para mais perto, mas também é sobrevivência e não há vergonha em sobreviver. Mas cedo vai pagar por isso, por me forçar a fazer isso, por te ferir, por tudo. Vai, mas não hoje. Ainda não estou forte o suficiente. Não precisa estar.

Isaura se levantou, determinação em cada linha de seu corpo. Eu sou. No quarto dia, cavaleiro solitário apareceu nos portões. Carregava bandeira branca, pedido de trégua, conversa sob proteção. Isaura foi encontrá-lo pessoalmente, acompanhada por quatro homens armados. O cavaleiro era jovem, nervoso. Mensagem do coronel Pascoal Macedo ele disse, estendendo o envelope selado.

Isaura o pegou, abrindo ali mesmo. A carta era breve. Senhora Cabral, fiquei sabendo que você e seu marido sobreviveram ao infeliz incidente na estrada. Que alívio! Gostaria de propor encontro apenas nós dois para discutir términos de paz. Certamente podemos chegar a acordo civilizado que evite mais derramamento de sangue.

Aguardo sua resposta. Respeitosamente, Pascoal Macedo Isaura leu duas vezes, então rasgou a carta em pedaços. Diga a seu patrão! Ela falou ao mensageiro com voz gelada que não há termos de paz possíveis entre homem que ordena assassinato de casal desarmado. Diga que a próxima vez que ele quiser conversar conosco será diante de juiz ou de Deus. Escolha é dele. O mensageiro empalideceu.

Mas senhora, vá agora, antes que mudei sobre deixá-lo partir. O jovem não precisou de mais incentivo. Galopou de volta na direção de onde viera. Acha que foi sábio? Um dos homens perguntou. Provocar ele assim? Não provoquei. Apenas deixei claro onde estamos. Isaura virou-se para voltar à casa. A guerra já começou.

Só estamos escolhendo não fingir o contrário quando contou a Tertuliano. Ele ficou em silêncio por um longo momento. “Deveria ter consultado comigo primeiro”, ele disse. “Finalmente, deveria, mas você teria dito a mesma coisa.” “Teria.” Ele sorriu pequeno, mas orgulhoso. Você aprende rápido, esposa, porque tenho o melhor dos motivos para aprender, marido.

Ela se deitou ao lado dele, cuidadosa com seus ferimentos. Tenho você para proteger e esta vida que construímos. Não vou deixar que cobra, como Macedo, destrua isso. Tertuliano a abraçou com o braço bom, beijando seu topo de cabeça. Sabe o que mais amo em você? O quê? Sua ferocidade, seu fogo. Quando te conheci, vi mulher assustada, mas desafiadora.

Agora vejo guerreira, rainha, minha igual em todos os sentidos. Lágrimas queimaram nos olhos de Isaura. Você me fez assim. me ensinou que podia ser mais que vítima. Não, apenas revelei o que já estava lá. Ele a fez olhar para ele. Você sempre foi forte, Zaura. Sempre foi capaz.

apenas precisava de razão para acreditar nisso. Ficaram assim abraçados enquanto a noite caía lá fora. Não sabiam que muito longe Pascoal Macedo recebia a resposta de Isaura com raiva crescente. Essa usada, ele cuspiu amassando o papel. Acha que pode me desafiar, me humilhar? O que quer fazer, patrão? Seu capanga perguntou. Macedo sorriu. Sorriso frio, calculado, cruel.

Vamos ensinar-lhe lição. Vamos mostrar o que acontece quando mulher esquece seu lugar. Ele se virou para um mapa da região estendido sobre sua mesa. Aqui apontou para um vilarejo, São Sebastião das Pedras. É de lá que ela vem. É lá que sua família vive. Quer que ataquemos o vilarejo? Não, apenas uma casa.

a casa da família Andrade. Seus olhos brilhavam com malícia. Três crianças, se a informação está correta, vamos ver se a valente senhora Cabral ainda desafia quando souber que seus irmãozinhos estão em perigo. A notícia chegou dois dias depois, trazida por viajante aterrorizado que parara na fazenda pedindo água.

“São Sebastião das Pedras foi atacado”, ele gritou. Homens armados invadiram uma casa. Havia crianças. O coração de Isaura parou. Que casa? A dos Andrade, aquela família em decadência. Não, não, não, não, não, não. Ela correu para o quarto de Tertuliano, quase derrubando a porta. Meus irmãos. Macedo atacou meus irmãos. Tertuliano tentou se sentar gemendo de dor, mas forçando o movimento.

Jacira, Sebastião, aqui agora. Quando todos se reuniram, Isaura estava quase histérica. Preciso ir. Preciso salvá-los. Isaura. Espere. Tertuliano segurou seu braço com força surpreendente. Pense, é armadilha. Ele quer que você saia correndo, desesperada e desprotegida. Não me importa. são meus irmãos e é por isso que Macedo os escolheu.

Tertuliano forçou-se a ficar mais ereto, apesar da dor. Sebastião, quantos homens podemos mandar? Seis, no máximo. Precisamos manter defesas aqui. Então, mande seis, os melhores atiradores, eaura vai com eles. O quê? Não. Jacira protestou. É muito perigoso. Ela vai porque são irmãos dela, porque é direito dela lutar por eles.

Tertuliano olhou para Isaura, mas vai preparada, vai armada e vai sabendo que pode ser emboscada. Vou Não havia hesitação em sua voz agora, apenas determinação fria. E se Macedo estiver lá, vou matá-lo. Não sozinha. Prometa-me.” Tertuliano a puxou para um beijo desesperado. “Prometa que não vai se jogar em morte certa por vingança.

Prometo que farei o que for necessário para trazer meus irmãos de volta vivos!”. Ela se afastou, já se dirigindo à porta. “Sebastião, prepare os cavalos. Partimos em 10 minutos. A cavalgada até São Sebastião das Pedras foi a mais longa da vida de Isaura”. Cada minuto era tortura, imaginando o que poderia ter acontecido com Manuel, Pedro e Carolina.

Chegaram ao vilarejo ao entardecer. O lugar estava em alvoroço, pessoas nas ruas sussurrando, apontando para a casa do Zandrade. Isaura desmontou antes que o cavalo parasse completamente, correndo para a casa. A porta estava arrombada, móveis quebrados, sinais de luta. “Não!”, Ela gritou, vasculhando cada cômodo. Manuel, Pedro, Carolina, onde estão? Isaura.

A voz fraca veio de trás da casa. Ela correu para o quintal e encontrou seu pai, capitão Evaristo, ensanguentado, encostado no muro, segurando o ombro onde uma bala o acertara. Pai, o que aconteceu? Onde estão as crianças? Lhe levaram. Ele balbuciou, lágrimas escorrendo por seu rosto. Homens armados disseram que era mensagem para você, que se quer vê-los vivos novamente, tem que ir até a fazenda São Jerônimo, sozinha até amanhã ao meio-dia.

Isaura sentiu o mundo girar. Levaram as crianças. Sinto muito, tanto, tanto. Evaristo soluçava. Tentei impedir, levei um tiro tentando impedir, mas eram muitos. Um dos homens de Tertuliano verificou o ferimento. Bala passou direto. Ele vai sobreviver. Mas Isaura mal ouvia. Seus irmãos estavam nas mãos de Pascoal Macedo, crianças inocentes, 8, 6 e 4 anos. Senhora Sebastião tocou seu braço gentilmente. Precisamos pensar.

Não pode ir sozinha. É suicídio. Não vou. Isaura virou-se e havia algo novo em seus olhos agora. Algo frio, calculado, letal. Vamos todos com cada homem disponível, com cada arma que temos. Mas as defesas da fazenda? Macedo não vai atacar a fazenda. Não, agora ele me quer.

Pensa que estará seguro que tenho o controle da situação. Ela sorriu. Sorriso sem humor, apenas pura determinação predatória. “Vamos mostrar que está errado”, ela montou novamente. Voltamos para a pedra grande. Reunimos todos os homens e então ela olhou na direção onde ficava a fazenda São Jerônimo. Então vamos à guerra.

Quando chegaram de volta, Tertuliano estava de pé, pálido, suando de dor, mas de pé. Apoiava-se em bengala, costelas enfaixadas apertadamente, mas estava lá. “Ouvi”, ele disse quando ela entrou. Sebastião mandou o mensageiro à frente. Isaura foi direto para ele e ele a abraçou o melhor que podia com um braço. “Vamos pegá-los de volta”, ele prometeu. Todos. Então Macedo pagará por cada lágrima, cada momento de medo que causou.

Não está forte o suficiente para lutar. Não, mas posso cavalgar e posso atirar e posso estar lá quando finalizarmos isso. Ele a fez olhar para ele. Você não enfrenta isso sozinha, nunca. Somos parceiros para sempre. Para sempre. Ela ecoou. Tertuliano se virou para os homens reunidos. Oito ao todo, contando Sebastião.

Poucos, muito poucos para atacar fazenda fortificada, mas teriam que ser suficientes. Cavalheiros. Tertuliano disse com voz que ecoava a autoridade, apesar da fraqueza física. Vamos resgatar três crianças inocentes. Vamos punir homem que pensa que pode nos destruir através de covardia. E vamos provar que não se mexe com a família Cabral.

Os homens bateram rifles contra o chão em concordância unânime. Descansem esta noite. Comam bem, verifiquem suas armas. Tertuliano respirou fundo, cada palavra custando dor. Porque amanhã, ao amanhecer cavalgamos e antes que o sol se ponha, Pascoal Macedo estará morto, ou nós estaremos. Isaura pegou sua mão, entrelaçando seus dedos. Lado a lado, feridos, mas não quebrados, unidos pela adversidade e fortalecidos pelo amor, marido e esposa se preparavam para a batalha final e que os deuses tivessem piedade daqueles que ousaram ameaçar sua família, porque eles não

teriam. O amanhecer chegou pintado de vermelho, presságio ou promessa, não sabia dizer. Vestida em calças de montaria, camisa simples, cabelos trançados apertados, faca na bota e revólver na cintura, ela mal se reconhecia no espelho. Não era mais a moça assustada, vendida para pagar dívidas do pai.

Era guerreira, era a senhora Cabral e estava prestes a entrar em batalha. Tertuliano a encontrou nos estábulos, verificando a cela de seu cavalo. Ele estava pálido, movendo-se com cuidado, mas havia determinação férrea em cada linha de seu corpo. “Ainda dá tempo de mudar de ideia”, ela disse baixinho.

“Pode ficar aqui deixar que eu e os homens”. Não. Ele pegou seu rosto entre as mãos. Onde você vai, eu vou até o inferno, se necessário. Pode ser exatamente para lá que estamos indo. Então iremos juntos. Ele a beijou, longo, profundo, como se fosse a última vez. Quando se separaram, havia lágrimas nos olhos de ambos.

Se algo acontecer comigo, Isaura começou. Não escute, se algo acontecer comigo, você cuida dos meus irmãos, promete? Prometo. Mas você vai fazer essa promessa também. Se eu cair, você pega as crianças e corre. Não olha para trás. Recomeça a vida. Mentiroso. Sabe que não farei isso. Ela sorriu através das lágrimas. Mas prometo de qualquer forma para te dar paz.

Os oito homens já estavam montados, armados, prontos. Sebastião, o mais velho, acenou. Estamos prontos, coronel. Senhora Jacira apareceu trazendo pequena bolsa. Gorduras, munição extra. Sua voz tremeu. Voltem os dois. Voltem para mim. Isaura a abraçou forte. Voltaremos com as crianças. Eu prometo. Vão com Deus.

Jacira fez o sinal da cruz sobre eles e que ele tenha piedade de Pascoal Macedo, porque vocês não terão. A cavalgada até a fazenda São Jerônimo levou 3 horas. Pararam a 1 km de distância, escondidos em bosque denso para fazer reconhecimento. “Quantos homens Macedo tem?”, um dos capangas perguntou. No mínimo 20.

Talvez mais. Tertuliano estudava a propriedade através de binóculo que trouxera, mas ele está confiante, esperando apenas Isaura sozinha e submissa, não está preparado para ataque. Elemento surpresa é nosso. Sebastião concordou. Como procedemos? Isaura estudou a fazenda, memorizando cada detalhe da festa que participara semanas atrás.

A entrada dos fundos pela cozinha menos vigiada. Três homens podem entrar por ali, chegar a casa principal sem serem vistos. E as crianças, onde estariam? Provavelmente trancadas em algum cômodo, mas cedo não as marcharia ainda. Não. São sua barganha. Ela virou-se para Tertuliano. Eu entro com dois homens pela cozinha. Você cria distração na frente.

Quando a atenção estiver voltada para vocês, resgatamos as crianças e saímos. É arriscado. É tudo que temos. Ela verificou seu revólver. E se der errado, improvisamos. Tertuliano a puxou para beijo rápido. Improvise bem, então. Preciso de você inteira quando isso acabar. Preciso de você também. Tente não morrer. Tentarei.

O plano começou ao meio-dia em ponto. Horário que Macedo estabelecera para Isaura aparecer. Tertuliano e cinco homens cavalgaram direto para o portão frontal da fazenda São Jerônimo, descarados e barulhentos. Os guardas se alarmaram imediatamente. Alto. Quem vai? Tertuliano Cabral. Ele anunciou com voz que ecoou.

Vim ver Pascoal Macedo sobre assunto de crianças roubadas. Enquanto isso, nos fundos, Isaura e dois homens, José e Miguel, os mais silenciosos, escorregaram pela lateral da propriedade. A cozinha estava praticamente vazia. Todos os criados foram chamados para lidar com a comoção na frente.

Entraram rápido, armas em mãos. Uma cozinheira idosa os viu, olhos arregalados. Silêncio. Isaura sussurrou. Onde estão as crianças? Três pequenos. Um menino de 8 anos, outro de seis, uma menina de quatro. A mulher hesitou apenas um segundo, então apontou para cima. Segundo andar, quarto no final do corredor. Dois guardas na porta.

Obrigada. Isaura deslizou moeda de prata na mão da mulher. Não viu nada. Subiram as escadas laterais, as mesmas que Isaura usara durante a festa. Cada degrau parecia gritar sob seus pés. No segundo andar, ouviram vozes. Pascoal Macedo gritando ordens, criados correndo. O corredor estava vazio, exceto pelos dois guardas diante da última porta.

Homens grandes, bem armados. Isaura olhou para José e Miguel. Sem palavras, coordenaram ataque simultâneo. 3 2 1 Avançaram juntos. José derrubou um guarda com coronhada brutal. Miguel lutava com o segundo. Isaura passou direto, chutando a porta trancada. Manuel, Pedro, Carolina, sou eu, Isa. A voz abafada de Manuel. A porta está trancada.

Isaura atirou na fechadura. A madeira estilhaçou. Ela chutou novamente e a porta cedeu. Ali amontoados no canto, assustados, mas vivos, estavam seus três irmãos. Isa. Carolina correu para ela, seguida pelos meninos. Isaura os abraçou todos de uma vez, lágrimas escorrendo livremente. Estão bem? Machucaram vocês? Não. Manuel disse com voz trêmula, mas corajosa.

Nos trancaram aqui. Disseram que você viria, que tudo ficaria bem. E vai ficar. Ela limpou as lágrimas rapidamente. Mas precisamos sair agora. José apareceu na porta. Senhora, há movimento. Descobriram que estamos aqui. Rota de fuga. Escada lateral ainda está livre, mas não por muito tempo. Então vamos. Pegaram as crianças.

Carolina nos braços de Isaura, os meninos correndo ao lado de José e Miguel. Desceram as escadas correndo, entraram na cozinha e pararam abruptamente. Pascoal Macedo estava ali bloqueando a saída, revólver em mãos. Cinco homens armados atrás dele. Senhora Cabral. Ele sorriu aquele sorriso de cobra. Quão previsível. Pensei que viria pela frente suplicando, mas não é mais inteligente que isso.

Quase funcionou. Isaura colocou Carolina no chão, empurrando-a para trás dela. José e Miguel apontaram armas, mas estavam em desvantagem numérica. Deixe-nos passar, Macedo. Ou o que vai atirar em mim com crianças na linha de fogo? Ele deu um passo à frente. Não é tola o suficiente. Não, mas sou desesperada o suficiente.

Ela apontou o revólver diretamente para ele. E desesperados são imprevisíveis. Macedo hesitou. Naquele momento de indecisão, explosão ecoou da frente da casa. Gritos, tiros. Tertuliano Macedo rosnou. Aquele bastardo veio também. Viemos juntos, como sempre viremos. Isaura deu um passo à frente, colocando-se entre Macedo e as crianças.

Acabou. Você perdeu. Perdeu? Macedo riu. Som agudo, ligeiramente histérico. Eu perdi. Tenho você encurralada. Tenho as crianças. Como isso é perder? Porque mesmo que me mate, Tertuliano não vai parar nunca. Ele vai caçar você até os confins da terra e quando encontrar, ela sorriu friamente. Será criativo na vingança. A mão de Macedo tremeu ligeiramente.

Dúvida passou por seu rosto. E então Manuel, corajoso, imprudente Manuel de 8 anos, pegou uma panela pesada da mesa e a arremessou em Macedo. Acertou-o na lateral da cabeça. Momento de distração foi tudo que precisavam. José atirou, acertando um dos homens de Macedo. Miguel derrubou o outro. Izaura disparou, mas Macedo se abaixou, a bala apenas roçando seu ombro.

Causa explodiu. As crianças gritavam, homens lutavam, tiros ecoavam no espaço fechado. Isaura agarrou Carolina e Pedro, empurrando-os sob uma mesa pesada. Fiquem aqui, não saiam. Manuel tentou seguir, mas um dos homens de Macedo o agarrou. O menino lutou, chutando, mordendo. Solte, meu irmão! Isaura! Gritou, atirando. Errou! Sua mão tremeu.

Não podia arriscar acertar Manuel. Então alguém entrou pela porta da frente. Grande, furioso, ensanguentado, mas vivo, tertuliano. Ele viu Manuel em perigo, viu Isaura cercada e algo primitivo tomou conta. Rugiu, som animal puro e atacou. Derrubou o homem que segurava Manuel com tanta força que o sujeito voou batendo na parede.

Girou, atirou, acertou o outro no peito, virou-se para Macedo. E Pascoal Macedo, finalmente percebendo que perdera, correu. Fugiu pela porta dos fundos, para o quintal, para os campos além. Fique com as crianças. Tertuliano gritou para Isaura correndo atrás de Macedo. Não, você está ferido. Mas ele já partira. Isaura olhou para José. Proteja-os com sua vida. Sim, senhora.

E então ela correu atrás dos dois homens, sabendo que precisava estar lá quando o confronto final acontecesse. Encontrou-os no campo de algodão entre as plantas que chegavam à cintura. Tertuliano perseguia Macedo, ambos tropeçando, exaustos, feridos, mas impulsionados por ódio puro. Macedo se virou, atirou, errou, atirou novamente.

Clique vazio. Tertuliano também estava sem munição, jogou a arma de lado. Então é assim que termina. Macedo riu sem humor, mano a mano. Como nos velhos tempos. Como nos velhos tempos. Tertuliano concordou avançando. Eles colidiram como touros rolando no chão, socos violentos. Macedo era mais rápido, mas Tertuliano era mais forte. Golpe após golpe, sangue manchando a terra.

Isaura chegou arma em mãos, mas não conseguia atirar. Eles se moviam rápido demais, muito entrelaçados. Macedo conseguiu puxar faca escondida, cortando o braço de Tertuliano. Ele rugiu de dor, mas não soltou, agarrando o pulso de Macedo, torcendo até o osso quebrar com estalido horrível. Macedo gritou, soltando a faca.

Tertuliano a pegou. Por um momento, ficou sobre Macedo. Faca erguida, morte certa, a apenas um movimento de distância. Faça! Macedo! Cuspiu sangue. Termine. Seja o assassino que sempre foi.” Não. A voz de Zaura cortou a tensão. Não assim. Tertuliano olhou para ela conflito em seus olhos. Ele merece morrer. Merece. Mas não por suas mãos. Não mais. Ela se aproximou, colocando a mão sobre a dele.

Você mudou, cresceu, tornou-se mais que seu passado. Não deixe que ele arraste você de volta. Ele sequestrou crianças, tentou nos matar, matou meus homens e pagará diante da lei, diante de juiz e juri. Isaura apertou sua mão. Mas se você o matar agora em sangue frio, será assassinato e eles usarão isso contra você. contra nós.

Tertuliano respirava pesadamente cada fibra de seu ser, querendo atravessar a faca no coração de Macedo. Mas lentamente, muito lentamente, abaixou a arma. “Você vive”, ele disse para Macedo, “mas em prisão será julgado por seus crimes e passará o resto de sua vida miserável, sabendo que foi derrotado por homem melhor que você.” Ele se levantou cambaleando. Isaura o apoiou.

E juntos deixaram Pascoal Macedo sangrando no campo de algodão. Sebastião e os outros homens chegaram correndo. Prendê-lo, Tertuliano ordenou: “E chamem as autoridades. Temos testemunhas, temos evidências. Vamos fazer isso do jeito certo. 5 anos depois, o sol da manhã banhava a fazenda Pedra Grande em Luz dourada, iluminando mudanças que transformaram completamente a propriedade.

Onde antes havia apenas campos de algodão, agora havia escola, prédio pequeno, mais sólido, onde 20 crianças da região aprendiam a ler, escrever e contar. Isaura estava na porta, observando sua turma com orgulho. Muito bem, Antônia. Agora você, José, leia o próximo parágrafo.

Aos 24 anos, Isaura Cabral mal se reconhecia na jovem assustada que chegara ali 5 anos antes. Usava vestidos simples, mas de boa qualidade, cabelos presos em coque prático e tinha ar de professora respeitada que era. Mas eram os olhos que mostravam a maior mudança. Não havia mais medo neles. havia confiança, força, felicidade genuína. “Mamãe!”, a voz aguda chamou.

Menina de 3 anos correu pelo caminho, tranças escuras balançando, seguida por menino de um ano, que cambaleava em passos incertos. Beatriz e Gabriel, seus filhos com Tertuliano. “Minha pequena”, Isaura pegou Beatriz, beijando sua bochecha. “O que estão fazendo aqui? Deviam estar com vovó Jacira. Papai disse para vir buscar você. Tem surpresa.

Gabriel chegou agarrando a saia de Zaura, levantando os bracinhos. Mamá. Ela o pegou também, equilibrando ambas as crianças com prática de mãe experiente. Muito bem, turma, pratiquem a leitura. Volto logo. Caminhou de volta para a casa principal, as crianças tagarelando. A propriedade prosperara nos últimos anos.

A produção de algodão triplicara, o gado se multiplicara, mas mais importante, a fazenda se tornara centro comunitário, lugar onde trabalhadores livres eram pagos justamente, onde havia clínica para doentes, onde todos eram tratados com dignidade. Tertuliano esperava no alpendre e Isaura sentiu o coração acelerar, como sempre acontecia ao vê-lo.

Aos 43 anos, ele tinha mais fios grisalhos nas têmporas, mais linhas ao redor dos olhos, mas o sorriso era mais fácil agora, o peso menor. Escutou-as? Ela acusou com falso aborrecimento. Não deviam interromper minhas aulas. Não pude resistir. Você fica linda quando está ensinando. Ele desceu os degraus, pegando o Gabriel de seus braços. E além disso, há visitas.

Visitas da casa saíram três figuras. Manuel, agora com 13 anos, alto e sério, estudando para ser advogado. Pedro, de 11, ainda quieto, mas com sorriso fácil. E Carolina, de nove, linda, como a mãe deles fora. Surpresa! Carolina! Gritou correndo para abraçar Isaura. Papai disse que podíamos vir passar o fim de semana.

Papai era Evaristo, que depois de perder as terras completamente fora acolhido por Tertuliano e Isaura. Vivia agora numa casa pequena na propriedade, cuidando dos filhos mais novos, sóbrio a 4 anos. “Onde está ele?”, Isaura perguntou, “Conversando com os trabalhadores,” Manuel disse, ofereceu-se para ajudar na colheita amanhã. Tertuliano a sentiu aprovador.

Tornou-se bom trabalhador, confiável, tem orgulho dele. Era verdade. Evaristo passar os últimos 5 anos se redimindo, lenta, dolorosamente, mas genuinamente. Nunca seria perfeito, mas tentava. E isso era suficiente. E quanto a Macedo? Isaura perguntou, embora já soubesse a resposta. Ainda em prisão, julgado condenado a 20 anos, Tertuliano mudou Gabriel de braço. Algumas de suas propriedades foram leiloadas.

Compramos parte delas, redistribuímos para os trabalhadores. A vitória sobre Pascoal Macedo fora completa, não apenas prisão, mas desmantelamento de seu império. Guilherme Sá testemunha contra ele, revelando anos de manipulação e crime. Outros também vieram à frente. No final, Macedo foi esmagado pelo peso de suas próprias maldades.

E a carta? Isaura perguntou. Você disse que havia surpresa. Ah, sim. Tertuliano puxou o envelope do bolso do governador. Parece que nossas iniciativas de educação e trabalho livre chamaram atenção. Querem usar a fazenda Pedra Grande como modelo para outras propriedades. Isaura leu a carta, ó se arregalando. estão oferecendo financiamento para construir mais escolas, expandir a clínica e nomeando você como consultora educacional para toda a região, Tertuliano sorriu largamente.

“Minha esposa, a reformadora social.” “Nossa esposa”, ela corrigiu, beijando-o. “Fizemos isso juntos”. À noite, depois que as crianças foram colocadas na cama, Tertuliano e Isaura caminharam até o pequeno cemitério na colina. A lua cheia iluminava as lápides brancas. Pararam diante da de Mariana. Sabe, Tertuliano disse baixo.

Ainda penso nela, na tragédia que foi, no desperdício. Eu também. Isaura pegou sua mão, mas também penso que talvez foi necessário para você aprender, para eu chegar aqui. Não desejo que tenha acontecido, mas entendo que fez de nós quem somos. Eles ficaram em silêncio por um momento.

Então Tertuliano se virou para Isaura. Lembra quando disse que eu teria que conquistar seu coração, que não podia ser dado sob coação? Lembro. Conquistei. Isaura sorriu tocando seu rosto. Conquistou completamente, irrevogavelmente para sempre. Bom, ele a puxou para seus braços porque planejava continuar tentando de qualquer forma, pelos próximos 50 anos, no mínimo.

Apenas 50? Tão pouco tempo. Você tem razão. 100 anos. 200. A eternidade toda riram. E o som ecoou pela noite tranquila. Caminharam de volta para a casa, onde Jacira os esperava com chá quente, onde seus filhos dormiam seguros, onde a vida que construíram, pedra por pedra, escolha por escolha, florescia. “Foste vendida para mim”.

Tertuliano disse enquanto se preparavam para dormir, ecoando as palavras que dissera na primeira noite. Iaura se virou, envolvendo-o em abraço, e tu me compraste. Mas em algum lugar no caminho escolhemos ficar, escolhemos amar. Escolhemos construir algo real e belo e nosso. “Melhor negócio que já fiz”, ele murmurou contra seus cabelos. “Melhor destino que poderia ter tido”, ela concordou.

Do lado de fora, a noite do sertão cantava suas canções antigas. As estrelas brilhavam em céu sem nuvens, e na fazenda Pedra Grande, onde certa vez morara apenas dor e solidão, agora vivia amor. Amor conquistado, amor escolhido. Amor que transformara dois estranhos forçados juntos por circunstâncias terríveis em algo muito mais poderoso.

uma família, um legado, uma história de amor que seria contada por gerações, não como conto de fadas onde tudo foi fácil, mas como testemunho de que até dos começos mais sombrios podem brotar os finais mais luminosos, se duas pessoas estiverem dispostas a lutar, a crescer, a amar. Isaura, agora com 44 anos, sentou-se na varanda da fazenda, observando o pôr do sol pintar a serra de cores impossíveis.

Ao seu lado, Beatriz, agora jovem mulher de 23 anos, professora na escola que a mãe fundara, lia a carta em voz alta: “Querida mamãe, os estudos em São Paulo vão bem. A universidade é tudo que sonhei, mas sinto falta de casa, falta da fazenda, do cheiro do algodão florescendo, do gosto da rapadura de Sebastiana, do jeito que papai sempre sabe quando estou preocupada, mesmo antes de falar.

É de Gabriel, Beatriz explicou. Nosso menino Isaura sorriu com orgulho. O filho que certa vez cambaleava em passos incertos, agora estudava direito na capital. sonhando em lutar por justiça social. Escreva para ele, diga que estaremos aqui quando voltar. Sempre. Tertuliano apareceu caminhando mais devagar agora, os anos e os ferimentos antigos cobrando preço, mas ainda imponente, ainda forte onde importava.

“Cartas de Gabriel?”, ele perguntou, sentando-se ao lado de Isaura com pequeno gemido. “Sente falta de casa? Como todo jovem quando vai para o mundo. Tertuliano pegou a mão de Isaura, entrelaçando seus dedos. Gesto tão habitual quanto respirar. Mas voltará, porque construímos algo que vale a pena voltar. Beatriz olhou para os pais, estudando-os com carinho.

Posso perguntar algo? Algo que sempre quis saber, mas nunca tive coragem? Claro, Isaura disse, vocês são felizes, realmente felizes depois de tudo. Como começaram, o que enfrentaram, as cicatrizes que carregam? Tertuliano e Isaura se olharam, não precisaram falar. Em seus olhos, 25 anos de história compartilhada. Dor e alegria, guerra e paz, morte e vida.

Sim, Isaura disse finalmente, mais felizes do que jamais imaginei ser possível. A felicidade não é ausência de luta, Tertuliano acrescentou, é ter alguém ao seu lado para lutar junto. É construir algo maior que suas feridas. É transformar o que foi comprado em algo escolhido. Beatriz sorriu. Vou contar isso aos meus filhos um dia. A história de como os avós se conheceram.

Conte a verdade, Isaura disse, toda ela, não apenas as partes bonitas, porque é nas partes difíceis que o amor real se prova. A noite caiu completamente. Na fazenda Pedra Grande, luzes se acenderam. Na casa principal, nas casas dos trabalhadores, na escola, na clínica, pequenos pontos de luz contra a escuridão do sertão.

E no alpendre, um homem que fora cangaceiro e uma mulher que fora vendida, sentaram-se juntos, mãos entrelaçadas, observando o império de amor que construíram. Não foi fácil, não foi rápido, mas foi real e no final foi perfeito. O amor verdadeiro não é o que começa nos contos de fadas, é o que sobrevive às batalhas reais, é o que cresce nas cinzas, é o que escolhe ficar dia após dia, até que comprado se torne conquistado e conquistado se torne eterno.

Memórias de Isaura Andrade Cabral, fundadora da Escola Livre da Serra do Araripe. 1895.

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