O Xeque-Mate no Argumento Político: A Desmontagem da Mentira do “Monocrático” e do “Ativista”

A arena política brasileira, intrinsecamente complexa e frequentemente polarizada, é palco de um debate constante sobre os limites e a atuação do Poder Judiciário. Em meio a narrativas construídas com o propósito de deslegitimar decisões incômodas, poucas figuras públicas conseguem oferecer uma resposta tão didática e fundamentada quanto a que foi recentemente proferida pelo Ministro Flávio Dino. O que se desenrolou foi uma verdadeira aula de Direito Constitucional e política institucional, desarmando em poucos minutos algumas das mais persistentes falácias propagadas por grupos de oposição, notadamente a esfera rotulada como “bolsonarista/centrão”.

O cerne do discurso de Dino reside no desmonte de dois “xingamentos” que, segundo ele, são destituídos de conteúdo substantivo e lançados ao debate público como meros instrumentos de guerra política: “monocrático” e “ativista”. Este texto se propõe a aprofundar a análise dessa “aula”, explorando a profundidade das suas colocações e o impacto que elas têm sobre a compreensão da República e da própria Democracia no Brasil.

A Farsa do ‘Monocrático’: Um Rótulo Conveniente

A primeira e mais frequente crítica dirigida a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que tomam decisões de alto impacto é o de atuarem de forma “monocrática”, ou seja, de decidirem sozinhos, sem o aval do plenário ou da turma. Esta é uma arma retórica poderosa, pois sugere arbitrariedade e desrespeito à colegialidade, um pilar fundamental de qualquer tribunal.

Dino, contudo, inverte a perspectiva ao apontar que este rótulo é, na maioria das vezes, falso e seletivo. Ele evoca o exemplo das decisões mais polêmicas, como o inquérito que se estende sob a relatoria de um de seus pares. O inquérito que “nunca acaba”, embora associado ao relator em questão, foi aberto por outro ministro e teve sua confirmação pelo Plenário do Supremo. A decisão, portanto, não foi monocrática, mas sim colegiada.

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O Ministro vai além ao se colocar como o principal alvo das críticas relacionadas às emendas parlamentares. Ele revela que herdou a relatoria do tema e, crucialmente, que todas as decisões tomadas sobre o assunto são colegiadas. O placar, em um dos julgamentos mais sensíveis, foi de 11 a 0. Um resultado unânime. “E a culpa é do Dino”, ironiza ele, expondo a distorção do debate. A acusação de monocracia, nesse contexto, revela-se menos uma crítica jurídica e mais uma tática de desfoque, visando personalizar uma decisão institucional e colegiada para minar a sua legitimidade.

A seletividade da crítica fica ainda mais evidente quando Dino a transporta para outros Poderes. Presidentes de conselho de órgãos, presidentes da Câmara, do Senado e até o Presidente da República tomam decisões monocráticas no seu dia a dia. A definição da pauta do plenário da Câmara, por exemplo, é uma atribuição do presidente, que decide sobre questões de ordem, e ninguém o rotula pejorativamente como “monocrático”. A diferença reside na temperatura política do tema e no interesse de desgastar um adversário. O debate, forjado para ser jurídico, é, na realidade, puramente político e superficial.

A Função Contramajoritária e a Banalização do ‘Ativismo’

O segundo grande rótulo que Dino se propõe a despir de seu conteúdo é o de “ativismo judicial”. Na prática, este termo é frequentemente usado para censurar o Judiciário sempre que ele avança sobre um tema que o Executivo ou o Legislativo gostariam de manter sob sua esfera de controle, ou quando uma decisão contraria uma maioria política momentânea.

O Ministro evoca a essência da atuação judicial: a função contramajoritária. “Meu ofício atual exige que eu tome decisões a despeito da temperatura política”, afirma ele. O Poder Judiciário existe, em grande medida, para proteger minorias e garantir o cumprimento da Constituição, mesmo quando isso desagrada à maioria ou aos detentores do poder de turno. Se o Judiciário se dobrasse sempre à “temperatura política”, ele não seria um Poder independente. Seria, nas palavras de Dino, um redesenho da tripartição de Poderes, que nos levaria à concentração de força e, em última instância, à “ditadura”.

A crítica ao ativismo é, ironicamente, absolutizada. Não existe um tribunal 100% ativista ou 100% auto-contido. A autocontenção é praticada todos os dias, mas não pode ser uma premissa absoluta. Para exemplificar a relatividade do termo, Dino aponta para o que é, no consenso global, o tribunal mais ativista da humanidade: a Suprema Corte dos Estados Unidos, berço de inúmeras decisões que moldaram a sociedade americana. Em democracias saudáveis, o tribunal constitucional funciona; em ditaduras, ele se cala.

A linha entre o ativismo e o cumprimento do dever é tênue, mas a premissa é clara: prevaricar é crime. O que fazer quando um governador de estado, representando um fórum nacional, alerta publicamente para um “cenário de horrores” e uma situação gravíssima das emendas nos estados e municípios? O Judiciário deve fingir que não ouviu por conta da “temperatura política”? A resposta de Dino é enfática: não. A conduta correta é processualizar, ouvir as partes, e tomar uma decisão ponderada, meses depois, com a calma exigida, sem bloquear verbas de imediato, mas garantindo a investigação.

Emendas Parlamentares: Cuidando do Trilho, Não da Carga

O tema das emendas parlamentares é o ponto de maior fricção, pois toca diretamente na distribuição de recursos e no poder político dos parlamentares. Dino faz questão de esclarecer sua posição: ele é a favor das emendas, um instrumento legítimo de descentralização e garantia de que o dinheiro chegue à ponta. “Eu só quero que a obra exista”, resume. Não se pode colocar uma emenda para construir uma quadra e, no final, a quadra não ser construída. A crítica não é ao mecanismo, mas à corrupção: “Não pode roubar o prato, o copo, a xícara, a colher”.

As acusações de que o Judiciário estaria invadindo a esfera parlamentar, definindo para onde o dinheiro deve ir, são categoricamente refutadas. O Ministro emprega uma metáfora poderosa e pedagógica para definir o papel da Justiça nesse tema:

“Nós não cuidamos do trem, nós não cuidamos dos vagões do trem, nós não cuidamos da locomotiva, nós não cuidamos da carga do trem, nós não cuidamos para onde o trem vai. Nós cuidamos do trilho, para que o trem efetivamente chegue e não suma no meio do caminho.

Cuidar do trilho é garantir a legalidade, a probidade e a autoridade da lei. Essa é uma função tipicamente jurisdicional, que não pode ser terceirizada para uma espécie de “Big Brother, tribunal do Facebook”.

Para desmistificar a narrativa de perseguição política, o Ministro apresenta os fatos:

Quantos parlamentares respondem a ação penal hoje por conta de emenda? Duas ações penais.

Quantos estão presos? Zero.

Quantas buscas e apreensões foram deferidas na Câmara e no Senado por ele? Zero.

O que existe são investigações, porque há indícios. E quem fornece esses indícios? A imprensa livre, prefeitos, governadores e os próprios parlamentares. A judicialização, nesse caso, é uma consequência da inação política ou da gravidade dos fatos narrados por aqueles que estão dentro do sistema.

A Anomalia Institucional e o Futuro da República

O Ministro Flávio Dino não se limita a defender suas decisões; ele as enquadra em um contexto institucional mais amplo e preocupante. Ele diagnostica que o Brasil possui um sistema político atípico no consenso das nações: um presidencialismo com presidente fraco. Essa fraqueza não se refere a este ou àquele presidente, mas a uma anomalia institucional estrutural que atinge a todos os que ocupam o cargo.

A defesa das decisões tomadas pelo Judiciário em temas sensíveis não é, portanto, uma questão partidária ou ideológica. O placar de 11 a 0 nas emendas inclui votos de ministros indicados por Fernando Henrique, Temer, Bolsonaro, Lula e Dilma. A questão é institucional, de Estado, não de governo. Se fosse ideológica, haveria diariamente parlamentares defendendo a decisão; o que se vê, contudo, é um silêncio eloquente.

A verdadeira relevância do debate, conclui o Ministro, transcende a probidade — que, por si só, já seria um bem inestimável — e atinge a própria República. O que está em jogo é o pluralismo político, a cláusula constitucional que garante a alternância do poder. Ele alerta para o risco do abuso do poder econômico institucionalizado, um engenho que se aprimorou nos últimos dez anos e que representa uma ameaça direta à democracia.

Ao prever que a próxima eleição será a mais difícil, a mais conflituosa e a mais violenta da história do Brasil, Dino sublinha a urgência de fortalecer o “trilho” legal. A “aula” do Ministro é, em última análise, um chamado à seriedade e à leitura atenta dos fatos. Ela desafia os leitores a abandonarem os rótulos fáceis e a mergulharem na complexidade institucional, para que a defesa da democracia não seja feita apenas na retórica, mas na exigência de que a probidade e a autoridade da lei prevaleçam sobre o interesse político passageiro. O Brasil precisa compreender que a independência do Judiciário é a última barreira contra o autoritarismo e a garantia de que, no meio do caminho, o trem da República não desapareça.

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