A política brasileira, notória por suas reviravoltas e manobras de bastidores, vive mais um de seus momentos de alta tensão e incerteza. O que parecia ser apenas o lançamento de mais uma candidatura para a presidência da Câmara dos Deputados – a de Flávio Bolsonaro – foi rapidamente desmascarado como uma tática política muito mais antiga e complexa: um sequestro orquestrado da agenda legislativa. O presidente da Casa, Hugo Motta, cuja liderança é descrita por analistas como fraca, teria cedido a esta manobra, colocando em votação, em regime de urgência, o polêmico Projeto de Lei da Dosimetria.
A notícia, que ecoou nos corredores da Câmara e nas mesas de análise política, foi destrinchada com clareza pela jornalista Andreia Sadi, em parceria com Otávio Guedes. A essência do debate não reside na capacidade eleitoral de Flávio Bolsonaro, mas sim no preço que o sistema está disposto a pagar para desmobilizar uma ameaça. A pauta em questão, o chamado PL da Dosimetria, tem o efeito prático de reduzir as penas para aqueles condenados em razão da tentativa de golpe de estado ocorrida em 8 de janeiro.
O Sequestro da Pauta e a Troca de Peças
A revelação central desta dinâmica é a de que a candidatura de Flávio, na visão de líderes do Centrão e da própria apuração jornalística, não passava de um artifício. A família Bolsonaro, historicamente, demonstra uma capacidade de trocar as peças em um tabuleiro de negociação para sequestrar o debate político e forçar o resgate de pautas de interesse.

O episódio atual remonta a táticas anteriores. Há alguns meses, por exemplo, o nome de Eduardo Bolsonaro foi usado em uma pressão similar, condicionando o trabalho pela reversão de certas tarifas à concessão de anistia para os envolvidos. Naquele momento, o Centrão, pragmático, rejeitou a anistia como inviável e direcionou a negociação para o tema da dosimetria.
A dosimetria, neste contexto, surge como o “primeiro pagamento” deste resgate político. Não é a anistia total e irrestrita desejada por alguns, mas é uma medida concreta que oferece uma redução de pena aos condenados. A lógica de negociação, vista pelos partidos de centro e direita, foi clara: se a anistia é inatingível, foca-se na dosimetria, que é mais palatável politicamente e, portanto, possui maior chance de aprovação.
Essa decisão, conforme apurado por Sadi, foi construída nos bastidores com líderes do Centrão e de partidos de direita como um “aceno” direto no contexto da ameaça da candidatura de Flávio Bolsonaro à presidência da República. O movimento demonstra uma engenharia política onde a ameaça de um nome impopular ou divisivo é usada como alavanca para aprovar uma legislação de interesse.
O Custo Político do Sobrenome
O drama se aprofunda na conversas de Flávio Bolsonaro com os partidos do Centrão. Ali, ele foi confrontado com uma realidade dura e direta: sua candidatura é percebida como uma medida egoísta. Os líderes expressaram que o campo da direita necessita construir uma candidatura com chances reais de disputar o poder contra o campo da esquerda, e Flávio, neste cenário, não é visto como o nome ideal.
A crítica mais incisiva recai sobre o capital político da família: o sobrenome Bolsonaro, no olhar frio dos negociadores do Centrão, é hoje um passivo, e não um ativo. Essa percepção desmantela a tentativa de Flávio de se posicionar como o “Bolsonaro moderado”, uma narrativa que não encontrou eco na bancada. O recado foi inequívoco: se ele insistir na candidatura, caminhará sozinho, contando apenas com o apoio de seu partido, o PL, e sem o suporte da ampla frente do Centrão.
Além da questão eleitoral, os líderes alertaram Flávio sobre o risco de ficar sem mandato caso persista nesse caminho, uma avaliação fundamentada na análise das pesquisas de opinião. A conversa, travada em tom de advertência amigável, buscou fazê-lo refletir sobre a estratégia arriscada que estava adotando.
A Dosimetria como Prioridade do Centrão
O ponto crucial da negociação não era a anistia – que Flávio tentou defender em conversas privadas – mas sim a dosimetria. O Centrão questionou a lógica do Senador: por que defender uma anistia que é politicamente impossível de ser aprovada, quando é possível aprovar uma dosimetria que pode, concretamente, reduzir a pena de aliados que estão na cadeia, como o ex-ministro Anderson Torres?
A defesa do PL da dosimetria por parte do Centrão não é apenas um favor ao clã Bolsonaro; é uma estratégia de sobrevivência e proteção de seus próprios quadros. A medida beneficia diretamente aliados que foram condenados pelos atos de 8 de janeiro.
Adicionalmente, o cálculo político-penal que permeou as conversas confirmou o que já era de conhecimento: a dosimetria, se aprovada, traz benefícios diretos ao ex-Presidente Jair Bolsonaro. Os cálculos feitos por advogados indicam que a pena de Bolsonaro poderia ser reduzida em aproximadamente dois anos e meio, passando de 27 anos e 3 meses para 24 anos e 10 meses.
Essa redução, embora não seja a libertação esperada pelos seus apoiadores mais fervorosos, representa uma vitória tática no âmbito judicial. O fato de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) terem recebido a notícia dessa possível redução sem grande perplexidade, definindo-a como “não o pior dos mundos”, apenas sublinha a complexidade da legislação penal em jogo.
A discussão sobre o escalonamento da redução de pena – que varia de 25% para réus primários até 50% ou 60% em casos mais graves, como crime hediondo ou comando de milícia – levantou um ponto de ironia amarga: a lei estaria categorizando o crime de 8 de janeiro em um patamar de gravidade semelhante ao de milícias, um contraste chocante com a narrativa de que os envolvidos eram apenas “senhorinhas pacíficas com a Bíblia na mão”.
A Perspectiva de Poder e o Passivo Eleitoral
A aliança do Centrão com o clã Bolsonaro é puramente transacional. Os líderes partidários, embora muitos sejam amigos pessoais de Flávio, são movidos por cálculos frios de probabilidade. Eles buscam quem tem mais chance de angariar votos, fundo partidário, perspectiva de poder e, acima de tudo, capacidade de liderar uma frente vitoriosa.
O consenso entre este grupo é que Flávio Bolsonaro não é esse candidato. Em um cenário onde se buscam nomes como Tarcísio de Freitas ou Ratinho Junior, Flávio se torna um elemento de divisão. A leitura deles é que, mesmo que Flávio insista, eles não o acompanharão, pois o custo de tê-lo como líder é maior do que o benefício.
Internamente, há ainda a preocupação de que Jair Bolsonaro repita o movimento feito por Luiz Inácio Lula da Silva em 2018, ao tentar constranger os demais candidatos de direita, nomeando um sucessor de forma unilateral. O receio é que, se Flávio levar a candidatura até o fim, os demais partidos simplesmente se retirem, deixando-o isolado.
O reflexo dessa insatisfação não se restringe aos líderes políticos. A análise da repercussão nas redes sociais, mesmo entre os seguidores mais leais, revelou uma frustração crescente. Comentários direcionavam-se a um apelo: “Vocês só pensam em vocês. Lancem o Tarcísio ou a Michelle, mas Flávio Bolsonaro não dá.” A bandeira da moral e da ética, historicamente hasteada por este campo político, é vista como comprometida por uma candidatura percebida como puramente egoísta.
O turbilhão na Câmara, portanto, não é apenas sobre a presidência da Casa. É sobre a reconfiguração da direita brasileira, a negociação de penas de alto perfil e a fragilidade de um clã político que tenta usar táticas de pressão que, no jogo frio do Centrão, estão se tornando cada vez mais caras e menos eficazes. A urgência na votação da dosimetria é o preço da chantagem, mas também a prova da vulnerabilidade no coração do poder legislativo.