O paradoxo legislativo que visa um único condenado e abre as portas de presídios para estupradores, corruptos e criminosos graves. A lei da dosimetria e seus efeitos colaterais chocantes exigem escrutínio imediato.
O que era para ser um ajuste técnico na dosimetria das penas no Brasil transformou-se em um dos debates mais polarizadores e, sobretudo, mais perigosos para a segurança pública da história recente do Congresso Nacional. Um projeto de lei, aprovado na Câmara dos Deputados e agora em tramitação, carrega em sua essência um paradoxo estarrecedor que, segundo especialistas, revela uma profunda hipocrisia legislativa: a tentativa de beneficiar um único condenado de alto perfil político, o ex-presidente Jair Bolsonaro, pode resultar na libertação antecipada de milhares de criminosos graves, incluindo estupradores, corruptos e condenados por lavagem de dinheiro.
Para desvendar a gravidade e a complexidade desta proposta, buscamos a análise detalhada do professor de Direito Penal da PUC-Rio, André Pere Manes, que lançou luz sobre os aspectos da lei que estão sendo negligenciados na discussão pública. O cerne da questão é que esta não é uma “lei de uso único” ou um simples decreto; trata-se de uma legislação de repercussão geral que altera o Código Penal e, mais criticamente, a Lei de Execução Penal (LEP). Como ressalta o professor, “não existe lei encomendada como se fosse um terno ou um vestido para um grupo de pessoas.” E é justamente a repercussão geral que acende o alerta máximo.
A “Ficção Jurídica” e a Pena Reduzida para Tentativa de Golpe
O projeto de lei em questão ataca duas frentes distintas, ambas cruciais. O primeiro aspecto, e o mais comentado politicamente, refere-se aos crimes de abolição ou tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Este ponto é inegavelmente “encomendado” para o ex-presidente. A manobra jurídica inserida no texto proíbe a soma das penas de crimes cometidos no mesmo contexto.
Na prática, a legislação cria uma “ficção jurídica” ao obrigar o juiz a considerar apenas um dos crimes praticados, mesmo que o agente tenha agido com mais de uma ação e com diferentes desígnios ou intenções. Em vez de somar as punições de cada delito, o magistrado será obrigado a aplicar a pena do crime mais grave e aumentar apenas uma pequena fração, ignorando a intenção plural das ações.

As consequências dessa alteração são dramáticas para o caso do ex-presidente, que foi condenado a uma pena superior a 27 anos por diversos crimes relacionados à tentativa de golpe. Com a aplicação dos novos critérios, essa pena cairia substancialmente.
O professor André Pere Manes alerta para o simbolismo e a gravidade desta redução, que diminui a sanção de um crime contra a democracia a um patamar surpreendentemente baixo. O texto legal, conforme aprovado, sugere que tentar abolir a democracia, um crime que atenta contra a ordem constitucional e o alicerce do país, pode se tornar “menos grave do que você assaltar, por exemplo.” Essa equiparação, ou mesmo subestimação da gravidade, envia uma mensagem perigosa sobre a proteção do Estado Democrático de Direito.
O Efeito Cascata na Lei de Execução Penal: Abrindo as Portas
O segundo, e mais alarmante, aspecto do projeto reside na alteração profunda da Lei de Execução Penal (LEP). Para que o ex-presidente, já condenado, possa se beneficiar rapidamente das novas regras, foi necessário mudar o regime de progressão de pena.
A proposta aprovada autoriza a progressão de regime, ou seja, a chance de o condenado sair do regime fechado ou semiaberto para o aberto, com apenas 1/6 (um sexto) da pena cumprida. Esta regra simplificada e generalizada ignora os critérios mais rigorosos e individualizados que haviam sido estabelecidos na lei anterior, que diferenciava situações distintas dada a gravidade de cada condenação.
E aqui reside o ponto central da ameaça à segurança pública. Quem se beneficia desta regra, além do ex-presidente?
O texto é abrangente e, conforme a análise de Manes, exclui apenas os crimes mais graves contra a pessoa (homicídio, lesão corporal, sequestro) e os crimes patrimoniais mais violentos (roubo com grave ameaça, extorsão mediante sequestro). Todos os outros crimes, mesmo aqueles considerados hediondos ou de alto impacto social, poderão ser beneficiados.
A lista de beneficiados é chocante:
Estupradores: Condenados por estupro poderão progredir de regime após cumprir apenas 1/6 da pena.
Corruptos: Condenados por corrupção passiva e ativa, peculato e outros crimes contra a administração pública.
Lavagem de Dinheiro e Sonegação: Condenados por crimes financeiros e fiscais, que causam prejuízos bilionários ao país e à sociedade.
Coação no Curso do Processo: Crimes como o que o deputado Eduardo Bolsonaro está sendo processado também se enquadram na nova regra.
O professor é categórico: “Para se abrir a porta do presidente Jair Bolsonaro e a família dele, vai se abrir a porta do presídio para estupradores, para quem é condenado por corrupção, para quem é condenado por lavagem de dinheiro, para quem é condenado por diversos outros crimes graves que provavelmente vão estar na sociedade de novo, rapidamente.”
A ironia, ou melhor, a hipocrisia, se aprofunda no fato de que quem já foi condenado por esses crimes pode, imediatamente, se aproveitar da nova lei, caso ela seja sancionada ou o eventual veto presidencial seja derrubado.
O Paradoxo da Bancada da Bala
A discussão do projeto de lei expôs uma contradição flagrante entre os grupos que o apoiaram. A Câmara dos Deputados aprovou um texto que contou com o aval de parlamentares historicamente alinhados à chamada “Bancada da Bala”. Este grupo, conhecido por sua postura super punitivista, tem como pauta constante a defesa do aumento de penas, do endurecimento do Código Penal e da diminuição de benefícios prisionais.
No entanto, nesse caso específico, para se atingir o objetivo político de beneficiar o ex-presidente, essa mesma bancada votou pela redução do prazo para a progressão de regime, abrindo a possibilidade de soltura antecipada de criminosos que eles, em tese, juraram combater.
“Essa mesma bancada que é super punitivista, que quer, em geral aumentar as penas do Código Penal, nesse caso reduziu para estupradores, reduziu para corruptos, para sonegadores e por aí vai,” observa o especialista. A inversão de valores e a priorização de um interesse político individual sobre a segurança pública e a coerência ideológica demonstram o quão instrumentalizada a legislação penal pode se tornar.
O Cálculo da Redução: De 27 Anos Para Pouco Mais de Dois
Olhando mais detidamente para o caso do ex-presidente, a aplicação dos novos redutores propostos no projeto é surpreendente.
Com a condenação superior a 27 anos, Bolsonaro teria, em termos práticos, um período aproximado de pouco mais de 6 anos para cumprir em regime fechado. O relator do projeto, no entanto, avalia que o ex-presidente poderia ter essa pena em regime fechado reduzida para cerca de 2 anos.
Essa diferença monumental é resultado de uma série de redutores cumulativos. Primeiro, a aplicação da “ficção jurídica” para os crimes de tentativa de golpe não soma as penas. Em vez disso, pega-se a pena do crime mais grave e se aumenta uma fração, o que já derruba o montante total. Depois, entra a alteração na LEP, que estabelece o cumprimento de apenas 1/6 da pena para a progressão de regime.
Embora o tempo exato – 2 anos e 4 meses, 2 anos e 8 meses – caiba ao Judiciário estabelecer, o professor confirma que a queda será “substancialmente inegável”. O tempo para a progressão de regime, que já seria significativo, será drasticamente reduzido com o novo prazo de 1/6.
A Contradição da Progressão e das “Saidinhas”
O debate sobre a progressão de regime exige que um ponto crucial seja esclarecido: o processo não é automático. A progressão não significa “o sujeito sair da cadeia e ir para casa”. Para que possa progredir, o condenado precisa cumprir uma série de requisitos, como ter bom comportamento e demonstrar aptidão para o retorno ao convívio social.
No entanto, há uma camada de ironia nas circunstâncias específicas de benefícios que a lei agora pleiteia. A progressão de regime e as saídas temporárias – as famosas “saidinhas” de final de ano ou para trabalhar – sempre foram alvos de intensa oposição pela mesma família e bancada política que hoje advoga pela aprovação deste projeto.
“Circunstâncias essas que a família do ex-presidente Jair Bolsonaro, que essa bancada que hoje aprovou a redução do prazo, sempre foi contra,” enfatiza Manes. Eles sempre se opuseram a indultos, saídas para o trabalho e saídas de fim de ano, benefícios que agora buscam não apenas para si, mas que, ao aprovar o texto, ampliam para milhares de outros condenados. A atitude demonstra uma flexibilidade de princípios que se dobra ao interesse individual, em detrimento da filosofia punitiva que o grupo sempre defendeu em público.
Conclusão: Um Olhar com Lupa Sobre a Legislação
A discussão do projeto de lei da dosimetria e da execução penal transcendeu o caso específico do ex-presidente para se tornar uma crise legislativa sobre prioridades e consequências. Para beneficiar um punhado de pessoas envolvidas na tentativa de golpe, o Congresso Nacional aprovou um texto que, na prática, pode comprometer a segurança da sociedade ao antecipar a soltura de estupradores, corruptos e criminosos de alta periculosidade social e financeira.
O texto, que agora segue para o Senado Federal, exige que a Casa Revisora cumpra seu papel de contenção e análise técnica, olhando “com lupa” cada vírgula da proposta. O risco é que, sob o pretexto de um ajuste legal, o país crie uma jurisprudência que desvaloriza o crime contra a democracia e, simultaneamente, anistia milhares de criminosos graves, lançando-os de volta às ruas mais cedo. A prova da hipocrisia é clara: o interesse particular, quando inserido na máquina legislativa, pode gerar consequências desastrosas e de amplo alcance para toda a nação. A gravidade desse movimento exige que a sociedade e os legisladores se perguntem: Vale a pena o custo de milhares de criminosos nas ruas por um único perdão político?