O cenário político-jurídico brasileiro há muito se acostumou com a tensão, mas um recente posicionamento do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), elevou o debate a um novo patamar de controvérsia. Em uma entrevista que visava defender uma decisão que críticos interpretam como uma forma de “blindar” a Suprema Corte, o ministro não apenas adicionou mais um termo ao léxico político nacional, mas cunhou uma expressão que, segundo observadores, tem o potencial de redefinir os limites da crítica institucional e da própria ação democrática: o “Constitucionalismo Abusivo”.
A tese, lançada em meio a um turbilhão de críticas já existentes ao Judiciário, não é apenas uma peça de doutrina jurídica; ela é uma declaração de guerra ideológica contra a insatisfação popular e política que tem se manifestado, de maneira crescente, contra os membros do STF. Para compreender a magnitude dessa nova expressão, é fundamental primeiro revisitar o clima de exasperação que a precedeu, um contexto onde o tribunal já havia gerado uma sequência de expressões polêmicas que moldaram a percepção pública sobre sua atuação.
A Atmosfera de Desconfiança e as Expressões do STF
O STF tem estado sob intensa vigilância e crítica nos últimos anos, e essa tensão deu origem a termos que se tornaram onipresentes no debate público. A Corte, por meio de seus ministros, passou a caracterizar a insatisfação e a crítica como fenômenos que necessitavam de categorização e combate.
Termos como “Desordem Informacional” surgiram para descrever a veiculação de verdades ou fatos que, embora corretos, eram apresentados de uma forma que levava o público a concluir que o próprio STF era o responsável pelos problemas em curso. Em outras palavras, a clareza factual era vista como um vetor de desestabilização da confiança na instituição.
Em seguida, a expressão “Milícia Digital” foi amplamente utilizada para rotular e, em muitos casos, criminalizar qualquer pessoa ou grupo que ousasse criticar abertamente as decisões dos ministros. A crítica, elemento vital da saúde democrática, era assim reclassificada, em certos contextos, como uma ameaça organizada e ilegal.
Além disso, declarações políticas de ministros sobre regimes internacionais, a exemplo da menção à admiração pelo regime chinês – tido por críticos como comunista, ditatorial e autoritário – adicionaram lenha à fogueira das críticas sobre o alinhamento ideológico da Corte.
O ápice dessa sequência de declarações, antes do “Constitucionalismo Abusivo,” incluiu expressões que se tornaram icônicas na polarização política, como o infame “Perdeu, Mané” ou a afirmação de que o tribunal teria “derrotado o bolsonarismo”. Em um momento de profunda discórdia institucional, a Ministra Cármen Lúcia também proferiu uma frase que reverberou, indicando a preocupação da Corte com a descentralização do poder e a potencial desordem: “Não podemos deixar 213 pequenos tiranos no Brasil decidirem o que eles quiserem.”

Em um cenário onde o STF era percebido por uma parcela significativa da população e do Congresso como tendo perdido o controle, agindo com inquéritos de longa duração, levando à prisão ou ao exílio de jornalistas, advogados e até mesmo parlamentares, a necessidade de uma defesa robusta e, sobretudo, inédita, se tornou evidente para seus membros.
A Invenção do “Constitucionalismo Abusivo”
É neste contexto de desconfiança e polarização que Gilmar Mendes introduz seu novo conceito. O ministro utilizou a entrevista para justificar a decisão de proteger seus colegas da Suprema Corte de um possível processo de impeachment, uma ferramenta de responsabilização política prevista na Constituição.
Mendes argumentou que a prática de impeachment de juízes por um tribunal político, no caso o Senado Federal, tornou-se “ultrapassada”. E por que ela estaria ultrapassada? Porque, em sua visão, “isto na verdade dá ensejo àquela prática do constitucionalismo abusivo.”
A expressão é chocante em sua essência, especialmente considerando a posição de quem a profere. Os ministros do STF são os guardiões designados da Constituição, o manual fundamental da democracia brasileira. No entanto, para proteger seus pares de crimes alegados – como a abertura de inquéritos supostamente ilegais, a intimidação de legisladores ou alegações de favoritismo – o ministro criou uma barreira terminológica que, na prática, desqualifica o exercício de um mecanismo constitucional legítimo.
A tese do constitucionalismo abusivo implica uma premissa perigosa: se você utilizar a Constituição, com seus mecanismos previstos, para tentar restaurar a ordem democrática (na ótica dos críticos do STF) e, neste processo, os ministros do Supremo forem enfraquecidos ou responsabilizados, então você está abusando da Constituição.
Trata-se de uma inversão conceitual. Usar a lei para resgatar a lei torna-se, pela nova definição, um crime ou, pelo menos, uma ilegalidade. É o ponto onde a defesa da lei se transforma na subversão da lei, dependendo de quem está sendo alvo da ação. O constitucionalismo abusivo, portanto, é a negação da legitimidade do processo de impeachment quando a maioria popular o utiliza como ferramenta contra os membros da mais alta corte.
Observadores apontam que essa expressão supera em gravidade outras teses controversas, como a “ditadura da maioria”, de Alexandre de Moraes, ou a tese de que a Venezuela seria uma “ditadura conservadora”, atribuída ao Ministro Luís Roberto Barroso em um debate anterior. A razão é simples: o “constitucionalismo abusivo” não é apenas uma crítica a um modelo político; é uma tentativa de deslegitimar a própria estrutura de checks and balances quando esta se volta contra a instituição que a está definindo.
O Risco da Sobrevivência e a Vontade Popular
A parte mais reveladora da defesa de Gilmar Mendes reside na admissão aberta do porquê dessa decisão de “blindagem.” A motivação, segundo o próprio ministro, não é puramente filosófica ou doutrinária, mas profundamente política e de sobrevivência institucional:
“Essa questão se tinha politizado no sentido agora partidário do termo de maneira tão radical que vários partidos anunciavam candidatos a senadores para fazer impeachment de ministros do Supremo.”
Essa declaração é a chave para desvendar o novo conceito. Se partidos políticos estão lançando candidatos ao Senado com a bandeira expressa do impeachment de ministros do STF, isso significa que essa pauta gera votos. Se gera votos, é porque a vontade da maioria do povo brasileiro, manifestada nas urnas, clama por essa responsabilização.
A lógica é fria e irrefutável: o povo quer a responsabilização dos ministros.
Ao declarar que a campanha eleitoral, que seria baseada nessa perspectiva, está “longe de ser correto”, o Ministro Gilmar Mendes, em essência, está rotulando a vontade da maioria do povo, expressa democraticamente pelo voto, como um erro ou, pior, como um abuso. A Suprema Corte, que deveria ser a defensora imparcial da Constituição, age preventivamente contra o resultado potencial de um processo eleitoral.
O que está em jogo, portanto, não é uma leitura refinada de jurisprudência, mas uma estratégia de sobrevivência. É o medo de serem alvos de um impeachment constitucional, impulsionado por uma maioria legítima no Senado. O “Constitucionalismo Abusivo” emerge, assim, não como uma tese acadêmica, mas como uma manobra jurídica de autoproteção institucional contra a soberania popular, vista como uma ameaça.
Conclusão: Uma Instituição em Estado de Defesa
O lançamento do termo “Constitucionalismo Abusivo” marca um ponto de inflexão na crise institucional brasileira. Não se trata apenas de mais um embate político, mas de um momento em que a Suprema Corte parece ter rompido o verniz da imparcialidade para se posicionar explicitamente em um estado de defesa contra a crítica e a ação política que ameaçam sua composição.
A questão crucial que resta é: o que acontece quando o guardião da Constituição declara que o uso de um de seus próprios mecanismos, impulsionado pela vontade popular expressa em eleições, é um ato de abuso? A crítica sugere que o STF cruzou a linha, utilizando o aparato legal para proteger a si mesmo contra a accountability democrática, sob o pretexto de preservar a estabilidade institucional.
O risco é que, ao rotular o legítimo uso dos mecanismos constitucionais de responsabilização como “abusivo”, o STF não apenas enfraquece a Constituição, mas também se isola ainda mais da percepção pública de legitimidade. A longo prazo, a única blindagem real para qualquer instituição democrática é a confiança e o respeito da população. E o “Constitucionalismo Abusivo” parece ter nascido não para gerar respeito, mas para garantir a sobrevivência em meio a uma das crises de confiança mais profundas da história recente do Brasil. A discussão sobre o papel do Judiciário e os limites de seu poder acaba de ganhar um novo e controverso capítulo.