
“Já faz 6 meses que não temos uma mulher”, disseram dois escravos a ela. A frase caiu como um golpe no coração de Soledad, filha de um fazendeiro que nunca imaginou ouvir um desabafo tão doloroso. Dois homens fortes marcados pela vida dura do campo, a confessar uma solidão que ninguém via.
Como podia ser justo? Como podia um coração suportar tanta ausência? O que ela não sabia era que esse instante seria o começo de um vínculo proibido, poderoso e capaz de desafiar a sociedade inteira. Porque quando uma verdade assim se revela, nada volta a ser igual. Até onde alguém pode ir por amor?
O sol de Luisiana, 1863, caía pesado sobre a fazenda San Gabriel. O ar cheirava a madeira húmida, a suor e a tristeza. Os homens trabalhavam nos campos, as mulheres na cozinha e o silêncio cobria tudo como uma manta espessa. Na varanda da casa grande, uma jovem de tranças escuras olhava para os barracões de madeira.
Era Soledad Montemayor, 20 anos, pele clara, vestido azul simples, mãos finas que nunca tinham tocado a terra, mas com um coração que não suportava ver injustiças. Os seus olhos enchiam-se de lágrimas cada vez que ouvia um grito abafado, cada vez que via um corpo curvado pelo cansaço. Nessa manhã Soledad tinha ouvido uma conversa do seu pai, don Esteban, com outros fazendeiros.
Falavam de guerra, de rumores de abolição, de leis novas que vinham do norte. Os homens riam-se com desdém.
“Isso não chegará até aqui”, tinha dito o seu pai, “nesta terra eu decido.”
Mas o coração de Soledad tinha ficado inquieto. Havia algo a mudar no mundo e ela sentia que devia mudar também. Desceu as escadas de madeira em silêncio, evitando o ranger dos degraus.
Entrou na cozinha, onde o cheiro a pão recém-assado a envolveu. Ali estava Elena Duarte, a sua melhor amiga desde crianças, um ano mais velha, cabelo apanhado num coque apressado, expressão viva nos olhos.
“Outra vez com essa cara, Soledad”, sussurrou Elena limpando as mãos no avental. “O que ouviste agora?”
Soledad olhou para a porta, assegurando-se de que ninguém mais estivesse perto.
“Falam de leis novas, de liberdade”, disse em voz baixa. “Mas aqui tudo continua igual. Eles continuam fechados, continuam sozinhos, como se não fossem pessoas.”
Elena suspirou.
“Já sabes como é este lugar. Aqui as coisas mudam devagar. Quando mudam.”
Soledad aproximou-se da mesa onde havia pão, frutas e uma jarra de água fresca. As suas mãos tremeram um pouco.
“Vou ao barracão de trás”, anunciou. “Quero falar com eles.”
Elena olhou-a com medo e admiração ao mesmo tempo. Sabia a quem se referia. Aos dois homens que trabalhavam perto da floresta, sempre juntos, sempre sérios, sempre silenciosos. Benedicto e Mateo.
“Acompanhar-te-ei”, disse finalmente. “Não te deixo sozinha nisso.”
Pegaram num cesto com pão, um pouco de carne fria e uma jarra de água. Saíram pela porta traseira escondendo-se entre as sombras das árvores. Cada passo era uma pequena rebeldia, cada suspiro, uma oração para que ninguém as visse. O barracão onde eles descansavam ao meio-dia era de troncos grossos, teto de madeira, um pequeno fogão de ferro no centro.
Dentro cheirava a fumo, a pele aquecida pelo trabalho do campo, a solidão acumulada. Quando Soledad empurrou a porta, a luz do exterior inundou o lugar e desenhou duas silhuetas grandes, fortes, a brilhar de suor. Benedicto, alto, ombros largos, olhar sério mas doce. Mateo, um pouco mais alto ainda, músculos marcados, olhos tranquilos que pareciam medir cada palavra antes de sair. Eles levantaram-se de imediato, surpreendidos, quase confundidos.
Não estavam habituados a ver a filha do fazendeiro a entrar no seu espaço.
“Menina”, disse Benedicto inclinando a cabeça.
“Não, hoje não sou menina”, respondeu Soledad tentando sorrir. “Hoje sou apenas Soledad e ela é a Elena. Trouxemos comida.”
Houve um segundo de silêncio. Depois os rostos tensos dos dois homens abrandaram apenas. Elena deixou o cesto sobre uma mesa rústica. A madeira rangeu enquanto eles começavam a comer tímidos. Soledad observava-os com atenção. Notou as mãos grandes marcadas, as cicatrizes antigas nos braços, a forma como se olhavam entre si antes de pegar cada pedaço de pão, como se não acreditassem que aquilo fosse realmente para eles.
Havia curiosidade no coração da jovem, algo que ia além da compaixão, uma pergunta que lhe ardia na língua.
“Posso perguntar-lhes algo pessoal?”, disse de repente.
Mateo levantou o olhar. Benedicto deixou o pedaço de pão a meio caminho. Elena engoliu em seco, nervosa.
“Pergunte, menina. Digo, Soledad”, respondeu Mateo.
Ela respirou fundo. As suas mãos juntaram-se à altura do peito como à procura de proteção.
“Vocês”, começou duvidando, “têm vida amorosa? Têm alguém que vos espere? Uma mulher? Um carinho?”
Elena abriu os olhos surpreendida pela franqueza da amiga. Mas já era tarde. A pergunta estava feita. Os dois homens olharam-se entre si. Houve uma pausa longa, dolorosa, densa. O vento soprou contra a parede de madeira, como se também esperasse a resposta. Benedicto foi o primeiro a falar. A sua voz saiu baixa, carregada de algo que nem sequer era tristeza. Era hábito de sofrer.
“Já faz 6 meses que não estamos com nenhuma mulher”, disse devagar, como se cada palavra pesasse. “6 meses sem conversa doce, 6 meses sem uma mão que nos toque com carinho, 6 meses sem que ninguém nos olhe como pessoas.”
O coração de Soledad deu um salto dentro do peito. Levou a mão ao corpo mesmo sobre o coração, como se algo a tivesse atravessado. Mateo completou com um meio sorriso triste.
“Aqui, para muitos, os da nossa pele só existimos para trabalhar, não para amar.”
Essas palavras ficaram a flutuar no ar. Elena baixou o olhar mordendo os lábios. Sabia que o que estavam a ouvir era verdade, mas nunca o tinha escutado tão nu, tão direto. Soledad sentiu que a garganta se lhe fechava. Pensou nos bailes elegantes na casa grande, nas primas que se queixavam por não receber flores, nas amigas que choravam por cartas de amor atrasadas e diante dela estavam dois homens que nem sequer tinham o direito de ser vistos como candidatos a nada, nem sequer a um gesto de ternura.
“Isso vai mudar”, murmurou ela com fervor inesperado. “As leis estão a mudar, o país está a mudar, não pode ser sempre assim.”
Benedicto olhou-a com uma mistura de respeito e resignação.
“Oxalá a lei chegue também aos corações, Soledad”, disse, “porque às vezes a lei muda, mas as pessoas não.”
A frase atingiu a jovem com força. Sentiu os olhos arder. Quis dizer algo mais, prometer algo grande, prometer que ela mesma faria o impossível, mas as palavras não saíram.
“Temos que voltar”, disse Elena tocando suavemente o braço da amiga. “Se o teu pai notar a tua ausência…”
Soledad assentiu, mas os seus passos fizeram-se lentos. Antes de sair, olhou de novo para Benedicto e Mateo. Viu neles não apenas força física, mas uma solidão profunda, um anseio silencioso. No umbral da porta, o sol cegou-a um instante. Enquanto caminhava de regresso à casa grande, com o coração apertado, uma certeza formava-se dentro dela.
Algo na sua vida tinha mudado para sempre. Tinha escutado uma verdade que não podia ignorar e, embora não soubesse como, sentia que algum dia, de alguma forma, seria parte dessa mudança, porque desde esse momento já não via Benedicto e Mateo como escravos da fazenda. Via-os como homens, como homens que também mereciam liberdade, carinho e, quem sabe algum dia, amor.
O vento da tarde percorria os campos de San Gabriel como se quisesse levar com ele todas as verdades que ninguém se atrevia a dizer. Depois daquela conversa no barracão, Soledad passou o resto do dia com o coração inquieto, como se algo batesse fora de ritmo dentro do peito. Nessa noite quase não dormiu. Deu voltas uma e outra vez na cama, recordando as palavras de Benedicto: “Já faz 6 meses que não estamos com nenhuma mulher.”
Essa frase continuava a repetir-se na sua mente como um eco doloroso. Ao amanhecer, o céu estava tingido de um rosa pálido. Os galos cantaram. Os trabalhadores começaram a sair para os campos e a fazenda despertou envolta na rotina de sempre. Mas dentro de Soledad tudo era diferente. Ao descer à cozinha encontrou Elena a preparar café. A amiga olhou-a mal cruzou a porta.
“Não dormiste, verdade?”, disse sem rodeios.
Soledad negou com a cabeça, apertando as mãos sobre a mesa.
“Não consigo deixar de pensar neles, no que disseram, em como vivem.”
Elena suspirou servindo-lhe uma chávena.
“Soledad, sempre foste sensível, mas isto é mais, afetou-te de verdade.”
“Porque eles… eles não têm ninguém, nem um abraço, nem um riso, nem um carinho que não seja proibido”, respondeu Soledad com um fio de voz. “Dás-te conta do que significa viver assim?”
Elena não respondeu. Não tinha palavras. Apenas sabia que também tinha sentido aquela dor estranha no peito, como se a confissão dos dois homens tivesse aberto uma fenda nas certezas de ambas. Um silêncio suave instalou-se entre as duas. De repente, Soledad levantou a cabeça com uma determinação nova.
“Quero voltar a vê-los.”
Elena abriu os olhos surpreendida.
“Hoje? Depois do que aconteceu ontem?”
“Sim. Não posso ficar sem fazer nada”, disse Soledad firme. “Preciso de falar com eles. Preciso de escutá-los mais.”
Elena duvidou um instante, mas depois assentiu.
“Então vamos juntas. Não te deixo sozinha nisto.”
Pegaram noutro cesto, desta vez com pão fresco, frutas e um pequeno frasco de chá de ervas que Soledad preparou para aliviar o cansaço. Saíram pela porta traseira, movendo-se com cautela entre as árvores para não serem vistas. O ar estava húmido, carregado do cheiro a terra e folhas molhadas. Ao aproximar-se do barracão, Soledad sentiu o coração acelerar.
Havia algo doce e algo perigoso a bater no ambiente. A porta de madeira estava entreaberta. Ouvia-se o ranger do chão, passos pesados e o murmúrio de vozes graves. Quando entraram, encontraram Benedicto a afiar uma ferramenta e Mateo a amarrar umas cordas. Ambos pararam ao vê-las. Uma surpresa suave iluminou os seus rostos.
“Voltaram”, disse Mateo com uma mistura de alegria e incredulidade.
“Pensámos que ontem tinha sido um impulso”, acrescentou Benedicto com uma expressão que parecia esconder esperança.
Soledad sorriu apenas.
“Não foi um impulso, foi o correto.”
Elena deixou o cesto sobre a mesa rústica. Ao abri-lo, o aroma do pão recém-assado encheu o barracão. Os homens, embora tentassem dissimulá-lo, não puderam esconder o brilho nos olhos.
“Trouxemos-vos mais comida”, disse Elena tentando soar casual.
Os dois aproximaram-se devagar, como se temessem que qualquer gesto pudesse quebrar a frágil confiança que estava a nascer. Soledad observou os seus movimentos, a forma como Mateo inclinou a cabeça agradecido, como Benedicto roçou o cesto com mãos calejadas e por um instante sentiu algo que não soube nomear. Decidiu sentar-se num banco de madeira.
“Queria perguntar-vos algo mais”, disse olhando para os dois homens. “Ontem contaram-me que não tinham companhia, mas tinham sonhos. Tinham algum plano antes de chegar aqui?”
Mateo apoiou as mãos sobre os joelhos.
“Eu queria ser carpinteiro. O meu pai era-o. Gostava de construir coisas, casas, móveis.” Sorriu com nostalgia. “Suponho que ainda gosto. Este barracão reparei-o eu.”
Soledad olhou em volta e notou-o. A forma cuidadosa como estava construído o fogão, os reforços de madeira bem feitos, a limpeza ordenada.
“Está lindo”, sussurrou ela.
Benedicto, pelo contrário, respirou fundo antes de falar.
“Eu só queria uma família, uma mulher que me quisesse, filhos que corressem pelo pátio. Nada grande, nada impossível, só isso.”
Soledad engoliu em seco. Era incrível como os sonhos mais simples podiam ser os mais negados.
“E tu, Soledad”, perguntou Mateo. “O que sonhas?”
A pergunta apanhou-a de surpresa. Nunca ninguém lha fazia. Sempre a tratavam como a filha do fazendeiro, como a jovem que devia casar-se bem, seguir as regras, comportar-se, mas ninguém queria saber o que ela desejava realmente.
“Sonho com um mundo diferente”, respondeu finalmente, “onde ninguém seja dono de ninguém, onde as pessoas possam querer-se sem medo.”
As suas palavras ficaram a flutuar no ar como um segredo demasiado grande para ser dito em voz alta. Houve um silêncio intenso, morno, imenso. De repente, um barulho lá fora obrigou-as a porem-se de pé. Um cavalo, um homem a gritar ordens, um capataz.
“Rápido!”, sussurrou Elena. “Temos que nos ir embora.”
As duas saíram a correr pela parte traseira do barracão, escondendo-se entre as árvores. Soledad virou-se uma última vez. Viu Mateo e Benedicto a fechar a porta e a voltar ao trabalho como se nada tivesse acontecido. Mas tinha acontecido. Algo tinha nascido, algo delicado, perigoso, impossível e ainda assim inevitável. Enquanto regressavam à casa, Soledad não conseguia deixar de senti-lo: os laços invisíveis que começavam a uni-los suavemente, silenciosamente, profundamente.
O sol do meio-dia caía com força sobre os campos de San Gabriel, desenhando sombras longas na terra ressequida. Os trabalhadores avançavam com passos pesados e o som das enxadas a bater no chão misturava-se com o canto longínquo dos pássaros. Mas para Soledad aquele dia não era como os outros. Algo tinha mudado dentro dela depois das visitas ao barracão. O seu coração parecia bater com um compasso diferente, como se tivesse despertado para uma consciência que antes não conhecia.
Ao caminhar pelo corredor de madeira da casa grande, escutou o seu pai, don Esteban, a discutir com dois fazendeiros vizinhos. As vozes eram graves, tensas.
“Não vou permitir desordem nas minhas terras”, dizia um dos homens. “A gente está a falar que vêm novas leis, que se aproxima o final de tudo isto.”
“Tontices”, respondeu don Esteban a bater na mesa. “Aqui ninguém vai mudar nada. Na minha fazenda respeita-se a tradição.”
Soledad sentiu o estômago encolher-se. As tradições de que falavam eram exatamente as que mantinham Benedicto e Mateo sem liberdade, sem sonhos, sem carinho. A conversa continuava a subir de tom.
“Dizem que em alguns estados já deixaram livres os trabalhadores”, murmurou o terceiro homem.
“Pois no meu não”, finalizou o pai com dureza.
Soledad apertou os lábios. Sabia que não podia falar, mas também sabia que já não podia calar por dentro. Decidiu ir procurar Elena, que estava a pendurar roupa no pátio lateral. A amiga levantou a vista, surpreendida pela expressão tensa no rosto de Soledad.
“Outra vez escutaste o teu pai?”, perguntou Elena deixando cair um lençol branco sobre a corda.
“Estão preocupados. Acreditam que a liberdade está perto”, sussurrou Soledad olhando à sua volta para se assegurar de que ninguém as ouvia, “mas ele… ele não quer mudar nada. Diz que aqui tudo continuará igual.”
Elena deixou escapar um suspiro cansado.
“Não esperavas outra coisa, verdade?”, disse suavemente.
Soledad negou com a cabeça, mas o seu silêncio acendia um pequeno fogo dentro do peito.
“Elena”, sussurrou olhando-a com intensidade. “Tu também sentiste algo quando falámos com eles. Não sei como explicá-lo, mas eu não os vejo como antes.”
Elena engoliu em seco. O seu olhar tornou-se distante, como se precisasse de um momento para admitir a verdade.
“Eu também não”, confessou finalmente. “Quando o Benedicto falou de querer uma família, de querer amor…” Levou as mãos aos lábios, emocionada. “Ninguém deveria ser privado disso.”
O nome de Benedicto ficou a flutuar entre elas com um peso inesperado.
“Creio que devíamos voltar esta tarde”, disse Soledad. “Eles precisam de companhia e nós também precisamos de entender o que estamos a sentir.”
Elena duvidou um instante, mas depois assentiu.
“Vamos. Mas desta vez devemos ter mais cuidado. A minha mãe está a suspeitar que é algo demasiado.”
A tensão começava a aparecer não apenas nos corações, mas também nas paredes da fazenda. Nessa tarde, quando o sol começava a descer, as duas jovens caminharam de novo em direção à orla da floresta. O ar estava mais húmido e o céu tingia-se de tons dourados. O silêncio era mais profundo, quase dramático, como se cada folha escutasse os seus passos.
Ao chegar ao barracão, notaram algo diferente. De fora ouvia-se um barulho forte, um golpe, outro, uma voz. As duas olharam-se alarmadas.
“Quem está aí?”, sussurrou Elena.
Soledad empurrou a porta lentamente. A cena que encontraram fez com que ambas ficassem paralisadas. Benedicto estava a levantar um barril pesado, tentando colocá-lo sobre uma prateleira alta. Mateo tentava ajudá-lo, mas havia um homem atrás, o capataz, a olhar com o sobrolho franzido, os braços cruzados.
“Mais rápido”, ordenou o capataz com mau humor. “Não tenho o dia todo.”
Elena agarrou o braço de Soledad, mas Soledad deu um passo para dentro do barracão, guiada por um impulso impossível de deter.
“Deixe-os”, disse com firmeza, surpreendendo até a sua própria voz. “Já trabalharam o dia todo. Deixe-os descansar.”
O capataz virou-se bruscamente.
“Senhorita Soledad, não devia estar aqui.”
“Estou onde quero estar”, replicou ela sem baixar o olhar.
Os olhos do capataz semicerraram-se desconfiados, mas sabia que não podia enfrentar a filha do patrão. Refilou, cuspiu para o chão e saiu. O silêncio que ficou depois era quase elétrico. Mateo deixou cair o barril suavemente. Benedicto respirou profundamente, esfregando as mãos.
“Não devias ter feito isso”, disse Mateo com voz grave. “Podia trazer-te problemas.”
“Não me importo”, respondeu Soledad com o coração acelerado. “Não podia ficar calada. Não depois de tudo o que me contaram.”
Elena aproximou-se lentamente de Benedicto. Olhou-o com uma doçura que nunca tinha mostrado a nenhum homem da sua classe social.
“Estás bem?”, perguntou ela.
Benedicto assentiu, mas a forma como a olhou revelava algo mais profundo: agradecimento, surpresa e um brilho de esperança. Soledad aproximou-se um pouco de Mateo. Pela primeira vez olhou-o realmente. O seu corpo marcado pelo trabalho, a sua expressão tranquila, a força que irradiava mesmo quando estava quieto.
“Não quero que vos tratem assim”, disse com um tremor na voz. “Ninguém merece isso.”
Mateo sustentou o seu olhar: lento, seguro.
“Obrigado, Soledad”, sussurrou.
Ela sentiu um arrepio suave percorrer-lhe a coluna. Não era medo, não era vergonha, era algo novo, algo que a fazia respirar mais devagar. Nesse instante, as duas amigas entenderam que o laço com esses homens estava a começar a transformar-se. Algo tinha cruzado uma linha silenciosa, uma linha que nenhum coração poderia desfazer.
O entardecer cobria a fazenda San Gabriel com um tom dourado que fazia brilhar os campos de cana como se fossem um mar ondulante. O ar estava morno, perfumado pelo aroma da terra húmida e do fumo que escapava das cozinhas. Mas dentro do coração de Soledad e de Elena, algo mais intenso ardia, uma mistura nova de curiosidade, ternura e um perigoso sentimento que apenas começava a tomar forma.
Nesse dia, depois da discussão com o capataz, as jovens regressaram à casa grande com a respiração acelerada, mas não pela corrida, mas pelo que tinham sentido. Elena tocava nos lábios, nervosa. Soledad caminhava com as mãos apertadas como se quisesse suster um segredo recém-nascido.
“Sentiste, Elena?”, sussurrou Soledad mal cruzaram a porta do quarto.
“Sim”, respondeu Elena com as bochechas vermelhas. “Foi como se… como se ele me olhasse de verdade, não como a uma menina, mas como a uma mulher.”
Soledad baixou o olhar respirando fundo.
“Eu também senti algo”, admitiu com um fio de voz. “Quando o Mateo me falou, senti que podia confiar nele. Senti calma.”
As duas ficaram em silêncio a ouvir os barulhos da fazenda: cavalos, passos, risos, ordens secas dos capatazes. Mas entre todos esses sons havia um que só elas podiam ouvir, o eco suave de um sentimento inesperado.
Na manhã seguinte, Soledad caminhou sozinha em direção à floresta. Precisava de pensar. O canto dos pássaros enchia o ar e as folhas secas estalavam sob os seus sapatos. Cada passo aproximava-a de uma certeza: queria vê-los de novo, não por compaixão, não por rebeldia, mas por algo que lhe nascia de uma parte muito profunda.
Quando chegou à clareira atrás do barracão, encontrou algo que a deixou imóvel. Mateo estava ali sentado num tronco a talhar um pequeno pedaço de madeira. O sol desenhava linhas douradas nos seus ombros. O cheiro a madeira fresca misturava-se com o aroma dos pinheiros. Soledad escondeu-se uns segundos atrás de uma árvore observando-o: as suas mãos firmes, a concentração no seu rosto, a serenidade.
Não tinha visto jamais um homem tão tranquilo, tão consciente de cada gesto. Sem se dar conta, um ramo estalou sob os seus pés. Mateo levantou a cabeça, surpreendido. Quando a viu, a expressão do seu rosto mudou. Não era medo nem incómodo. Era uma mistura de timidez e alegria suave.
“Bom dia, Soledad.”
Ela saiu do esconderijo com o coração acelerado.
“Bom dia. O que fazes?”
Mateo levantou a figurinha de madeira. Era um pequeno pássaro, simples mas delicado.
“Talhava isto. Ajuda-me a pensar.”
Soledad avançou um passo, depois outro, até ficar suficientemente perto para ver os detalhes do talhe.
“É lindo”, murmurou ela.
Mateo olhou-a com uma intensidade que fez com que a respiração dela tremesse.
“Como a liberdade”, acrescentou ele.
Essa frase caiu entre eles como uma pena, mas com o peso de uma rocha. Soledad sentiu que algo no seu peito se fechava e se abria ao mesmo tempo. Quis responder algo, mas as palavras não saíram. Mateo baixou o olhar, consciente do quão perigoso era dizer algo assim, mas já estava dito.
Entretanto, na cozinha, Elena organizava uns frascos quando ouviu passos atrás dela. Era Benedicto, que tinha entrado para deixar uma ferramenta arranjada. Elena sobressaltou-se, mas ele sorriu apenas.
“Não quis assustar-te.”
A voz de Benedicto era profunda, suave, dessas que dão a sensação de um abraço mesmo à distância. Elena ajeitou uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
“Não me assustaste, só não te esperava aqui.”
Benedicto deixou a ferramenta sobre a mesa.
“Vi que ontem nos defendeste”, disse com uma sinceridade que lhe tremia na garganta. “Não sei como agradecer isso.”
Elena baixou o olhar sentindo como o calor lhe subia ao rosto.
“Não fiz nada extraordinário, apenas o que era correto.”
Benedicto deu um passo na direção dela, mas parou a uma distância respeitosa, como se soubesse que aproximar-se demasiado podia mudar tudo.
“Ninguém faz isso por nós. Ninguém se arrisca por gente como eu”, sussurrou ele.
“Eu sim”, respondeu Elena sem pensar.
As palavras saíram sozinhas e o silêncio depois delas foi tão intenso que parecia envolvê-los como uma manta quente. Benedicto olhou-a muito tempo como se quisesse gravar a imagem na memória. Depois, sem lhe tocar, sem dizer muito, simplesmente inclinou a cabeça e saiu. Mas esse olhar ficou a flutuar no ar. Ficou no peito de Elena, ficou nas suas mãos, ficou na sua respiração e ela soube, tal como Soledad o tinha sentido com Mateo, que algo impossível estava a começar a nascer.
Nessa noite as duas amigas reuniram-se no quarto de Soledad, sentadas sobre a cama enquanto a lua entrava pela janela.
“Hoje falei com o Mateo”, contou Soledad com voz suave.
“E eu com o Benedicto”, respondeu Elena sentindo-se vulnerável.
Olharam-se e nesse cruzamento de olhares havia medo, emoção, desejo de entender e uma certeza amarga: estavam a cruzar uma linha da qual não havia volta atrás, mas nenhuma queria retroceder. O amanhecer chegou carregado de humidade, como se o céu tivesse decidido chorar antes de ninguém. A fazenda San Gabriel despertou com um rumor estranho no ar.
Os trabalhadores murmuravam entre si, os cavalos inquietavam-se nos estábulos e até os cães do pátio pareciam mais alerta que o costume. Soledad levantou-se com um pressentimento pesado no peito. Algo ia acontecer. Não sabia o quê, mas sentia-o. Como se o coração quisesse adverti-la de algo. Ao descer as escadas encontrou o seu pai, don Esteban, rodeado de capatazes. Os seus rostos tensos formavam um círculo quase militar na sala de jantar.
Ela escondeu-se atrás de uma coluna e escutou.
“Disseram-me que alguém tem estado a rondar os barracões”, disse don Esteban com voz dura. “E que os trabalhadores andam demasiado distraídos.”
Um capataz acrescentou:
“Ontem à noite alguém deixou comida lá, pão, frutas, coisas que eles não deviam ter fora de horário.”
O golpe dessas palavras fez com que o estômago de Soledad se fechasse. Pão, frutas, comida, justamente o que ela e Elena tinham levado dias atrás.
“Quero vigilância em cada entrada”, ordenou o seu pai. “Não permitiremos liberdades desnecessárias.”
Os capatazes saíram como um enxame furioso. Soledad teve de se apoiar na parede para não perder o equilíbrio. A sua respiração tremeu. Se continuassem assim, descobririam Mateo, Benedicto e também a elas. Mais tarde, na cozinha, Soledad procurou Elena, que estava a mexer uma panela com expressão preocupada.
“Elena, descobriram-nos”, sussurrou a toda a pressa. “O meu pai sabe que alguém esteve nos barracões, mandou pôr vigilância.”
Elena empalideceu.
“E se suspeitam de nós?”
“Pior ainda”, respondeu Soledad. “E se acreditam que foram eles? E se os castigam?”
Elena deixou cair a colher dentro da panela. As suas mãos tremiam.
“Temos que avisá-los. Não podemos deixá-los sozinhos.”
Mas ambas sabiam que a vigilância tornava impossível cruzar o pátio sem serem vistas. Ainda assim, o medo não era suficiente para as deter. Ao cair a tarde, quando a luz se tornou laranja e as sombras se alongaram como braços inquietos, as duas amigas escapuliram-se em direção à orla da floresta, caminhando quase coladas às paredes. Os capatazes patrulhavam a zona com passos pesados, grunhindo ordens a quem se cruzava no seu caminho.
“Por aqui”, sussurrou Elena apontando para um caminho estreito entre as árvores.
O barro colava-se aos sapatos. Os ramos roçavam os seus vestidos e cada ruído fazia com que os seus corações saltassem, mas não pararam. Quando chegaram ao barracão, viram a porta entreaberta, muito mais do que o habitual. Um mau pressentimento percorreu as costas de Soledad.
“Algo está mal”, murmurou.
Aproximaram-se. O silêncio dentro do lugar era estranho, demasiado profundo. Soledad empurrou a porta com um dedo. Mal o fez, escutou vozes. Não eram as de Benedicto nem as de Mateo. Eram vozes de capatazes. Elena agarrou-a pelo braço.
“Não entres.”
Mas já era tarde. A porta rangeu anunciando a sua presença. Dentro estavam dois capatazes a revistar cada canto do barracão. Moviam caixas, abriam sacos, inspecionavam qualquer indício de desobediência.
“O que… o que fazem aqui?”, perguntou Soledad fingindo inocência.
Os homens viraram-se surpreendidos.
“Senhorita”, disse um pigarreando. “Estamos a seguir ordens do seu pai. Houve movimentos suspeitos. Acreditamos que alguns dos trabalhadores estão a esconder comida e companhia.”
Soledad sentiu um golpe no peito. Eles não sabiam que a companhia eram ela e Elena, mas se continuassem a revistar assim, podiam descobrir qualquer rasto das suas visitas.
“E os trabalhadores?”, perguntou Elena contendo a respiração.
“Estão nos campos”, respondeu o segundo capataz. “Mandámo-los para longe para que não estorvem. Já voltarão.”
Soledad engoliu em seco. Se Mateo e Benedicto regressassem agora, encontrá-los-iam com os capatazes dentro. Seria um desastre.
“O meu pai pediu-me para revistar uns inventários aqui”, disse Soledad improvisando. “Podem retirar-se, eu terminarei a inspeção.”
Os capatazes olharam-se entre si, desconfiavam. Ela via-o nos olhos deles.
“Não creio que seja prudente deixá-la sozinha, senhorita”, respondeu um. “Este lugar não é seguro.”
Soledad aproximou-se endireitando os ombros, elevando o queixo. A filha do fazendeiro, a autoridade máxima depois do seu pai.
“Estou a dizer-vos que eu me encarrego”, repetiu com voz firme. “Se têm alguma dúvida, podem explicá-la diretamente ao meu pai. Ele saberá se estiveram a discutir as minhas ordens.”
Os capatazes tensaram-se. Desafiar don Esteban nunca era uma opção, e fazê-lo insinuando que tinham desobedecido à sua filha podia trazer-lhes problemas. Finalmente grunhiram em sinal de retirada.
“Como queira, senhorita”, disse um.
Saíram do barracão. As duas jovens não respiraram até ouvirem os seus passos afastarem-se completamente. Elena deixou-se cair sobre uma caixa, respirando aliviada.
“Isso foi demasiado perto.”
“Demasiado”, admitiu Soledad.
Mas antes que pudessem relaxar completamente, um barulho atrás delas fez com que ambas saltassem. A porta lateral abriu-se apenas e duas figuras entraram sorrateiramente: Mateo e Benedicto. Os olhos de Mateo procuraram os de Soledad.
“Ouvimos vozes”, disse em voz baixa. “O que se passou?”
Soledad aproximou-se rapidamente tocando no braço dele sem pensar.
“Estavam à vossa procura. Revistaram tudo. Se vocês tivessem entrado antes…”, quebrou-se-lhe a voz, “poderiam tê-los castigado.”
Mateo pegou-lhe na mão por um segundo, um toque breve, elétrico, cheio de significado.
“Obrigado por nos protegerem”, sussurrou.
Elena olhou para Benedicto trémula. Ele inclinou a cabeça agradecido.
“Não deviam ter-se arriscado assim”, disse.
“Não podíamos deixar-vos sozinhos”, respondeu Elena.
O barracão estava agora vazio, silencioso, mas entre os quatro algo tinha mudado para sempre. Já não era só afeto, já não era só curiosidade, era perigo partilhado, era confiança irrevogável, era um laço que começava a unir os seus destinos, embora a sociedade jamais os aceitasse.
O amanhecer daquele dia chegou tingido de vermelho, um vermelho profundo, quase inquietante. Os pássaros cantavam diferente, como se percebessem uma mudança que ainda ninguém tinha anunciado. A fazenda San Gabriel despertou envolta numa tensão suave, a flutuar no ar como uma bruma espessa. Soledad levantou-se antes de o galo cantar.
Abriu a janela deixando entrar uma corrente de ar fresco que cheirava a terra nova, a folhas molhadas e a futuro. Sentia um tremor no peito, uma mistura de expectativa e medo. Tinha escutado rumores durante semanas, mas nessa madrugada algo estava prestes a confirmar-se. Desceu à cozinha onde Elena já estava acordada, sentada à mesa com uma carta aberta entre as mãos.
“Soledad”, sussurrou levantando a vista. “Chegou a notícia.”
Soledad sentiu o coração a bater-lhe no peito.
“Que notícia?”
Elena respirou fundo.
“O governo aprovou a abolição. Aqui no nosso estado, é oficial.”
Por um instante, as palavras não pareceram reais. Flutuaram entre elas como uma luz suave, trémula, impossível. Soledad levou a mão ao peito, igual àquele primeiro dia no barracão.
“Significa que…?”
“Sim”, disse Elena com os olhos cheios de lágrimas. “Significa que eles são livres a partir de hoje.”
As duas amigas olharam-se longamente. Não era alegria completa, não era alívio total, era algo mais profundo, mais complexo. Era uma esperança misturada com a sombra do medo. Quando saíram para o pátio, o ambiente já era um enxame. Trabalhadores reunidos, capatazes nervosos, os cavalos inquietos. A voz de don Esteban a ressoar como um trovão.
“Todos para o celeiro principal! Temos que esclarecer esta situação.”
Soledad e Elena caminharam entre a multidão como duas sombras silenciosas. Benedicto e Mateo estavam ali, ombro com ombro, a olhar para a frente com tensão no rosto. Soledad sentiu um nó na garganta ao vê-los. Quando os olhos de Mateo encontraram os dela, houve um brilho quente. Quando Elena viu Benedicto, sentiu que o ar lhe faltava.
Então, don Esteban subiu para uma caixa e levantou um papel.
“Decretou-se a liberdade dos trabalhadores”, leu com voz dura. “A partir de hoje deixam de pertencer a esta fazenda.”
Houve murmúrios, gritos de incredulidade, suspiros, choros contidos. Benedicto fechou os olhos como se rezasse sem palavras. Mateo apertou o punho, mas não com raiva, mas com emoção contida.
“Podem ficar a trabalhar”, continuou don Esteban com frieza, “mas já não estão sob a minha autoridade. A partir de hoje ser-lhes-á pago um salário mínimo. Isso é tudo.”
E desceu sem mais. Não houve celebração da parte da família Montemayor. Não houve abraços. Não houve felicitações, apenas um silêncio tenso, incómodo, que envolvia a todos. Mas para os quatro algo explodia no peito como um fogo novo. Soledad foi a primeira a aproximar-se. Caminhou entre a multidão com o coração a martelar, sentindo que cada passo a aproximava de uma verdade inevitável.
Quando chegou à frente de Mateo, não soube o que dizer, apenas o olhou e o mundo pareceu parar.
“És livre”, sussurrou ela.
Mateo olhou-a com um brilho que jamais tinha mostrado.
“Obrigado por mo lembrar”, respondeu, “porque ainda não acredito.”
Soledad sentiu um tremor nas mãos. Não sabia se era emoção ou medo. Elena, atrás dela, estava à frente de Benedicto.
“E agora? O que farás?”, perguntou ela.
Ele encolheu os ombros suavemente.
“Não sei. Nunca pensei no futuro. Não mo permitiam.”
Elena sentiu as lágrimas a assomar. Sem saber porquê, sem poder evitá-lo, roçou-lhe o braço com delicadeza; um gesto pequeno, mas para Benedicto foi como tocar a liberdade pela primeira vez.
Nessa tarde, quando o sol descia e pintava de cores quentes as paredes de madeira, os quatro reuniram-se atrás do estábulo, escondidos do mundo como sempre. Mas já não eram os mesmos. O ar entre eles estava carregado de emoção, de incerteza e de algo mais profundo. Um carinho que não pedia licença, um afeto que não necessitava de correntes para existir.
Soledad respirou fundo.
“A lei mudou”, disse ela, “mas a gente não vai mudar tão rápido. O meu pai, a sociedade… não será fácil.”
Mateo assentiu.
“Eu sei, mas…” aproximou-se um passo dela. “A liberdade começa aqui dentro”, disse tocando no peito.
Soledad sentiu que o mundo encolhia à volta dos dois. Elena olhou para Benedicto.
“E tu, o que sentes?”
Ele olhou-a muito tempo, depois respondeu com sinceridade transparente:
“Sinto que pela primeira vez posso escolher… e escolho ficar perto de ti.”
Elena levou a mão aos lábios, emocionada. O vento moveu as folhas como um murmúrio de aprovação da floresta. Os quatro permaneceram ali em silêncio, cada um sentindo que a liberdade recém-concedida não era apenas política, era emocional, era íntima, era perigosa, mas também era bela.
A tarde caía sobre San Gabriel com uma cor âmbar que suavizava tudo: os campos, as paredes, as árvores, até os rostos cansados dos trabalhadores. Depois do anúncio da liberdade, a fazenda parecia suster a respiração. Ninguém sabia se devia celebrar ou temer. Ninguém entendia bem como se vivia sendo livre num lugar onde todos continuavam a olhá-los como antes.
Mas entre as árvores, longe do bulício, quatro corações batiam com um ritmo diferente. Soledad caminhava para a pequena clareira atrás do estábulo, onde o sol filtrado entre os ramos criava manchas douradas no chão. O seu vestido claro movia-se com a brisa e as suas mãos tremiam ligeiramente. De longe viu a silhueta de Mateo sentado num tronco como no primeiro dia.
Mas agora o ambiente era outro. Agora ele não era um homem sob ordens, agora era um homem livre. Mateo talhava outro pedaço de madeira. Quando escutou os passos dela, levantou a vista. O seu olhar antes resignado tinha um brilho suave, um brilho novo, um brilho que falava de possibilidades.
“Soledad”, disse com voz baixa, como se pronunciar o nome dela fosse um privilégio recente.
Ela deteve-se a uns passos sem saber como começar. A sua respiração tornou-se mais lenta, mais profunda.
“Queria ver-te”, admitiu ela com uma sinceridade que lhe queimava na garganta.
Mateo deixou a madeira de lado.
“E eu queria que viesses.”
O silêncio entre os dois não era incómodo, era quente. Era o tipo de silêncio que só se partilha com alguém que importa. Soledad deu um passo mais, depois outro, até ficar suficientemente perto para sentir o calor do corpo dele.
“Como te sentes agora que és livre?”, perguntou num sussurro.
Mateo olhou para as suas próprias mãos como se ainda precisasse de se convencer de que já não estavam atadas a nada.
“Estranho”, admitiu, “como se me tivessem tirado uma corrente. Mas ainda sinto o seu peso.” Olhou-a nos olhos. “Mas quando te vejo… sinto que esse peso desaparece.”
Soledad baixou o olhar, corada. Uma emoção doce e perigosa percorreu-lhe a coluna. Mateo esticou a mão lentamente, devagar, como quem teme partir um cristal. Roçou a mão dela com a ponta dos dedos. Apenas um toque, apenas um sopro de contacto, mas para Soledad foi como se toda a floresta se iluminasse. Ela não retirou a mão, não podia, não queria.
Os seus dedos entrelaçaram-se com os dele. Esse gesto tão simples, tão íntimo, tão proibido, foi o primeiro da sua vida que não nasceu do dever, mas do desejo. O coração de Soledad bateu contra o peito com um ritmo novo, um ritmo que jamais tinha sentido com nenhum homem da sua classe social.
Mateo olhava-a com uma mistura de respeito, intensidade e ternura que a desarmava.
“Mateo”, sussurrou ela, “isto é perigoso.”
Ele assentiu.
“Sim, mas também é real.”
Ela levantou o olhar e viu-o. Os seus olhos escuros, firmes, sinceros, dizendo sem palavras o que ele não se atrevia ainda a pronunciar. Soledad sentiu que algo se partia dentro dela, algo que a tinha mantido fechada no que devia ser. E algo novo nascia no seu lugar, o que ela realmente queria ser. Mateo aproximou a sua testa da dela. Não lhe tocou, apenas ficou a uns milímetros, respirando o mesmo ar, sentindo o mesmo tremor.
Soledad fechou os olhos e pela primeira vez na sua vida não pensou nas regras, não pensou no seu pai, não pensou na sociedade, só pensou nele. As suas mãos continuavam entrelaçadas quando ouviram passos na floresta. Soledad separou-se com um sobressalto. Mateo deu um passo atrás. O coração de ambos batia com força.
“Soledad!”, chamou uma voz conhecida. Era Elena.
Soledad respirou fundo tentando recuperar o controlo, mas quando Elena apareceu entre as árvores, não vinha sozinha. Benedicto acompanhava-a, caminhando atrás dela com expressão protetora. Elena tinha as bochechas acesas, o cabelo ligeiramente despenteado e um sorriso que não costumava mostrar. Benedicto caminhava como se temesse aproximar-se demasiado, mas também como se não quisesse estar longe.
“Perdão, não sabíamos que estavam aqui”, disse Elena tentando conter a emoção.
Soledad olhou-a e nesse instante entenderam tudo sem necessidade de palavras. O que Soledad sentia por Mateo era o reflexo exato do que Elena começava a sentir por Benedicto. Elena aproximou-se para o lado de Soledad. Benedicto colocou-se junto a Mateo. Os quatro ficaram ali num círculo imperfeito, iluminados pela luz dourada da tarde.
Pela primeira vez não havia correntes, nem ordens, nem limites marcados por outros. Só havia olhares, respirações, temores novos e emoções que floresciam em silêncio. Elena levou a mão ao peito.
“Hoje”, disse com voz trémula, “hoje foi a primeira vez que o Benedicto me contou algo da sua infância, algo que nunca tinha dito a ninguém.”
Benedicto baixou o olhar humilde, mas quando o levantou dedicou a Elena um olhar que a deixou sem fôlego, um olhar cheio de confiança. Soledad observou essa cena e sentiu um calor no coração. Elas duas e eles dois estavam a entrar juntos num território emocional perigoso, um lugar sem mapas, um lugar onde o amor podia começar, mas também destruí-los. Mateo olhou para Soledad mais uma vez.
“Se seguirmos este caminho, não poderemos voltar atrás.”
Soledad respirou lento, profundo, com convicção.
“Não quero voltar atrás”, disse, “ao fim.”
O silêncio da floresta foi testemunha desse pacto invisível, frágil, proibido, belo, um pacto que mudaria as suas vidas para sempre. O dia seguinte amanheceu espesso, como se o ar estivesse carregado de presságios. As nuvens cinzentas estendiam-se sobre os campos de San Gabriel, anunciando tempestade. O vento movia as folhas das árvores com força, levantando um murmúrio inquietante que parecia percorrer toda a fazenda.
Soledad acordou com um nó no estômago. Tinha fechado os olhos na noite anterior a pensar no roçar da mão de Mateo, na sua respiração perto da dela, na maneira como as suas palavras tinham acendido algo dentro dela. Mas a luz do novo dia trouxe consigo outra sensação: medo. Não medo do sentimento, mas medo da sociedade que a rodeava.
Vestiu-se com um vestido cor de creme simples e desceu à cozinha onde encontrou Elena sentada a olhar fixamente para uma chávena de café. As suas mãos tremiam levemente.
“Soledad”, murmurou sem levantar a vista. “A gente está a falar.”
Soledad sentiu um arrepio.
“A falar de quê?”
Elena engoliu em seco como se as palavras lhe custassem.
“De nós, de que passamos demasiado tempo perto dos barracões, de que olhamos demasiado para alguns trabalhadores.”
Soledad deixou escapar um suspiro trémulo. O peso do mundo caiu-lhe em cima de repente.
“Quem o disse?”
“A minha mãe mencionou-o ao pequeno-almoço.” A voz de Elena era um sussurro quebrado. “Disse que as senhoritas de boa família devem manter distância. Porque a liberdade recente está a revolver as cabeças dos trabalhadores.”
Soledad fechou os olhos. A frase atravessou-a como uma flecha. Sabia que a sociedade não mudaria tão rápido como a lei. Mateo tinha-o dito e agora estava a vivê-lo na própria pele.
“Não podemos deixar que isto chegue aos ouvidos deles”, disse Elena finalmente levantando o olhar. “Se o Benedicto ou o Mateo acreditarem que nos prejudicam, afastar-se-ão.”
Soledad apertou os punhos, a ideia rasgava-a.
“Não vou permiti-lo”, disse com um fio de voz carregado de determinação. “Não vou perder o que estou a começar a sentir.”
Elena assentiu lentamente. Ela também estava disposta a lutar, embora não soubesse ainda como. Nesse mesmo dia, ao cair a tarde, Soledad decidiu caminhar até ao estábulo. Precisava de ver o Mateo. Precisava de lhe dizer que não se afastasse, embora o mundo quisesse separá-los. Os campos estavam quase vazios.
Os trabalhadores tinham terminado a jornada. A luz alaranjada do sol desenhava sombras longas que pareciam alongar as árvores. Quando chegou ao estábulo, viu Mateo a guardar umas ferramentas. Estava sozinho. A respiração de Soledad tornou-se um redemoinho.
“Mateo”, sussurrou.
Ele virou-se e o brilho quente nos seus olhos bastou para que ela sentisse que tudo valia a pena.
“Soledad”, disse aproximando-se com passos lentos. “Estava à tua espera.”
Ela quis sorrir, mas o peso dos rumores atravessou-se-lhe na garganta.
“Mateo, hoje ouvi coisas… coisas horríveis. Gente a dizer que nós, que eu estou demasiado perto de onde não devia estar.”
Mateo franziu o sobrolho, como se lhe doesse.
“Devia ter imaginado”, murmurou. “A liberdade não muda os corações de todos. Não ainda.”
“Não quero que penses que tens que te afastar”, disse Soledad rapidamente. “Não quero que carregues com culpa por algo que não é culpa tua.”
Mateo deu um passo mais na direção dela.
“Nunca pensei isso, Soledad, mas sim pensei que poderias arrepender-te.”
Ela negou de imediato com uma emoção que a quebrou.
“Não posso arrepender-me de algo que me faz sentir viva.”
Mateo fechou os olhos um segundo como quem recebe um golpe doce. Depois ganhou coragem para se aproximar mais. Por um instante as suas respirações misturaram-se.
“Eu também te sinto”, disse ele com voz baixa. “E não quero perder-te, mas temos que ser cuidadosos.”
Soledad assentiu. O gesto foi pequeno, mas dentro dela significava um pacto. Entretanto, Elena tinha ido ao pequeno horto atrás da cozinha, onde sabia que encontraria Benedicto a colher abóboras. Viu-o de longe: o corpo firme, a pele brilhante pelo sol, as mãos grandes a trabalhar com paciência. Ele levantou a cabeça e viu-a.
Um sorriso suave desenhou-se no seu rosto como se vê-la fosse o melhor momento do dia.
“Elena”, disse, aproximando-se com uma calidez que derretia qualquer medo.
“Benedicto, hoje disseram coisas sobre mim, sobre nós.”
Ele deixou as abóboras no chão. Os seus olhos encheram-se de preocupação.
“Fizeram-te mal?”
“Não, mas doeu-me porque falam como se eu não pudesse escolher com quem quero estar… e eu… eu escolho-te a ti.”
Benedicto ficou imóvel como se as palavras fossem demasiado grandes para entrar no seu coração de repente.
“Elena…”, sussurrou aproximando-se apenas. “Sabes o que dizes? Sabes o que isto significa?”
Ela respirou fundo.
“Sei o que sinto e isso basta-me.”
O vento soprou forte, movendo os seus cabelos. Benedicto levantou uma mão devagar e ajeitou uma madeixa atrás da orelha de Elena; um gesto pequeno, mas cheio de ternura, cheio de força, cheio de promessa. Ao cair a noite, Soledad e Elena encontraram-se no seu quarto. Ambas estavam esgotadas, mas também envoltas numa determinação doce e selvagem.
“Falaste com o Mateo?”, perguntou Elena.
“Sim. E tu com o Benedicto?”
Ambas assentiram. O silêncio que se seguiu estava cheio de emoção.
“Então”, disse Soledad com os olhos brilhantes, “não importa o que diga a sociedade, vamos seguir em frente.”
Elena pegou-lhe na mão.
“Sim, não vamos desistir.”
E nesse pacto, as duas selaram o destino de quatro corações que estavam dispostos a desafiar tudo. A tempestade que tinha ameaçado durante dias finalmente estalou sobre San Gabriel. O céu rugia com um som grave, como se o mundo inteiro quisesse advertir que algo estava prestes a quebrar-se. A chuva batia nos telhados de madeira, formando um murmúrio constante que envolvia toda a fazenda num véu cinzento e pesado.
No quarto de Soledad, uma vela piscava junto à janela. A sua luz trémula iluminava o rosto inquieto da jovem. Caminhava de um lado para o outro, com as mãos entrelaçadas frente ao peito, como se temesse que o coração lhe escapasse.
“Elena”, sussurrou parando finalmente. “Não podemos continuar a esconder-nos assim. Não podemos viver só de momentos roubados na floresta ou atrás de um estábulo ou quando ninguém vê.”
Elena estava sentada na cama, descalça, abraçando uma almohada contra o peito. A chuva repicava sobre os vidros, acompanhando a sua respiração agitada.
“Eu sei, Soledad”, respondeu. “Eu também sinto que estamos num ponto em que já não podemos voltar atrás.”
As duas olharam-se e nos seus olhos havia a mesma mistura de medo e determinação. O que tinham construído com Mateo e Benedicto já não era um capricho, nem um impulso, nem um ato de rebeldia, era amor. E os amores verdadeiros não cabem em cantos escuros para sempre. Soledad aproximou-se da cama, sentou-se ao lado de Elena e pegou-lhe na mão.
“Eles não vão pedir nada que nos cause dano”, disse com voz trémula. “Mas se nós não tomarmos uma decisão, a sociedade fá-lo-á por nós.”
Elena baixou o olhar. Sabia que era verdade. A gente murmurava cada vez mais. Os olhares eram mais longos, os comentários mais afiados e, no entanto, quando Benedicto lhe falava da sua infância, dos seus sonhos de ter uma família, do seu desejo de ser querido, Elena sentia que o mundo inteiro desaparecia.
Soledad, por sua vez, não conseguia esquecer a forma como Mateo lhe pegava na mão com tanta suavidade, como se temesse quebrá-la ou como se a sua vida inteira dependesse desse gesto. A tempestade continuava a bater, mas ainda assim as duas jovens saíram da casa cobertas por capas grossas. Cruzaram o pátio sob a chuva, sentindo cada gota fria como um batimento na pele. As tochas apagavam-se com o vento, mas elas continuaram a caminhar, guiadas por algo mais forte que o medo.
Entraram na floresta onde as árvores balançavam furiosas com a tempestade. A clareira onde costumavam encontrar-se estava quase escura, apenas iluminada pelo relâmpago ocasional. Ali, sob um grande carvalho, estavam Mateo e Benedicto, ensopados, à espera.
“Sabíamos que viriam”, disse Mateo ao vê-las com uma voz profunda que atravessava o ruído da chuva.
Soledad correu para ele, Elena para Benedicto. E por um instante os quatro abraçaram-se sob a tempestade, como se quisessem proteger-se uns aos outros do mundo inteiro. Mateo tomou o rosto de Soledad entre as mãos.
“Diz-me, o que se passa?”
Ela respirou fundo. O coração parecia querer sair-lhe do peito.
“Não podemos continuar a viver assim, Mateo”, disse com a voz quebrada. “Não quero que te escondas por minha culpa. Não quero que vivas com medo de que a minha família te descubra ou que te culpem ou que te apartem de mim.”
Mateo baixou as mãos com uma tristeza profunda.
“Soledad… eu estaria disposto a desaparecer se isso te mantivesse a salvo.”
Ela negou com força.
“Não, não quero que desapareças. Quero escolher-te.”
O silêncio entre ambos foi tão intenso que nem a tempestade pôde quebrá-lo. A uns passos, Elena estava frente a Benedicto, a respirar igualmente agitada.
“Benedicto”, sussurrou ela, “a gente fala. Dizem que me aproximo demasiado de onde não devo, que tu… que nós estamos a cruzar limites proibidos.”
Benedicto olhou-a com uma mistura de dor e esperança.
“Se queres que me afaste, Elena, eu posso fazê-lo. Não quero que te magoem por minha culpa.”
Elena deu um passo em frente e tomou-lhe a mão com firmeza.
“Não quero que te afastes. Quero que caminhemos juntos, embora todo o mundo nos olhe mal.”
A expressão de Benedicto suavizou-se. Os seus olhos brilharam com uma emoção que nunca tinha podido mostrar abertamente. Os quatro ficaram num pequeno círculo sob o velho carvalho. O vento movia as suas roupas. A chuva fazia com que as suas mãos escorregassem quando se tocavam, mas ainda assim não se soltaram.
Soledad ergueu a voz.
“Temos que tomar uma decisão. Vamos continuar a esconder-nos ou vamos enfrentar o que vier?”
Mateo olhou em redor: as sombras da floresta, o céu aberto, a chuva a cair como lágrimas do mundo… e entendeu.
“Não quero esconder-me mais”, disse finalmente. “Não quero viver pela metade. Quero viver contigo.”
Soledad sentiu que o peito se lhe enchia de fogo. Benedicto aproximou-se de Elena e pôs a sua mão sobre a dela.
“Se tu queres, eu também estou pronto.”
Elena respirou fundo e assentiu. A tempestade rugiu nesse instante como se celebrasse a decisão que acabavam de tomar. Os quatro deram as mãos: um círculo perfeito, uma promessa silenciosa, uma declaração de amor que não precisava de palavras. Aquela noite sob o céu furioso fizeram um pacto: acontecesse o que acontecesse, não se separariam. Nem a sociedade, nem as regras, nem o medo iam quebrar o que estavam a construir. As gotas de chuva caíam como bênçãos rotas sobre os seus rostos, e cada batida dos seus corações dizia a mesma verdade: o amor proibido já não tinha volta atrás.
A tempestade tinha terminado, mas a fazenda San Gabriel amanheceu coberta por uma neblina espessa, como se a noite anterior tivesse marcado o fim de uma era. A terra ainda estava molhada, brilhando sob os primeiros raios de sol. As folhas gotejavam, os pássaros cantavam timidamente e um silêncio estranho dominava o ar. Mas dentro da casa grande o ambiente era pesado, demasiado pesado. Soledad acordou com o coração acelerado.
Tinha dormido mal, atormentada pela decisão tomada na noite anterior sob a tempestade. Uma decisão bela, mas perigosa. Enquanto se vestia, escutou os passos duros do seu pai no corredor e a voz áspera da sua mãe. A palavra “rumores” ressoou como um sino de alarme. A palavra “vergonha” gelou-lhe o sangue. E a frase que a fez tremer foi:
“Não vou permitir que a minha filha manche o apelido Montemayor.”
Soledad ficou imóvel, sentindo que o tempo parava. Sabia o que isso significava. Sabia que o seu pai estava pronto para quebrar o laço invisível que ela tinha formado com Mateo e quebrá-lo a qualquer custo. Correu para o quarto de Elena, que já estava acordada, pálida, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
“A minha mãe falou comigo”, sussurrou. “Disse que nos mandarão para longe, para outra cidade, para nos proteger.”
Soledad levou uma mão ao peito.
“Querem separar-nos à força.”
As duas amigas olharam-se, entendendo a gravidade do momento. Tinham chegado ao ponto em que as decisões já não eram silenciosas, em que o amor já não podia esconder-se, em que a única saída era fugir. Enquanto a família se reunia na sala de jantar, Soledad fingiu descer as escadas, mas em vez de entrar na sala, escapuliu-se pela porta lateral e correu para a floresta.
O ar cheirava a humidade e liberdade. Os ramos molhados batiam-lhe nos braços, mas ela não parava. Chegou à clareira onde sempre encontravam Mateo e Benedicto e ali estavam à espera delas como se o tivessem pressentido. Mateo aproximou-se assim que a viu.
“Soledad, o que se passa?”
Ela olhou-o com lágrimas que não conseguiu conter.
“O meu pai quer separar-nos, quer enviar-me para longe e não sei o que fará contigo se descobrir a verdade.”
Mateo semicerrou os olhos. O medo no seu rosto não era por ele, era por ela.
“Então, não podemos ficar”, disse ele com firmeza. “Iremos embora juntos.”
Soledad sentiu o coração dar um salto.
“Iremos embora?”
“Sim”, disse Benedicto aproximando-se. “A Elena também, os quatro. Não podemos continuar a esperar que a sociedade nos aceite, mas podemos construir a nossa própria vida, nem que seja longe daqui.”
Um ramo estalou atrás deles. Era Elena que acabava de chegar a correr com o rosto empapado de lágrimas, mas também de determinação.
“Estou pronta”, disse sem duvidar. “Não vou deixar que me separem do Benedicto.”
O vento soprou forte, movendo os seus cabelos. Os quatro deram as mãos e nesse pequeno círculo, sob as árvores húmidas, tomaram a decisão que mudaria as suas vidas para sempre. Partiram ao cair da noite, levando apenas o necessário: roupa, pão seco, água e um par de mantas. Cruzaram as florestas em silêncio com o coração a palpitar como tambor no peito. O medo caminhava com eles, mas também caminhava a esperança.
Depois de dias de viagem, chegaram a uma pequena aldeia longe de qualquer fazenda conhecida. Uma comunidade humilde, tranquila, onde ninguém perguntava pelo passado de ninguém. Ali encontraram uma casinha de madeira rodeada de campos abertos e de um riacho claro onde os pássaros cantavam ao amanhecer. Foi ali que começaram a sua nova vida.
Sem luxos, sem apelido, sem permissões, apenas com amor e liberdade. Mateo e Benedicto trabalhavam na carpintaria e na construção. Soledad e Elena abriram um pequeno local onde vendiam pão e ervas medicinais. A aldeia pouco a pouco começou a aceitá-los e com o tempo a querê-los, porque o amor verdadeiro, quando é puro, quando é honesto, encontra o seu lugar no mundo.
Anos mais tarde, a casinha de madeira já não era silenciosa. Havia risos, passinhos, vozes pequenas a chamar os pais. Elena teve duas meninas de Benedicto. Soledad teve dois meninos de Mateo e os quatro criaram os filhos como uma só família, unida, inseparável, forte.
Nas tardes de verão todos se sentavam lá fora a ver as crianças a correr descalças na relva. Mateo talhava figuras de madeira. Benedicto contava histórias. Elena e Soledad riam juntas com a paz que nunca tinham conhecido na fazenda. Tinham pago um preço alto, tinham deixado para trás tudo, mas tinham ganho o mais importante: uma vida onde amar-se não era pecado, onde tocar-se não era perigo e onde formar uma família era possível.
Uma família que, embora improvável, era real, era bela, era sua. E assim viveram juntos, livres, felizmente até ao fim dos seus dias. Se esta história te emocionou, deixa o teu gosto e aperta o botão de apoiar o canal. Para demonstrar que escutaste até ao fim, comenta a palavra “liberdade” junto com o lugar de onde nos estás a escutar. O teu apoio mantém vivas estas histórias cheias de amor e coragem.