A História Sombria das Irmãs Rios: Quitutes Feitos com a Carne do Próprio Marido – São Paulo, 1921

O aroma subia pelas ruas poeirentas de Ribeirão Preto, em pleno ano de 1921, como uma serpente invisível, serpentando entre as casas coloniais e penetrando nas narinas de cada transeunte. A cidade fervilhava com o ouro verde do café, a riqueza a escorrer pelas calçadas, mas havia algo diferente no ar naquela manhã de setembro, algo que transcendia o cheiro a prosperidade e se agarrava à pele com uma sedução perturbadora. Era um aroma que fazia as pessoas pararem a meio do caminho e inspirarem profundamente, como se fossem hipnotizadas por uma força sobrenatural, arrastadas por uma fome que não sabiam existir.

Na pequena quitanda da Rua do Comércio, duas figuras trabalhavam em silêncio. Eulália e Perpétua Rios, irmãs de meia-idade, vestidas sempre de preto, como viúvas eternas de maridos que ninguém conhecera nem vira partir. As suas mãos moviam-se com uma precisão cirúrgica sobre a massa, moldando empadas que pareciam pequenas obras de arte. Mas era o recheio que despertava a curiosidade e, mais importante, o vício de todos.

Dona Conceição, esposa do farmacêutico e figura de proa da sociedade, foi a primeira cliente da manhã. Morde o quitute ainda quente e os seus olhos arregalaram-se de prazer, numa explosão quase indecente de satisfação. O sabor explodia na sua boca como fogo de artifício, uma combinação de temperos que ela jamais havia experimentado. A carne era macia, suculenta, com um gosto que lhe parecia estranhamente familiar, mas ao mesmo tempo completamente novo. Era um sabor que despertava memórias primitivas, que lhe acalmava uma sede da alma.

“Qual é o segredo deste tempero extraordinário, menina Eulália?”

Eulália observava cada reação com uma tensão felina. Os seus olhos escuros brilhavam com uma satisfação perturbadora, quase como se estivesse a saborear algo muito mais profundo do que simples elogios culinários, enquanto via os clientes saborearem as suas criações. Perpétua, dois anos mais nova, permanecia sempre em segundo plano, mas os seus lábios esboçavam um sorriso que gelava o sangue de quem prestasse atenção. Aquele sorriso não era de alegria; era de cumplicidade num segredo delicioso e terrível.

A fila crescia a cada minuto. Comerciantes, donas de casa, trabalhadores das fazendas de café… Todos queriam provar os famosos quitutes das Irmãs Rios. Alguns voltavam três, quatro vezes no mesmo dia, como viciados numa droga irresistível que lhes prometia o fim de todo o vazio existencial. Seu Geraldo, o sapateiro, mastigava lentamente uma coxinha e abanava a cabeça em aprovação extasiada. Nunca havia provado carne tão saborosa. Tinha uma textura diferente, quase sedosa, que se desfazia na boca como manteiga derretida. O tempero era complexo, com notas que ele não conseguia identificar, mas que despertavam nele uma fome primitiva, quase animal. Por que razão aquela carne era tão diferente de todas as outras?

As irmãs trabalhavam como uma máquina bem oleada, num silêncio que só a prática e a devoção a um ritual obscuro podiam conceder. Eulália, na frente, atendia os clientes com um sorriso calculado, uma máscara de civilidade impecável, enquanto Perpétua permanecia nos fundos, preparando os recheios com uma dedicação quase religiosa, isolada e protegida. De vez em quando, trocavam olhares cúmplices, um entendimento silencioso que unia as duas num pacto que mancharia para sempre a história daquela cidade próspera. Porque por trás daquele sabor irresistível, por trás daquela fome insaciável que despertavam nos clientes, escondia-se o mais terrível dos segredos.

Dona Iracema, que morava na casa ao lado, observava pela janela com um desconforto crescente, uma náusea que lhe subia pela garganta. Havia algo errado com aquelas mulheres, algo que ela não conseguia definir, mas que fazia o seu estômago revirar-se de ansiedade e medo. Talvez fosse a forma como sorriam, sempre com os lábios fechados, nunca mostrando os dentes, como se escondessem um apetite voraz. Ou talvez fosse o brilho nos seus olhos quando alguém elogiava a comida, como se estivessem a saborear algo muito mais profundo que meros elogios culinários.

O movimento na quitanda era incessante. Cada cliente que saía levava consigo não apenas os quitutes, mas também uma estranha sensação de satisfação que ia além da fome saciada. Era como se aquela comida preenchesse um vazio que eles nem sabiam que existia, uma necessidade primária que agora era suprida com a regularidade viciante de uma droga. Mas ninguém questionava, ninguém investigava. Todos simplesmente voltavam no dia seguinte, ansiosos por mais uma dose daquele prazer inexplicável.

As horas passavam e o sol começava a inclinar-se no horizonte. A quitanda finalmente esvaziava, mas o aroma persistia no ar como um fantasma perfumado que se recusava a deixar a rua. Eulália contava as moedas com uma satisfação fria, enquanto Perpétua limpava os utensílios com movimentos mecânicos e silenciosos.

Quando a última cliente saiu, as duas irmãs entreolharam-se novamente. Desta vez, o sorriso foi mais amplo, mais genuíno, como se tivessem acabado de partilhar a melhor piada do mundo. Uma piada que só elas entendiam, uma piada que transformaria para sempre aquelas duas mulheres, aparentemente inofensivas, nas figuras mais sinistras que Ribeirão Preto jamais conhecera. E o pior de tudo era que ninguém desconfiava, ninguém imaginava que cada mordida, cada elogio, cada volta à quitanda os tornava cúmplices involuntários de algo monstruoso, algo que estava apenas a começar a ganhar forma.

A residência das Irmãs Rios erguia-se como uma sombra sinistra na Rua do Comércio, número 47. Era uma construção colonial de dois andares, com paredes de taipa que pareciam absorver a luz do sol em vez de a refletirem, como se a casa fosse uma boca sempre aberta para a escuridão. As janelas permaneciam sempre fechadas, protegidas por pesadas cortinas de veludo escuro que impediam qualquer olhar curioso de penetrar nos seus segredos. O quintal era cercado por muros altos de pedra, construídos com uma precisão que sugeria muito mais do que simples privacidade. Era como se as irmãs quisessem manter algo dentro, longe dos olhos do mundo exterior, algo que não podia ser revelado à luz do dia.

Dona Iracema acordava todas as noites com os mesmos ruídos perturbadores. Eram barulhos metálicos, de um rangido frio e seco, que ecoavam através das paredes, como se alguém estivesse a afiar facas ou a cortar algo resistente. O som vinha sempre do porão da casa vizinha, aquele espaço subterrâneo que ninguém jamais havia visto. Por que razão aqueles ruídos só aconteciam durante a madrugada? Na primeira vez, ela pensou que fosse apenas a sua imaginação, mas as noites sucediam-se e os barulhos repetiam-se com uma regularidade assustadora, sempre entre as 2 e as 4 horas da manhã, sempre acompanhados de algo que a fazia tremer sob os cobertores: gemidos abafados que pareciam vir das profundezas da terra. Sons de sofrimento que lhe rasgavam o sono e a paz.

O seu marido, António, tentava acalmá-la com explicações racionais. Talvez fossem ratos grandes a correr pelo porão, talvez o vento a bater em objetos soltos. Mas Iracema sabia, no fundo da sua alma, que aqueles sons não tinham nada de natural; eram sons de uma agonia silenciada. Durante o dia, quando se atrevia a questionar as irmãs sobre os ruídos noturnos, Eulália respondia sempre com a mesma explicação fria:

“É apenas o vento, minha vizinha. O porão é antigo, as madeiras rangem, os canos fazem barulho.”

Perpétua apenas abanava a cabeça em concordância, os olhos fixos no chão, como se escondesse algo terrível por trás daquele silêncio. Mas se era apenas o vento, por que razão os ruídos cessavam completamente durante o dia?

Libânio Ferreira havia sido o orgulho de Eulália. Um homem robusto de 45 anos, com braços fortes moldados por anos de trabalho no mercado municipal. Como açougueiro, conhecia carnes como poucos na cidade. Sabia distinguir a qualidade da carne apenas pelo toque, pelo cheiro, pela cor. Era um profissional respeitado, querido pelos clientes que confiavam na sua expertise.

Mas há três semanas, Libânio simplesmente desaparecera. A última pessoa a vê-lo foi Joaquim, o vendedor de verduras do mercado. Libânio havia fechado o seu talho, como sempre, às 6 horas da tarde, e caminhara em direção a casa. Parecia normal, talvez um pouco preocupado, mas nada que chamasse a atenção. Nunca mais foi visto.

Quando os vizinhos perguntavam sobre o marido, Eulália baixava os olhos e murmurava a mesma explicação:

“Ele viajou para Santos a negócios da família. Questões de herança, sabe? Coisas complicadas que poderão demorar semanas a resolver.”

Mas por que razão Libânio nunca havia mencionado parentes em Santos? E por que razão Perpétua, que antes raramente falava, agora parecia ainda mais silenciosa? Quando alguém mencionava o nome do cunhado, ela enrijecia como uma estátua, os seus olhos a adquirirem um brilho estranho que fazia as pessoas desviarem o olhar instintivamente.

Dona Conceição, sempre curiosa, tentou arrancar mais informações. Perguntou sobre a data de regresso de Libânio, se ele havia deixado algum recado, se estava tudo bem com a família em Santos, mas as respostas de Eulália eram sempre vagas, contraditórias, como se estivesse a inventar detalhes na hora.

E havia algo mais perturbador. Desde o desaparecimento de Libânio, a qualidade da carne nos quitutes das irmãs havia melhorado drasticamente. O sabor estava mais intenso, mais complexo, como se tivessem descoberto um fornecedor especial, uma fonte de ingredientes que lhes permitia uma excelência culinária nunca antes alcançada. Seu Geraldo notou a mudança imediatamente. A textura era diferente, mais macia, com um sabor que despertava uma fome quase primitiva. Era como se aquela carne tivesse sido preparada por alguém que realmente entendia do assunto. Alguém com conhecimento profundo sobre cortes, temperos, técnicas de preparação. Alguém como um açougueiro experiente.

Os vizinhos começaram a sussurrar entre si. Pequenos comentários, observações aparentemente inocentes que, juntas, formavam um mosaico perturbador. Por que razão Eulália parecia tão aliviada desde o desaparecimento do marido? Por que razão Perpétua, antes tímida, agora caminhava com uma confiança quase arrogante? E por que razão, nas noites mais silenciosas, ainda era possível ouvir aqueles gemidos abafados vindos do porão?

Dona Iracema começou a anotar os horários dos ruídos noturnos. Descobriu um padrão assustador. Eles sempre aconteciam nos dias que antecediam os lotes mais saborosos de quitutes, como se houvesse uma conexão macabra entre o sofrimento noturno e o prazer culinário do dia seguinte. A casa número 47 guardava segredos que iam muito além de receitas familiares. Algo terrível estava a acontecer, algo que transformaria para sempre a perceção dos moradores sobre aquelas duas mulheres aparentemente inofensivas que preparavam os quitutes mais deliciosos da cidade. E o mais assustador era que ninguém queria realmente saber a verdade, porque a verdade poderia destruir o prazer que aqueles sabores proporcionavam.

O comboio apitou três vezes antes de parar na estação de Ribeirão Preto naquela manhã nebulosa de setembro. Do vagão de primeira classe desceu um homem alto, de bigode bem aparado e olhos que pareciam enxergar além das aparências. O Delegado Otávio Mendonça carregava apenas uma mala de couro e um peso invisível nos ombros: a responsabilidade de desvendar mistérios que atormentavam o interior paulista.

Vinha de São Paulo com uma missão específica. Cinco homens haviam desaparecido sem deixar rasto em diferentes cidades da região. Todos casados, todos trabalhadores respeitados nas suas comunidades. Todos simplesmente se evaporaram como fumaça, deixando para trás esposas confusas e vizinhos perplexos. Libânio Ferreira era o nome mais recente na lista sinistra.

Mendonça havia desenvolvido um método peculiar de investigação ao longo dos seus 15 anos de carreira. Não começava pelas esquadras locais ou pelos depoimentos oficiais. Preferia mergulhar na vida quotidiana das cidades, observar os hábitos dos moradores, sentir o pulso das ruas antes de formar qualquer teoria.

E foi assim que, na sua primeira manhã em Ribeirão Preto, decidiu tomar o pequeno-almoço na quitanda mais famosa da cidade. O aroma atingiu-o antes mesmo de avistar a pequena loja. Era um cheiro que despertava algo primitivo, uma fome que ia além da necessidade física de alimentação, como se aquela comida pudesse saciar vazios que ele nem sabia que existiam. Por que razão um simples quitute provocava uma reação tão intensa?

Duas mulheres trabalhavam atrás do balcão, com movimentos sincronizados, como bailarinas que ensaiaram a mesma coreografia por anos. A mais velha, que se apresentou como Eulália, tinha um sorriso que não chegava aos olhos. A mais nova, Perpétua, permanecia em silêncio, mas os seus olhares eram penetrantes, como se estivesse a avaliar cada cliente que entrava na loja.

Mendonça pediu uma empada e observou Eulália enquanto a aquecia no forno a lenha. Os seus movimentos eram precisos, quase rituais, como se cada gesto tivesse um significado especial. Quando lhe entregou o quitute, as suas mãos roçaram brevemente as dele. Estavam geladas como gelo, apesar do calor do forno.

A primeira mordida foi uma revelação perturbadora. O sabor explodiu na sua boca com uma intensidade que o apanhou desprevenido. A carne era incrivelmente macia, temperada com especiarias que ele não conseguia identificar. Mas havia algo mais, algo que fazia o seu estômago revirar-se, mesmo enquanto o seu paladar implorava por mais. Era um sabor familiar, de uma forma que o assustava. Onde havia ele provado algo parecido antes? A memória dançava na ponta da sua língua, mas recusava-se a materializar-se completamente. Era como tentar lembrar-se de um sonho perturbador logo após acordar.

Eulália observava cada expressão no seu rosto com uma atenção que ia além da simples curiosidade comercial. Era como se estivesse a estudar a sua reação, a catalogar cada nuance de prazer e desconforto que passava pelos seus olhos.

“Que tipo de carne usam nos recheios?”

perguntou Mendonça, tentando manter um tom casual.

“Carne especial,”

respondeu Perpétua, quebrando o seu silêncio habitual.

“Receita de família. Segredo que passa de geração em geração.”

Havia algo na forma como ela pronunciou a palavra ‘segredo’ que fez os pelos do pescoço de Mendonça se arrepiarem. Era como se estivesse a saborear a palavra, a extrair dela um prazer quase sensual. As duas irmãs entreolharam-se por um momento que pareceu durar uma eternidade. Naquele olhar, Mendonça captou algo que o fez instintivamente levar a mão ao revólver. Era cumplicidade, era satisfação, era algo muito mais sombrio que simples orgulho culinário.

“Vocês sempre moraram em Ribeirão Preto?”

perguntou, fingindo interesse casual enquanto terminava a empada.

“Não,”

respondeu Eulália.

“Viemos de Campinas há dois anos. Antes disso, morámos em várias cidades: Araraquara, Jaú, São Carlos. Sempre à procura do lugar perfeito para o nosso negócio.”

Por que razão se mudavam tanto? A pergunta ficou presa na garganta de Mendonça quando ele notou como os olhos de Perpétua brilharam ao ouvir os nomes das cidades. Era um brilho de nostalgia, como se estivesse a recordar momentos especialmente prazerosos, momentos que talvez envolvessem muito mais do que simples mudanças geográficas.

Mendonça pagou pela empada e saiu da quitanda com uma sensação de desconforto que crescia a cada passo. Havia algo profundamente errado com aquelas duas mulheres, algo que ia muito além de excentricidades pessoais ou hábitos estranhos. Decidiu investigar o histórico das cidades mencionadas por Eulália. O que descobriu no arquivo da esquadra local fez o seu sangue gelar. Em cada uma daquelas cidades, durante o período em que as Irmãs Rios haviam residido lá, homens casados desapareceram misteriosamente, sempre o mesmo padrão, sempre sem deixar rasto. E sempre pouco antes dos desaparecimentos, as irmãs abriam uma quitanda que se tornava famosa pelos sabores únicos dos seus quitutes.

Coincidência era uma palavra que não existia no vocabulário de um investigador experiente. Mendonça sabia que estava diante de algo muito maior e mais sinistro do que imaginara inicialmente, mas ainda não conseguia conectar todos os pontos. A resposta estava à espera dele no porão da casa número 47 da Rua do Comércio. Uma resposta que mudaria para sempre a sua perceção sobre os limites da maldade humana.

A noite caía sobre Ribeirão Preto como um manto pesado quando Mendonça decidiu investigar mais profundamente o passado das Irmãs Rios. Os arquivos da esquadra local eram escassos, mas ele havia desenvolvido uma rede de contactos em todo o interior paulista. Telegrafou para colegas em Campinas, Araraquara e Jaú, pedindo informações sobre desaparecimentos ocorridos nos últimos 5 anos.

As respostas chegaram na manhã seguinte e confirmaram os seus piores receios. Em Campinas, três homens haviam sumido entre 1919 e 1920. Todos casados, todos trabalhadores respeitados. As esposas relataram o mesmo padrão: os maridos saíram para o trabalho numa manhã comum e nunca mais voltaram. Não havia sinais de luta, não havia dívidas, não havia motivos aparentes para fugas voluntárias. E durante exatamente esse período, duas irmãs de apelido Rios mantinham uma quitanda famosa pelos sabores únicos dos seus produtos. Sempre o mesmo padrão se repetia.

Em Araraquara, a história era ainda mais perturbadora. Quatro desaparecimentos em 18 meses. O delegado local havia investigado intensamente, mas nunca encontrara pistas concretas. Mencionava, no seu relatório, algo que fez o sangue de Mendonça gelar. Vizinhos relatavam ruídos estranhos vindos da casa onde as irmãs moravam, sempre durante a madrugada. Ruídos que cessaram completamente após o último desaparecimento.

Mendonça decidiu conversar pessoalmente com as pessoas que haviam convivido com as Irmãs Rios. Dona Iracema foi a primeira. Sentada na sua sala modesta, com as mãos trémulas a segurar uma chávena de café, ela relatou detalhes que não havia contado a ninguém antes. Os barulhos noturnos não eram apenas ruídos metálicos; havia vozes, gemidos abafados que pareciam vir de muito longe, como se alguém estivesse a gritar através de várias camadas de terra. E sempre, sempre precediam os dias em que a quitanda oferecia os seus quitutes mais saborosos, como se houvesse uma conexão macabra entre sofrimento e sabor.

Seu Geraldo, o sapateiro, confirmou as suspeitas de Mendonça sobre a qualidade excecional da carne. Havia algo diferente naqueles recheios, algo que despertava uma fome quase animal. A textura era única, o sabor complexo demais para ser apenas carne de porco ou boi comum. Que tipo de animal produzia carne com aquelas características? A pergunta atormentava Mendonça enquanto caminhava pelas ruas de Ribeirão Preto.

Visitou o mercado municipal, conversou com outros açougueiros, tentou entender de onde as irmãs conseguiam a sua matéria-prima. Ninguém lhes havia vendido carne, ninguém as havia visto a comprar noutros mercados. Era como se a carne surgisse do nada, materializada pelo apetite voraz das irmãs.

Durante as suas investigações, Mendonça descobriu algo que o fez questionar a sua própria sanidade. Conversando com o médico local, o Doutor Sebastião, soube que, embora houvesse óbitos por causas diversas, a taxa de mortes naturais de homens adultos na cidade estava incomumente baixa desde a chegada das Irmãs Rios, contrastando com um aumento misterioso no número de desaparecimentos. Era uma discrepância estatística perturbadora, um silêncio em registos vitais que gritava a anomalia. Em Ribeirão Preto, os homens pareciam simplesmente desaparecer, e isso refletia-se nos números que ninguém havia correlacionado até então.

A revelação mais perturbadora veio de uma fonte inesperada. Padre Inácio, da Igreja Matriz, procurou Mendonça com informações que havia guardado por medo de não ser levado a sério. Eulália havia procurado a confissão algumas semanas antes, mas as suas palavras foram tão perturbadoras que o padre não conseguiu dar a absolvição. Ela havia falado sobre fome, não fome comum, mas uma necessidade primitiva que ia além da alimentação normal. Falou sobre sabores que apenas ela e a irmã conheciam, sobre segredos de família que remontavam a gerações, e mencionou algo que fez o padre tremer: a necessidade de ingredientes especiais para manter a tradição familiar viva. Que tradição exigia ingredientes tão especiais?

Mendonça começou a conectar os pontos de forma sistemática. Criou um mapa com todas as cidades onde as irmãs haviam morado, marcando as datas dos desaparecimentos e os períodos de funcionamento das quitandas. O padrão era inequívoco. Onde quer que as Irmãs Rios se estabelecessem, homens começavam a desaparecer e a qualidade dos seus quitutes melhorava drasticamente.

Naquela noite, Mendonça tomou uma decisão que mudaria o rumo da sua investigação, impulsionado pela urgência e pela certeza do horror. Precisava de evidências concretas, não apenas suspeitas e coincidências. Precisava ver com os seus próprios olhos o que acontecia no porão da casa número 47. Esperou até às 2 horas da manhã, o horário em que Iracema relatava ouvir os ruídos mais intensos, vestiu roupas escuras e caminhou silenciosamente até aos fundos da propriedade. O muro era alto, mas a sua experiência militar havia-lhe ensinado técnicas de escalada. O que encontraria do outro lado mudaria para sempre a sua perceção sobre os limites da maldade humana.

Enquanto escalava o muro, Mendonça ouviu algo que fez o seu coração disparar. Eram vozes vindas do porão, duas mulheres a conversarem em tons baixos, quase sussurrando. E entre as suas palavras, captou fragmentos que confirmaram os seus piores receios. Falavam sobre carne fresca, sobre a necessidade de novos ingredientes, sobre como os clientes elogiavam os seus produtos sem imaginarem o que realmente estavam a consumir.

O porão revelou-se um pesadelo materializado diante dos olhos de Mendonça. A luz fraca de uma lamparina a querosene dançava nas paredes húmidas, criando sombras que pareciam mover-se com vida própria. O cheiro que emanava daquele espaço subterrâneo era uma mistura nauseante de ferro, humidade e algo doce que fazia o estômago revirar-se. Era o cheiro da morte disfarçada de vida.

Ganchos de ferro pendiam do teto baixo como dedos acusadores, alguns ainda manchados com substâncias escuras que Mendonça preferiu não identificar de imediato. Mesas de mármore ocupavam o centro do ambiente, as suas superfícies polidas a refletirem a luz amarelada da lamparina e a revelarem manchas que nenhuma limpeza conseguira remover completamente. Por que razão alguém precisaria de tanto equipamento de corte num porão residencial? Facas de todos os tamanhos estavam organizadas com precisão cirúrgica numa bancada lateral, desde pequenas lâminas para trabalhos delicados até machados pesados para cortes mais grosseiros. Cada ferramenta estava afiada até à perfeição, brilhando como joias macabras sob a luz vacilante.

Mendonça sentiu as pernas tremerem quando encontrou, cuidadosamente embrulhados em papel pardo, pedaços de carne que claramente não vinham de animais convencionais. A coloração era diferente, a textura estranhamente familiar. O seu estômago contraiu-se violentamente quando a terrível realidade começou a formar-se na sua mente. Aquela carne tinha características que ele reconhecia dos seus tempos como soldado na guerra.

Num canto escuro do porão, uma pilha de roupas masculinas estava dobrada com um cuidado obsessivo. Cinco conjuntos completos, desde camisas a sapatos, organizados como troféus de uma coleção sinistra. Mendonça reconheceu imediatamente o conjunto do topo. Era a roupa que Libânio Ferreira usava no dia do seu desaparecimento. Onde estavam os donos daquelas roupas?

As suas mãos tremeram quando abriu uma gaveta trancada que encontrou debaixo de uma das mesas de mármore. Dentro, um caderno encadernado em couro negro continha páginas e páginas de anotações escritas com letra caprichosa. Era o diário de Eulália, e cada palavra era uma descida mais profunda ao inferno.

“15 de agosto. Libânio descobriu o nosso segredo hoje. Viu Perpétua a preparar o recheio especial e fez perguntas demais. Não tivemos escolha. A minha irmã foi rápida com a faca, como sempre. Agora temos provisões para mais duas semanas.”

Mendonça teve de se apoiar na parede para não desmaiar. As palavras dançavam diante dos seus olhos como serpentes venenosas, cada frase a revelar uma verdade mais terrível que a anterior.

“20 de agosto. Os clientes não param de elogiar os nossos pastéis. Dizem que nunca provaram carne tão saborosa. Se soubessem que estão a saborear o próprio Libânio, talvez não fossem tão generosos com os elogios… ou talvez fossem ainda mais.”

O delegado largou o caderno como se estivesse a pegar fogo. As suas mãos tremiam descontroladamente enquanto tentava processar a magnitude do horror que havia descoberto. As Irmãs Rios não eram apenas assassinas; elas eram algo muito pior. Eram canibais que transformavam as suas vítimas em iguarias para uma cidade inteira.

“25 de agosto. Precisamos de mais carne fresca. Os clientes estão cada vez mais exigentes, querem porções maiores. Perpétua sugeriu Otacílio, o ferreiro. Ele é forte, deve render bastante e mora sozinho. Ninguém sentirá a sua falta de imediato.”

Cada palavra era uma punhalada na consciência de Mendonça. Quantas pessoas em Ribeirão Preto haviam consumido carne humana sem saber? Quantas haviam elogiado o sabor único dos quitutes das irmãs, ignorando que estavam a participar num banquete macabro?

“30 de agosto. Perpétua está a ficar impaciente. Diz que a nossa reserva está a acabar e que precisamos de agir depressa. Ela tem razão. Não podemos desapontar os nossos clientes. Eles dependem de nós para aquele sabor especial que só nós sabemos proporcionar.”

O diário revelava não apenas os crimes, mas a mentalidade perturbada por trás deles. As irmãs não viam as suas ações como assassinatos, mas como um serviço prestado à comunidade. Acreditavam genuinamente que estavam a oferecer algo especial, único, que elevava a experiência culinária dos seus clientes a um patamar superior.

“2 de setembro. Um homem esteve a fazer perguntas sobre Libânio hoje. Diz ser delegado de São Paulo. Perpétua acha que devemos livrar-nos dele também, mas eu prefiro esperar. Talvez ele desista e vá embora. Não queremos chamar a atenção desnecessária.”

Mendonça sentiu um frio a percorrer-lhe a espinha. Elas sabiam que ele estava a investigar. Sabiam e estavam a planear fazer dele a próxima vítima. Precisava de sair dali imediatamente e organizar uma operação para prender as duas irmãs antes que fizessem mais vítimas. Mas quando tentou mover-se em direção à escada, ouviu passos no andar superior. As Irmãs Rios estavam acordadas e, pelos sons que chegavam até ao porão, estavam a descer na sua direção.

Mendonça escondeu-se atrás de uma das mesas de mármore, o seu coração a bater tão forte que tinha a certeza de que elas poderiam ouvi-lo. A luz da lamparina projetava a sua sombra na parede, uma silhueta acusadora que poderia denunciar a sua presença a qualquer momento. Os passos aproximavam-se. Duas vozes sussurravam no topo da escada, a discutirem algo em tons baixos demais para que ele pudesse entender as palavras. Mas o tom era urgente, quase ansioso, como se elas soubessem que alguém havia invadido o seu santuário secreto.

Mendonça fechou os olhos e rezou para que a sua descoberta não custasse a sua própria vida, porque agora ele sabia a verdade sobre as Irmãs Rios. Sabia que por trás daqueles sorrisos calculados e daqueles quitutes irresistíveis, se escondia uma maldade que desafiava qualquer compreensão humana, e sabia que, se fosse descoberto naquele porão, se tornaria apenas mais um ingrediente na receita macabra das irmãs, mais uma vítima de um segredo que mancharia para sempre a história de Ribeirão Preto.

Os passos desciam lentamente pela escada de madeira, cada degrau a ranger como um lamento de alma penada. Mendonça permanecia imóvel atrás da mesa de mármore, controlando a sua respiração enquanto ouvia as vozes das irmãs a aproximarem-se do seu esconderijo.

“Alguém esteve aqui,”

sussurrou Perpétua, a sua voz carregada de uma tensão que Mendonça nunca havia ouvido antes.

“Posso sentir o cheiro a medo no ar.”

Eulália desceu mais alguns degraus, a luz da lamparina que carregava a projetar sombras dançantes nas paredes húmidas do porão. Os seus olhos vasculhavam cada canto do ambiente com a precisão de uma predadora experiente.

“Talvez seja apenas a sua imaginação, irmã. Quem seria louco o suficiente para invadir a nossa casa?”

Mas Perpétua abanou a cabeça, os seus sentidos aguçados a captarem sinais que escapavam à perceção comum. Havia algo diferente no ar, uma presença estranha que perturbava a harmonia sinistra do seu santuário subterrâneo.

Mendonça observava através de uma fresta entre as pernas da mesa, vendo as duas mulheres a moverem-se pelo porão como fantasmas em busca de uma alma perdida. Eulália verificava os ganchos pendurados no teto, enquanto Perpétua examinava as facas organizadas na bancada lateral.

Uma das lâminas estava fora do lugar. Mendonça sentiu o sangue gelar quando percebeu o seu erro. Durante a sua investigação, havia inadvertidamente movido uma das facas, alterando a ordem meticulosa que as irmãs mantinham nos seus instrumentos. Era um detalhe pequeno, quase impercetível, mas suficiente para alertar mentes tão organizadas quanto as delas.

“Alguém mexeu nas nossas ferramentas,”

declarou Perpétua, a sua voz a adquirir um tom perigoso.

“E eu sei exatamente quem foi. O delegado de São Paulo. Ele deve ter descoberto o nosso segredo.”

As duas mulheres entreolharam-se por um momento que pareceu durar uma eternidade. Naquele olhar, Mendonça viu a comunicação silenciosa de predadoras que haviam caçado juntas por tanto tempo, que não precisavam de palavras para coordenar as suas ações.

“Ele conseguiu escapar esta noite,”

murmurou Eulália.

“Mas voltará. Homens como ele não conseguem deixar um mistério sem solução.”

Perpétua sorriu, e naquele sorriso havia uma crueldade que fez Mendonça tremer. Era o sorriso de alguém que havia encontrado uma nova fonte de diversão, um novo desafio para quebrar a monotonia da sua rotina macabra.

“Então, vamos dar-lhe exatamente o que procura: uma solução para o seu mistério. E o seu corpo será o próximo ingrediente.”

As irmãs subiram a escada, deixando o porão mergulhado na escuridão. Mendonça esperou longos minutos antes de ousar mover-se, certificando-se de que elas haviam realmente se afastado. Quando finalmente emergiu do seu esconderijo, as suas pernas mal conseguiam sustentá-lo. Conseguiu escapar da casa sem ser detetado, mas sabia que a sua situação havia-se tornado desesperadora. As irmãs sabiam que ele conhecia o seu segredo, sabiam que ele voltaria com reforços para prendê-las e estavam a planear uma armadilha.

Por que razão não fugiam simplesmente da cidade? A resposta veio na manhã seguinte, quando Mendonça regressou à quitanda, fingindo ser apenas um cliente comum. Precisava de mais evidências antes de organizar a operação de prisão. Precisava de provas que convencessem até mesmo os céticos mais resistentes.

“Bom dia, senhoras. Gostaria de encomendar quitutes para uma festa.”

Eulália recebeu-o com um sorriso que era puro veneno disfarçado de mel. Os seus olhos brilhavam com uma satisfação perturbadora, como se estivesse a saborear antecipadamente o que estava para vir.

“Claro, Delegado Mendonça. Que tipo de carne prefere?”

O sangue de Mendonça gelou completamente. Ela havia usado o seu nome. Ela sabia exatamente quem ele era e por que razão estava ali. A farsa havia terminado e agora ele estava completamente exposto diante de duas assassinas que não tinham nada a perder.

Perpétua apareceu atrás do balcão como uma sombra materializada e nas suas mãos brilhava uma faca de açougueiro que refletia a luz matinal como um espelho de prata. Os seus olhos tinham a mesma expressão que Mendonça havia visto em soldados no campo de batalha: a frieza absoluta de quem estava prestes a matar.

Eulália caminhou até à porta da quitanda e girou a chave na fechadura. O som ecoou no ambiente pequeno como uma sentença de morte, selando o destino de todos os presentes naquele espaço claustrofóbico.

“Sabe, Delegado, fez muitas perguntas ontem. Mexeu onde não devia mexer. Descobriu segredos que eram para permanecer enterrados,”

continuou Eulália, a sua voz a adquirir um tom quase maternal.

Mendonça recuou instintivamente, mas as suas costas encontraram a parede. Não havia para onde fugir. As duas irmãs avançavam lentamente, como predadoras, a cercarem uma presa ferida.

“Mas não se preocupe,”

continuou Eulália, com uma crueldade serena.

“Você será muito útil para nós. Os nossos clientes adoram carne fresca, e você parece ter músculos bem desenvolvidos.”

Perpétua ergueu a faca e a lâmina captou a luz de uma forma que fez Mendonça perceber que aquela não seria uma morte rápida. Elas pretendiam saboreá-la, prolongá-la, extrair dela o máximo de prazer possível.

“Você será o nosso melhor ingrediente até agora,”

sussurrou Perpétua, falando mais palavras do que Mendonça jamais a havia ouvido pronunciar.

E pela primeira vez na sua carreira, o Delegado Otávio Mendonça enfrentou a possibilidade real de que não sairia vivo de uma investigação.

O tempo pareceu mover-se em câmara lenta quando Mendonça viu a faca de Perpétua a descer na sua direção. O seu instinto de sobrevivência, moldado por anos de experiência militar e policial, explodiu como uma mola comprimida. Num movimento desesperado, agarrou uma pesada panela de ferro que estava sobre o balcão e atirou-a com toda a sua força contra Perpétua.

O impacto foi brutal. A panela atingiu o pulso da mulher com um som seco de osso a quebrar, e a faca voou pelos ares antes de se cravar na parede de madeira com um ruído sinistro. Perpétua soltou um grito de dor e fúria que ecoou pela quitanda como o uivo de um animal ferido.

Eulália atirou-se contra Mendonça, com uma agilidade surpreendente para uma mulher da sua idade. As suas unhas, compridas e afiadas como garras, procuravam os olhos do delegado enquanto ela rosnava palavras incompreensíveis. Era como se a máscara de civilidade tivesse finalmente caído, revelando a criatura primitiva que habitava por baixo da pele humana.

Mendonça conseguiu esquivar-se do ataque e correu em direção aos fundos da loja, buscando desesperadamente uma saída. As suas mãos tremiam enquanto tentava abrir uma porta que dava para o quintal, mas a fechadura estava emperrada. Atrás dele, podia ouvir os passos das duas irmãs a aproximarem-se novamente.

“Você não vai sair vivo daqui!”

berrou Eulália, a sua voz distorcida pela raiva.

“Ninguém pode conhecer o nosso segredo e viver para contar!”

Com um pontapé desesperado, Mendonça conseguiu arrombar a porta. A madeira velha cedeu com um estrondo e ele viu-se no quintal, cercado pelos muros altos que havia escalado na noite anterior. Mas agora, sob a luz do dia, com duas assassinas no seu encalço, aqueles muros pareciam intransponíveis.

Perpétua apareceu na porta dos fundos, a segurar o pulso ferido, mas os seus olhos brilhavam com uma sede de vingança que fazia o seu rosto parecer uma máscara demoníaca. Eulália estava logo atrás, carregando uma machadinha que havia pego no porão.

“Você descobriu o nosso segredo, Delegado. Agora precisa de pagar o preço.”

Mendonça correu pelo quintal, esquivando-se de objetos que as irmãs atiravam na sua direção. Pedras, ferramentas, qualquer coisa que pudesse feri-lo ou retardar a sua fuga. Conseguiu alcançar o muro dos fundos e começou a escalá-lo com uma agilidade nascida do desespero. As suas mãos encontraram o topo do muro no exato momento em que a machadinha de Eulália se cravou na pedra, centímetros abaixo dos seus pés.

Saltou para o outro lado e caiu pesadamente no terreno baldio que ficava atrás da propriedade. Levantou-se cambaleante e correu pelas ruas de Ribeirão Preto, gritando por ajuda. A sua voz ecoava pelas casas ainda adormecidas, despertando vizinhos curiosos que apareciam nas janelas para ver o que estava a acontecer.

“Assassinas! Elas mataram os vossos maridos! Estão a vender carne humana!”

As primeiras pessoas que ouviram os seus gritos pensaram que ele havia enlouquecido. Um delegado respeitado, a gritar acusações impossíveis contra duas senhoras inofensivas que faziam os melhores quitutes da cidade. Era absurdo demais para ser verdade, porque ninguém queria acreditar na verdade. Mas Mendonça continuou a gritar, a sua voz carregada de uma convicção desesperada que começou a plantar sementes de dúvida nas mentes dos moradores.

Alguns se lembraram dos ruídos noturnos relatados por Dona Iracema. Outros questionaram pela primeira vez o desaparecimento súbito de Libânio. Em poucos minutos, uma multidão formou-se na Rua do Comércio. Homens armados com paus e ferramentas, mulheres a sussurrar orações, crianças escondidas atrás das saias das mães. Todos queriam ver com os seus próprios olhos se as acusações impossíveis do delegado tinham algum fundamento.

Quando a polícia local finalmente chegou e invadiu o porão da casa número 47, o silêncio que se seguiu foi mais eloquente que qualquer grito. Os polícias emergiram do subsolo com rostos de horror que confirmaram os piores receios da multidão. As evidências estavam todas lá. Os instrumentos de corte, os restos mortais, o diário macabro de Eulália, tudo documentado com uma precisão que tornava impossível negar a realidade aterrorizante.

Quantas pessoas haviam consumido carne humana sem saber? A cidade inteira entrou em pânico coletivo. Pessoas vomitavam nas ruas ao se lembrarem do sabor dos quitutes que haviam elogiado tanto. Outras choravam de horror ao perceberem que haviam sido cúmplices involuntárias de atos canibais.

Eulália e Perpétua foram presas no meio de uma multidão furiosa que gritava por justiça imediata. Mas mesmo algemadas, elas mantinham aquele sorriso perturbador, como se soubessem de algo que os outros ignoravam.

Durante o transporte para São Paulo, onde seriam julgadas, o carro da polícia seguiu pela estrada deserta que ligava Ribeirão Preto à capital. Uma tempestade inesperada castigava a região, transformando a estrada num lamaçal escorregadio e diminuindo a visibilidade a quase zero.

Num trecho sinuoso, o veículo perdeu o controlo, capotando violentamente e caindo num barranco. Os dois polícias, atordoados pelo impacto, tentaram reorientar-se, mas a cabina estava danificada e a escuridão da noite, aliada à fúria da tempestade, tornava tudo mais difícil.

No meio da confusão, as irmãs, embora feridas, encontraram a sua oportunidade. Não estavam algemadas com a mesma segurança de antes. O choque havia afrouxado ou quebrado as correntes em Perpétua, e as amarras de Eulália não resistiram ao impacto. Com uma ferocidade primária, atacaram os oficiais ainda desorientados. Não houve precisão cirúrgica, mas sim a brutalidade desesperada de predadoras encurraladas. Usando um pedaço de metal retorcido do próprio carro e a força insana que só o desespero e a fome podem dar, elas silenciaram os polícias com golpes selvagens e cortes profundos.

Quando o dia amanheceu, o veículo foi encontrado no barranco, os seus ocupantes mortos numa cena de horror que desafiava a lógica de um simples acidente. As suas gargantas estavam abertas, os corpos marcados por uma violência inimaginável, e as Irmãs Rios haviam desaparecido sem deixar rasto na noite tempestuosa.

Como é que duas mulheres, mesmo feridas, conseguiram escapar de um acidente daquela magnitude e desaparecer sem deixar vestígios no meio de uma tempestade? A pergunta atormentaria as autoridades por décadas, sem nunca encontrar uma resposta satisfatória, porque algumas pessoas carregam dentro de si uma maldade que transcende qualquer compreensão humana normal, uma maldade que não pode ser contida por algemas ou grades.

Passaram-se décadas desde aquele setembro fatídico de 1921. A casa da Rua do Comércio, número 47, foi demolida apenas 3 meses após a descoberta dos crimes. Os moradores não suportavam a presença daquela construção que guardava tantos segredos macabros. No lugar ergueu-se uma pequena praça com bancos de madeira e algumas árvores, mas ninguém jamais se sentia confortável para descansar ali. O terreno parecia amaldiçoado pela memória do que havia acontecido.

O Delegado Otávio Mendonça nunca mais foi o mesmo homem após aquela investigação. Desenvolveu uma aversão total à carne que o acompanhou pelo resto da vida. Tornou-se vegetariano rigoroso, incapaz de suportar sequer o cheiro de carne a cozinhar. As suas noites eram atormentadas por pesadelos, onde ouvia novamente os gritos abafados vindos do porão e via os sorrisos gelados das Irmãs Rios. Como é que alguém consegue esquecer o sabor do mal puro?

Aposentou-se prematuramente da polícia e mudou-se para uma cidade pequena no interior de Minas Gerais, onde passou os seus últimos anos a cultivar uma horta e a evitar qualquer contacto com investigações criminais. Morreu aos 89 anos, em 1978, cercado apenas por alguns livros e plantas. No leito de morte, as suas últimas palavras foram um sussurro aterrorizado.

“Elas ainda estão por aí. Ainda estão a temperar.”

Os moradores mais antigos de Ribeirão Preto carregaram o peso daquela descoberta por toda a vida. Dona Iracema nunca conseguiu perdoar-se por não ter agido mais cedo, por ter ignorado os sinais que estavam bem diante dos seus olhos. Passou anos a questionar-se se poderia ter salvo algumas das vítimas se tivesse tido a coragem de investigar os ruídos noturnos. Seu Geraldo fechou a sua sapataria e mudou-se para Santos, incapaz de continuar a viver na cidade onde havia saboreado carne humana sem saber. A culpa consumia-o como um cancro lento, mesmo sabendo que havia sido uma vítima tanto quanto os homens assassinados. Porque o conhecimento da verdade às vezes dói mais que a ignorância.

Com o passar dos anos, a história das Irmãs Rios transformou-se em lenda urbana, sussurrada em rodas de conversa e noites de insónia. Alguns afirmavam ter visto duas mulheres de preto a vender quitutes em cidades vizinhas, sempre com o mesmo sorriso calculado, sempre com temperos que despertavam uma fome inexplicável. Mas seriam apenas histórias? Fantasias criadas por mentes traumatizadas que não conseguiam aceitar que o mal simplesmente desaparece sem deixar rasto.

Em 1945, um comerciante de Campinas procurou a polícia relatando o desaparecimento do seu irmão. Mencionou duas senhoras que haviam aberto uma quitanda na cidade e cujos quitutes tinham um sabor único, quase viciante. A descrição das mulheres era perturbadoramente familiar para os polícias mais velhos que conheciam a história de Ribeirão Preto. Em 1952, foi a vez de Araraquara. Três homens desapareceram em seis meses. Novamente havia relatos de uma quitanda administrada por duas irmãs misteriosas que preparavam os melhores pastéis da região.

Coincidências? Ou as Irmãs Rios realmente haviam conseguido escapar e continuavam a sua tradição macabra noutras cidades? A verdade é que nunca saberemos com certeza. O mal verdadeiro tem essa característica perturbadora. Ele adapta-se, camufla-se, encontra sempre novas formas de se manifestar. Talvez as Irmãs Rios tenham morrido naquela estrada em 1921. Talvez tenham vivido décadas a alimentar a sua fome primitiva em cidades distantes, ou talvez tenham passado os seus conhecimentos para outras pessoas, perpetuando uma tradição que remonta a gerações perdidas na escuridão da história.

O que sabemos é que a quitanda das Irmãs Rios fechou para sempre naquele setembro de 1921, mas o sabor do terror que elas espalharam permanece vivo na memória coletiva de Ribeirão Preto. Uma lembrança de que o mal pode esconder-se por trás dos sorrisos mais doces e dos sabores mais irresistíveis. A lição mais assustadora desta história não é sobre duas mulheres que se tornaram monstros, é sobre como uma comunidade inteira pode ser cúmplice involuntária de atrocidades simplesmente por não questionar aquilo que lhes dá prazer.

Hoje, quando morder aquele quitute especial que tanto aprecia, quando elogiar o tempero único daquele estabelecimento familiar, lembre-se da história das Irmãs Rios. Observe bem o sorriso de quem serve a sua comida. Preste atenção aos ingredientes que tornam aquele sabor tão especial, porque algumas receitas de família carregam segredos que é melhor não conhecer. Algumas tradições culinárias nasceram de uma fome que vai muito além da necessidade de alimentação, e alguns sorrisos escondem apetites que desafiam qualquer compreensão humana normal.

A história das Irmãs Rios termina aqui, mas as suas implicações ecoam através do tempo como um aviso eterno. O mal não usa chifres ou garras. Ele usa aventais limpos e sorrisos acolhedores. Ele tempera a sua maldade com especiarias que despertam os nossos instintos mais primitivos. E quando finalmente descobrimos a verdade, já pode ser tarde demais para escapar da sua influência.

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