A Gafa e o Gelo: Ministro do STF Usa Termo Racista em Julgamento e Flávio Dino Responde com Plano Cirúrgico de Combate ao Racismo Estrutural

A Gafa e o Gelo: Ministro do STF Usa Termo Racista em Julgamento e Flávio Dino Responde com Plano Cirúrgico de Combate ao Racismo Estrutural


Article: A Gafa e o Gelo: Ministro do STF Usa Termo Racista em Julgamento e Flávio Dino Responde com Plano Cirúrgico de Combate ao Racismo Estrutural

O Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte de justiça do Brasil, se tornou palco de um tenso e revelador debate sobre o racismo estrutural no país. A sessão, que discutia uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para reconhecer o racismo como um “estado de coisas inconstitucional,” expôs a fragilidade e a insensibilidade de parte da elite brasileira em lidar com a questão. O centro da controvérsia foi o Ministro Luiz Fux, relator da ação, que cometeu duas gafes sucessivas, sendo imediatamente confrontado pelas propostas concretas e a firmeza jurídica de seus pares, notadamente o Ministro Flávio Dino.

O Deslize Verbal que Chocou o Plenário

No cerne de um julgamento que busca a reparação histórica e a superação da desigualdade racial, o Ministro Luiz Fux, ao citar dados e a urgência do problema, utilizou uma expressão linguisticamente carregada de preconceito. Fux apelou para o termo “passado negro” para descrever o histórico de segregação no Brasil. A expressão, que associa a negritude a algo pejorativo, negativo ou sombrio, é um reflexo do racismo internalizado na linguagem cotidiana e em estruturas de poder.

Embora o Ministro tenha percebido o deslize e corrigido a fala, substituindo-a por “esse passado de racismo, esse passado de segregação contra os negros,” a falha já havia quebrado o gelo solene do plenário. O constrangimento aumentou minutos depois, quando Fux tentou justificar sua suposta dedicação à causa antirracista com uma declaração ainda mais questionável: ele afirmou ter o “diploma de negro honorário número um.”

“Pode ser até espantoso, mas pelo menos pela minha dedicação a esse trabalho, eu que não tenho o biotipo, tenho o diploma de negro honorário número um,” disse o Ministro, mencionando ter entregue o Troféu Raça Negra à filha de Martin Luther King e à mulher de Nelson Mandela. Tal afirmação, baseada em uma suposta distinção honorária pessoal, minimiza a experiência de vida da população negra e ignora o fato de que a luta antirracista é intrinsecamente ligada à vivência e à cor da pele, e não a um mérito concedido por terceiros. O episódio de Fux serviu como uma dolorosa metalinguagem, provando que o racismo estrutural não é apenas um tema de julgamento, mas uma realidade que se manifesta até no vocabulário daqueles que tentam combatê-lo.

A Resposta Cirúrgica: Flávio Dino Propõe Ações Imediatas

Em contraste direto com o desvio de Fux, o Ministro Flávio Dino apresentou uma intervenção que foi descrita como “cirúrgica,” focada em propostas concretas e pragmáticas para atacar a raiz do problema. Dino não se limitou a conceitos teóricos, mas listou três eixos de atuação urgentes para superar o estado de coisas inconstitucional.

A primeira sugestão de Dino foca no fortalecimento da lei e na capacitação. O Ministro defende o aprimoramento da legislação e, crucialmente, a formação de professores e agentes públicos para lidar com as nuances do racismo de forma eficaz. A segunda frente, inspirada no sucesso de ações anteriores, é a realização de campanhas maciças e indutoras contra o racismo. A ideia é mobilizar as TVs institucionais—como a TV Justiça, TV Câmara e TV Senado—e até mesmo induzir o poder executivo a veicular campanhas na mídia comercial, elevando o combate ao racismo a uma prioridade nacional de comunicação.

O terceiro eixo de atuação, e talvez o mais inovador, mira na cultura e no audiovisual. Dino pontuou que, historicamente, a presença de atores e atrizes negros em novelas e filmes se restringia a papéis de senzala ou subalternos. Para reverter essa representação limitada, o Ministro sugeriu uma política de incentivo fiscal e financiamento estatal—através da Lei Rouanet e leis estaduais de incentivo à cultura—que priorize projetos que valorizem a “presença relevante” de atores, produtores e narrativas negras. Embora o Ministro tenha ponderado sobre a invasividade de cotas na liberdade de expressão, a indução de uma presença significativa através de políticas estatais de financiamento é vista como um passo essencial para desconstruir o imaginário racista nacional.

Cármen Lúcia: A Tragédia da “Pele Alvo” e a Declaração de Inconstitucionalidade

O debate ganhou contornos ainda mais dramáticos com o voto da Ministra Cármen Lúcia. Utilizando-se de referências culturais e literárias profundas, a Ministra escancarou o abismo criado pelo racismo na vida dos brasileiros. Ela citou o rapper Emicida: “A felicidade do branco é plena, a felicidade do preto é quase.”

A citação serviu de mote para o ponto central: “Eu não espero viver num país em que a Constituição para o branco seja plena e para o negro seja quase. Eu quero uma Constituição que seja plena igualmente para todas as pessoas.” Cármen Lúcia lembrou ainda outro verso de Emicida, que fala sobre os 80 tiros que “lembram que há a pele alva e a pele alvo.” A fala dela reforçou a urgência da situação, concluindo que a insuficiência das medidas tomadas até o momento configura, sim, um “estado de coisas inconstitucional.”

Para dar ainda mais peso à sua argumentação, a Ministra evocou a memória e a escrita de Carolina Maria de Jesus, a escritora da favela do Canindé: “Não digam que sou nada da vida rebotalho, nem que fiquei à margem da vida. Digam que procurei trabalho, que sempre fui preterida.” A Ministra ressaltou que a preterição da população negra, que representa mais da metade do Brasil, é um “puro, grave, trágico racismo,” exigindo que a lei fundamental seja aplicada em sua plenitude.

Da Teoria à Prática: O Desenho de Iansã e a Educação Policial

O Ministro Fux, apesar de suas falhas verbais, trouxe à tona um caso concreto que ilustra a contundência da violência racial no Brasil. Ele narrou a notícia sobre 12 policiais militares, um deles portando uma metralhadora, que invadiram uma escola infantil em São Paulo. O motivo da ação policial? Um pai havia denunciado que a escola estaria obrigando a criança a ter aula de religião africana por conta de um desenho com o nome da Orixá Iansã.

“Eu não consigo imaginar o que passa pela cabeça de pessoas capazes de invadir uma escola por conta de um trabalho escolar de criança,” lamentou Fux. O caso serviu para justificar a necessidade de uma declaração incisiva do STF.

Na mesma linha, o Ministro Alexandre de Moraes reforçou a necessidade de ir além das “proclamações teóricas.” Moraes concordou que o racismo estrutural é uma “chaga” econômica, social e cultural que permanece, mas argumentou que a mudança real virá com a educação. O Ministro defendeu que, no médio e longo prazo, apenas políticas pedagógicas robustas podem diminuir a chaga. No entanto, para o curto prazo, Moraes exigiu uma ação imediata e contundente: a determinação de que todos os estados incluam treinamento obrigatório sobre combate ao racismo para todas as polícias.

O julgamento do STF se consolidou, assim, não apenas como um marco jurídico, mas como um termômetro da sociedade brasileira. Ele revelou as contradições da elite, a necessidade de mais sensibilidade e menos deslizes verbais, e a urgência de políticas que atuem em todas as esferas—da cultura à segurança pública—para que a Constituição seja, finalmente, plena para todos os brasileiros, sem que a cor da pele defina quem é alvo e quem é alva.

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