Vaqueiro solitário ouve ruídos estranhos no celeiro. Encontra mulher ferida e dois filhos escondidos. Ela fugia de um homem poderoso… mas ele oferece R$ 50.000 de recompensa, acusando-a de sequestro e insanidade.

A luz da lanterna cortou a escuridão do celeiro, e Cauê congelou.

A chuva martelava no telhado de zinco, um som furioso que tentava abafar o outro. O choro. Duas horas atrás, ao trancar os cavalos, ele pensou ter ouvido algo além da tempestade. Agora, tinha certeza.

Entre os fardos de feno, três pares de olhos o encaravam.

Uma mulher se encolheu para trás, puxando duas crianças pequenas contra o peito. As roupas dela estavam rasgadas. Sangue seco manchava seu rosto.

“Por favor”, a voz dela saiu rouca, desesperada. “Por favor, não chame a polícia.”

Ele ergueu a lanterna. A luz revelou hematomas roxos nos braços dela. As crianças tremiam sob cobertores sujos que pareciam ter sido arrancados de algum varal.

“Quem é você?” A voz de Cauê saiu firme, um reflexo de dez anos vivendo sozinho, mas seus dedos apertaram o cabo da lanterna.

“Mariana”, ela engoliu em seco. “Essas são minhas crianças, Lucas e Sofia. Nós… nós só precisamos de uma noite. Estaremos longe antes do amanhecer, eu prometo.”

“Como chegou aqui?”

“Ônibus para São Gabriel. Caminhamos o resto.” Ela apertou as crianças com mais força. “Vimos a luz da sua casa quando a tempestade começou. Tentamos bater, mas… o celeiro estava aberto.”

“Você está ferida.”

“Eu posso cuidar de mim”, Mariana levantou o queixo, mas sua mão tremia. “Só precisamos de abrigo. Você nunca mais nos verá.”

“Quem fez isso com você?”

O silêncio que se seguiu pesou mais que a tempestade. A menina menor, Sofia, que não devia ter mais que cinco anos, começou a chorar baixinho. O menino mais velho, Lucas, talvez com oito, permaneceu rígido, olhos fixos em Cauê, como um animal acuado.

Algo no olhar daquela criança perfurou a armadura que Cauê havia construído ao longo de uma década de isolamento.

“Vocês comeram hoje?”

Mariana piscou, surpresa. “Eu… não.” “E as crianças?” “Dei a elas o que tinha.”

Cauê baixou a lanterna. Ele conhecia aquele sacrifício. A mãe que guarda cada migalha para os filhos. Sua própria mãe havia feito o mesmo.

“Você fugiu de alguém”, ele afirmou, não era uma pergunta. Mariana assentiu, quase imperceptivelmente. “Alguém que vai procurar por você?” “Sim”, a palavra saiu como uma confissão. “Mas eu não deixei rastros. Ninguém sabe que viemos para cá.”

Cauê deveria mandá-los embora. Era o que ele fazia com qualquer coisa que ameaçasse sua solidão. Cortar pela raiz. Mas aqueles olhos… o menino que não piscava, a menina que soluçava. Ele conhecia trauma quando o via.

“Venham comigo.” “O quê?” “Para a casa.” Cauê se virou. “Tem comida, um banheiro, camas de verdade. Vocês não vão passar mais uma noite nesse celeiro.” “Eu não posso aceitar…” “Não estou pedindo sua permissão”, ele a cortou. “Vocês vêm agora ou eu carrego vocês. Escolha.”

Mariana hesitou. Então, Sofia tossiu, um som áspero, doente, que ecoou no celeiro. A necessidade venceu o orgulho.

No caminho lamacento até a casa principal, Cauê notou que ela mancava. Ele diminuiu o ritmo. Dentro, acendeu as luzes. Mariana piscou, e só então ele viu a extensão dos ferimentos: cortes cicatrizando mal, um inchaço severo ao redor do olho esquerdo.

“O banheiro fica no corredor. Toalhas no armário. Vou preparar algo quente para comer.” “Senhor…” “Meu nome é Cauê Almeida. Esta é a fazenda Serra Azul. E vocês não são prisioneiros aqui. Entendido?”

O sol ainda não havia nascido quando Cauê a encontrou caída no corredor. Ela estava de joelhos, o corpo tremendo violentamente. Febre. Ele tocou sua testa; a pele queimava.

“Há quanto tempo está assim?” “Estou bem”, ela tentou se levantar e cambaleou. “Você não vai a lugar nenhum.”

Ele a pegou no colo antes que ela protestasse. Pesava menos do que deveria. No quarto de hóspedes, ele a deitou. Os cortes em seu braço estavam vermelhos e inchados.

“Estão infectados.” “Eu tentei limpar, mas…” “Fica quieta.”

Ele voltou com o kit veterinário. Antisséptico, gaze e antibióticos. Ele limpou cada ferimento com uma precisão cirúrgica.

“Você sabe o que está fazendo”, ela murmurou, surpresa. “Essas são técnicas veterinárias.” “38 anos criando gado. Aprende-se algumas coisas.” “Eu sou formada”, ela desviou o olhar. “Era veterinária em Campo Grande. Até que ele pediu para eu parar.” “Quem é ele?”

“Rogério Tavares.” O nome saiu como veneno. “Empresário. Construção civil. Agronegócio. Respeitado, poderoso. E violento.”

Ela contou. O começo charmoso, as flores na clínica. A gravidez de Sofia. O pedido para que ela ficasse em casa, “cuidando da família dele“.

“Lucas não é filho dele”, Cauê constatou. “Não. O pai de Lucas morreu antes de ele nascer. Rogério disse que o aceitaria como filho. Mas, na verdade”, a voz dela falhou, “ele via Lucas como propriedade. Algo que ele podia moldar, quebrar. Quando Lucas não obedecia… ele batia nele.”

Lágrimas escorreram. “E eu deixei. Porque tinha medo. Rogério dizia que tinha amigos na polícia, no judiciário. Que se eu saísse, ele ficaria com as crianças e eu nunca mais as veria.”

“O que mudou?”

“Há duas semanas, Lucas derrubou um copo de vinho. Um acidente. Rogério o arrastou para o quarto. Quando ouvi os gritos… algo quebrou em mim. Entrei, peguei Lucas do chão. Tinha… muito sangue.”

Ela fugiu naquela madrugada, pegando o dinheiro que escondera por meses, deixando o celular para trás.

“Por que aqui? Tão longe?” “Porque precisava sair do estado dele. Perto da divisa, talvez ele não procurasse.”

Eles ficaram em silêncio. Cauê conhecia homens como Rogério. Homens que compravam favores como quem compra gado.

“Meus peões chegam às 7h”, disse Cauê, prático. “Eles não podem ver vocês.” “Então partiremos agora.” “Você vai ficar na casa. Nos quartos dos fundos. Em alguns dias, quando estiver recuperada, veremos o próximo passo.” “Por que está fazendo isso?”

Cauê parou na porta. “Porque eu já vi esse olhar antes. O de alguém que perdeu tudo e ainda assim continua lutando.”

Duas semanas se passaram. Mariana e as crianças eram fantasmas durante o dia. Cauê sentia os olhares desconfiados de seus peões, João e Tenório. “O senhor está diferente, patrão”, João disse certa manhã. “Há roupas pequenas no varal que o senhor esquece de recolher.”

Cauê não negou. “Seja cuidadoso, patrão”, alertou o velho peão. “Motivos assim costumam encontrar as pessoas.”

Mas naquelas duas semanas, a vida voltou à fazenda. Mariana, com a febre baixa, começou a ajudar. A égua na baia 3 estava com tendinite.

“Posso…?” Cauê entregou a medicação. Vê-la trabalhar era como assistir a uma flor desabrochar. Suas mãos eram firmes, seu conhecimento, atualizado.

“Eu lia escondida”, ela admitiu, acariciando a égua. “Rogério tirou meu trabalho, meus amigos, minha liberdade. Mas ele não podia tirar o que estava na minha cabeça.”

Sofia agora seguia Cauê como uma sombra tagarela. “Tio Cauê, você tem cavalinhos? Posso ver?”

Lucas, porém, permanecia em seu mundo silencioso. Ele não dissera uma palavra desde que chegara.

Até o dia em que Luna, a égua prenha, entrou em trabalho de parto.

Eram 2 da manhã. O potro estava em posição errada. “Apresentação posterior”, disse Mariana, pálida. “As patas traseiras vêm primeiro. Precisamos virá-lo ou ambos morrem.”

“Me diga o que fazer.” “Você já fez isso antes?” “Três vezes. Duas bem-sucedidas.” “Então você guia, eu auxilio.”

Por uma hora agonizante, eles trabalharam em sincronia. Mariana descrevia a anatomia, Cauê usava sua força bruta com delicadeza. Finalmente, com um esforço conjunto, o potro nasceu, vivo.

Exaustos, eles caíram sentados na palha. “Nós conseguimos”, Mariana riu, um som embriagado de alívio.

Ele a beijou. Não foi planejado. Foi instintivo. E ela respondeu com a mesma fome desesperada de quem volta a viver.

“Eu ia dizer”, ele murmurou contra os lábios dela, “que já queria fazer isso há duas semanas.” “Só duas?”, ela riu.

Nos dias seguintes, beijos roubados no estábulo e mãos dadas sob a mesa do jantar se tornaram a norma. Cauê contou sobre sua própria traição, dez anos atrás, que o fez construir suas paredes. Mariana compartilhou suas cicatrizes.

Até que Lucas, observando o novo potro (que ele batizou de Esperança), quebrou seu silêncio de um mês.

“Tio Cauê? Você… você pode me ensinar a andar de cavalo?”

Mariana cobriu a boca, as lágrimas jorrando. Cauê sentiu um nó na garganta. “Seria uma honra, Lucas.”

Seis semanas. O aniversário de Sofia se aproximava. Cauê, que não planejava uma festa há uma década, estava listando ingredientes para um bolo.

“Você não precisa fazer tudo isso”, Mariana o abraçou por trás. “Eu quero”, ele se virou, capturando seu rosto. “Vocês todos merecem.”

O beijo tinha gosto de lágrimas salgadas que ele não entendeu.

Dois dias depois, Cauê dirigiu até Alto Araguaia para comprar os balões. Ao sair da loja de brinquedos, ele a viu.

A foto de Mariana o encarava de um poste.

PROCURA-SE. Mariana Fonseca. Procurada por sequestro parental. Considerada instável e perigosa. RECOMPENSA: R$ 50.000.

O mundo inclinou. Na delegacia local, o oficial confirmou: “Sim, caso de Rogério Tavares. Empresário importante. Ele conseguiu uma liminar de guarda. Apresentou laudos médicos provando que ela é instável. O homem está desesperado.”

Laudos falsos. Mentiras oficiais. E R$ 50.000 eram o suficiente para fazer qualquer vizinho falar.

Ele voltou para casa, os suprimentos da festa esquecidos. Encontrou Mariana e Sofia rindo, cobertas de farinha.

“Preciso falar com você”, ele disse, a voz morta.

Quando as crianças dormiram, ele entregou o cartaz. Assistir o sangue drenar do rosto dela foi como levar um soco.

“Liminar de guarda… instável…” Ela riu, um som quebrado. “Ele realmente fez isso.” “Mariana, R$ 50.000. É questão de tempo.” “Eu sei.” Ela começou a andar, frenética. “Não posso colocar você em risco. Não posso deixar Rogério destruir você.” “Então lutamos juntos.” “Contra o sistema judicial? Contra R$ 50.000? Isso não é um conto de fadas, Cauê. Eu preciso desaparecer.” “Mariana, por favor…” “Eu te amo”, ela gritou, e então cobriu a boca, chorando. “Justamente porque te amo, preciso ir embora.”

Ela foi para o quarto. Cauê ficou sozinho na sala, o mundo desmoronando pela segunda vez.

Ele a seguiu. “Eu também te amo, Mariana. Amo como você canta, amo sua força. Amo Lucas e Sofia. Vocês são minha família. E eu não abandono família.” “Mas Rogério…”

O som de motores cortou a noite. Faróis varreram as janelas. Quatro da manhã.

“Ele está aqui”, sussurrou Lucas, da porta. “Eu reconheço o som do carro dele.”

Três homens saíram da escuridão. Dois capangas armados. Um delegado. E, por último, Rogério Tavares, impecável em seu terno caro.

“Mariana, amor. Você me deu trabalho.” “Ele não é pai deles!”, gritou Mariana para o delegado Portela. “A liminar de guarda discorda, senhora. Obtida com laudos médicos.” “Isso é mentira!” “E você, senhor”, disse Portela a Cauê, “está cometendo crime de sequestro.”

Rogério subiu na varanda. “Você achou que podia me escapar? Eu possuo metade deste estado.” “Você não me possui!” “Ainda?” Ele ergueu a mão. O som do tapa ecoou pela fazenda. Mariana caiu.

“NÃO!” Lucas explodiu pela porta, lançando-se contra Rogério. “NÃO MACHUCA MINHA MÃE!”

Rogério agarrou o menino pelo braço. Cauê não pensou. Seu punho acertou o queixo de Rogério. Os dois rolaram pela varanda.

Durante a confusão, algo caiu do bolso de Rogério. Um celular. Deslizou pela madeira e parou sob uma cadeira de balanço. Ninguém viu.

“Segurem ele!”, gritou Rogério. A luta terminou com Cauê imobilizando-o contra o corrimão.

“Delegado, prenda este homem!”, cuspiu Rogério. Portela hesitou. A situação saíra do controle. “Isso não acabou”, disse Rogério, limpando o sangue. Ele olhou para Mariana com ódio puro. “Nem perto.”

Eles partiram. Mariana correu para Lucas. Sofia chorava na porta. “Ele vai voltar”, disse Cauê. “Eu sei.” Mariana segurou a mão dele. “E eu não vou mais fugir.”

Ao amanhecer, Sofia encontrou o celular. “Pai, é dele”, sussurrou Lucas.

Estava desbloqueado. E cheio de provas. Mensagens para o “Delegado Portela” (“Transferência de 25k confirmada”). Mensagens para “Juiz F.” (“Processo arquivado. Aguardo retribuição”).

E um áudio. A voz de Rogério. “Preciso que prepare os papéis para internação involuntária. Quanto custa? 100 mil? Tanto faz. Só garanta que ela não saia de lá. As crianças ficam comigo, são boas para a imagem em ano eleitoral.”

“Ele planejava me trancar”, Mariana cambaleou.

“E agora temos prova”, disse Cauê.

Eles agiram rápido. Cauê ligou para a melhor advogada criminalista de Cuiabá, um contato de seu falecido pai. Dra. Helena Campos chegou em horas, seguida pela jornalista investigativa Ana Paula Ferreira.

“Tavares está na minha mira há anos”, disse Ana Paula, os olhos brilhando. “Isto vai destruí-lo.”

Lucas, com uma coragem que fez Cauê chorar de orgulho, deu seu depoimento. Contou tudo.

A manchete saiu na manhã seguinte. A foto de Rogério estava ao lado de uma captura de vídeo (o vizinho, Sebastião, ouvira os gritos e gravara tudo da cerca) dele agredindo Mariana.

Rogério foi preso preventivamente antes do meio-dia.

A batalha pela guarda foi longa. Seis meses de audiências, laudos e testemunhas. Seis meses em que Rogério, mesmo da prisão, tentou de tudo. Mas as evidências eram irrefutáveis.

“Ganhou”, disse Dra. Helena ao telefone. “Guarda total. Ordem de restrição permanente.”

Mariana desabou em soluços de alívio nos braços de Cauê.

Naquela noite, Cauê reuniu as crianças no pasto onde Esperança, o potro, agora corria livre. Lucas e Sofia ergueram uma faixa que dizia: “QUER SER NOSSA FAMÍLIA PARA SEMPRE?”

Cauê se ajoelhou, tirando um anel simples do bolso. “Eu te amo, Mariana. Amo nossa vida. Aceita se casar comigo?”

“Sim!”, ela riu através das lágrimas. “Sim, mil vezes sim!”

Um ano depois, a Fazenda Serra Azul estava em festa. O casamento foi um churrasco animado. Vizinhos, amigos e os peões celebravam. Mariana, com oito meses de gravidez, circulava, radiante. Lucas, agora com 10 anos, ensinava outras crianças a escovar os cavalos. Sofia era a alma da festa.

Cauê observava sua família, o coração tão cheio que parecia que ia transbordar. Ele, que havia escolhido a solidão como prisão, descobriu que o amor era a verdadeira liberdade.

“No que está pensando?”, Mariana perguntou, encostando-se nele. “Que ruídos estranhos”, ele sorriu, “às vezes trazem as melhores coisas da vida.”

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