Ela não é sua escrava, ela é minha mãe. A voz de Dom Lourenço de Valmor rasgou o silêncio do casarão como um trovão. O barão Estevão de Montei ergueu a pistola, o cano frio apontado para o coração daquele nobre que ousava desafiá-lo. A ruana dos Santos, a escrava de olhos cheios de lágrimas e fé, estendeu os braços entre os dois homens. O disparo ecoou. Bahia, 1853.
30 anos após a separação mais brutal que uma mãe poderia suportar. O ar nos canaviais da fazenda Montei carregava o cheiro acre do açúcar queimado, misturado ao suor e ao sangue de dezenas de almas acorrentadas. Ali, sob o sol inclemente, que castigava a terra vermelha, a Aruana dos Santos curvava as costas marcadas por açoites antigos.
Aos 47 anos, sua pele escura, reluzente ainda guardava a beleza de outrora, mas era nas mãos calejadas e nos olhos profundos que habitava sua verdadeira força. Seus cabelos crespos e longos, presos em tranças grossas, balançavam levemente ao vento enquanto ela trabalhava em silêncio, como sempre fizera. Auana não era apenas mais uma escrava, era memória viva.

Conhecia os nomes de todos os que haviam partido. Lembrava das canções que embalavam os dias de dor. Guardava as histórias que o cativeiro tentava apagar. E havia algo mais, algo que ninguém conseguia arrancar dela, nem mesmo os anos de tortura, a fé. Uma fé inabalável de que o vento levava suas orações até onde seu filho estivesse.
Aos 17 anos, Aruana dera à luz um menino de pele morena clara e olhos cor de mel. Ela o segurou por apenas três dias, antes que o capataz, amando do antigo Senhor, arrancasse a criança de seus braços. As unhas dela haviam sangrado ao tentar resistir. Os gritos dela haviam ecoado pela cenzala inteira, mas nada impediu que levassem o pequeno vendido para uma família portuguesa que partiu rumo à Lisboa.
Desde aquele dia, Aruana conversava com o vento. Todas as manhãs, antes do sol nascer, ela sussurrava o nome do filho que nunca conhecera por completo. não sabia se ele estava vivo ou morto, se lembrava dela ou se havia esquecido sua existência. Mas a mãe jamais esquecera, jamais desistira. A fazenda Montei pertencia agora ao Barão Estevão de Montei, homem branco de 52 anos, alto de barba grisalha e postura imponente.
Ele comprara Aruana junto com a propriedade anos atrás e desde então havia como símbolo de sua posse mais antiga e valiosa. Estevão era calculista, cruel e obsecado por poder. Para ele, a Aruana não passava de uma ferramenta, embora algo nela o incomodasse. Aqueles olhos firmes que nunca se curvavam completamente, mesmo diante do chicote.
Naquela manhã de outubro, a fazenda estava em alvoro um nobre, enviado pela coroa portuguesa chegaria para supervisionar as propriedades decadentes da região. Elina de Montei, filha do Barão, uma jovem branca de 25 anos, delicada e sonhadora, estava agitada. Ela passara horas escolhendo o vestido perfeito, ajeitando os cachos louros, imaginando como seria aquele homem importante vindo de Lisboa.
Aruana observava tudo de longe, varrendo o pátio principal. Não se importava com nobres ou visitas. Seu mundo era pequeno, cercado por correntes invisíveis e sonhos impossíveis. Mas naquele dia, algo diferente pairava no ar, algo que fazia seu coração acelerar sem motivo aparente. Quando as carruagens chegaram, levantando poeira vermelha da estrada, Aruana parou por um instante.
Do veículo desceu um homem jovem, de aproximadamente 30 anos, vestido com trajes nobres e impecáveis. Sua pele era morena clara. Os cabelos castanhos escuros caíam levemente sobre a testa e os olhos cor de mel brilhavam com uma intensidade que parecia carregar histórias não contadas.
Ele era Dom Lourenço de Valmor, enviado direto da metrópole para avaliar fazendas e propriedades em nome da coroa. Lourenço tinha uma presença estranha, educado, elegante, mas com um vazio dentro de si que nem mesmo os anos em Lisboa conseguiram preencher. Ele sabia que fora adotado ainda bebê por uma família nobre portuguesa, mas jamais soubera detalhes sobre sua origem.
A única pista que carregava era um medalhão de madeira pendurado em seu pescoço, escondido sob a camisa. Nele, gravado com letras toscas, estava um nome, Aruana. O Barão Estevão recebeu Lourenço com toda pompa e circunstância, exibindo a riqueza da propriedade como quem exibe troféus de guerra. Celina, por sua vez, não disfarçava a atração que sentia pelo jovem nobre.
Seus olhos o seguiam, suas palavras eram cuidadosamente escolhidas. e seu sorriso ensaiado. Lourenço, no entanto, parecia distante. Seus olhos percorriam a fazenda com uma mistura de curiosidade e desconforto. Havia algo ali que o incomodava profundamente, algo que ele não conseguia nomear.
Quando seus passos o levaram ao pátio onde os escravos trabalhavam, ele parou. Foi então que a viu. A Aruana estava de costas, curvada sobre uma pilha de lenha que organizava para a cozinha. Seus movimentos eram lentos, cansados, mas havia uma dignidade em cada gesto que chamou a atenção de Lourenço. Ele sentiu uma pontada estranha no peito, como se algo antigo e esquecido despertasse dentro dele.
Ela se virou e seus olhos se encontraram. Aruana sentiu o mundo parar. Aqueles olhos cor de mel, aquela pele morena clara, aquele rosto que parecia saído de seus sonhos mais impossíveis. Suas mãos tremeram. O ar faltou, mas foi quando ela viu o medalhão pendurado no pescoço dele, balançando levemente para fora da camisa, que seu coração explodiu.
Era o medalhão que ela mesma havia feito com as próprias mãos antes de perder seu filho. As pernas de Aruana fraquejaram. Ela agarrou-se a um tronco próximo, tentando desmaiar. Lágrimas silenciosas escorreram por seu rosto, mas ela as enxugou rapidamente, com medo de ser castigada por demonstrar fraqueza. Lourenço, sem entender a reação daquela mulher, deu um passo em sua direção.
Havia algo nela que o puxava, algo inexplicável. Ele abriu a boca para perguntar seu nome, mas foi interrompido pela voz autoritária do Barão. Dom Lourenço, venha. Tenho muito a lhe mostrar ainda. Não perca tempo com os escravos”, disse Estevão com desdém. Lourenço hesitou, mas acabou seguindo o barão.
Antes de se afastar completamente, porém, ele lançou um último olhar para a Aruana. E naquele olhar ela viu algo que não via há 30 anos, esperança. Naquela noite, Aruana não conseguiu dormir. Ela deitou-se na cenzala apertada, rodeada por corpos cansados e respirações pesadas, mas sua mente estava longe. Ela tocou o próprio peito, sentindo o coração bater descompassado.
Seria possível? Seria realmente ele? Ela fechou os olhos e sussurrou para o vento, como fazia todas as noites. Meu filho, será que és tu? Antes de continuarmos, agradeço de coração por você estar aqui acompanhando essa história. Sua presença, seu tempo e sua atenção são muito especiais para mim.
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Na manhã seguinte, Lourenço acordou inquieto. Algo o perturbava. A imagem daquela escrava de olhos profundos não saía de sua mente. Ele levantou-se, vestiu-se rapidamente e decidiu caminhar pelos arredores da fazenda antes do café da manhã. Foi quando a viu novamente. A Juana estava sozinha, ajoelhada próxima a uma pequena capela abandonada nos fundos da propriedade.
Ela rezava em voz baixa, as mãos entrelaçadas, os olhos fechados. Lourenço aproximou devagar, sem fazer barulho, mas ela sentiu sua presença e ergueu a cabeça. Seus olhares se cruzaram novamente. Desta vez, foi Lourenço quem sentiu o impacto. Havia algo naqueles olhos que o reconhecia, que o chamava, que o conhecia de um jeito impossível de explicar. “Qual é o seu nome?”, perguntou ele, a voz suave. Auana hesitou.
Falar diretamente com um nobre era proibido, mas algo mais forte que o medo a fez responder: “Auana, senhor. Meu nome é Aruana dos Santos. O mundo de Lourenço desabou. Lourenço sentiu suas pernas tremerem. O medalhão de madeira pesava em seu peito como se carregasse o peso de 30 anos de mistério.
Ele levou a mão ao pescoço, puxando o objeto para fora da camisa e o segurou diante dos próprios olhos, como se precisasse confirmar o que já sabia. Aruana. O nome estava ali, gravado de forma tosca, mas legível, o mesmo nome que aquela mulher acabara de pronunciar. Aruana, repetiu ele, a voz rouca, quase inaudível.
A escrava ergueu-se lentamente, os joelhos doloridos rangendo com o esforço. Seus olhos fixaram-se no medalhão pendurado nas mãos do nobre, e uma lágrima solitária escorreu por sua face. Ela reconhecia aquele objeto. Como não reconheceria, fora ela quem o esculpira com as próprias mãos, usando um pedaço de madeira que encontrara perto da cenzala.
Ela o fizera em três noites seguidas, escondida, com medo de ser descoberta. E na última noite, antes de seu filho ser arrancado de seus braços, ela o amarrara ao pescoço dele com um pedaço de corda trançada. “De onde tirou isso?”, perguntou Lourenço, dando um passo à frente. Auana abaixou o olhar, o medo lutando contra a verdade que precisava ser dita.
“Falar poderia custar sua vida, mas silenciar poderia custar sua alma.” Eu eu fiz, Senhor”, respondeu ela, a voz trêmula: “Há muito tempo para meu filho.” As palavras caíram sobre Lourenço como uma avalanche. Seu peito apertou, sua respiração falhou. Ele olhou para aquela mulher marcada pelo sofrimento, para aqueles olhos que carregavam dor e esperança em igual medida, e algo dentro dele se quebrou.
“Seu filho?” Conseguiu perguntar, embora já soubesse a resposta. Auana assentiu, as lágrimas agora fluindo livremente. Ela apertou as mãos uma contra a outra, tentando controlar o tremor que tomava conta de seu corpo. Ele tinha apenas três dias quando me tiraram dele. Disseram que seria vendido para uma família nobre de Lisboa. Nunca mais o vi.
Mas todas as noites eu rezo por ele. Peço ao vento que leve minhas palavras até onde ele estiver. Lourenço sentiu o chão desaparecer sob. Tudo fazia sentido. Agora, o vazio que sempre sentira, a sensação de não pertencer completamente ao mundo em que fora criado, a estranha atração que sentira por aquela mulher desde o primeiro olhar.
Ele queria dizer algo, queria gritar, queria abraçá-la e pedir perdão por todos os anos perdidos. Mas antes que pudesse mover um músculo, ouviu passos se aproximando. Era o capataz, um homem branco de meia idade, de olhar cruel e chicote sempre à mão. “O que está acontecendo aqui?”, perguntou o capataz desconfiado. Escrava, volte ao trabalho imediatamente.
A Arana baixou a cabeça e se afastou rapidamente, mas não antes de lançar um último olhar para Lourenço. Naquele olhar havia um pedido silencioso. Não diga nada. Ainda não. Lourenço ficou ali parado sozinho, segurando o medalhão com tanta força que seus dedos ficaram brancos. Sua mente girava em círculos, tentando processar a verdade que acabara de descobrir.
Ele era filho daquela mulher, filho de uma escrava. Tudo o que ele era, tudo o que possuía fora construído sobre o sangue e o sofrimento de pessoas como ela. Nos dias seguintes, Lourenço não conseguiu agir normalmente. Ele participava das refeições com o Barão e Celina. Fingia interesse nas conversas sobre produção de açúcar e negócios.
Mas sua mente estava sempre em outro lugar, sempre em Aruana. Ele começou a observá-la de longe. Via como ela trabalhava incansavelmente, como ajudava os outros escravos quando ninguém estava olhando, como sussurrava palavras de fé e esperança. Mesmo em meio ao desespero.
Havia uma força nela que ele nunca vira em nenhuma das damas nobres que conhecera em Lisboa. Uma dignidade que nenhum açoite conseguira apagar. Celina percebeu a mudança no comportamento de Lourenço. Ela notou como ele se distraía durante as conversas, como seus olhos vagavam pela fazenda, como ele parecia distante, mesmo quando estava ao seu lado. Uma pequena semente de desconfiança começou a germinar em seu coração.
Certa tarde, enquanto Lourenço caminhava pelos jardins, ele encontrou o padre Jerônimo do Vale, um homem negro, liberto de 61 anos, de fala mansa e olhar profundo. O padre era respeitado por todos, até mesmo pelo Barão, e costumava visitar a fazenda para oferecer conforto espiritual aos escravos. Dom Lourenço cumprimentou o padre, inclinando a cabeça respeitosamente.
Posso ter uma palavra convosco? Lourenço sentiu ansioso por qualquer conselho que pudesse acalmar o turbilhão dentro de si. Os dois caminharam até um canto isolado do jardim, longe de ouvidos indiscretos. O padre olhou profundamente nos olhos de Lourenço antes de falar. Conheço a história de Aruana”, disse ele, a voz baixa e cuidadosa.
“Conheço a dor que ela carrega há 30 anos e sei, meu filho, que essa dor também é sua.” Lourenço sentiu seu coração disparar, como o padre sabia? Ela me contou há muitos anos sobre o filho que lhe arrancaram, continuou Jerônimo. Ela me fez jurar que se algum dia eu soubesse de seu paradeiro, eu guardaria segredo até que fosse seguro revelar.
Mas agora vejo que o destino trouxe você de volta para ela. Padre, eu não sei o que fazer, confessou Lourenço, a voz quebrando. Descobri que minha vida inteira foi uma mentira que fui construído sobre o sofrimento dela. Não, meu filho! Corrigiu o padre, colocando uma mão firme no ombro de Lourenço. Sua vida não foi uma mentira, foi uma dádiva, uma segunda chance.
E agora você tem o poder de fazer o que está certo. Mas como? questionou Lourenço desesperado. Como posso libertá-la sem destruir tudo? O Barão jamais permitirá. A sociedade me crucificará. O padre sorriu tristemente. A escolha nunca é fácil quando envolve amor e justiça, Dom Lourenço, mas eu sei que você encontrará o caminho, porque o sangue que corre em suas veias é o mesmo que corre nas veias dela, e esse sangue carrega coragem. Naquela noite, Lourenço não conseguiu dormir.
Ele ficou na varanda de seu quarto, olhando para a cenzala ao longe, onde sabia que a Aruana estava. Ele tocou o medalhão no pescoço e sussurrou para o vento, assim como ela fazia todas as noites. Mãe, eu voltei, mas na manhã seguinte, ao descer para o café, Lourenço encontrou o Barão Estevão de pé na sala, segurando algo nas mãos. Era uma carta.
E pelo olhar sombrio no rosto do Barão, Lourenço que algo terrível estava prestes a acontecer. “Dom Lourenço”, disse Estevão, a voz fria como gelo. “Recebi uma proposta interessante. Um fazendeiro do Rio de Janeiro deseja comprar algumas de minhas escravas mais antigas. E a Aruana está no topo da lista. O tempo parou. Lourenço sentiu como se uma lâmina atravessasse seu peito.
Vender a Aruana, levá-la para longe. Justamente agora que ele a encontrara, sua mente lutou para processar aquelas palavras, mas o barão continuava falando, indiferente a tempestade que suas palavras haviam causado. Ela é uma escrava cara, mas com a idade avançada preciso considerar propostas vantajosas”, explicou Estevon, examinando a carta com interesse comercial.
O fazendeiro oferece um bom valor. Pretendo aceitar quando? Conseguiu perguntar Lourenço, a voz mal saindo de sua garganta. Dentro de uma semana ele enviará homens para buscá-la. Uma semana, apenas sete dias para encontrar uma solução para salvar a mãe que acabara de reencontrar. Lourenço apertou os punhos, tentando manter a compostura.
Não podia revelar seus sentimentos? Não ainda. Qualquer demonstração de interesse especial por Aruana despertaria suspeitas. “O Sr. Barão é, sem dúvida, um excelente negociante”, disse Lourenço, forçando um tom neutro. “Se me permite, vou dar uma caminhada pelos campos. Preciso avaliar algumas áreas para meu relatório à coroa.” Estevão acenou com a mão, já distraído com outros papéis.
Lourenço rapidamente, o coração martelando no peito. Ele precisava falar com Aruana. Precisava dizer a ela que não permitiria aquela venda. Mas como fazer isso sem expor o segredo que os unia? Ele a encontrou no campo de cana, cortando com movimentos lentos, mas precisos. Quando Aruana o viu se aproximando, seu corpo inteiro se enrijeceu. Ela sabia.
De alguma forma, ela sempre sabia quando algo ruim estava por vir. Lourenço olhou ao redor, certificando-se de que ninguém os observava, e se aproximou dela. Não podia falar abertamente, mas seus olhos diziam tudo. A Arana leu neles o desespero, a urgência, o medo. Eles vão me vender, sussurrou ela.
Uma afirmação, não uma pergunta. Lourenço assentiu, a garganta apertada demais para palavras. Aruana fechou os olhos por um momento, respirando fundo. 30 anos, 30 anos esperando por aquele reencontro impossível. E agora, quando finalmente acontecera, o destino conspirava para separá-los novamente. “Não vou permitir”, disse Lourenço, baixo, mas firme. “Vou encontrar um jeito.
” “Como?”, perguntou Aruana, a voz carregada de uma dor antiga. “Você é um nobre. Eu sou uma escrava. Não ajeito, meu filho, não ouvir aquelas palavras, meu filho, saindo dos lábios dela pela primeira vez, foi como receber uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo.
Lourenço sentiu lágrimas arderem em seus olhos, mas não as deixou cair. “Eu vou comprar sua liberdade”, declarou ele determinado. “O barão jamais aceitará”, respondeu Aruana, balançando a cabeça. Ele sabe que eu valho mais do que dinheiro para ele. Sou símbolo de seu poder e se você insistir demais, ele desconfiará. Ela tinha razão. Lourenço sabia disso. Qualquer movimento errado poderia arruinar tudo. Nos dias seguintes, a tensão na fazenda aumentou.
Celina observava Lourenço com crescente desconfiança. Ela notara como ele se ausentava frequentemente, como seu olhar buscava alguém nos campos, como ele parecia atormentado por algo que não compartilhava com ninguém. Certa tarde, Celina seguiu Lourenço discretamente e o viu conversando com Aruana perto do celeiro.
Ela não conseguiu ouvir as palavras, mas viu algo que a deixou perturbada, a forma como Lourenço olhava para aquela escrava. Havia ternura naquele olhar, preocupação, algo que ia muito além da compaixão superficial que alguns nobres demonstravam por seus servos. Celina recuou, o coração confuso. Ela não entendia o que estava vendo. Mas uma coisa era certa. Havia um segredo entre aquele nobre e aquela escrava.
E segredos, ela sabia podiam ser perigosos. Enquanto isso, Lourenço se encontrou novamente com o padre Jerônimo. Os dois conversaram por horas na pequena capela, buscando uma solução que parecesse cada vez mais impossível. “E a lei está contra vocês”, disse o padre. sua voz pesada de tristeza. E a sociedade também, se você revelar a verdade, será destruído, mas se não fizer nada, perderá sua mãe para sempre.
Então, o que faço, padre? Questionou Lourenço, a angústia transparecendo em cada palavra. Como escolho entre honra e amor, entre título e sangue? Essa escolha, meu filho, só você pode fazer, respondeu Jerônimo. Mas saiba que qualquer que seja sua decisão, Deus conhece seu coração. Na noite anterior à chegada dos homens do fazendeiro do Rio de Janeiro, Lourenço tomou uma decisão.
Ele iria até o Barão e faria uma proposta. Ofereceria o dobro do valor que o outro fazendeiro estava pagando pela liberdade de Aruana. Usaria sua própria fortuna, arriscaria sua reputação, mas não deixaria que a levassem. Ele ensaiou as palavras em sua mente, preparou os argumentos, reuniu toda a coragem que possuía, mas quando desceu para jantar, encontrou uma cena que congelou seu sangue.
Celina estava sentada à mesa ao lado do pai e seus olhos brilhavam com uma mistura de dor e raiva. O barão Estevão tinha uma expressão sombria no rosto e no centro da mesa havia um objeto que Lourenço reconheceu imediatamente. Era um desenho, um esboço feito a carvão, mostrando claramente o rosto de Aruana. Um dos escravos que sabia desenhar o fizera anos atrás e o barão o guardara como parte de seu inventário.
“Dom Lourenço”, disse o Barão, a voz baixa e perigosa. “Minha filha me trouxe informações interessantes hoje. Parece que o senhor tem demonstrado um interesse peculiar por uma de minhas escravas.” Lourenço sentiu o chão desabar. Celina o observava, os olhos cheios de lágrimas contidas, esperando uma explicação que ele não poderia dar sem destruir tudo.
“Celina viu vocês conversando”, continuou Estevão, levantando-se lentamente. E isso me fez pensar, por que um nobre de Lisboa se interessaria tanto por uma escrava velha? A menos que ele fez uma pausa dramática, seus olhos perfurando Lourenço. Que haja algo mais entre vocês? Estou curiosa para saber de que cidade ou estado vocês estão acompanhando essa história. Me conta nos comentários.
É incrível imaginar como nossas histórias viajam e alcançam cantos tão diferentes do mundo. Mal posso esperar para descobrir até onde chegaremos juntos. O silêncio na sala era insurdeor. Lourenço precisava decidir naquele exato momento se mentia ou se revelava a verdade, se protegia seu nome ou salvava sua mãe.
Mas antes que pudesse abrir a boca, a porta da sala se escancarou. Era o capataz, ofegante, o rosto pálido de terror. Barão. A escrava aruana fugiu. O barão Estevão explodiu em fúria. Sua face enrubeceu. As veias do pescoço saltaram e ele esmurrou a mesa com tanta força que os pratos tremeram.
Fugiu? Como uma escrava ousa fugir de minha propriedade, vociferou ele, virando-se para o capataz. Reúna os homens. Soltem os cães. Quero essa mulher de volta antes do amanhecer. Lourenço sentiu seu coração disparar. A Ruana fugira, ela tomara a decisão por ambos e agora estava lá fora, sozinha, perseguida, sem chances reais de escapar. Ele precisava encontrá-la primeiro. Precisava protegê-la.
“Barão, permita-me ajudar na busca”, ofereceu Lourenço, tentando manter a voz firme. “Conheço técnicas de rastreamento que aprendi na Europa. Posso ser útil.” Estevão o encarou com desconfiança, mas acabou concordando com um aceno brusco de cabeça. Celina permaneceu sentada pálida, os olhos fixos em Lourenço. Ela sabia, mesmo sem entender completamente, ela sabia que havia algo profundo e perigoso acontecendo.
A fazenda se transformou em caos. Homens armados montaram cavalos, tochas foram acesas. Cães farejadores foram soltos. A noite escura da Baia foi rasgada por gritos de ordem e latidos furiosos. Lourenço montou seu cavalo e partiu com os outros, mas seu coração rezava para que Aruana estivesse longe, muito longe dali.
Ele cavalgou por trilhas conhecidas, afastando-se propositalmente dos outros homens. Precisava encontrá-la antes deles. Mas a floresta era densa, a escuridão quase impenetrável, como encontrar alguém que não queria ser encontrada. Foi quando ouviu um sussurro no vento, palavras que pareciam vir de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo.
“Meu filho, será que és tu?”, era a voz dela. A Arana estava rezando, como sempre fizera. Lourenço seguiu o som desmontando do cavalo e avançando a pé pela mata, e então a viu. Ela estava ajoelhada perto de um riacho, as roupas rasgadas, os pés sangrando. Suas mãos estavam entrelaçadas em oração e lágrimas escorriam por seu rosto iluminado pela lua.
Quando ouviu os passos dele, ela ergueu a cabeça, pronta para enfrentar seu destino. Mas era ele, Lourenço! Sussurrou ela, a voz quebrada. Ele correu até ela, ajoelhando-se ao seu lado. Pela primeira vez, sem medo de serem vistos, sem as correntes da propriedade os separando, mãe e filho se abraçaram.
Aruana soluçou contra o peito dele, 30 anos de dor e saudade transbordando naquele momento. Lourenço segurou com força, como se pudesse protegê-la de todo o mal do mundo. “Por que fugiu?”, perguntou ele, ainda abraçado a ela. “Porque não podia deixar que você se sacrificasse por mim?”, respondeu Aruana, afastando-se levemente para olhar em seus olhos. “Vi em seu rosto que você estava disposto a revelar tudo, a arriscar seu nome, sua posição.
Não posso permitir isso. Já perdi você uma vez. Não vou destruir sua vida agora. Minha vida não vale nada sem você”, disse Lourenço, a voz firme, apesar das lágrimas. Passei 30 anos sentindo um vazio que não conseguia explicar. Agora sei o motivo. Você é minha mãe e vou fazer o que for necessário para libertá-la.
Auana tocou o rosto dele com mãos trêmulas, memorizando cada traço, cada detalhe do filho que fora arrancado de seus braços quando era apenas um bebê. “Você se tornou um homem bom”, disse ela, sorrindo através das lágrimas. Mesmo criado longe de mim, mesmo sem saber de onde veio, você tem um coração justo. Isso me basta. Não me basta. Retrucou Lourenço. Não vou perder você novamente.
Mas antes que pudessem continuar, ouviram latidos vozes. Tocha se aproximando. Os homens do barão estavam chegando. Vá, ordenou a Luana, empurrando Lourenço. Fuja. Eles não podem nos encontrar juntos. Não vou deixá-la. Vai sim”, disse ela com a autoridade de uma mãe, “que a única chance que temos. Volte para a fazenda.
Finja que não me encontrou e quando chegar a hora certa você saberá o que fazer.” Lourenço hesitou dilacerado entre o dever filial e a sobrevivência, mas os latidos estavam cada vez mais próximos. Ele beijou a testa de Aruana, um gesto de despedida e promessa, e desapareceu na escuridão. Minutos depois, os homens do Barão encontraram a Aruana sozinha, exausta, sem forças para continuar fugindo.
Eles a agarraram brutalmente, amarraram suas mãos e a arrastaram de volta para a fazenda. Ela não resistiu, não gritou, apenas olhou para o céu estrelado e sussurrou uma oração de gratidão por ter tido aqueles poucos minutos com seu filho. Quando amanheceu, Aruana foi levada ao tronco no centro do pátio.
O barão Estevão ordenou que todos os escravos fossem reunidos para assistir ao castigo. Era uma demonstração de poder, um lembrete cruel de que ninguém desafiava sua autoridade. Lourenço chegou correndo da floresta, fingindo estar exausto da busca. Quando viu a Aruana amarrada ao tronco, seu sangue congelou.
O capataz segurava o chicote, esperando a ordem do Barão. “Esa escrava ousou fugir”, anunciou Estevão, sua voz ecoando pelo pátio, e por isso será punida como exemplo. O capataz ergueu o chicote. Lourenço sentiu algo dentro dele se romper. Não podia assistir à aquilo, não podia permitir que açoitassem sua mãe enquanto ele ficava ali impotente. “Pare!”, gritou ele, avançando em direção ao barão.
Todos se viraram surpresos. Celina, que observava da varanda da casa grande, levou a mão à boca. O barão franziu a testa confuso. “O que disse, Dom Lourenço?”, disse para parar. Repetiu Lourenço, agora parado entre o Capataz e Aruana. Sua voz era firme, mas suas mãos tremiam. Não vou permitir que açoitem essa mulher. E por que não? Questionou o Barão, seus olhos se estreitando perigosamente.
Qual é seu interesse nessa escrava? Afinal, Aruana, ainda amarrada ao tronco, balançou a cabeça desesperadamente. Não. Seus olhos imploravam. Não faça isso. Não se sacrifique por mim. Mas Lourenço já havia tomado sua decisão. Ele respirou fundo, tocou o medalhão em seu pescoço e olhou diretamente nos olhos do Barão Estevão. “Porque ela não é apenas uma escrava”, disse ele, a voz ecoando pelo silêncio mortal que se instalara.
“Ela é minha mãe. O mundo parou. Ninguém se moveu. Ninguém respirou.” E então o barão começou a rir. Uma risada fria, cruel, que não tinha nada de humor. Sua mãe, repetiu ele, incrédulo. Um nobre de Lisboa, filho de uma escrava. Sim, confirmou Lourenço, erguendo o medalhão para que todos vissem. E vim aqui para libertá-la.
O riso do barão ecoou pelo pátio como um presságio sombrio. Ele olhou ao redor para os escravos paralisados, para os capatazes confusos, para sua filha Celina na varanda. e então voltou seus olhos para Lourenço. “Você acabou de assinar sua própria sentença de morte social, jovem tolo”, disse Estevão. A voz carregada de desprezo.
Quando a coroa souber que enviou um filho de escrava para supervisionar suas propriedades, você será destruído. Seu título, sua fortuna, sua vida em Lisboa. Tudo desaparecerá. Que desapareça, respondeu Lourenço, surpreendendo a si mesmo com a firmeza em sua voz. Prefiro viver como homem livre com minha mãe, do que como nobre construído sobre mentiras e sangue. Aruana soluçou, as lágrimas escorrendo livremente.
Seu filho estava sacrificando tudo por ela, tudo o que ele conhecia, tudo o que havia construído e ela não podia impedir. O barão deu um passo à frente, a mão indo instintivamente para a pistola em seu cinto. “Você não vai a lugar nenhum com essa escrava”, rosnou ele. Ela me pertence e mesmo que você seja quem diz ser, isso não muda nada. Ela continua sendo minha propriedade.
Não por muito tempo disse uma voz firme vinda da entrada do pátio. Todos se viraram. Era padre Jerônimo do Vale, acompanhado de outros três homens. Um deles, Lourenço, reconheceu, era um oficial da coroa, enviado de Salvador para investigar irregularidades nas fazendas da região. “Padre”, cumprimentou o Barão, tentando recompor sua postura autoritária.
“Qual o significado dessa invasão?” Não é invasão, Barão Estevão”, respondeu Jerônimo, caminhando calmamente até o centro do pátio. “É justiça, o Senr. Dom Lourenço me procurou há dias pedindo conselho sobre sua situação e juntos nós elaboramos um plano.” Lourenço olhou para o padre surpreso. Ele não sabia de plano algum.
“Veja, Barão”, continuou Jerônimo, tirando um documento do bolso de sua batina. Há 30 anos, quando Aruana teve seu filho, o então senhor desta fazenda não apenas a separou da criança, mas vendeu o bebê ilegalmente. Na época, havia uma lei que proibia a separação de mães e filhos menores de 12 anos em casos de venda.
Isso é mentira!”, gritou o Barão, mas sua voz carecia de convicção. “Não é”, disse o oficial da coroa avançando. “Temos documentos que provam a transação ilegal. E, segundo as leis do império, qualquer escravidão baseada em transação ilegal é considerada nula.” O mundo de Estevão começou a desmoronar. Ele olhou ao redor buscando apoio, mas encontrou apenas silêncio.
Além disso, prosseguiu Jerônimo, sua voz ganhando poder, ao fato de que Dom Lourenço de Valmor, mesmo sendo filho de escrava, foi legalmente adotado por uma família nobre portuguesa. Seu título é legítimo. E como nobre, ele tem o direito de comprar a liberdade de qualquer escravo que deseje. Lourenço sentiu a esperança surgir em seu peito pela primeira vez.
desde que a verdade fora revelada. E é exatamente isso que ele fará”, concluiu o padre, entregando outro documento a Lourenço. Esta é a carta de alforria. Tudo o que precisa é sua assinatura e o pagamento do valor justo. Lourenço pegou o documento com mãos trêmulas.
Ele olhou para Aruana, ainda amarrada ao tronco, e viu em seus olhos uma mistura de descrença e alegria. “Quanto!”, perguntou Lourenço ao Barão. Quanto quer por ela? Estevão cerrou os punhos, sabendo que estava encurralado. Se recusasse, o oficial da coroa poderia simplesmente libertar Aruana com base na ilegalidade da transação original. Ao menos assim, ele receberia algo. 5.
000 réis, disse ele, cuspindo o valor como veneno. Aceito respondeu Lourenço imediatamente. Ele assinou a carta de alforria ali mesmo diante de todos. O oficial da coroa testemunhou assim como o padre Jerônimo. E quando o documento foi selado, Lourenço caminhou até o tronco onde sua mãe estava amarrada.
Com as próprias mãos, ele desfez as cordas que aprendiam. Aruana caiu em seus braços, fraca, tremendo, mas livre. Pela primeira vez em 47 anos, ela era livre. “Você está livre, mãe?”, sussurrou Lourenço, abraçando-a com força. “Livre para sempre”. Auana não conseguia falar, apenas chorava, agarrada ao filho que fora arrancado dela há tanto tempo e que agora a salvava.
O pátio inteiro testemunhava aquele momento e mesmo entre os escravos, lágrimas começaram a cair. Era um vislumbre de esperança em meio à escuridão. Celina observava da varanda, o coração partido, mas estranhamente em paz. Ela entendia agora. entendia porque Lourenço parecia tão distante, porque ele carregava aquele peso.
E, embora soubesse que jamais o teria para si, ela respeitava a coragem que ele demonstrara. O barão Estevão recuou para dentro da casa grande, derrotado e humilhado. Sua reputação jamais se recuperaria daquilo. E no fundo ele sabia que merecera cada segundo daquela queda. Nos dias seguintes, Lourenço e Aruana deixaram a fazenda Monte Rei. Eles viajaram para Salvador, onde Lourenço usou sua influência para ajudar outros escravos a conquistarem suas liberdades.
Juana, pela primeira vez na vida, pôde descansar, pôde dormir sem medo, pôde caminhar com a cabeça erguida. Ela descobriu que seu filho era um homem bom, justo e corajoso. E, embora tivessem perdido 30 anos juntos, eles tinham agora o resto de suas vidas para recuperar o tempo perdido. Lourenço renunciou ao seu título de supervisor da coroa, mas manteve sua nobreza.
Ele usou sua posição para lutar contra a escravidão, tornando-se uma voz poderosa em favor da abolição. E ao seu lado sempre estava Aruana, a mulher que lhe ensinara o verdadeiro significado de força, fé e amor. Padre Jerônimo visitava-os frequentemente, sorrindo ao ver mãe e filho finalmente reunidos. Ele sabia que Deus havia operado um milagre ali, transformando dor em redenção, separação em reencontro.
Anos mais tarde, quando a lei Áurea finalmente foi assinada, Lourenço e Aruana estavam juntos na praça testemunhando o fim oficial da escravidão no Brasil. A Aruana, já com cabelos grisalhos, mas olhos ainda brilhantes, segurou a mão de seu filho e sussurrou: “Você vê? O vento levou minhas orações até você e você voltou para me libertar. Lourenço beijou a mão dela, os olhos marejados.
Não, mãe, você me libertou primeiro. Libertou-me das correntes da ignorância, do preconceito, da injustiça. Você me ensinou o que realmente importa. E assim, sob o céu azul da Baia, mãe e filho caminharam lado a lado, livres, enfim, das correntes que tentaram separá-los. Sua história tornou-se lenda, um testemunho de que o amor verdadeiro, a fé inabalável e a coragem de fazer o certo podem vencer até mesmo as injustiças mais profundas, porque no final não são os títulos que definem quem somos, são as escolhas que fazemos.
E Lourenço escolhera o amor. Antes de nos despedirmos, quero agradecer de coração por você ter acompanhado essa história até o final. Sua presença aqui é o que torna tudo isso possível. Se essa narrativa tocou seu coração, não esqueça de se inscrever no canal e ativar o sininho para não perder as próximas histórias que ainda vou contar.
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