ELE SE CASOU COM UMA MULHER QUE NÃO TINHA REFLEXO, PORQUE ELA ESTAVA MORTA HÁ ANOS
Alain Kouamé tinha trinta anos. Trabalhava como contabilista numa pequena empresa em Abidjan. A sua vida era simples. Trabalho, engarrafamentos, regresso ao seu quarto de solteiro, telefonema para a mãe na aldeia. Todos gostavam dele no bairro. Era visto como um homem sério, tranquilo, sem histórias.
Só havia uma coisa que o cansava: as perguntas sobre casamento. Em cada festa de família, a tia Élise perguntava: “Alain, queres nos enterrar sem nos mostrar a tua esposa?” A mãe dizia ao telefone: “Meu filho, um homem sozinho é como uma casa sem porta. O vento entra de qualquer maneira.” Alain sorria, mas por dentro sentia-se sozinho.

Tivera alguns pequenos relacionamentos, mas nada sério. Ou as raparigas não suportavam o seu trabalho exigente, ou ele tinha medo de se comprometer. Uma noite, tudo mudou. Nesse dia, chovia muito. A cidade estava parada. Alain desceu de um Gbaaka avariado e procurou abrigo. Entrou numa pequena loja de panos e contas, numa rua onde nunca passava. Assim que entrou, viu-a.
Ela arrumava pulseiras atrás do balcão. Uma jovem de pele caramelo, traços finos, com um lenço branco amarrado de forma simples. Mas o que o marcou foram os seus olhos: muito negros, muito calmos, como se nada pudesse surpreendê-los. Pareciam antigos e jovens ao mesmo tempo.
“Boa noite”, disse ela com uma voz suave. “Está encharcado?” “Sim, a chuva apanhou-me”, respondeu Alain, um pouco envergonhado. Ela ofereceu-lhe uma cadeira e um lenço limpo para ele se secar. Chamava-se Nadia. Dizia pouco sobre si: que ajudava a tia a cuidar da loja, que não saía muito, que perdera os pais jovem.
A sua voz era tranquila, os gestos lentos, como se medisse o ar à sua volta. Alain voltou no dia seguinte. E no outro. Começou a comprar coisas de que não precisava, só para vê-la. Um cinto, uma pulseira para a mãe, até um pano que nunca usou. Nadia sorria sempre, mas permanecia misteriosa.
Sempre que ele perguntava sobre o seu passado, ela mudava de assunto. Uma noite, ao pôr do sol, Alain criou coragem. “Nadia, sabes que venho sempre por tua causa, não pelos panos.” Ela olhou-o longamente sem falar. Depois disse: “Eu sei.” “Sou sério”, continuou Alain. “Não sou perfeito, mas quero construir uma vida. Não estou aqui para brincar.”
Ela baixou os olhos. “Tu não me conheces.” “Então deixa-me conhecer.” Ela sorriu, um sorriso verdadeiro que iluminou o rosto. “Vamos ver”, murmurou.

Os meses passaram. Alain apresentou Nadia à tia Élise e a alguns amigos. Todos a achavam bonita, educada, respeitosa — talvez um pouco silenciosa demais.
Mas naquele mundo barulhento, o seu silêncio era reconfortante. Contudo, um detalhe repetia-se: Nadia evitava fotos. Em aniversários, passeios, selfies — sempre tinha uma desculpa. “A minha cara não está boa hoje.” “Preciso arrumar isto antes.” “O flash dói-me os olhos.” Os amigos de Alain brincavam:
“A tua esposa misteriosa existe mesmo no teu telemóvel?”
Alain ria, mas por dentro aquilo incomodava. Um dia, perguntou-lhe: “Por que não gostas de fotos?” Ela ficou calada muito tempo antes de responder: “As imagens roubam pedaços de nós.” “São só memórias.” “As memórias doem”, disse baixinho.
Ele não insistiu.
Quando Alain pediu Nadia em casamento, ela aceitou sem hesitar. “Com uma condição”, disse ela. “Qual?” “Sem festa grande. Só a tua família próxima, alguns amigos. Não quero barulho desnecessário.” “Sem problema”, respondeu ele, aliviado. Ele próprio não gostava de cerimónias exageradas.
A mãe ficou feliz, embora achasse o pedido rápido demais. “Meu filho, tens a certeza de que a conheces o suficiente?” “Mãe, nunca se conhece uma pessoa completamente.” Ela suspirou. “Então escuta o que o teu coração sente quando tudo está silencioso. O barulho engana, mas o silêncio diz a verdade.”
No dia do casamento tradicional, o bairro estava em festa. Panos coloridos, música, risos, comida quente — parecia um dia abençoado. Nadia vestia um traje simples, creme e dourado. Alain achou-a tão bela que esqueceu todas as dúvidas. O fotógrafo chegou com a sua grande câmara.
“Temos de eternizar o momento”, disse ele. “Uma foto dos noivos diante do grande espelho da sala.” Na casa da tia Élise havia um grande espelho oval na parede.
Colocaram Alain e Nadia à frente dele. O fotógrafo ajustou a máquina. Franziu o sobrolho. “Não se mexam.” Tirou uma foto. Depois outra. “Estranho… Deve ser um erro.” No espelho via-se a sala, os convidados, as decorações… mas Nadia aparecia apenas como uma mancha difusa, uma sombra.
Ninguém percebeu na hora. A música e os risos esconderam o que passara diante de todos sem deixar reflexo.
Depois do casamento civil e tradicional, Alain e Nadia mudaram-se para um pequeno apartamento. O cheiro de tinta fresca misturava-se com o cheiro de arroz no fogo. Para Alain, era o início da sua vida de casado.
Na primeira noite, ele abriu uma caixa. “Uma surpresa.” Dentro havia um grande espelho com moldura de madeira escura. “Para o quarto”, disse orgulhoso. Nadia ficou imóvel. Os olhos, de repente muito sérios.
“Alain, tira isso daqui.”
“Como assim tirar? É só um espelho…”
“Não quero espelhos no quarto. Nem na casa. Não onde eu durmo.”
A respiração dela acelerou, os dedos tremiam. Alain ficou magoado, mas retirou o espelho.
Naquela noite, percebeu que ela deixou a luz acesa. Quando tentou apagá-la, ela impediu.
“Deixa.”
“Estás com medo do escuro?”
“Não. Só gosto de ver onde estou.”
Nos dias seguintes, Alain notou outras coisas. Nas vitrinas das lojas, Nadia virava o rosto. Nos táxis, sentava-se sempre de lado, afastada do retrovisor. Cobriu o pequeno espelho da casa de banho com uma toalha.
Uma manhã, ele tirou a toalha a rir. “Nadia, exageras. Como te vais pentear?” Ela entrou justo nesse momento. Ao ver-se no espelho, recuou com medo. Nos olhos dela havia pânico.
No espelho, Alain via o próprio reflexo. Mas… onde Nadia deveria aparecer… nada. Só o azulejo, a porta, a parede. Nem sombra, nem contorno.
Ele virou-se. Ela estava ali, real, perto, respirando.
O coração dele disparou.
Mais tarde, contou ao amigo Patrick.
“Estás seguro do que viste?”
“Não sei… Talvez seja cansaço…”
“E no casamento? Lembras-te do fotógrafo?”
“Patrick, pára.”
“Irmão… às vezes, coisas estranhas são mesmo estranhas. Não há como disfarçar.”
Alain desligou irritado. Não queria ouvir aquilo.
Mas um domingo confirmou tudo.
Na casa da tia Élise, as crianças faziam vídeos. “Tia Nadia, vem!” Ela aproximou-se, agachou-se. No telemóvel, em modo selfie diante do espelho, via-se todo mundo. Menos Nadia. O rosto dela era um vazio luminoso, como um recorte.
As crianças riram. Tia Élise também.
“Parece um fantasma!”
Alain gelou.
Na volta para casa, perguntou:
“Viste o vídeo?”
“Não.”
“Nadia, tu não apareces…”
“Então apaga.”
“Não é normal.” Ela encarou-o.
“Alain, amas-me como sou?”
“Claro.”
“Então para de querer ver-me em todo lugar. Basta o que tens diante de ti.”
Ele ficou em silêncio.
Depois disso, passou a observá-la com medo. Nadia percebia tudo. Até começou a tremer.
Até que, uma noite, ela disse:
“Eu sabia que este momento chegaria.”
Alain perguntou a verdade.
“Por que não tens reflexo?”
Nadia respondeu:
“Porque não vivo como tu, Alain. Eu estou aqui… mas já não estou viva.”
Ele empalideceu.
“Então… és o quê?”
“Sou real. Sinto, sofro, amo. Mas morri há três anos.”
Ela contou do acidente. Do autocarro que caiu na ravina. Do seu corpo que morreu. Mas da sua alma que se recusou a partir.
“Voltei porque nunca tive nada. Nem amor, nem casa, nem futuro. Voltei para viver o que nunca vivi, mesmo por pouco tempo.”
Mas havia um preço.
“Os mortos não regressam inteiros. A luz não nos segue. O reflexo fica do outro lado.”
Alain tremia.
“Eu devia ter-te contado. Mas tu fugias.”
Os dias passaram. Ela ficou cada vez mais inquieta.
“Eles vêm buscar-me”, disse ela numa madrugada. “A lua cheia aproxima-se. Quando ela subir, não poderei ficar.”
“Quem?”
“Aqueles que guardam os caminhos entre os mundos.”
Ela pediu:
“Promete não me procurar. Não abrir portas que não consegues fechar.”
Na noite da lua cheia, a casa ficou gelada. Nadia levantou-se.
“Obrigada por me dares uma vida, mesmo breve.”
E desapareceu como fumo.
Alain gritou. Só o silêncio respondeu.
No espelho do salão, viu o reflexo de Nadia — completo, belo, sereno — sorrindo do outro lado. Depois desapareceu.
Semanas passaram. Alain vivia, mas carregava um vazio. Cada vidro lembrava-o dela — não de uma esposa, mas de uma alma entre mundos.
Uma noite, sonhou. Um enorme espelho. Nadia do outro lado.
“Posso ir contigo?”
“Não. O que é vivo deve ficar vivo.”
“Eu amo-te.”
“Eu também. E por isso fui embora.”
Ela tocou o espelho.
“Vive por nós dois.”
A imagem sumiu.
Alain acordou a chorar. No dia seguinte, retirou todos os espelhos de casa. Abriu as janelas. Deixou a luz entrar.
Os mortos às vezes voltam para buscar o que não tiveram. Mas os vivos precisam saber fechar as portas.
Porque amar um espírito…
é caminhar demasiado perto do vazio.
E o vazio sempre reclama o que lhe tiram.