
O grito da menina ecoou por todo o salão de festas.
“Larga-me! Larga-me! Tu não és a minha mãe! Eu não quero mais ficar aqui! Tu vais deixar-me ir agora, Papá! Diz a ela para me largar!”
A voz infantil cortava o ar pesado e ostentoso do ambiente luxuoso, chamando a atenção de todos os convidados. Era um evento de gala, daqueles onde cada diamante e cada taça de cristal pareciam brilhar mais do que o necessário. O enorme salão estava repleto de empresários, políticos e socialites trajados com roupas caríssimas, engolindo champanhe e risos falsos. Ninguém esperava um escândalo assim.
Sentada à mesa principal, a pequena Luna, carinhosamente chamada de Lu, uma menina de apenas dez anos, levantou-se abruptamente. Estava junto ao pai, Pedro, um milionário elegante e tenso, e à madrasta, Fernanda, sempre rígida e preocupada com as aparências.
Mas o coração puro da menina, cheio de humildade e bondade, não suportou mais o que via à sua volta.
“No caminho para cá, nós vimos tanta gente a viver na rua… E agora mesmo, Papá, há pessoas lá fora a passar fome enquanto vocês estão aqui a comer e a festejar como se fossem reis!”
Respirou fundo, sentindo as lágrimas subirem, mas não parou.
“Se a Avó estivesse aqui, ela estaria do meu lado. Ela nunca teria aguentado ver isto. Olha para aquela senhora lá fora deitada no chão. Eles têm fome!”
A menina soltou-se da mão da madrasta, puxando o braço com força. Dezenas de olhares fixaram-se na mesa da família. Os convidados murmuravam, chocados com a ousadia da criança, mas Lu não se intimidou.
Pedro, o pai, ficou vermelho de vergonha. Fernanda, tentando manter a compostura, inclinou-se para a menina, tratando de resolver a situação sem mais escândalo.
“Olha, pequenina, eu sei que a tua avó não gostaria de estar aqui, mas a avó já não está connosco, meu amor. Tu precisas de te acalmar, está bem?” disse, num tom doce, mas forçado, tentando disfarçar o embaraço.
Lu deu um passo para trás, os olhos mareados, mas firmes.
“Eu sei que a Avó não está aqui. Não preciso que me recordes isso. Não preciso que me lembres que ela se foi”, disse, com a voz contida. “Mas olha para este lugar! Para que servem estas paredes de vidro? Para mostrarem a todos lá fora como são ricos com esses telemóveis e roupas caras! Isto é para se exibirem, isto é uma montra, e eu não sou um produto para estar numa montra, Papá!”
Pedro ficou em silêncio. As palavras atingiram-no profundamente. Tentou acalmar a filha.
“Filha, eu entendo o que estás a dizer. Eu sei que a Avó não estaria feliz aqui, mas este evento é importante para o trabalho do Papá. Nós falámos sobre isto em casa, sim? Apenas tenta acalmar-te por agora.”
A menina hesitou, mas a sua convicção era mais forte do que qualquer ralhete.
“Mas Papá, nós já somos ricos! Tu não precisas destas pessoas nem deste lugar. Nós devíamos estar lá fora a ajudar aquelas pessoas. É isso que a Avó gostaria.”
A sua voz soou firme, com uma maturidade surpreendente. Pedro ficou pensativo, desarmado pela filha. Enquanto isso, Fernanda tentou aproximar-se novamente, mas Lu afastou-se rapidamente. A madrasta ficou imóvel, e a menina, decidida, levantou a voz de novo, agora dirigindo-se a todos os presentes.
“Como podem ficar aqui a fingir que gostam uns dos outros, a gastar tanto dinheiro, enquanto há pessoas lá fora a passar fome?” apontou para o vidro, a voz a tremer de emoção. “Olhem lá para fora, eu sei que conseguem ver! Os sem-abrigo estão ali a olhar para este salão, a imaginar o que fariam para ter apenas um pedacinho do que vocês estão a desperdiçar. Deviam ter vergonha!”
Um silêncio constrangedor apoderou-se do local. Por uns segundos, os convidados realmente olharam. Através das enormes paredes de vidro, via-se uma senhora encurvada, deitada em frente à entrada, com roupas sujas e o corpo frágil. Alguns encolheram-se, outros desviaram o olhar, mas logo o murmúrio de vozes e risos fingidos voltou, abafando o momento de incómodo.
Luna baixou o tom, dirigindo-se apenas ao pai, a voz trémula.
“Desculpa, Papá, mas eu não posso ficar aqui. Eu tenho de sair. Eu tenho de ajudar aquela senhora.”
Sem esperar por resposta, a menina virou as costas e atravessou o salão. Abriu a porta de vidro e sentiu o ar frio da noite. Lá fora, o contraste era cruel. O brilho do salão ficara para trás, substituído pelo vento gelado e pela escuridão da rua.
A menina aproximou-se da mulher caída em frente à entrada. A senhora tremia de frio, com o rosto coberto por um lenço gasto.
“Olá, senhora”, disse a menina, ajoelhando-se ao seu lado. “A senhora tem fome? Posso trazer-lhe um prato de comida lá de dentro? Diga-me só do que precisa.”
A menina falava com doçura e compaixão, mas ao olhar mais de perto, algo chamou a sua atenção. Os olhos da pequena Lu arregalaram-se. Levou a mão à boca, atónita.
“Aquele colar… aquele colar no seu pescoço…”, murmurou, incrédula. “Eu reconheço-o. Reconheceria aquele colar mesmo depois de mil anos.”
O seu coração começou a bater forte. Sem pensar duas vezes, levantou-se de um salto e correu de volta para o salão. As pessoas ainda comentavam o escândalo quando a viram entrar novamente, ofegante, com o rosto vermelho e os olhos arregalados de surpresa.
“Papá, Papá, tu tens de ver quem eu encontrei lá fora!”
Correu entre as mesas, a desviar-se de cadeiras e copos. Ao chegar perto, Pedro estava de pé a falar com um homem de fato cinzento, um dos seus sócios de negócios.
“Eu peço desculpa pelo inconveniente que teve de presenciar. Sabe como são as crianças, não é? Agem sem pensar, sempre guiadas pelo coração.”
O milionário forçou um sorriso, a tentar disfarçar o nervosismo.
“Mas a minha filha tem um coração bondoso, isso eu posso garantir. Agora, como eu lhe estava a dizer, eu tenho uma oportunidade de negócio incrível que…”
A menina puxou ainda mais forte pela manga do fato do pai, a tentar chamar a sua atenção de qualquer forma. Lu estava nervosa, com o coração a bater depressa. Não queria causar outro escândalo, mas o que tinha para dizer era muito mais importante do que qualquer conversa de negócios.
Pedro, ainda com o olhar fixo no sócio, respirou fundo e tentou manter o controlo.
“Filha, o Papá está no meio de uma conversa séria. Eu já disse que falamos melhor em casa sobre o que estás a sentir. Agora, por favor, deixa o Papá trabalhar, está bem?”
Mas a menina não desistiu. Lu insistia, puxava o braço do pai, olhava-o suplicante. Ele, por sua vez, parecia surdo à urgência da filha. A pequena, sabendo que precisava de ser ouvida a todo o custo, tomou uma decisão impulsiva. Com um movimento rápido, Lu agarrou o copo de vinho da mão de Fernanda e entornou-o de propósito. O líquido vermelho-escuro caiu diretamente sobre o fato caro do sócio do pai.
“Ei, o meu copo! Não faças isso, Luna!”, gritou Fernanda, a tentar detê-la, mas já era tarde demais.
O barulho do vidro a bater na mesa fez com que todos olhassem. Pedro virou-se, assustado.
“Filha, o que é isto? Pára já!”, gritou.
Mas o estrago já estava feito. O vinho espalhava-se não só pela mesa, mas também pelo tecido fino e caríssimo do fato do homem, que estava de pé, mesmo ao lado, a deixar uma enorme mancha avermelhada. O sócio olhou para baixo, incrédulo, antes de encarar Pedro com indignação. O milionário, desesperado, pegou num guardanapo e começou a tentar limpar o fato do homem, falando sem parar.
“Mil desculpas! Juro. Ela não fez por mal. Foi um acidente!”
Mas a mancha não saía, e o homem já estava furioso.
“Isto é um absurdo! O senhor tem ideia de quanto custa um fato destes, Pedro?”, exclamou, com o rosto vermelho. “Com o preço deste tecido, eu podia pagar uma escola decente para esta miúda aprender boas maneiras!”
Nesse momento, Pedro mudou o tom, parou e levantou a cabeça, com o olhar firme.
“Ouça-me bem, o senhor não tem o direito de falar assim da minha filha!”, disse o milionário, a levantar a voz. “Eu sei muito bem a educação que ela tem. Se lhe incomoda, talvez seja melhor retirar-se.”
O sócio olhou para ele, furioso, a limpar o casaco com raiva.
“Perfeito. Se o senhor não consegue sequer controlar a sua filha, não é a pessoa certa para este tipo de acordo.”
Virou as costas e saiu a resmungar.
Pedro respirou fundo, tentando conter a raiva e a vergonha que o consumiam. Depois, olhou para a filha, que continuava firme, sem medo.
“Está bem, filha. Era isso que querias?”, perguntou, cruzando os braços. “Pronto, tens toda a minha atenção. Agora, diz-me: o que é que é tão importante que não podia esperar que eu acabasse de falar com o senhor do fato caro?”
Luna não respondeu de imediato, apenas levantou o dedo e apontou para a enorme parede de vidro do salão. Do outro lado, sob a luz fraca da rua, estava a idosa caída em frente ao edifício.
Pedro franziu a testa.
“O quê? Aquela sem-abrigo? Eu sei, filha. É triste, mas nós podemos ajudá-la depois, quando voltarmos para casa. Não era preciso fazeres tudo isto.”
Mas a menina continuou a apontar com firmeza.
“Não, Papá, não é uma senhora qualquer. Olha bem para ela, olha de verdade e diz-me, quem é?”
O pai voltou a olhar, a forçar a vista. Durante alguns segundos, pareceu não perceber o que via. Depois, lentamente, a sua expressão mudou. Os olhos começaram a arregalar-se. O rosto ficou pálido, e a respiração tornou-se pesada. Pedro deu um passo em frente, como se o seu corpo quisesse correr até à mulher, mas a sua mente ainda tentava aceitar o impossível.
A menina, com a voz embargada, confirmou o que o pai começava a temer.
“Papá, não é a Avó que morreu?”
O tempo parou. O coração do homem batia forte enquanto as imagens do passado regressavam como um relâmpago. Mais de um ano antes, o cenário era completamente diferente.
Era uma manhã soalheira, tranquila e cheia de vida. O sol entrava pelas janelas da mansão familiar e iluminava a mesa do pequeno-almoço. O aroma a pão fresco e café acabava de ser coado. Ali estavam Pedro, a sua filha Luna e Maria de los Ángeles, a avó, uma mulher bondosa, de olhos serenos e sorriso acolhedor. Naquela época, tudo era paz e amor.
Pedro, no entanto, parecia distante. Mexia o café distraidamente, com o olhar perdido.
“Que cara é essa, meu filho?”, perguntou Maria de los Ángeles, enquanto barrava manteiga no pão. “Mais uma vez, acordaste desanimado. O que é que aconteceu agora? Problemas no trabalho?”
O empresário suspirou, apoiando os cotovelos na mesa.
“Não, Mamã, não é isso. É que mais uma vez acordei sozinho e não a encontrei.” Baixou a cabeça. “Eu sei, eu sei. Vocês dizem que eu devo superar, mas não é fácil. Eu ainda sinto falta da mãe da minha menina.”
A senhora levantou-se devagar e abraçou-o com aquele toque que só uma mãe sabe dar.
“Eu sei, meu filho. Sei que ainda a amas, mas já passou tanto tempo desde que Isabela se foi. Ela gostaria de te ver seguir em frente, de te ver feliz outra vez.”
Pedro fechou os olhos, a tentar conter as lágrimas. Lu observava os dois em silêncio. A pequena trocou um olhar cúmplice com a avó, o olhar de quem planeia algo cheio de amor. De repente, Luna bateu palmas e falou entusiasmada.
“Já sei, Papá! Sei o que te vai deixar feliz!”
Correu para a cozinha, o cabelo a balançar, e regressou a segurar um bolo dourado e lindo que exalava um doce aroma a ananás.
“Olha, a Avó e eu fizemos bolo de ananás, o teu favorito.”
Pedro sorriu largamente. O primeiro sorriso em dias.
“Ah, minha filha, vocês as duas são o meu maior presente.” disse, abraçando as duas com força.
Enquanto ele cortava uma fatia generosa do bolo, ainda a sorrir, Lu olhou para a avó e sussurrou-lhe algo com entusiasmo, como quem já tem outro plano para animar o pai.
“Papá, tu passas o dia todo fechado em casa ou no trabalho. Assim, nunca te vais animar. A Mamã não gostaria de te ver assim, por isso, tens de sair mais de casa”, disse a menina, cruzando os braços e olhando-o séria. “Eu já sei, amanhã tu vais tirar o dia de folga e vais comigo ao parque da praça.”
Pedro levantou o olhar do jornal e ficou em silêncio por uns segundos. O seu instinto de sempre seria recusar. Afinal, o trabalho ocupava toda a sua vida, mas ver o brilho nos olhos da filha desarmou-o.
“Que grande ideia, filha”, respondeu.
No dia seguinte, o sol brilhava forte, e o parque estava cheio de risos infantis. Luna corria de um lado para o outro, enquanto o pai, de fato e gravata, a observava sentado num banco de madeira.
“Ai, Papá, eu já disse que não precisas de sair de fato para todo o lado!”, gritou ela, a rir. “Tu não estás aqui para trabalhar. Agora, eu vou brincar, e tenta não ficar aí tão triste enquanto eu não volto.”
Pedro riu suavemente e acenou com a cabeça, a ver a filha escorregar no escorrega. Apesar do calor, ele continuava com o casaco, um homem prisioneiro de hábitos que não sabia abandonar. Enquanto via Lu a correr entre as outras crianças, pensava em como a felicidade parecia algo distante, algo que ele achava que nunca mais voltaria a sentir desde a perda da esposa.
Mas o destino, naquele dia, resolveu surpreendê-lo. Enquanto observava o parque, uma voz feminina suave soou atrás dele.
“Olá, bom dia”, disse uma mulher elegante, com um sorriso insinuante.
Pedro virou-se e deparou-se com uma figura que parecia ter saído de um sonho. Cabelo castanho, bem arranjado, vestido claro e olhar seguro.
“Desculpa incomodar, mas eu vi-te de longe com esse fato e esse relógio caro e pensei: ‘Este homem deve saber o que eu preciso’. Neste caso, o que eu preciso é de informação”, disse, num tom divertido. “Eu sou nova na cidade. Ainda não conheço bem os lugares e queria recomendações de sítios para visitar. Perguntei a outras pessoas, mas só me disseram lugares comuns. Pensei que tu podias conhecer opções especiais.”
Pedro piscou, surpreso. O seu olhar percorreu, sem querer, a mulher dos pés à cabeça. Ela era realmente deslumbrante. “Que mulher impressionante”, pensou, mas disfarçou o encanto e respondeu com cortesia.
“Ah, claro. Eu conheço alguns bons lugares, principalmente restaurantes por aqui. E, para ser sincero, eu escolho sempre um restaurante pela qualidade do vinho”, disse, a ajeitar o casaco. “Por isso, recomendo-te o Restaurante Sumptuoso. Fica a poucas quadras daqui e serve o melhor Cabernet que eu já provei.”
Os olhos da mulher brilharam.
“Oh, Cabernet. Também é o meu vinho favorito. Que coincidência”, disse ela, animada. “Mas não fica bem uma mulher solteira como eu ir sozinha a um restaurante assim e beber vinho.”
Pedro entendeu a indireta e sorriu discretamente.
“Não há problema. Eu posso ter a gentileza de te acompanhar. Assim, desfrutamos de um bom vinho juntos.”
A mulher sorriu levemente, aquele tipo de sorriso que desarma qualquer homem.
Assim começou o primeiro jantar. Em poucos dias, voltaram a encontrar-se. O segundo jantar foi melhor do que o primeiro, cheio de conversas e olhares trocados. Depois veio o terceiro, o quarto, e em breve o romance estava consolidado. Pedro, que há muito vivia triste, parecia outro homem. Voltou a sorrir, a arranjar-se, a sair de casa com entusiasmo. Maria de los Ángeles e Lu, ao verem essa mudança, olhavam-se com preocupação e dúvida.
Certo dia, Pedro entrou na cozinha com um sorriso de orelha a orelha.
“Eu vou casar com aquela mulher, Mamã”, anunciou, entusiasmado.
Maria de los Ángeles, que cortava fruta, quase deixou cair a faca.
“Casar? Mas, filho, há quanto tempo é que se conhecem? Dois, três meses?”, perguntou, a tentar manter a calma. “Não achas que vais demasiado rápido? Tem cuidado para não te deixares levar, meu filho.”
Lu, que ouvia da mesa, anuiu de imediato.
“A Avó tem razão, Papá. Eu não confio nela e tu já queres pôr essa mulher como minha madrasta.”
Pedro levantou as mãos, a tentar apaziguar.
“Não têm de se preocupar. Fernanda é uma boa mulher. Ela ama-me de verdade e eu não estou a apressar nada.”
Apesar das suas palavras firmes, mãe e filha continuaram desconfiadas. Mas, no dia seguinte, sem aviso, Pedro apareceu na sala acompanhado de Fernanda e de uma pilha de malas luxuosas.
“Nós estamos noivos”, anunciou, com um brilho nos olhos.
Luna e Maria olharam-se em silêncio. Fernanda sorriu, a exibir um anel reluzente. Era oficial. Agora, ela fazia parte da família e mudaria para a mansão.
Na manhã seguinte, o ambiente na casa já não era o mesmo.
“Bom dia, casa. Bom dia, habitantes”, anunciou Fernanda, a entrar na cozinha em tom autoritário. “O novo motorista já chegou. Digam-lhe para ir ao armazém, que eu própria vou entregar-lhe o uniforme.”
E assim, sem demora, todos começaram a notar que aquela nova habitante trazia consigo uma nova versão de si mesma, arrogante, autoritária e fria. Maria de los Ángeles, sentada à mesa, franziu a testa.
“O que é que se passa aqui? Eu ainda sou a matriarca desta casa. Portanto, as decisões têm de passar por mim antes de serem tomadas”, disse, levantando-se devagar, firme como sempre tinha sido. “Por que é que despediste o Fagundes? Ele é o motorista desta casa há muitos, muitos anos. Está connosco desde antes de termos tudo o que temos. Esta família tem uma dívida de honra para com ele e a sua família.”
Pedro, que lia o jornal, apressou-se a levantar-se para tentar acalmar a situação.
“Calma, Mamã, calma. Não há necessidade de te exaltares”, tentou dizer, mas Fernanda interrompeu-o com um sorriso forçado e venenoso.
“É precisamente por isso, minha querida sogra. Ele já não conduzia como antes. Está tão velho, coitado, e os olhos já não funcionam bem. Ele precisa de descansar. Eu apenas trouxe sangue novo. Um motorista experiente, mas mais vigoroso”, disse ela, em tom trocista.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Maria cruzou os braços, ofendida. O filho olhava de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Queria apenas evitar discussões, mas parecia que a paz se tinha mudado da casa no mesmo dia em que Fernanda entrou nela.
“Tens a certeza de que isso era necessário, meu amor?”, perguntou o homem, a tentar suavizar a tensão. “Esta casa sempre funcionou muito bem com os empregados que temos, incluindo o motorista. Não sei se faz sentido mudar tudo agora.”
Mas Fernanda estava decidida. A melhor forma era a dela.
“Claro que é necessário, meu amor”, disse, cruzando os braços e mostrando um sorriso convencido. “Esta casa pode ter sobrevivido até hoje sem desmoronar-se, mesmo sem os meus cuidados e a minha administração. Mas agora, tudo vai mudar. Eu vou deixar tudo melhor. É isso. Eu vou melhorar esta casa canto por canto. Já é hora de uma renovação.”
Pedro simplesmente anuiu, a tentar não gerar conflito. Estava tão apaixonado que via tudo o que ela dizia como sabedoria.
Desse dia em diante, Fernanda começou a mudar tudo dentro da mansão, e fazia-o sempre que Maria de los Ángeles, a sogra, não estava por perto. Começou com coisas pequenas, mudou quadros de lugar, tirou as flores dos vasos que Maria cuidava com carinho, trocou cortinas, deslocou móveis. Pouco a pouco, o lar da família foi perdendo a sua identidade.
Em breve, convenceu o noivo a comprar mobília nova, alegando que a antiga estava fora de moda. E Pedro, cego de amor, aceitava cada pedido sem discutir. Em poucas semanas, a casa parecia outra, fria, moderna, sem alma, mas Fernanda não parou por aí. Depois de redecorar tudo, decidiu que os empregados também deviam ser renovados. Um por um, ela foi despedindo-os, mesmo os mais antigos e leais à família. No lugar deles, contratou jovens inexperientes, mas obedientes a todas as suas ordens. Em pouco tempo, a mansão transformou-se num território sob o domínio total da nova dona.
Certo dia, a pequena Lu e a sua avó, Maria de los Ángeles, decidiram chamar Pedro para uma conversa privada. Estavam cansadas de ver a casa transformar-se sem poder fazer nada. Lu foi a primeira a falar, com a voz embargada e o olhar triste.
“Papá, olha o que a Fernanda fez à nossa casa. Está tudo diferente. Já não há nenhum dos quadros de que nós gostávamos. Até o sofá ela trocou. Eu gostava mais do outro sofá.”
Maria de los Ángeles anuiu, firme e indignada.
“A tua filha tem razão, Pedro. Essa mulher passou por cima das minhas ordens e faz o que quer com esta casa e tu não fazes nada. Tens de lhe impor limites de imediato ou ela acabará por nos substituir também, tal como fez com os empregados.”
O milionário soltou um suspiro cansado e abanou a cabeça, sem paciência para mais uma discussão.
“Estão a exagerar”, respondeu, a tentar soar tranquilo. “Ela só está entusiasmada por fazer parte da família e, se vai ser a minha esposa, é normal que queira mudar as coisas à maneira dela, não acham?” Pegou nas chaves da mesa e acrescentou, enquanto se afastava. “Agora, eu não posso continuar com esta conversa. Eu tenho de ir trabalhar. Sejam amáveis com a minha noiva, está bem?”
Maria de los Ángeles ficou imóvel, a observar o filho a afastar-se. O seu coração de mãe encolhia-se de preocupação. Sabia que Pedro estava cego de amor e que aquilo não ia acabar bem.
Uns dias depois, Pedro estava a descansar, a relaxar no jardim com Lu, que regava as plantas. Maria, como de costume, foi para a cozinha preparar o seu chá diário. O aroma das ervas quentes espalhava-se pelo ambiente quando um som vindo do jardim de trás chamou a sua atenção. Eram vozes, duas. A senhora reconheceu uma delas de imediato. Era Fernanda.
Curiosa, aproximou-se da janela e ouviu claramente o diálogo que mudaria tudo.
“Calma, Ricardo, ainda estamos na casa do meu noivo idiota”, dizia Fernanda, com desprezo na voz. “Ele está demasiado cego para perceber que eu não o amo, mas ainda temos de ter cuidado para ele não nos ver juntos.”
Maria arregalou os olhos e deixou cair a colher dentro da chávena. O coração acelerou-lhe. Apontou-se para a janela e, ao espreitar por entre as cortinas, viu a cena com os seus próprios olhos. Ali estavam os dois, Fernanda e o novo motorista, Ricardo, abraçados atrás da casa, a rir, a beijarem-se como se fossem amantes de longa data. A raiva subiu como um fogo dentro dela.
“Vamos, Ricardo, prepara o carro, porque eu vou arranjar-me para sair sem que o idiota desconfie de nada”, disse a vilã, a ajeitar o cabelo antes de roubar outro beijo ao amante.
Maria levou as mãos à boca, horrorizada. A chávena de chá tremia-lhe nos dedos. Fernanda, então, dirigiu-se à entrada da mansão. O plano era simples, usar a velha desculpa de sempre, a visita à mãe doente, e sair tranquilamente para se encontrar com o amante.
Maria de los Ángeles, a tremer, deixou o chá de lado e saiu da cozinha, decidida. Tinha de contar tudo ao filho. No corredor, encontrou a nora miserável, a ajeitar a mala e o casaco. A mulher já tinha o seu discurso preparado.
“Meu amor, hoje volto a visitar a minha pobre e doente mãezinha”, disse, num tom fingido, cheio de drama.
Pedro, que se aproximava naquele momento, respondeu logo, como um marido atento e apaixonado.
“Eu já disse que estou disposto a ir contigo, querida. Eu posso cuidar da tua mãe. Não vejo qual é o problema.”
Mas a nova madrasta de Luna insistiu, com um olhar doce que escondia veneno.
“Eu já te disse, meu amor. Ela está muito doente e não está bem da cabeça. Ter alguém que não é da família ali podia deixá-la pior.”
O homem suspirou, a acreditar em cada palavra. O que ele não imaginava é que aquela mãe doente nem sequer existia mais. A mulher tinha morrido há muito tempo, vítima de uma doença terrível. E Fernanda, a filha desalmada, nem sequer tinha aparecido no hospital ou no funeral. A verdade era cruel. Ela não se importava com mais ninguém além de si mesma. Cada palavra doce era apenas uma máscara para esconder o que realmente queria: liberdade para continuar a enganar o noivo sem ser descoberta.
Maria, atrás da parede, ouvia tudo com o coração aos saltos. Quando Fernanda finalmente saiu, a senhora respirou fundo. Sabia o que tinha de fazer. Saiu do seu esconderijo e caminhou em direção à sala, decidida a revelar toda a verdade. Mas ao ver o filho a sorrir, distraído, o coração de mãe falou mais alto.
“Não, eu não posso fazer isso”, murmurou para si mesma, sentindo as lágrimas a acumularem-se nos olhos. “Eu não posso simplesmente contar. Isso destruiria o coração do meu filho. Ele já sofreu demais com a perda da mãe da pequena Lu. Eu não posso permitir que este noivado acabe de uma maneira tão horrível. Isso iria destruí-lo.”
Respirou fundo, a tentar pensar com clareza.
“Mas também não posso deixá-lo viver um casamento falso com aquela mulher oportunista. Não, eu própria vou resolver isto. Eu vou fazer com que aquela víbora se vá embora agora mesmo.”
Secou as lágrimas com um lenço e endireitou o corpo. A bondosa Maria de los Ángeles transformava-se, pela força do amor de mãe, numa mulher disposta a enfrentar o perigo. Então, cheia de coragem, decidiu confrontar Fernanda cara a cara, dentro da própria mansão, naquele mesmo dia.
E foi assim que, decidida e com o sangue a ferver, a matriarca da casa se preparou para encarar a vilã frente a frente. Quando a víbora regressou e ficou sozinha na sala, a senhora não perdeu tempo. Maria de los Ángeles entrou na sala com passos firmes e o olhar decidido. O seu coração batia acelerado, mas não deixou que a voz tremesse. Em frente a ela, Fernanda estava sentada confortavelmente, a folhear uma revista, como se fosse a dona do mundo. A matriarca da casa não perdeu tempo.
“Ouve bem, eu sei de tudo”, disse, com a voz grave e cheia de fúria. “Eu sei que estás a enganar o meu filho e que despediste o pobre Fagundes, motorista da família, só para contratares o teu amante e o teres perto de ti. Mas isto acabou. Eu devia contar tudo ao meu filho agora mesmo, mas eu quero preservar o coração dele, por isso, eu dou-te uma oportunidade de ires embora sem consequências. Vai-te embora, deixa esta casa e não olhes para trás.”
O silêncio apoderou-se da sala por uns segundos, mas em vez de medo, Fernanda começou a rir. Uma gargalhada fria, trocista, que fez o sangue de Maria gelar.
“Ah, sim, o coraçãozinho ingénuo e tolo do teu filho vai ser preservado, sim”, troçou, levantando-se lentamente. “Sabes porquê? Porque eu não vou sair desta casa. Eu vou continuar a mandar aqui e tu também não vais contar nada ao meu noivo. Entendido?”
Maria ficou boquiaberta com a arrogância da mulher.
“Que barbaridade! Se tu achas que eu vou ser cúmplice do engano que fazes ao meu filho, estás muito enganada. Eu dei-te a oportunidade de ires embora sem consequências, mas agora eu vou contar tudo.”
A senhora virou as costas e começou a caminhar em direção à porta da mansão, mas mal deu dois passos. De repente, ouviu passos pesados atrás de si. Antes que pudesse reagir, foi rodeada pelos novos empregados, aqueles que Fernanda tinha contratado pessoalmente.
“O que é isto? O que é que estão a fazer?”, gritou Maria, assustada.
Mas já era tarde demais. Dois homens fortes agarraram-na pelos braços e taparam-lhe a boca. Fernanda aproximou-se devagar, com um sorriso perverso.
“Tu acreditaste mesmo que eu ia perder tudo o que consegui até agora por causa de uma velha decrépita como tu?”, disse, inclinando-se para lhe falar bem perto do ouvido. “Agora, o teu filho é todo meu, a tua casa, a tua família, a tua fortuna, tudo meu.”
Maria debatia-se, a tentar soltar-se, mas os capangas eram mais fortes.
“E sabes o que é pior?”, continuou a víbora, com o olhar cheio de ódio. “Eu podia livrar-me de ti agora mesmo e resolver todos os meus problemas, mas eu vou fazer pior. Eu vou deixar-te viver para tu veres tudo. Tu vais olhar com os teus próprios olhos como eu fico com tudo o que é teu e tu não vais poder fazer nada para impedir.”
A mulher começou a rir às gargalhadas. Entretanto, um dos capangas segurava um pequeno frasco e entregou-o a Fernanda.
“Agarrem-na bem”, disse, com frieza.
Os homens taparam o nariz de Maria e obrigaram-na a engolir o líquido amargo. A senhora tentou resistir, mas o sabor forte e o pânico fizeram-na desmaiar em poucos segundos. Fernanda observou-a, satisfeita.
“É isso. Dorme, velhinha, e quando acordares, nem sequer te vais lembrar de quem tu és.” Murmurou antes de mandar que a deixassem caída perto da escadaria principal.
Horas mais tarde, quando o sol começava a pôr-se, Maria acordou com a cabeça a latejar. Tudo estava confuso. As vozes à sua volta soavam distantes. De repente, sentiu que alguém a agarrava pelos ombros.
“Mamã, estás bem, Mamã? O que é que aconteceu?”, disse Pedro, desesperado. “Tu estavas caída aqui, perto da escadaria. Quando voltámos do jardim, a Fernanda viu-te e correu a chamar-nos.”
Maria piscou várias vezes, a tentar perceber onde estava. Tudo girava. Quando finalmente focou a vista, viu a nora parada ao lado do filho, a fingir preocupação. A senhora levou a mão à testa.
“Eu não sei. Eu não me lembro bem o que é que aconteceu nem como é que vim para aqui”, respondeu, com voz fraca.
Fernanda, com a expressão controlada e o tom suave, falou antes que Pedro fizesse mais perguntas.
“Deve ter caído, meu amor. Provavelmente, bateu com a cabeça, e a queda deixou-a um pouco desorientada.”
Lu, que observava a cena com lágrimas nos olhos, ajudou o pai a levantar a avó.
“Vamos, Avó, a senhora tem de descansar agora.”
Pedro e a menina levaram Maria para o seu quarto. A idosa parecia confusa, cambaleava e repetia palavras sem sentido. Nos dias seguintes, o comportamento de Maria de los Ángeles começou a mudar. Às vezes, parecia lúcida, mas na maior parte do tempo estava ausente, esquecida. Nalgumas manhãs, olhava fixamente para a entrada da casa e murmurava frases sem sentido.
“Não, não a quero aqui. Lu, chama a Lu. Eu não quero a Fernanda por perto.”
Quando Fernanda notava que a senhora começava a recuperar a consciência, agia de imediato. Entrava no quarto com um copo de água e um sorriso falso.
“Tome o seu medicamento, sogrinha, é para o seu bem”, dizia, enquanto aumentava a dose pouco a pouco.
E assim o fez durante semanas, até que a pobre senhora começou a esquecer-se até dos rostos mais queridos. Uma tarde, Luna entrou no quarto e encontrou a avó sentada com o olhar vazio. A menina aproximou-se devagar, com a voz embargada.
“Avó, a senhora já não se lembra de mim? Sou eu, a sua netinha. Vamos, tem de se lembrar. A senhora piscou lentamente, sem reconhecer o rosto da menina. As lágrimas escorriam pelas bochechas de Lu.
“Avó, eu sei que no fundo a senhora sabe quem eu sou. Olhe, eu fiz-lhe um presente”, disse, abrindo a mãozinha e a mostrar um colar feito com uma pedrinha transparente. “Eu fiz-o com uma pedra linda que encontrei no nosso jardim. Assim, a senhora saberá sempre quem eu sou, a menina do colar. E eu saberei sempre quem a senhora é, sim?”
A menina colocou o colar no pescoço da avó com cuidado. Depois, abraçou-a forte, a chorar.
“Eu amo-a, Avó”, sussurrou, enquanto a senhora, embora sem compreender, respondeu com um leve movimento de mão.
Os dias transformaram-se em semanas. Pedro levou a mãe a vários médicos, mas nenhum conseguia explicar o que estava a acontecer. O que Pedro e Luna não sabiam era que Fernanda estava por trás de tudo. Subornava cada médico para mentir nos relatórios e ocultar o envenenamento que causava dia após dia.
Com o tempo, Maria perdeu completamente a fala. Passava o dia sentada na mesma cadeira, imóvel, com o olhar perdido. A mulher forte e firme que um dia tinha comandado aquela casa tinha-se tornado uma sombra de si mesma.
Certo dia, a família estava reunida na sala de jantar. Pedro levantou-se com um sorriso emocionado, segurando uma taça de vinho.
“Atenção, todos. A data do casamento está marcada. A Fernanda e eu vamos casar no próximo mês.”
Aquelas palavras ecoaram pelo salão como uma sentença. Maria de los Ángeles, que até àquele momento parecia uma estátua viva, estremeceu na cadeira. Os olhos abriram-se de repente. O seu corpo começou a agitar-se e sons roucos saíram da sua garganta.
“Não, não, não, não”, balbuciava com esforço, a mexer os dedos como se tentasse pedir ajuda.
Pedro e Lu correram imediatamente para ela. Fernanda também se levantou, a fingir preocupação, mas os seus olhos mostravam puro pânico.
“Meu Deus, deve ter sido por algo que comeu”, disse, teatralmente. “Eu vou falar com a cozinheira agora mesmo.”
Saiu apressada para a cozinha. Ao chegar, o semblante doce desapareceu. Segurou a porta com força e sussurrou furiosa à cozinheira, que era uma das suas cúmplices.
“Ouviste o que acabou de acontecer? Aumenta imediatamente a dose do remédio para aquela velha estúpida e estraga-prazeres.”
A cozinheira, assustada, gaguejou.
“Mas, senhora Fernanda, uma dose tão alta poderia… poderia matá-la.”
Fernanda arregalou os olhos, dominada pela ira. Agarrou-a pelo pescoço do uniforme e sibilou entre os dentes.
“Olha para mim e diz-me se eu pareço preocupada com isso! Eu quero aquela velha incapaz até de se lembrar de que ainda existe neste mundo. Entendeste? O meu casamento está a chegar e eu não quero que aquela inútil estrague tudo.”
A cozinheira engoliu em seco, aterrorizada. “Sim, senhora”, respondeu, a obedecer.
Entretanto, no salão de jantar, o ambiente estava tenso. Maria tinha-se acalmado um pouco, mas ainda tremia. Lu, ao notar que a madrasta tinha saído, resolveu aproveitar para comentar algo que a inquietava há muito tempo.
“Papá, eu sei que tu não gostas que eu fale mal da Fernanda, mas tu reparaste que a Avó só reagiu assim quando falaste do casamento?”
Pedro olhou para a filha, confuso, sem saber o que responder. Nesse instante, Maria mexeu os dedos levemente, como se confirmasse o que a menina dizia. Lu emocionou-se.
“Vês? Aconteceu outra vez. E se… e se a Avó sabe alguma coisa sobre a Fernanda e está a tentar avisar-nos?”
O homem sorriu com ternura e passou a mão pela cabeça da filha.
“Filha, tu estás a ver coisas onde elas não existem. Se a Mamã tivesse algo para contar sobre a Fernanda, ela tê-lo-ia dito há muito tempo, quando ainda conseguia comunicar. Talvez essas reações sejam apenas um sinal de melhoria. Pensemos assim, está bem?”
A menina suspirou, inconformada, a olhar de novo para a avó imóvel.
O tempo passou rápido, chegou o mês do casamento e os preparativos apoderaram-se da mansão. Fernanda encarregava-se de supervisionar tudo, mas nos bastidores, as suas ordens eram cruéis. Prevendo que a sogra pudesse causar problemas durante a cerimónia, reuniu os seus cúmplices na cozinha.
“Ouçam bem o que eu digo. Aumentem a dose do remédio antes do casamento e deem-lhe mais sempre que ela reagir de forma estranha. Entendido?”
As mulheres olharam-se, assustadas, mas assentiram.
Finalmente, chegou o dia. A igreja estava cheia, decorada com flores brancas e velas. O sacerdote, o coro e os convidados aguardavam ansiosos. Pedro estava emocionado, com lágrimas nos olhos, enquanto Fernanda desfilava pelo tapete vermelho com o seu falso ar de pureza. Ali, na primeira fila, Maria de los Ángeles observava tudo da sua cadeira de rodas, com o olhar distante. Ao seu lado, a pequena Lu segurava-lhe a mão com força.
O sacerdote levantou a voz, solene.
“Fernanda Justino Pereira, aceita Pedro Oliveira Campos como seu legítimo esposo e promete ser-lhe fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-o e respeitando-o todos os dias da sua vida?”
A vilã sorriu levemente e respondeu, com os dedos cruzados atrás do ramo.
“Sim, aceito.”
O sacerdote virou-se para o noivo.
“Pedro Oliveira Campos, aceita Fernanda Justino Pereira como sua legítima esposa e promete ser-lhe fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-a e respeitando-a todos os dias da sua vida?”
Nesse momento, um gemido ressoou na igreja. Maria de los Ángeles começou a mexer-se, a tremer, a tentar falar.
“Não, não, não, não”, murmurava, a lutar contra o efeito dos medicamentos.
O motorista, Ricardo, surgiu com um copo de água e um comprimido.
“É a hora do seu remédio”, disse, a sorrir.
Sem desconfiarem de nada, os convidados assentiram, e o homem obrigou a senhora a engolir o comprimido. Em segundos, o seu corpo acalmou-se pela força. Os seus olhos voltaram a esvaziar-se.
Alheio a tudo, Pedro respondeu, emocionado.
“Aceito. Aceito casar com a Fernanda.”
O coro começou a cantar. A igreja irrompeu em aplausos.
Após a cerimónia religiosa, todos se dirigiram para o salão de festas da mansão do Milionário, onde seria realizada a assinatura do casamento civil. Fernanda pegou na caneta primeiro, escreveu o seu nome à pressa e com um sorriso triunfante.
“Pronto, agora é a tua vez, meu amor”, disse, a entregar a caneta a Pedro.
Ele respirou fundo e preparou-se para assinar, mas naquele instante, um grito rouco cortou o murmúrio das conversas e da música.
“Não! Não!”, gritou Maria de los Ángeles, com a pouca voz que lhe restava.
Todos se viraram, chocados. A senhora tremia, a tentar levantar-se da cadeira. O colar que Luna lhe tinha feito balançava no seu pescoço, a refletir a luz do salão. A força de mãe falou mais alto do que o veneno. Mesmo debilitada, ainda à beira do colapso, Maria lutava com o seu corpo para impedir que o filho assinasse aquele maldito papel.
Pedro deixou cair a caneta e correu para ela, desesperado.
“Mamã, o que é que se passa, Mamã?”, gritou, a tentar segurá-la nos seus braços. “Vamos levá-la para o hospital”, gritou o homem, desesperado.
Os seguranças abriram caminho e Lu corria ao lado do pai, a chorar, enquanto Fernanda observava de longe com um olhar frio e calculista. Não era desta vez que a vilã conseguiria o seu objetivo. O casamento tinha sido interrompido.
Irritada, consumida por uma raiva que quase a fazia tremer, Fernanda caminhava de um lado para o outro no seu quarto. O seu plano perfeito tinha sido destruído e a vilã sabia que tinha de agir rápido. Não podia arriscar que a sogra acordasse outra vez e estragasse tudo. Decidida, olhou para o motorista, o seu cúmplice e amante, e falou em tom gélido.
“Eu vou encarregar-me de tirar o idiota e a filhinha dele daqui sem usar o carro. Vou convidá-los a caminhar, a ver os passarinhos ou alguma dessas tolices que eles acham bonitas. E enquanto isso, tu agarras a velha, metes no carro e levas para bem longe. Atira-a por um penhasco.”
Ricardo apenas anuiu, sem mostrar emoção. No dia seguinte, Fernanda cumpriu exatamente o que tinha planeado. Com um sorriso doce, convidou Pedro e Lu a dar um passeio pelo jardim da propriedade, dizendo que o ar fresco lhes faria bem a todos. Enquanto pai e filha se afastavam, distraídos, o motorista foi para o quarto onde Maria de los Ángeles descansava. A senhora, fraca e sem forças, mal tinha sido medicada corretamente no hospital devido a outro suborno de Fernanda e não teve tempo de reagir.
Ricardo pegou nela ao colo, cobriu-a com um lençol e levou-a para o carro. O veículo partiu a toda a velocidade pelas estradas de terra batida até chegar a um penhasco isolado. O homem abriu a porta do carro, olhou para a mulher inconsciente e murmurou com desprezo.
“Que o inferno te leve, velha chata.”
E sem hesitar, o canalha atirou o corpo da senhora pelo precipício. O som do impacto ressoou durante segundos até desaparecer. Satisfeito, limpou as mãos e virou as costas, a acreditar que aquela seria a última vez que veria Maria de los Ángeles, mas estava enganado.
Maria de los Ángeles não era uma mulher comum. Mesmo ferida e tonta pela queda, a força de mãe continuava a bater dentro dela. Com dificuldade, abriu os olhos, a tossir, e murmurou com voz fraca: “Filho, não.” O corpo doía-lhe, a cabeça girava, mas a vontade de viver era mais forte. Pouco a pouco, levantou-se e começou a caminhar, a tropeçar, sem rumo.
Entretanto, na mansão, Pedro e Luna regressavam do passeio e notaram a ausência da senhora. Procuraram em todos os quartos, chamaram por ela nos corredores, mas não a encontraram. O pânico apoderou-se da casa. Pedro chamou a polícia de imediato. Foram impressos cartazes, e a busca estendeu-se por toda a cidade.
“Mamã, onde é que estás? Por favor, alguém a viu?”, gritava Pedro pelas ruas, a mostrar fotos da mãe a quem passava.
Luna, com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto, também falava com todos os que encontrava.
“Avó, viram a minha Avó por aqui? Ela estava a usar um colar assim, olhem, igual ao da foto.”
Não descansaram. Durante dias, semanas e depois meses, procuraram sem parar. A polícia, já sem esperança, começou a sugerir que talvez a senhora tivesse falecido.
“O mais provável é que tenha saído sozinha, desorientada, e tenha acontecido o pior”, disse um investigador.
Mas Pedro não queria acreditar.
“Não, a minha mãe não faria isso. Ela não desapareceria assim. Eu sinto que ela está viva”, dizia, com os olhos cheios de lágrimas.
Mesmo assim, depois de quase um ano de buscas, as autoridades encerraram o caso. A família, devastada, teve de aceitar oficialmente a perda. Maria de los Ángeles foi declarada morta. Enquanto Pedro e Luna choravam a perda, Fernanda celebrava a vitória.
Numa noite, enquanto o casal se preparava para um evento, Fernanda decidiu tocar no assunto novamente.
“Meu amor, eu sei que tu não gostas de falar sobre isso, mas quando é que vamos assinar aquele documento para nos tornarmos, finalmente, marido e mulher perante a lei?”
Pedro, a ajeitar a gravata em frente ao espelho, respondeu sem emoção.
“Nós já somos marido e mulher perante Deus, Fernanda, e eu não sei se essa assinatura vai acontecer em breve. Desde que a minha mãe morreu, eu não consigo sequer pensar nisso.” Respirou fundo, com o olhar cansado. “E até hoje eu não consegui que a Luna te aceite como madrasta. Ela continua a dizer-me para eu ter cuidado contigo e que a Avó…”
Fernanda congelou o sorriso. As palavras do marido atingiram-na como um soco invisível. Apercebeu-se de que, embora se tivesse livrado da sogra, agora tinha uma nova ameaça: a filha. A vilã pensou enquanto o marido acabava de se arranjar.
“Está bem, meu amor. Eu entendo”, respondeu, com falsa doçura. “Acaba de te arranjar, que eu vou pedir ao motorista para preparar o carro.”
Deu um beijo rápido em Pedro, pegou na mala e saiu do quarto apressada.
Pouco depois, o carro de luxo partiu rumo ao evento. Lá dentro, iam quatro pessoas. O esposo ingénuo, a esposa infiel, o motorista amante e a filha inteligente que sentia no peito um mau pressentimento.
Enquanto o veículo avançava, a pequena Lu olhava pela janela. O brilho das luzes da cidade contrastava com a escuridão das calçadas, onde muitas pessoas dormiam. A menina franziu a testa e perguntou, triste.
“Papá, por que é que aquelas pessoas vivem na rua?”
Fernanda revirou os olhos dissimuladamente e respondeu com aquele tom de desprezo que só ela tinha.
“Porque, minha querida, alguns nascem para ter tudo e mais, como nós, enquanto outros nascem para viver na miséria.”
Pedro olhou para a esposa, visivelmente incomodado, e tentou suavizar a resposta cruel.
“O que a tua madrasta quis dizer, filha, é que, infelizmente, o mundo não é justo para todos. Enquanto alguns têm muito, outros não têm sequer onde morar.”
Lu continuou a olhar pela janela.
“Nós temos o suficiente, Papá. Nós podemos ajudar aquelas pessoas. Elas precisam da nossa ajuda.”
Pedro sorriu, comovido com o coração bondoso da filha.
“Claro que sim. E nós vamos fazê-lo, filha. Vamos organizar mais eventos de caridade. O Papá precisa de ir a este evento hoje porque é importante para o meu trabalho. Mas quando sairmos de lá, nós vamos ajudar aquelas pessoas. Vamos comprar alguma comida, eu prometo, sim?”
A menina anuiu, ainda pensativa.
Quando o carro finalmente virou a esquina e o salão de festas apareceu iluminado e sumptuoso, o coração da menina apertou-se. O contraste era brutal. Lá fora, miséria, lá dentro, luxo, risos e cristais. Ela observou aquela cena e pensou em silêncio, de olhos húmidos. “Isto não é justo.”
O pensamento de injustiça continuou a martelar na mente da pequena Luna durante todo o evento. Enquanto o pai sorria e conversava animadamente com aqueles milionários, a menina observava à sua volta, incomodada. Puxou a manga do pai, a tentar chamar a sua atenção.
“Papá, Papá, por que é que agem assim? Por que é que todos aqui só falam de dinheiro e mais nada? Por que é que só se preocupam consigo próprios? O dinheiro é tão importante para eles que não veem o que se passa lá fora.”
Pedro abriu a boca, pronto para responder. Mas antes que pudesse dizer algo, outro homem elegante aproximou-se com um sorriso largo e interrompeu.
“Pedro, meu amigo, nós temos de falar sobre aquele novo investimento.”
E mais uma vez, a atenção do pai desviou-se, agora tomada pelo único assunto capaz de reter aqueles homens, o dinheiro. Luna baixou a cabeça, desiludida. O desconforto dentro dela aumentava. Olhou para a mesa repleta, as joias a brilhar e os rostos das pessoas que fingiam felicidade enquanto ignoravam o mundo lá fora. Tentou levantar-se, mas sentiu uma mão firme a agarrar-lhe o braço.
Fernanda, a madrasta, sussurrou-lhe por entre os dentes, com o sorriso falso ainda no rosto, para que ninguém notasse o tom ameaçador.
“Não causes problemas, miúda. A menina arregalou os olhos e puxou o braço com força.
“Eu não sou uma miúda! Larga-me! Larga-me, eu quero sair.”
A madrasta apertou com mais força, mas Lu começou a debater-se e a soltar-se.
“Larga-me! Larga-me! Tu não és a minha mãe! Eu não quero estar aqui. Este não é o meu lugar e tu vais deixar-me ir agora! Papá, diz a ela para me largar!”
As vozes ecoaram por todo o salão, chamando a atenção de todos. Os convidados olhavam-se, a murmurar, enquanto Pedro tentava perceber o que estava a acontecer. Mas antes que pudesse levantar-se, Luna já se tinha soltado e corria em direção à saída. Não se importou com os olhares nem com os murmúrios. Saiu decidida, com o coração a bater depressa.
Pedro deu um passo para a seguir, mas Fernanda agarrou-lhe o braço, forçando um sorriso.
“Deixa-a estar um pouco lá fora. Ela precisa de aprender que não se pode ajudar toda a gente. Daqui a pouco, ela volta a dizer que sentiu nojo ou medo da mendiga da entrada.” Virou-se para os outros convidados e acrescentou, num tom de falsa autoridade. “Marido, tu tens de falar com essa criança. Ela está impossível. Nunca me respeitou. Eu já sabia, mas agora nem sequer respeita o próprio pai.”
Pedro respirou fundo, cansado de discussões.
“Está bem, Fernanda. Eu vou esperar que ela se acalme”, disse, voltando a sentar-se.
E logo outro sócio milionário se aproximou da mesa, mudando o assunto por completo.
“Pedro, sobre aquela fusão de empresas…”, começou o homem.
Enquanto o pai falava sobre lucros e contratos, a história lá fora tomava outro rumo. A pequena Lu, agora sozinha, atravessava o corredor do salão e abria as portas de vidro que davam para a rua. O ar frio da noite envolveu-a. Lá fora, sob a luz fraca dos postes, viu a mulher encurvada, deitada em frente à entrada, uma idosa com roupas rasgadas coberta por um lençol sujo.
“Olá, senhora”, disse a menina, ajoelhando-se ao seu lado. “A senhora tem fome? Posso trazer-lhe um prato de comida lá de dentro? Diga-me só do que precisa.”
A menina falava com doçura e compaixão, mas ao olhar mais de perto, algo chamou a sua atenção. Os olhos da pequena Lu arregalaram-se. Levou a mão à boca, atónita.
“Aquele colar… aquele colar no seu pescoço…”, murmurou, incrédula. “Eu reconheço-o. Reconheceria aquele colar mesmo depois de mil anos.”
O coração da menina acelerou.
“Avó”, murmurou, sem poder acreditar.
A senhora respirava com dificuldade, mas não dizia nada. Luna, desesperada, olhou para o salão e viu as luzes a refletirem-se nas paredes de vidro. Tinha de contar ao pai de imediato. Levantou-se e correu de volta, atravessando todo o salão sob os olhares surpreendidos dos convidados. Entrou de um salto, ofegante, com o rosto vermelho e os olhos arregalados.
Fernanda, ao vê-la regressar, pensou para si e riu-se por dentro. “Aí vem a miúda, desesperada porque sentiu nojo da mendiga. Finalmente, algo que temos em comum.” Mas estava enganada. A expressão de Lu era de esperança, não de medo.
A menina chegou agitada à mesa, a gritar.
“Papá, Papá, tu tens de me ouvir! Olha para mim, é rápido! Eu juro que vale a pena, Papá!”
Pedro, distraído com os negócios, fez um gesto com a mão para que esperasse, sem lhe dar atenção. Foi então que a menina tomou uma decisão drástica. Agarrou o copo de vinho da madrasta e esvaziou todo o conteúdo sobre o fato do sócio milionário. O vinho escorreu lentamente pelo tecido caríssimo e o homem saltou da cadeira, furioso.
“Mas o que é isto?”, gritou, enfurecido.
Pedro levantou-se, sobressaltado.
“Filha, o que é que fizeste?”
Mas já era tarde. O sócio afastava-se a resmungar. E, finalmente, a menina tinha toda a atenção do pai. Fernanda ainda tentou dizer algo, mas a menina, eufórica, conseguiu que Pedro virasse os olhos e olhasse com atenção para a senhora. Com o rosto vermelho de emoção, Luna apontou para a grande fachada de vidro.
“Papá, olha! Não é a Avó que morreu?”
Por uns segundos, o homem ficou paralisado. O seu olhar fixou-se na figura encurvada lá fora. O coração batia-lhe forte, e um nó formou-se na sua garganta.
“Não pode ser”, murmurou, dando um passo em frente. Era como se lutasse consigo mesmo para não sair a correr de imediato.
Sem pensar duas vezes, ele, a filha e Fernanda, que também estava em choque, caminharam rapidamente em direção à saída do salão. Lá fora, a cena era de cortar o coração. Pedro ajoelhou-se em frente à mulher e falou com a voz trémula.
“Mamã, é a senhora? Eu procurei-a durante tanto tempo. Disseram-me que tinha morrido e eu acreditei.”
Estendeu as mãos e retirou o capuz que cobria o rosto da mulher. Mas em vez da sua mãe, encontrou uma desconhecida. Uma idosa completamente diferente, de olhos cansados e pele marcada pelo tempo. A mulher olhou para ele e disse, com voz fraca:
“Podia ajudar-me um bocadinho, por favor?”
Pedro piscou, desiludido, e logo se recompôs.
“Claro, senhora. Entre, sente-se na mesa onde nós estávamos. A comida é por conta da casa. Peça o que quiser”, respondeu, com respeito. Depois, virou-se para a filha, que o olhava com lágrimas nos olhos.
Fernanda, atrás deles, cruzou os braços e abanou a cabeça, com um sorriso irónico.
“Papá, desculpa. Eu pensei mesmo, eu acreditei que era…”, disse Lu, com a voz embargada.
Mas algo chamou a atenção da menina. Quando a mulher se levantou para aceitar a ajuda do pai, tirou o manto que a cobria e não tinha colar nenhum. Os olhos de Luna arregalaram-se.
“Espera, esta senhora não tem o colar. Não é a Avó! De certeza que ela saiu enquanto eu tentava chamar a tua atenção e tu não me ouvias, Papá! Mas eu juro que a Avó estava aqui!”
Pedro olhou para a filha, a tentar manter a calma, embora confuso. Ele acreditava no que ela dizia. O olhar da menina era sincero, mas Fernanda não deixaria que aquilo continuasse.
“Não causaste já problemas suficientes hoje, miúda?”, disse a madrasta, com um tom venenoso escondido sob a sua voz doce.
Lu baixou a cabeça, mas no fundo, sabia que não estava errada.
Depois do evento, o regresso a casa foi silencioso e pesado. Fernanda, no entanto, era incapaz de se calar. Durante todo o caminho, lançava críticas contra a menina, com um tom de voz tão afiado quanto uma faca.
“Isto é uma irresponsabilidade tremenda”, dizia, a virar-se para o banco de trás. “Uma criança dessa idade não devia ter tanta liberdade para agir assim. Ela precisa de limites, e precisa deles com urgência.”
Luna manteve os olhos baixos, a ignorar as palavras da madrasta. O seu olhar estava fixo no rosto do pai, que não parecia zangado, mas desiludido, e isso doía mais do que qualquer ralhete. Pedro suspirou e falou com calma, mas com firmeza.
“Fernanda, ela tem razão, filha. Tu não podes continuar a agir assim. Eu estou cansado, por isso, vai para o teu quarto. Amanhã falamos a sério sobre isto.”
Lu anuiu em silêncio e subiu as escadas. Sabia que qualquer tentativa de explicação só iria piorar o humor do pai. Mas dentro do quarto, sentou-se na cama e apertou com força o colar que tinha feito com a avó. Os seus olhos brilhavam de determinação.
“Eu sei o que vi”, sussurrou para si mesma. “A Avó está sozinha lá fora e precisa de mim. Se eles não me vão ajudar, eu vou procurá-la sozinha.”
E foi exatamente isso que ela fez. Ao amanhecer, a menina saiu pela janela do seu quarto, desceu com cuidado e escapou para cumprir a sua missão.
Quando Pedro e Fernanda acordaram, o quarto da menina estava vazio, a cama desarrumada, a janela aberta e uma nota sobre a almofada. Pedro pegou nela com as mãos trémulas e leu em voz alta.
“Vocês não acreditam em mim, mas eu sei que eu vi a Avó. Eu vou procurá-la e em breve voltamos. Beijos, Lu.”
O pai ficou pálido.
“Meu Deus, não, a minha filha!”, murmurou, desesperado, a correr para o telefone. Ligou para a polícia de imediato. A sua voz mal saía de tão nervoso.
Entretanto, Fernanda observava de longe com o rosto rígido. Por dentro, fervia de raiva, não pelo desaparecimento da menina, mas porque o seu plano para se livrar da miúda tinha sido adiado. Durante uns segundos, caminhou de um lado para o outro, nervosa, até que um sorriso maldoso apareceu no seu rosto.
“Espera”, pensou. “Talvez esta seja a minha melhor oportunidade.”
Fingiu desespero, correu para o marido e disse em tom teatral:
“Vamos, marido, vamos procurar a nossa pobre filhinha.”
Depois, mobilizou todos os empregados da casa, ou melhor, os capangas disfarçados que ela própria tinha contratado para ajudar nas buscas. Mas o verdadeiro plano era outro: fingir que procuravam Lu quando, na verdade, queriam encontrá-la primeiro para se livrarem dela definitivamente.
Fernanda, astuta, manipulou até as autoridades. Deu ordens falsas à polícia, indicando o caminho contrário ao que a menina tinha seguido.
“Procurem nessa direção, eu tenho a certeza de que ela foi por ali”, disse, a enganar toda a gente.
Pedro, dentro do carro, notou a incoerência do trajeto.
“Por que é que vamos nesta direção? Não faz sentido. Ela deve estar perto de onde vimos aquela senhora. Avisem os polícias.”
Mas já era tarde. Tinham perdido demasiado tempo. Tempo suficiente para os capangas seguirem o caminho certo e localizarem a menina antes de mais ninguém.
Numa rua escura do subúrbio, um dos homens apontou e gritou: “Ali está ela!”
Luna, que caminhava sozinha, exausta e com medo, virou-se ao ouvir a voz. Por um breve instante, sorriu, a acreditar que os empregados da mansão estavam ali para a ajudar a procurar Dona Maria.
“Que bom! Vieram ajudar-me! Nós já estamos perto dela. Eu consigo sentir. Esperem!”
O tom da menina mudou ao ver os rostos agressivos dos homens a correrem na sua direção.
“Por que é que vêm assim?”, gritou, a recuar.
Um dos capangas respondeu aos berros.
“Agarrem-na e garantam a nossa parte do dinheiro! Vamos!”
Os olhos de Lu encheram-se de terror. O coração batia-lhe forte. “Estas pessoas não são minhas amigas”, pensou, virando-se e a começar a correr o mais rápido que pôde.
Virando esquinas, subiu calçadas, atravessou ruas cheias de lixo e barracos. Os capangas vinham logo atrás, a gritar ameaças.
“Vira aí! Não a deixem escapar!”
Mas a menina inteligente teve uma ideia. “Vou entrar neste beco e despistá-los”, pensou. Virou rapidamente e meteu-se num passadiço estreito, desaparecendo da vista deles.
“Onde é que ela está?”, gritou um dos homens. “O que é que vamos dizer à patroa agora? Procurem-na! Ela não pode ter ido longe.”
Enquanto os capangas corriam de um lado para o outro, Lu encolheu-se num canto escuro do beco, ofegante e assustada. Foi então que reparou na presença de uma figura ao seu lado, uma mulher deitada no chão, coberta com trapos sujos. Luna, embora a tremer, foi educada.
“Olá, a senhora está bem? Desculpe invadir o seu lugar de descanso, é que há pessoas más atrás de mim. Posso ficar aqui consigo um bocadinho?”
Mas ao olhar melhor, o coração da menina quase parou. O colar, aquela pedra simples e brilhante pendurada no pescoço da mulher. Lu levou a mão à boca, incrédula.
“Espera, tu és… Eu não posso acreditar. Tu és a Avó?”
Com lágrimas nos olhos, retirou com cuidado o trapo que cobria o rosto da mulher. E ali estava ela, Maria de los Ángeles, viva, embora fraca e abatida.
“Avó, eu encontrei-a! Eu sabia que era a senhora! Vamos, venha comigo para casa. Vai ficar tudo bem agora”, disse, emocionada, a pegar-lhe na mão.
Mas a senhora não reagiu. Os seus olhos estavam vazios, perdidos. Luna percebeu que ela não a reconhecia.
“Avó, por favor, lembre-se de mim. Eu sei que no fundo a senhora sabe quem eu sou”, insistiu a menina, a chorar. “Lembre-se dos nossos momentos. Lembre-se de mim, Avó!”
Sacudiu suavemente o braço da avó. Mas Maria de los Ángeles continuava imóvel, apenas a piscar lentamente, como se ouvisse de muito longe.
Entretanto, a busca real começava a aproximar-se. Pedro finalmente percebeu o erro e ordenou aos polícias que mudassem a rota. O carro da família avançava a toda a velocidade pelas ruas, enquanto o motorista e Fernanda trocavam olhares nervosos pelo retrovisor.
A vilã mordia o lábio, angustiada. “Onde é que estão aqueles inúteis dos meus empregados?”, pensou. Mas logo encontrou a resposta.
Pedro apontou pela janela.
“Espere, motorista, pare o carro. Aquela é a cozinheira! Ela parece preocupada. Vamos ver se ela viu a minha filha.”
O veículo travou bruscamente. Pedro desceu à pressa e aproximou-se do grupo de empregados. Os rostos deles estavam suados, ofegantes, e a tensão pairava no ar.
“Por que é que estão tão agitados? Encontraram a minha Lu?”, perguntou, com a voz a tremer de ansiedade.
A tensão era tanta que todos pareciam prender a respiração. Pedro olhava ansioso para os empregados, à espera de uma resposta. Mas antes que alguém pudesse abrir a boca, Fernanda, sempre dissimulada, tentou adiantar-se e controlar a situação.
“Aposto que não encontraram nada, não é?”, disse, fingindo um sorriso, embora os seus olhos denunciassem o nervosismo.
A cozinheira, aterrorizada pelo olhar da patroa, gaguejou. Estava prestes a negar, como a vilã queria, mas ao ver o carro da polícia a estacionar junto a eles, o medo mudou de direção. Engoliu em seco e respondeu, a tentar salvar-se.
“Sim, nós vimos. Ela estava por aqui, mas quando nos viu, começou a correr por algum motivo e depois nós perdemos-na.”
A expressão de Fernanda mudou por completo. O seu rosto ficou pálido. Ricardo, o motorista e amante, também ficou imóvel. Olharam-se por um instante. Aquele olhar silencioso de quem pensa o mesmo. “E agora, o que é que fazemos?”
Mas ao contrário deles, a esperança apoderou-se de Pedro. Ele endireitou-se, a voz a vibrar de emoção.
“Então, vamos! Vamos encontrar a minha menina!” gritou, com lágrimas nos olhos.
O grupo correu pelas ruas estreitas até chegarem em frente a um beco escuro. Ao longe, viram uma pequena figura ajoelhada no chão. Era Luna, a chorar desconsolada, com a cabeça apoiada no colo de uma sem-abrigo.
“Avó, por favor, lembre-se de mim”, soluçava a menina.
Pedro correu com o coração aos saltos. A cada passo, o medo e a esperança misturavam-se. Mas quando finalmente se aproximaram, o choque foi total. Ali estavam não só a pequena Luna, mas também Maria de los Ángeles, viva, a mulher que todos julgavam morta.
Pedro ficou congelado por um instante, a tentar acreditar no que via. Depois, com um grito de alívio, caiu de joelhos e abraçou ao mesmo tempo a filha e a mãe.
“Mamã, eu não posso acreditar! Tu tinhas razão, minha filha. Perdoa-me por ter duvidado de ti, mas tu tinhas razão todo este tempo”, disse, com a voz embargada.
Lu abraçou-o de volta, a rir e a chorar ao mesmo tempo.
“Sim, Papá. Eu encontrei a Avó. Os novos empregados da mansão tentaram deter-me, mas eu encontrei-a.”
Pedro franziu a testa, confuso.
“Como assim, filha? O que é que tu queres dizer com isso?”, perguntou, sem compreender a gravidade das suas palavras.
Mas antes que ela pudesse explicar, Fernanda aproximou-se, a sorrir, a tentar mudar o assunto.
“Que bom que a encontrámos. Fico muito feliz, Dona Maria”, disse, fingindo emoção enquanto se inclinava para abraçar a idosa.
O toque foi o detonador. O corpo de Maria de los Ángeles estremeceu, ela piscou. Os seus olhos recuperaram o brilho, e algo dentro dela acordou, como se aquele contacto falso tivesse feito regressar tudo o que ela tinha perdido. De repente, levantou a cabeça e gritou com todas as suas forças.
“És tu! Tu e o teu amante! Agora, eu lembro-me de tudo!”
Todos se viraram, aterrorizados. Fernanda empalideceu e recuou, a tremer. Pedro olhou para a mãe, sem entender.
“Amante? De que é que estás a falar, meu amor?”, perguntou, a olhar para a esposa.
A descarada tentou disfarçar.
“Eu não sei, meu amor. Essa velha já está maluca. De certeza que bateu com a cabeça. Eu não faço ideia.”
Mas essa foi a pior coisa que ela podia ter dito. Pedro virou-se, indignado.
“Velha maluca? Tu estás a falar da minha mãe! Por que é que falas assim? Eu nunca te ouvi falar desta forma.”
Maria de los Ángeles apontou o dedo trémulo para a nora e gritou com uma força que parecia impossível para alguém tão frágil.
“Essa é a verdadeira Fernanda, meu filho! Abraça a tua mãe e afasta-te dessa bandida assassina. Ela dava-me medicamentos para me calar, para eu não contar o seu caso com o motorista e, quando nem os medicamentos bastaram para me silenciar, ela mandou atirar-me do penhasco! Essa mulher é uma assassina!”
Pedro ficou em choque, o rosto sem cor.
“Não, eu…”, tentou dizer Fernanda, mas a voz quebrou-se-lhe.
A vilã olhou à sua volta e viu que já não havia saída. O desespero desenhou-se no seu rosto. Então, virou as costas e correu em direção ao carro, onde Ricardo já a esperava. Os polícias que já estavam ali sacaram das armas e gritaram:
“Ei, parem! Estão presos!”
Mas o motorista pisou a fundo no acelerador, fazendo com que o carro disparasse.
“Comam o meu pó, porcos! Vocês nunca nos vão apanhar!”, gritava Ricardo, a rir como um louco.
Fernanda incentivava-o, histérica.
“É isso, mostra-lhes quem é que manda, querido!”
Mas o orgulho foi o veneno que selou o destino de ambos. Ricardo distraiu-se com as provocações, perdeu o controlo e não viu que o penhasco se aproximava, o mesmo onde ele tinha atirado Maria de los Ángeles. O carro atravessou a vedação, caiu pelo precipício e, em segundos, explodiu, envolto em chamas. Um estrondo ressoou por quilómetros.
Enquanto o fogo consumia tudo, os últimos gritos de Fernanda foram ouvidos.
Pouco depois, do outro lado da cidade, a família abraçava-se em lágrimas. Maria de los Ángeles, agora lúcida e sã, acariciava o rosto do filho e da neta.
“Oh, a minha linda família, que bênção voltar a lembrar-me destas carinhas lindas. Meu filho e a minha netinha, as minhas maiores bênçãos.” Disse, emocionada.
Pedro chorava de alegria, segurando as mãos da mãe. Lu sorria como há muito não o fazia. A paz regressava, finalmente, àquela família.
Uns meses depois, a mansão já não era um lugar de tristeza. Maria de los Ángeles recuperava com a ajuda de médicos honestos e tratamentos adequados. Fagundes, o fiel motorista, voltou a trabalhar para a família e todos os antigos empregados foram recontratados.
O reencontro foi celebrado com uma grande festa de boas-vindas e, a pedido de Luna, começou uma nova etapa. Com o apoio de Pedro e da Avó, eles criaram uma instituição para ajudar pessoas sem-abrigo, oferecendo-lhes teto, comida e trabalho digno. Era o sonho da menina a tornar-se realidade.
O tempo passou e a vida voltou a sorrir-lhes. Tudo acabou bem, tudo, exceto para Fernanda. A vilã teve o pior final possível, um final trágico e solitário. Partiu deste mundo junto com o seu cúmplice, sem levar nada. Nem o dinheiro, nem o poder, nem sequer o respeito de ninguém. Assim como se esqueceu da sua própria mãe, morreu esquecida por todos. Ninguém apareceu para se despedir dela.
Pedro, o milionário, com o tempo, encontrou um novo amor, desta vez escolhido por Luna e também por Dona Maria de los Ángeles, uma mulher boa de verdade que só fortaleceu a família. Porque quando as tempestades da vida chegam como um vendaval, é na família que encontramos o nosso refúgio, o nosso lar e o amor que nunca nos abandona.