A VINGANÇA DE LAMPIÃO contra CORONEL QUE RIU MORTE da “Mulher do Cangaceiro”

Você já sentiu o cheiro da maldade pura? Não falo daquela raiva de momento que ferve o sangue e logo passa. Falo daquela frieza que mora no fundo do olho, daquele prazer de ver o mundo aleijado pela miséria só para se sentir mais alto. Pois se nunca viu, é porque não conheceu o Coronel Horácio Bastos, o dono de tudo que o sol tocava e do que a sombra escondia, lá para as bandas de Águas Belas, no Sertão Brabo de Pernambuco. O ano era 1929. A seca castigava a terra de um jeito que parecia castigo de Deus. O chão rachado parecia uma boca gigante pedindo socorro, e o céu de um azul doído não tinha nem promessa de nuvem. Mas para o Coronel Horácio, a seca era bênção. Dono da única fonte que ainda minava água na região, a fazenda Almas, ele vendia o balde do líquido barrento a preço de ouro. Quem não podia pagar, que bebesse o próprio suor ou morresse esturricado feito bicho na estrada. Horácio era um homem que já tinha passado dos 60, mas o corpo era rígido como madeira. O rosto sulcado de rugas fundas não era de trabalho, era de desprezo. Os olhos, dois buracos pequenos e fundos, pareciam duas brasas apagadas, prontas para acender com a desgraça alheia. Ele não tinha amigos, tinha capangas, e não tinha vizinhos, tinha súditos. O povo da região não falava o nome dele alto; cochichava “o homem” ou “a peste”, com medo que o vento levasse a ofensa até os ouvidos do bando de jagunços que comia do seu prato. A única lei ali era a dele. Se um vaqueiro lhe olhava torto, sumia. Se uma família demorava a pagar a taxa pela água, via a casa queimar e o pequeno roçado ser pisoteado pelo gado do patrão. Era um regime de terror mudo, onde cada morador era um escravo sem corrente.

Mas veja só como a vida é curiosa: até o diabo pode gerar anjo. A única filha do Coronel Horácio, Rosália, era o oposto do pai. Onde ele era secura, ela era chuva. Onde ele era ódio, ela era compaixão. Moça bonita, de olhos claros que nem água de poço limpo, Rosália cresceu vendo a crueldade do pai e sentindo o peito rasgar. Ela tentava ajudar o povo escondida, levando um naco de rapadura aqui, um remédio de mato acolá. O pai desconfiava: “Deixe de moleza, menina! Quem tem pena de pobre morre comendo poeira. Esse povo só entende a linguagem do chicote. Bote isso na sua cabeça dura!” A gota d’água foi num fim de tarde de São João. Horácio mandou Inácio, seu chefe de capangas, um homem que tinha a alma suja que nem pau de galinheiro, dar uma lição num viúvo que tinha ousado pegar água do poço à noite para dar aos filhos com febre. A lição foram três tiros de bacamarte. Rosália viu o homem morrer nos seus braços, engasgado com o próprio sangue, e a fogueira do seu juízo se apagou. Naquela noite ela enfrentou o pai: “O Senhor é um monstro! Um demônio que se alimenta da dor dos outros!” O Coronel, surpreso com a coragem da filha, levantou a mão pesada e acertou o rosto dela com tanta força que o som estalou na noite. “Monstro? Monstro é quem cospe no prato que come! Enquanto viver debaixo do meu teto, vai me respeitar ou vai conhecer o mesmo destino daquele vagabundo!” Rosália limpou o sangue do canto da boca. O olhar dela, antes de água limpa, virou pedra. “Pois eu prefiro morrer de fome a comer na sua mesa, meu pai!” Naquela madrugada, Rosália sumiu. Levou só a roupa do corpo e um ódio santo no coração. Para o Coronel Horácio foi um alívio. A fraqueza tinha saído de sua casa. Ele deu ordem expressa: “Se encontrarem essa desmiolada por aí, tratem como qualquer outra. Filha minha não vira as costas para mim. Se virou, não é mais minha!”

Os meses viraram anos, a seca apertou. E no Sertão, quem não tinha a proteção do coronel só tinha uma outra sombra para se abrigar: o cangaço. Corria à boca pequena que Rosália não tinha morrido de sede. Tinha encontrado um bando, mas não era o bando do Capitão Virgulino, Lampião, que já era temido e respeitado como o Rei do Cangaço. Lampião para muitos era justiça. Ele só feria quem feria o pobre. Ele cobrava dos coronéis tiranos, dividia com quem não tinha nada. Lampião era o justiceiro, o Robin Hood da Caatinga. Rosália, diziam, tinha se juntado a um cabra diferente, um tal de Quinta-feira. Ninguém sabia direito quem era. Diziam que era um cangaceiro perdido, um homem que andava sozinho, que não roubava por ganância, só para sobreviver, que tinha saído de algum grupo grande e agora só queria viver em paz com sua mulher, escondido nos grotões. Rosália tinha achado nele a bondade que nunca viu no pai.

Naquela tarde de agosto de 1929, o Coronel Horácio Bastos estava na varanda de sua casa grande, balançando na rede, chupando uma laranja cravo. O sol parecia um disco de fogo derretendo o mundo. Foi quando Inácio, o chefe dos capangas, chegou, o chapéu de couro na mão, o sorriso faltando dente mostrando o prazer da caça. “Patrão, trago notícia boa! A gente estava na ronda perto do Serrote Preto e achou o esconderijo daquele cabra frouxo, o tal Quinta-feira.” Horácio nem abriu os olhos. “E aí, mataram o desgraçado?” “Quase, patrão! Ele escapuliu no meio das pedras, parecia um lagarto. Mas a mulher dele não teve a mesma sorte.” Inácio fez uma pausa, saboreando o momento. “A princesa dele ficou para trás, levou uma carga de chumbo que nem gritou.” O Coronel Horácio parou de se balançar. Um silêncio pesado caiu sobre a varanda. Ele abriu os olhos, aquelas duas brasas mortas. Um sorriso lento, nojento, começou a se formar no canto da boca dele, esticando o couro seco do rosto. “Bem feito”, ele murmurou, a voz rouca. “Mulher que se amasia com cangaceiro tem que ter fim de cadela no cio, uma praga a menos nesse mundo.” E então, o Coronel Horácio Bastos deu uma gargalhada, uma gargalhada seca que soou como pedra batendo em pedra. Ele riu da morte de uma mulher desconhecida, a companheira de um cangaceiro perdido, sem saber, sem nem desconfiar que o sangue que manchava o chão do Serrote Preto era o sangue da sua própria filha.

Enquanto a gargalhada do Coronel Horácio morria no alpendre da Fazenda Almas, a légua e meia dali, no Serrote Preto, o silêncio tinha o peso de uma tonelada de chumbo. O sol, que lá na Casa Grande era só calor, ali era um carrasco que cozinhava o sangue derramado no chão de pedra. Quinta-feira voltou. Ele tinha escapulido por um buraco na rocha que só ele conhecia, um rasgo estreito onde o homem grande não passava. Ouviu os tiros, ouviu a voz de Inácio gritando ordens e ouviu o silêncio medonho que veio depois. Ele esperou, o coração batendo na garganta como um tambor em dia de festa de morte. Esperou até o sol começar a descer e o bando do coronel se afastar cantando vantagem. Satisfeitos com o serviço sujo, ele rastejou de volta. O homem que tinha saído correndo feito gente voltava se arrastando feito bicho ferido. E o que ele viu, meu amigo, quebrou o espinhaço da alma dele. Rosália estava caída perto da pequena fogueira que eles tinham feito para assar um preá. O chumbo grosso do bacamarte de Inácio tinha acertado as costas dela. O vestido de chita barato, o único que ela tinha, estava vermelho colado na terra seca. Os olhos claros, aqueles que pareciam água de poço limpo, estavam abertos olhando para o céu de um jeito vago, como se perguntassem a Deus por tanta maldade. Quinta-feira, que um dia se chamou Josias, mas tinha perdido o nome de batismo junto com a esperança, caiu de joelhos. O grito não saiu. Foi um choro mudo, um soluço seco que rasgava por dentro. Ele não era um cangaceiro de briga, ele era um cangaceiro perdido, justamente por isso. Tinha fugido de um bando anos atrás porque não aguentava o cheiro de pólvora e sangue. Só queria um canto para viver com Rosália, longe do pai dela, longe do mundo. E o mundo tinha vindo buscá-la. Ele tocou o rosto dela, ainda morno. A Caatinga inteira parecia ter parado de respirar. Não tinha vento, não tinha canto de pássaro, só o zunido de uma mosca varejeira que já começava a rondar. Com a ponta da peixeira ele começou a cavar. A terra era um tijolo, era pedra, raiz seca e pó. Ele cavou a noite inteira. As unhas se foram, os dedos sangraram, mas a dor de fora não era nada perto da dor de dentro. O ódio é um alimento ruim, mas sustenta mais que farinha. E ali, naquela cova rasa, Quinta-feira se alimentou dele até fartar. Antes do sol raiar ele a enterrou. Cobriu com pedras pesadas para bicho nenhum mexer. Fez uma cruz com dois galhos secos de jurema. Amarrou com cipó. Ficou ali parado. O que faz um homem sozinho contra um coronel que tem mais capanga que dia no ano? O que faz um homem que só sabe plantar contra um homem que só sabe matar? Se fosse a polícia de Águas Belas, o delegado que comia na mão de Horácio, mandava prendê-lo ou matá-lo ali mesmo. Se ficasse quieto, morreria por dentro. Só existia uma justiça no Sertão que o Coronel Horácio temia. Não era a justiça dos homens de farda, nem a de Deus, que parecia estar de costas. Era a justiça do homem de óculos redondos, chapéu bordado e punhal de ouro. A justiça do Capitão Virgulino Ferreira da Silva.

Quinta-feira pegou o rifle velho, o punhado de cartuchos que sobrou e o bornal com meio queijo seco. E começou a andar. Ele não andava, ele caçava. Caçava o rastro do bando mais temido do Nordeste. Andou três dias e três noites, comendo nada, bebendo água de chique-chique. O corpo estava no limite, a febre da dor começando a tomar conta da razão. Ele sabia que procurar Lampião sem ser convidado era o mesmo que pedir para morrer, mas ele já estava morto por dentro. Na noite do terceiro dia, numa chapada perto de Salgueiro, ele desabou. Acordou com o frio do aço na garganta. “Abaixa o fuzil, cabra, senão tua alma vai fazer sombra antes do sol nascer!” Eram seis homens, seis sombras recortadas contra a lua minguada. O cheiro de couro curtido e cartucho enchia o ar. Eram os cabras de Lampião, figuras que pareciam saídas do inferno, com seus chapéus de couro cheios de medalhas e estrelas, cartucheiras cruzadas no peito. “Quem é tu, alma sebosa, que anda feito assombração no nosso rastro?” perguntou um que tinha o rosto marcado por um talho fundo. Era Corisco. Quinta-feira, a garganta seca como o chão, mal conseguiu falar. “Eu… eu preciso falar com o Capitão. É caso de morte.” Os cabras riram. “Todo mundo que topa com a gente tá em caso de morte, infeliz!” Mas uma voz mais calma, firme, cortou a noite. “Deixa o homem falar, Corisco. A voz dele não é de soldado nem de traidor. É voz de quem perdeu.” Da escuridão saiu ele, Virgulino, mais baixo do que as lendas diziam, mas com uma presença que fazia os outros homens parecerem meninos. Os óculos redondos brilhavam na luz da lua. O rifle estava descansado no braço, como se fosse parte do corpo. Lampião olhou Quinta-feira de cima a baixo, viu os dedos sangrando, os olhos fundos de quem chorou tudo que tinha. “Diga o que tu quer, cabra, e diga depressa que a gente tem caminho a andar.” “Capitão”, começou Quinta-feira, e a voz veio com a força do ódio. “Meu nome é Quinta-feira, e o Coronel Horácio Bastos de Águas Belas mandou seus capangas, mandou Inácio, matar minha mulher. Mataram ela desarmada, Capitão. Pelas costas.” O silêncio voltou. Lampião ajeitou os óculos. Ele coçou a barba rala. “Horácio Bastos”, repetiu Lampião, o nome soando como uma praga. “Sei quem é: o homem que vende água a preço de sangue, o carrasco de Águas Belas.” Lampião odiava duas coisas mais que o diabo: volante covarde e coronel tirano. A história de Quinta-feira tinha acertado em cheio nas duas coisas que moviam o Rei do Cangaço. Aquilo não era roubo, era injustiça. E se Lampião se via como algo, era como o braço torto da justiça divina. Ele olhou para Quinta-feira, aquele homem quebrado. “Matar mulher desarmada? Isso não é briga de homem, é serviço de cachorro sarnento.” Virgulino se virou para o bando. “Dê água e comida a esse homem. Ele vai andar com a gente.” Ele se voltou para Quinta-feira. “Os olhos por trás dos óculos pareciam furar a alma. Tu não vai ter tua mulher de volta, cabra, mas tu vai ter tua vingança. O Coronel Horácio riu da tua dor, pois ele ainda vai chorar sangue. Eu, Virgulino Ferreira, te dou minha palavra. A gente vai fazer uma visita a esse coronel, e ele vai aprender da minha mão o preço de uma vida inocente.” Quinta-feira, pela primeira vez em dias, sentiu algo além da dor. Era uma chama fria. O bando de Lampião, o flagelo do Sertão, tinha comprado a sua briga. A morte de Rosália não seria só mais uma morte, seria o estopim de uma guerra.

Andar com o bando de Lampião era como andar no meio de um enxame de vespas. A poeira que levantavam tinha cheiro de perigo. Quinta-feira, que tinha o passo macio do homem do mato, acostumado a caçar preá sem fazer barulho, agora marchava no ritmo de 40 homens armados até os dentes. Os primeiros dias foram um batismo de fogo e silêncio. Ele era o cangaceiro perdido no meio dos cabras mais temidos do Sertão. Não tinha a gargalhada fácil de Corisco, nem a fé cega de Dadá, nem a malícia de Gato. Era um fantasma de chapéu de couro. Sentava-se perto da fogueira, mas o frio de dentro não passava. Limpava seu rifle velho com uma devoção de quem reza. Cada bala que ele ajeitava na cartucheira era uma promessa feita no túmulo de Rosália. Lampião observava. O Capitão via tudo. Via que Quinta-feira não comia direito, que acordava no meio da noite com o nome de Rosália preso na garganta. E via, principalmente, que o ódio daquele homem era um ódio diferente. Não era o ódio quente que cega, era um ódio frio, paciente, que apurava a pontaria. “Esse aí”, disse Lampião uma noite para Maria Bonita, “não tá com a gente por gosto, tá com a gente por sina. É o tipo de homem mais perigoso que tem: o que já perdeu tudo.” O bando se movia como uma cobra na Caatinga, invisível. Evitavam as volantes, mas não evitavam o povo. E a cada vilarejo esquecido por Deus onde paravam, a história era a mesma. “Aqui, Capitão, a gente só não morreu de sede ainda porque o Coronel Horácio deixa a gente pegar o refugo da água do gado dele”, dizia um velho, a pele colada nos ossos. “Ele tomou o jumento de meu filho mais novo porque a gente não tinha como pagar a taxa da roça. E Inácio, o capanga dele, ainda riu e disse que o bicho ia servir para carregar pedra para a casa nova do patrão”, chorava uma mulher amparando três crianças de barriga inchada. O Coronel Horácio não era só um tirano, era uma praga, um câncer que comia a região. Lampião ouvia tudo, e a cada história o nó de sua própria raiva se apertava. Ele era o justiceiro, e ali estava a maior das injustiças. A vingança de Quinta-feira virou a vingança do bando.

Chegaram a duas léguas da Fazenda Almas. O lugar era um forte, cercado por um muro alto de pedra, com guaritas onde os capangas vigiavam dia e noite. Entrar ali atirando era suicídio. “A gente não vai entrar como leão”, disse Lampião, desenhando um mapa no chão de terra. “Vamos entrar como cupim, comendo por dentro.” Ele precisava de olhos lá dentro, e não podia ser Corisco, cujo rosto sarará era conhecido de longe. Não podia ser Lampião. Tinha que ser alguém que o coronel jamais esperaria. “Quinta-feira”, chamou o Capitão. “Tu é homem do mato. Sabe andar sem ser visto, sabe ouvir sem ser notado.” Lampião chamou outro cabra, um chamado Zé Baiano, mestre em disfarce. Em duas horas Quinta-feira não era mais um cangaceiro. Era um sertanejo comum fugindo da seca, a roupa rasgada, o rosto sujo de poeira, o rifle escondido num saco de estopa. “Vá até a fonte. É lá que o povo se junta, é lá que as línguas se soltam. Quero saber de tudo: quantos homens, onde Inácio dorme e que horas o Coronel reza”, ordenou Lampião. Quinta-feira foi. O coração batia descompassado. Não era medo de morrer, era ansiedade de pisar na terra do assassino de Rosália. Ele chegou à fonte, o único lugar onde a água ainda brotava, controlada por dois capangas armados. Fingiu-se de mendigo, pedindo um gole d’água pelo amor de Deus. Enquanto bebia a água barrenta que lhe deram com desprezo, ele ouviu. E o que ele ouviu gelou sua espinha mais do que qualquer tiro. Duas mulheres lavando roupa num córrego fétido que saía da fonte principal cochichavam. Elas não o notaram, achando que era só mais um coitado. “Viste o que deu, comadre, a desgraça que caiu sobre o Serrote Preto?”, disse uma, a voz baixa. “Vi, mulher, a pobre da Rosália. Tão boa menina, tão diferente do pai.” O coração de Quinta-feira parou. A outra mulher cuspiu no chão. “Pai? Aquela peste não é pai, é o cão em figura de gente! Soube que ele deu ordem para matar a própria filha se a achassem amasiada com o tal cangaceiro. E o pior”, continuou a primeira, esfregando a roupa com raiva, “é que Inácio matou a menina sem saber quem era. E quando voltou e contou para o Coronel que tinha matado a mulher do cangaceiro, o velho Horácio deu foi risada! Gargalhou, comadre! Riu da morte do próprio sangue e nem sabe disso!” Quinta-feira sentiu o mundo rodar. A tontura da fome se misturou com a vertigem daquela revelação. Rosália, a filha do monstro. O monstro que riu da morte dela. O ódio que ele sentia, que parecia já ter chegado no limite, achou um novo fundo, um poço de veneno puro. Agora ele entendia a fuga dela, entendia o horror que ela tinha do pai e entendia que sua vingança tinha acabado de mudar de tamanho. Não bastava matar o Coronel Horácio, isso era pouco, era um presente.

Ele voltou para o acampamento de Lampião antes da lua nascer. A cara dele era de quem tinha visto um demônio. Ele foi direto ao Capitão, que estava afiando o punhal à luz de uma lamparina. “Capitão, eu sei como quebrar aquele homem no meio. Sei de uma coisa que vale mais que mil balas. A mulher que Inácio matou, a minha Rosália”, Quinta-feira engoliu em seco, a voz saindo como um arranhão. “Ela era Rosália Bastos, a filha única do Coronel Horácio.” O silêncio que caiu no acampamento foi total. Até os grilos pareceram se calar. Os cabras que limpavam seus fuzis pararam, os olhos arregalados. Lampião ficou imóvel por um longo tempo. O brilho da lamparina dançava nos seus óculos. Ele não era um homem de emoções fáceis. Mas um lento sorriso, um sorriso que não tinha nada de alegria, começou a se formar no seu rosto. “Meu Deus do céu”, murmurou Corisco, tirando o chapéu. “O homem riu da morte da própria filha!” Virgulino se levantou. O justiceiro tinha acabado de receber sua arma mais poderosa. Não era o rifle nem o punhal, era a verdade. “Quinta-feira”, disse Lampião, a voz baixa, mas cortante como o punhal afiado. “Sua vingança não vai ser só morte, vai ser juízo final.” Ele se virou para o bando. “Preparem as armas. A gente não vai atacar hoje. A gente vai esperar a festa.” “Festa, Capitão?”, perguntou Zé Baiano. “Sim, soube que daqui a dois dias é o aniversário do coronel. Ele dá um banquete para todos os puxa-sacos da região. A casa vai estar cheia.” Lampião olhou na direção da Fazenda Almas e os olhos dele por trás das lentes pareciam queimar. “Ele vai ter a festa de aniversário que merece. E o presente… o presente vai ser eu que vou entregar. E vou entregar na frente de todo mundo. Vamos mostrar a esse Deus de Águas Belas que até Deus tem que prestar contas.”

Dois dias no Sertão podem durar uma eternidade ou passar num piscar de olhos. Para Quinta-feira foi um borrão de ansiedade e ódio afiado. Para Lampião foi o tempo de ajeitar o bote. E na Fazenda Almas foi dia de festa. O aniversário de 61 anos do Coronel Horácio Bastos era o evento da região. Desde cedo o cheiro de carne de sol na nata e de bode assado se espalhava pelo ar. Uma ofensa direta ao povo que roía couro de boi seco para enganar a fome. Na varanda uma sanfona de oito baixos chorava um forró animado, mas ninguém dançava de alegria. Dançavam de medo, para agradar o patrão. O delegado de Águas Belas estava lá, o copo de cachaça sempre cheio. O padre da paróquia, que fingia não ver a tirania, benzia a comida. Outros fazendeiros menores riam alto das piadas sem graça do coronel, cada um querendo mostrar mais lealdade que o outro. Horácio estava no trono, sentado na cabeceira da mesa comprida, a camisa de linho branco engomada, o orgulho inflando o peito. Ele se sentia Deus, dono da água, dono da vida e dono da morte. Inácio, o chefe dos capangas, estava em pé atrás dele, de rifle no braço, como um cão de guarda fiel. Outros jagunços bebiam no terreiro, os olhos atentos, mas relaxados pela cachaça da festa. O Coronel se levantou, o copo na mão, pedindo silêncio. A sanfona parou. “Amigos!”, bradou ele, a voz de trovão. “Brindo a este ano, um ano duro que separa os homens dos meninos. A seca veio, mas aqui na Almas a água corre. Os fracos se queixam, os fortes trabalham.” Ele olhou em volta, o sorriso de escárnio no rosto. “E as pragas… ah, as pragas a gente resolve com chumbo! Soube há uns dias que meus homens limparam mais um ninho de rato lá para o Serrote Preto. Uma vagabunda de cangaceiro a menos.” Os convidados riram, um coro de puxa-sacos. “Um brinde a mim!”, gritou Horácio, erguendo o copo. “E ao meu poder!” “Saúde, Coronel!”, gritaram todos.

No exato momento em que o copo dele tocou os lábios, uma voz cortou a noite. Uma voz que não era da festa, calma, arrastada e fria como o aço de um punhal. “Bela festa, Coronel. Mas o senhor esqueceu de convidar o principal.” A sanfona parou de vez, o músico congelou, o delegado engasgou com a cachaça, o padre começou a benzer a si mesmo. Da escuridão da sala de jantar, de dentro da casa, saíram as sombras. Não vieram pela porta da frente. Tinham entrado pelos fundos, como Lampião dissera, feito cupim. Primeiro Corisco, o “Diabo Loiro”, já com o cano do seu Mauser apontado para o peito do delegado. “Quieto, dotô. A lei agora é outra.” Depois Zé Baiano e Gato, que em dois pulos silenciosos desarmaram os jagunços mais próximos. E então ele, Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, entrou na luz da varanda, os óculos redondos brilhando, o chapéu bordado caído para a nuca, as cartucheiras cruzadas no peito faiscando com balas. Ele não parecia um homem, parecia o anjo da morte do Sertão. “Coronel Horácio Bastos”, disse Lampião, e a voz dele fez todo mundo baixar os olhos. “A festa tá boa, mas a comida tá com gosto de sangue.” Horácio, pálido pela primeira vez na vida, tentou manter a pose. “Cangaceiro maldito! Inácio, atira! Mata esse desgraçado!” Inácio tentou levantar o rifle, mas antes que pudesse mirar, uma figura saiu das sombras atrás dele. Era Quinta-feira. O cangaceiro perdido não parecia mais um mendigo. Os olhos dele eram dois buracos de ódio puro. Com a velocidade de uma cobra, ele bateu com o cano do seu rifle velho na nuca de Inácio. O capanga caiu de joelhos zonzo, e antes que pudesse reagir, Quinta-feira tinha o punhal cravado na mesa, prendendo a mão do jagunço na madeira. Um grito de dor de Inácio. Pânico. As mulheres gritaram. “Silêncio!”, gritou Lampião, e o mundo obedeceu. “Ninguém aqui vai morrer”, disse o Capitão, andando devagar até a mesa farta. Ele pegou um pedaço de bode assado com a mão. Olhou para os convidados um por um. “Vocês todos comendo da miséria do povo, bebendo a água que esse homem nega a crianças? Vão embora. Vão todos. A conversa agora é só com o dono da casa.” Foi uma debandada. O delegado foi o primeiro a correr, tropeçando nos próprios pés. O padre saiu rezando o ato de contrição. Em menos de um minuto a varanda estava vazia. Só restavam o Coronel Horácio, paralisado na cadeira, Inácio, gemendo preso à mesa pela mão, Lampião, Corisco e os outros cabras. E Quinta-feira, parado como uma estátua de vingança atrás do capanga.

Lampião se sentou na cadeira em frente a Horácio. Ele limpou o punhal na toalha de linho. “Então, Coronel, o senhor é o homem forte”, disse Lampião, a voz mansa, o que era mais assustador. “O homem que mata a vagabunda de cangaceiro.” Horácio, vendo seus homens rendidos e seu poder evaporado, tremeu. “O quê? O que vocês querem? Dinheiro? Podem levar! Levem tudo, o gado, mas me deixem em paz!” Lampião riu. Uma risada curta, sem graça. “Dinheiro? Eu não vim aqui como ladrão, Coronel. Eu vim como juiz. Eu vim aqui para lhe dar o seu presente de aniversário: a verdade.” Ele gesticulou com o punhal para Quinta-feira. “O senhor conhece este homem?” Horácio apertou os olhos, tentando enxergar o rosto marcado pela dor e pelo ódio. “É… é um dos seus cabras, um… um pedinte que andava por aqui.” “Não”, disse Quinta-feira, a voz embargada pela primeira vez. O ódio era tanto que fazia a voz falhar. “Eu sou o homem do Serrote Preto, o cangaceiro perdido.” Os olhos de Horácio se arregalaram. Ele se lembrou do relatório de Inácio. O Coronel, inacreditavelmente, bufou uma mistura de medo e arrogância. “Ah, sim”, zombou ele, tentando uma última cartada de poder. “O frouxo, o covarde que deixou a mulher para morrer e saiu correndo. Veio aqui ter o mesmo fim que a cadela!” Quinta-feira olhou para Lampião. Era a hora. Lampião se inclinou sobre a mesa. O sorriso tinha sumido. O rosto dele era uma máscara de justiça implacável. “Aí é que está o troco da vida, Coronel Horácio”, sussurrou Lampião. “O senhor riu demais aquele dia. Riu tanto que o diabo tapou seus olhos. O senhor sabe o nome da cadela que o seu cachorro Inácio matou pelas costas?” Horácio ficou em silêncio, a arrogância sumindo, dando lugar a uma confusão gelada. “Pois eu vou lhe dizer”, continuou Lampião. “O nome dela era Rosália. Rosália Bastos, a sua filha!” Se uma palavra pudesse ter o peso de uma bala de canhão, seria aquela. Rosália Bastos, a sua filha! O mundo do Coronel Horácio não desabou. Ele implodiu. O ar foi sugado de seus pulmões. O copo de cachaça escorregou da sua mão e estilhaçou no chão. Mas o barulho pareceu vir de muito longe. Aquele rosto sempre rígido, uma máscara de couro e desprezo, de repente virou papel molhado. “Mentira!”, ele sibilou, mas a palavra não tinha força. Era o sopro de um homem morto. “Isso é… é truque de bandido! Minha filha Rosália, ela… ela me abandonou!” “Não, Coronel”, interrompeu Quinta-feira, a voz dele tremendo com a fúria de mil infernos. Ele deu um passo à frente e pela primeira vez o Coronel viu o rosto dele direito. Não era um cabra, era um homem quebrado pelo luto. Quinta-feira meteu a mão no bornal sujo de terra e jogou sobre a mesa, em cima da poça de cachaça derramada, um objeto pequeno de prata escura. Era uma medalhinha de Nossa Senhora das Graças, gasta pelo tempo, presa num cordão de couro fino. “O Senhor deu isso a ela quando ela fez 15 anos”, disse Quinta-feira, a voz um trapo. “Ela me contou, disse que era a única coisa do Senhor que ela guardava sem sentir raiva. Estava no pescoço dela quando… quando esse seu cachorro…” Os olhos de Horácio se fixaram na medalha. Ele se lembrou: a festa, a missa, a menina de trança sorrindo para ele, antes que ele azedasse a alma dela com sua crueldade. A verdade caiu sobre ele não como uma revelação, mas como um muro de pedra. Ele olhou para Inácio, o capanga que ainda gemia preso à mesa pelo punhal. O Coronel não sentiu raiva do cangaceiro. Sentiu um nojo, um ódio vulcânico pelo homem que cumpriu sua ordem. O homem que matou sua filha. “Inácio?”, o Coronel engasgou. “Era… era ela?” Inácio, branco como cera, os dentes batendo de medo, olhou para Quinta-feira, para Lampião e para o patrão. Ele só conseguiu balançar a cabeça, confirmando: “Eu não sabia, Patrão. Eu juro por Deus. Era só a mulher do cangaceiro, como o Senhor mandou.” “Eu mandei!”, repetiu Horácio. E então ele se lembrou da própria gargalhada. Lembrou-se do “bem feito”, do “fim de cadela”. Ele riu. Ele, o pai, tinha rido da morte do próprio sangue. O Coronel dobrou sobre si mesmo. Um som gutural, um uivo de animal ferido, saiu do fundo do seu peito. Aquele homem de ferro que nunca derramou uma lágrima começou a chorar. Um choro feio, seco, convulsivo. Lampião observou a cena sem mexer um músculo. O rosto por trás dos óculos era o de um juiz satisfeito com a sentença. Quinta-feira, vendo o choro do homem que destruiu sua vida, não sentiu pena, sentiu mais nojo. Ele puxou o punhal que prendia a mão de Inácio da mesa. O capanga gritou, achando que era o fim, mas Quinta-feira jogou o punhal nos pés do Coronel. “Isso é seu”, disse Quinta-feira. “Faça o que quiser com seu cachorro. A minha vingança não é essa.” Horácio olhou para o punhal, depois para Inácio e depois para as próprias mãos, mas ele não conseguia se mexer. Estava paralisado pela dor. “Acabou, Coronel”, disse Lampião, se levantando. “O Senhor é um homem morto que ainda respira. Um pai que matou a própria filha e riu da desgraça.” Horácio ergueu o rosto banhado em lágrimas. “Minha filha… meu sangue… Rosália… o que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?” “Poupe suas lágrimas, Coronel”, disse Lampião, ajeitando o chapéu. A voz dele baixou, ficando ainda mais perigosa. “O senhor acha que a desgraça acabou? O senhor não sabe nem da metade do juízo.” Horácio parou de chorar, o rosto congelado numa máscara de pavor e confusão. “O senhor não matou só sua filha”, continuou Lampião, saboreando cada palavra. “O senhor mandou matar a mãe da sua neta.” O silêncio que se seguiu foi tão profundo que dava para ouvir o óleo da lamparina queimar. “Neta?”, sussurrou o Coronel. “Sim”, confirmou Quinta-feira. E pela primeira vez um traço de algo que não era ódio passou pelo seu rosto. “Rosália não morreu sozinha. Ela morreu para me dar tempo de fugir, para salvar a nossa filha. Uma menina, Coronel, nascida há seis meses no meio do mato. O nome dela é Esperança.”

O Coronel Horácio abriu a boca. Nenhum som saiu. O homem que tinha tudo, que vendia água, que mandava matar, descobriu num único instante que tinha um herdeiro. Um herdeiro que ele mesmo tinha condenado a ser órfão. A dor se misturou com um pingo doentio de esperança que foi imediatamente esmagado pela realidade. “Onde? Onde ela está?”, ele implorou, tentando se levantar, as pernas falhando. “Pelo amor de Deus, me diga! É meu sangue, eu cuido, eu dou tudo!” Lampião soltou uma gargalhada, mas não foi uma gargalhada de alegria, foi uma gargalhada de desprezo, a mesma gargalhada que o Coronel tinha dado. “O senhor”, disse Lampião, o desprezo pingando da voz, “o senhor não toca nela. O Senhor não chega nem perto. A menina está segura, longe daqui, com gente de bem, e vai ser criada por ele.” Ele apontou para Quinta-feira. “Vai ser criada pelo cangaceiro perdido que tem mais honra no dedo mindinho do que o Senhor na sua alma inteira.” O Capitão Virgulino se virou para a porta. “Vamos embora, cabras. O serviço aqui está feito.” Ele parou na soleira da porta e olhou uma última vez para o homem destruído na cadeira. “A sua sentença não é a morte, Coronel. Morte é descanso. A sua sentença é a vida. O seu dinheiro a gente leva para dividir com quem tem fome. A sua água…” Ele gritou para Corisco no terreiro. “Arrombe as comportas! Solta a água para o povo!” Um grito de alegria veio do bando lá fora, seguido pelo som de madeira quebrando e o barulho bendito de água correndo livre. “O Senhor vai ficar aqui”, concluiu Lampião. “Nessa casa vazia, sem poder, sem dinheiro e sem filha. Vai acordar todo dia lembrando que sua neta está viva, crescendo longe do Senhor, e que ela vai aprender a cuspir no chão quando ouvir seu nome. Viva com isso, Coronel Horácio Bastos.” O bando de Lampião desapareceu na noite, tão rápido quanto surgiu. Levaram os cavalos, o dinheiro, as armas dos capangas e levaram Quinta-feira, que agora não era mais um perdido, era um pai com um motivo para viver. Na varanda da Fazenda Almas ficou só o Coronel Horácio. Ouviu-se ao longe o povo do vilarejo gritando “milagre”, correndo com baldes para a fonte que agora era de todos. Horácio Bastos, o tirano de Águas Belas, ficou sozinho na sua festa de aniversário, olhando para a medalhinha de prata molhada de cachaça. O homem que riu da própria tragédia agora estava condenado a vivê-la acordado todos os dias até o fim. Essa foi a justiça de Lampião.

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