A noite de Natal de 1873 deveria ser de celebração na fazenda Santa Cruz, no interior de Pernambuco. Mas o que aconteceu naquela véspera sagrada se tornaria um dos crimes mais chocantes do Brasil imperial. Esta é a história real de como o ciúme, a escravidão e a loucura se entrelaçaram num banquete de sangue que deixou oito corpos sobre a mesa da ceia.
Se você gosta de histórias reais que mostram o lado mais sombrio da natureza humana, inscreva-se no canal e ative o sininho para não perder nenhum episódio desta série. O calor sufocante de dezembro castigava o Engenho Santa Cruz desde o amanhecer. A fazenda de Joaquim Antônio da Silva se estendia por centenas de hectares de canaviais que ondulavam sob o sol impiedoso do sertão pernambucano.
Aos 43 anos, Joaquim era conhecido na região como um homem de posses, dono de terras férteis e de mais de 60 escravizados que trabalhavam do nascer ao pôr do sol nas plantações. Era respeitado pelos vizinhos, temido pelos seus escravos e considerado um bom provedor pela família. A casa grande, construída em Taipa e Cau, erguia-se imponente no alto de uma colina.
Suas paredes caiadas refletiam a luz intensa da tarde e as janelas de madeira pintadas de azul permaneciam fechadas durante o dia para manter o frescor no interior. No alpendre largo, cadeiras de balanço de palinha aguardavam cair da tarde, quando o senhor costumava sentar-se para observar seus domínios enquanto fumava cachimbo e bebia cachaça.
A propriedade era uma das mais prósperas da região, produzindo açúcar e rapadura que eram vendidos até em Recife. Naquela manhã de véspera de Natal, porém, Joaquim Ma havia saído do quarto. Sua esposa, Maria das Dores, uma mulher de 38 anos com rosto marcado por seis partos e pelos anos de sol do Nordeste, comandava os preparativos da ceia com mãos firmes e voz decidida. Ela era filha de um comerciante português estabelecido em Recife e havia trazido para o casamento um bom dote que ajudou Joaquim a expandir suas terras.
Era mulher de personalidade forte, acostumada a administrar a casa grande enquanto marido cuidava das lavouras e da produção. Os seis filhos do casal corriam pela casa grande naquela manhã quente. Antônio, o mais velho de 15 anos, já acompanhava o pai nas rondas pela propriedade e aprendia os negócios da família.
Alto e de ombros largos, começava a mostrar a força que o transformaria num homem robusto como o pai. As meninas, Isabel, de 13 anos, com seus cabelos compridos, sempre trançados, Carolina, de 11 anos, conhecida por sua risada contagiante, e Joana, de 9 anos, com olhos curiosos que tudo observavam, ajudavam a mãe na preparação da festa.
Os dois caçulas, Pedro de 7 anos, que adorava brincar com os cachorros da fazenda, e o pequeno José de apenas 4 anos, ainda aprendendo a falar direito, brincavam no terreiro sob olhar atento das mucamas. E era justamente uma dessas mucamas que havia se tornado o centro de uma obsessão silenciosa e destrutiva. Seu nome era Benedita, tinha 19 anos e havia nascido na própria fazenda, filha de uma escravizada chamada Rosa, que morrera de febre amarela poucos anos antes.

Benedita tinha pele cor de canela, olhos grandes e expressivos de um castanho profundo, cabelos crespos que ela mantinha presos no lenço colorido e um corpo esbelto que chamava atenção, apesar dos vestidos simples de chita desbotada que usava. era considerada uma das mais bonitas entre as escravizadas da região, o que havia se tornado mais maldição que bênção.
Joaquim começar a notar Benedita de forma diferente havia cerca de 2 anos, quando ela tinha apenas 17. No início, eram apenas olhares furtivos quando ela passava carregando trouxas de roupa molhada para estender no varal ou baldes de água tirada do poço. Depois vieram as conversas forçadas, os pretextos para chamá-la sozinha até a biblioteca, onde guardava seus livros de contabilidade ou até o depósito de grãos nos fundos da propriedade.
Benedita, presa na condição de propriedade sem vontade própria, não tinha escolha se não obedecer quando seu senhor a convocava. Resistir significaria açoite, prisão no tronco ou coisa pior. O que começou como olhares tornou-se algo mais sombrio e obsessivo. Joaquim desenvolvia uma fixação doentia por aquela jovem que poderia ser sua filha.
Via nela não uma pessoa com sonhos e sentimentos, mas uma posse que lhe pertencia completamente, corpo e alma. E quando Benedita tentava manter distância, evitando ficar sozinha com ele, ou demonstrava desconforto e medo em sua presença, o fazendeiro interpretava tudo como rejeição insuportável. Como usava aquela escrava, aquela sua propriedade, lhe negar algo. Maria das Dores não era cega nem ingênua.
Havia percebido as mudanças no comportamento do marido ao longo daqueles do anos. Os olhares prolongados demais na direção de Benedita, as ausências súbitas quando a Mukam estava trabalhando em determinado cômodo, as ordens para que ela especificamente servisse à mesa quando havia visitas. Mas Maria seguia o código silencioso das esposas da época, fingindo não ver o que era óbvio demais para ignorar.
Afinal, o abuso de escravizadas pelos senhores era prática tão comum e naturalizada no Brasil imperial que raramente se comentava abertamente, como se fosse direito natural do homem branco dispor do corpo das mulheres negras sob seu domínio. Nas noites em que não conseguia dormir, Maria das Dores se perguntava até onde ia aquela obsessão do marido.
Temia que Benedita engravidasse e uma criança bastarda aparecesse na fazenda, como acontecia em tantas outras propriedades. pensava em vender a mucama para outro senhor, afastá-la dali, mas sabia que Joaquim jamais permitiria.
A presença de Benedita havia se tornado necessidade doentia para ele, como a cachaça que bebia cada vez mais. Naquela manhã de véspera de Natal, enquanto Maria das Dores supervisionava a preparação do peru recheado e do arroz de festa na cozinha enfumaçada, onde o calor era insuportável, Joaquim permanecia trancado no escritório com a porta fechada à chave.
sobre a mesa de Mog no português, uma garrafa de cachaça já pela metade antes mesmo do meio-dia e papéis de contabilidade espalhados que ele nem sequer olhava. Seu pensamento estava completamente consumido por algo que havia testemunhado na noite anterior, algo que não conseguia tirar da cabeça.
Vira a Benedita conversando com Tomás, um escravo jovem de 20 e poucos anos, forte, musculoso, de tanto trabalhar na moenda da cana. Eram apenas palavras trocadas ao pé do poço no final do dia. Um momento inocente de conversa entre duas pessoas jovens da mesma condição que compartilhavam o peso da escravidão. Tomás fizeram algum comentário que arrancou um sorriso de Benedita, um sorriso genuíno que iluminou seu rosto por alguns segundos.
Mas para Joaquim, escondido atrás da janela do escritório, observando aquela cena, aquilo havia se transformado em prova irrefutável de traição insuportável. Como usava aquela mucama sorrir para outro homem quando ele, o senhor absoluto da fazenda, a desejava com intensidade que o consumia? A paranoia havia se instalado na mente do fazendeiro como erva daninha que sufoca toda a plantação saudável.
Cada sorriso de Benedita, dirigido a outra pessoa era interpretado como afronta pessoal. Cada momento em que ela não estava sob seu olhar vigilante, alimentava fantasias torturantes de infidelidade e rejeição. Joaquim não conseguia ver a loucura de sentir ciúmes de uma mulher que jamais fora sua por vontade própria, que na verdade o temia e evitava sempre que possível.
A obsessão havia corroído sua capacidade de raciocinar. Durante toda aquela manhã interminável, enquanto a casa se enchia dos aromas de canela e cravo da Índia. De carne assada e doces de cocô ainda quentes, Joaquim bebia e ruminava sua raiva crescente. Olhava pela janela do escritório e via Maria das Dores organizando a mesa da ceia com capricho, ajeitando cada detalhe.
Via seus filhos correndo pelo terreiro, rindo alto naquela inocência própria da infância, e sentia apenas um vazio crescente tomando conta do peito, como se aquela família que construíra ao longo de quase 20 anos de casamento fosse um obstáculo entre ele e o objeto de sua obsessão doentia.
Ao meio-dia, quando o sol estava no ponto mais alto, tornando o ar denso pesado como chumbo derretido, Joaquim finalmente saiu do escritório. Seu andar era cambaleante, não apenas pela bebida, mas também pelo peso dos pensamentos sombrios. Os olhos estavam injetados de sangue pela cachaça e pela falta de sono das últimas noites.
Maria das Dores olhou para o marido com preocupação crescente no rosto, sentindo um aperto no peito, mas não disse nada. Aprenderá ao longo dos 19 anos de casamento que questionar Joaquim quando ele estava naquele estado de embriaguez e mau humor só piorava muito as coisas. Era melhor deixar passar, esperar que o momento passasse.
O fazendeiro atravessou o corredor largo que levava até a cozinha, seus passos ecoando no açoalho de madeira. Podia ouvir as vozes das escravizadas conversando baixo enquanto preparavam os últimos pratos da ceia. chegou até a porta da cozinha e parou ali, apoiado no batente, apenas observando. Benedita estava junto ao grande fogão de lenha, mexendo uma panela pesada de feijão verde com uma colher de pau. O suor escorria por seu rosto e pescoço por causa do calor intenso que emanava do fogo.
Quando percebeu a presença do Senhor na porta, seu corpo inteiro se enrijeceu como se tivesse levado um choque. Conhecia bem aquele olhar fixo e vazio, aquela forma pesada de respirar. sabia por experiência própria, que nada de bom viria dali.
As outras mucamas, que trabalhavam na cozinha baixaram os olhos imediatamente e continuaram suas tarefas em silêncio tenso e carregado. O único som era o crepitar da lenha queimando, o borbulhar das panelas no fogo e, ao longe o canto de algum pássaro que não sabia da tragédia que se aproximava. Joaquim ficou ali parado por longos minutos que pareceram eternos, apenas observando Benedita com aquela intensidade perturbadora.
Então, sem dizer uma única palavra, deu meia volta e saiu, deixando atrás de si um rastro de tensão palpável que fez todas as mulheres na cozinha respirarem aliviadas. Benedita deixou escapar um suspiro trêmulo. Suas mãos tremiam tanto que quase deixou cair a colher de pau. Sentia o coração batendo tão forte que parecia querer saltar pela boca.
Anzinga, uma escravizada mais velha que conhecia Benedita desde que nascerá, aproximou-se e tocou seu ombro num gesto de consolo silencioso. Não precisavam trocar palavras para entender o medo que todas sentiam. Sabiam que algo estava errado, que havia uma tempestade se formando.
A tarde transcorreu numa quietude antinatural que deixava a todos desconfortáveis. Os preparativos da ceia continuavam porque a tradição exigia, mas havia algo diferente no ar que fazia até as crianças mais agitadas ficarem mais contidas e silenciosas. Antônio, o filho mais velho, notou o comportamento estranho do pai e tentou puxar conversa sobre a colheita da próxima semana, mas Joaquinho o ignorou completamente, como se o rapaz fosse invisível ou transparente.
O menino ficou confuso e um pouco magoado com aquela indiferença tão fora do comum. Joaquim vagou pela propriedade durante a tarde como um fantasma. Passou pelos canaviais, onde os escravizados ainda trabalhavam mesmo véspera de Natal, porque a cana não espera e o trabalho nunca para completamente numa fazenda. Caminhou até o engenho onde a moenda estava parada para a celebração do dia seguinte.
ficou ali parado por muito tempo, olhando para as engrenagens de madeiras silenciosas, para os tachos onde a garapa fervia transformando-se em melado. Pensava no que vira na noite anterior, naquele sorriso de Benedita para Tomás e sentia a raiva crescer como febre que não baixa.
Tomás trabalhava justamente ali no engenho, sendo responsável por alimentar a moenda e cuidar para que tudo funcionasse perfeitamente. era um homem respeitado entre os outros escravizados por sua força e também por sua bondade, sempre disposto a ajudar os mais fracos. Naquele momento, estava organizando as ferramentas para o dia seguinte, quando percebeu a presença do Senhor.
Cumprimentou respeitosamente como era esperado, mas Joaquim apenas o encarou com olhar carregado de ódio inexplicável. Tomás sentiu um calafrio subir pela espinha sem entender o motivo daquela hostilidade repentina. O fazendeiro ficou tentado a fazer algo ali mesmo, a punir Tomás por ter ousado fazer Benedita sorrir, mas algum resquício de razão, ainda funcionando, impediu.
Virou as costas e voltou para casa grande, os punhos cerrados com tanta força que as unhas cravavam nas palmas das mãos, deixando marcas de lua crescente. A cada passo que dava, sua mente trabalhava criando cenários cada vez mais distorcidos. Via Benedita e Tomás juntos de formas que provavelmente nunca aconteceram. Imaginava traições e rejeições, onde só havia interações comuns entre pessoas vivendo sob o mesmo jo.
Quando o sino da pequena capela da fazenda anunciou 5 horas da tarde com suas badaladas metálicas que coaram pela propriedade, Maria das Dores reuniu a família na sala principal. Era hora de todos se prepararem para a ceia de Natal, que seria servida pontualmente às 7 da noite, conforme a tradição mantida há anos.
As meninas foram para seus quartos trocar de roupa, colocando seus melhores vestidos de chita engomada com babados nas barras que elas mesmas haviam ajudado a costurar. Os meninos vestiram camisas limpas e calças de brin, os cabelos penteados com capricho. Maria das Dores aproveitou aquele momento para verificar mais uma vez cada detalhe da mesa.
A toalha de linho branco importada de Portugal estava perfeitamente lisa, sem uma única dobra. Os pratos de porcelana com detalhes azuis que pertenciam a sua avó brilhavam sob a luz que começava a ficar dourada. Os talheres de pratados da família estavam todos polidos até reluzir. No centro da mesa, um arranjo de flores do campo e ramos de pitanga dava o toque final de beleza.
Tudo estava perfeito, como sempre estiver em todas as ceias de Natal desde que se casara. Mas enquanto ajeitava os guardanapos dobrados ao lado de cada prato, Maria das Dores sentia uma angústia crescente apertar seu peito. Algo estava errado, profundamente errado.
O silêncio pesado que tomara conta da casa, o comportamento estranho de Joaquim, aquela sensação de que o ar estava carregado demais. Pensou em adiar a ceia, inventar alguma desculpa, mas como explicar isso para as crianças que esperavam ansiosas? Como justificar quebrar uma tradição tão importante? sacudiu a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos ruins e se concentrou nos preparativos finais. Joaquim subiu até o quarto que dividia com a esposa, sem dizer palavra para ninguém.
Maria das Dores o seguiu com os olhos até ele desaparecer no corredor, um aperto crescente e doloroso no peito que ela não conseguia explicar. Havia algo diferente naquele silêncio do marido, algo que ia muito além da bebedeira ou do mau humor costumeiro que ela já conhecia tão bem.
Era como se uma sombra muito mais escura tivesse tomado conta dele, apagando qualquer centelha de humanidade que ainda existisse por trás daqueles olhos vazios. No quarto, com suas paredes caiadas e móveis de jacarandá, Joaquim ficou parado por alguns minutos, apenas olhando pela janela para os canaviais que se estendiam até onde a vista alcançava. Aquelas terras eram suas, conquistadas com trabalho duro ao longo de décadas.
Aquela casa, aquela família, tudo aquilo era seu. E mesmo assim sentia-se vazio, consumido por uma obsessão que não conseguia controlar ou entender completamente. Abriu o grande armário de madeira de lei, onde guardava suas armas de caça. Passou a mão devagar pelo rifle que usava para caçar nas matas próximas, pela espingarda que servia para espantar onças que às vezes atacavam o gado.
Mas seus dedos pararam sobre algo diferente, algo que não era para caça de animais. Uma faca de cabo de osso com detalhes em prata, com lâmina longa de mais de 30 cm e afiada como navalha. Era a faca que ele próprio mantinha sempre no ponto perfeito de corte, a mesma que usava para sangrar os porcos no tempo do abate.
Pegou a arma branca com mão firme e sentiu o peso dela na palma. A lâmina refletia a luz alaranjada do final de tarde que entrava pela janela. ficou ali por longos minutos apenas observando aquele objeto como se estivesse hipnotizado por ele. Então, com movimentos lentos e deliberados, escondeu a faca sob o palitó de linho que usaria para a ceia. Ajeitou o tecido para que nada ficasse visível, nenhum volume suspeito que pudesse alertar alguém.
Olhou-se no espelho de moldura dourada que Maria das Dores tanto estimava e que fora presente de casamento de seu pai. O homem que o encarava de volta tinha olhos de estranho, completamente vazios, de qualquer luz ou emoção reconhecível. Não havia ali o pai amoroso que brincava com os filhos pequenos, nem o marido que um dia cortejara Maria das dores com flores e promessas.
Naquele momento, alguma parte essencial de Joaquim Antônio da Silva já havia morrido por dentro, dando lugar a algo monstruoso que se alimentava apenas de ciúme e loucura destrutiva. Lá embaixo, na sala de jantar, a mesa da ceia estava posta com todo o capricho que a tradição exigia. A toalha de linho branco cobria a longa mesa de madeira escura capaz de acomodar até 12 pessoas confortavelmente.
Os pratos de porcelana trazidos de Portugal por um antepassado de Maria das Dores brilhavam a luz suave das velas que já começavam a ser acesas uma por uma. No centro da mesa, o candelabro de prata de três braços, que era herança de família e só saía do armário em ocasiões muito especiais, como aquela.
Maria das Dores havia caprichado na decoração, como sempre fazia, colocando ramos frescos de pitanga que ela mesma colhera no quintal pela manhã, intercalados com flores amarelas e brancas do campo que as meninas trouxeram. O peru, assado e dourado ocupava o lugar de honra no centro da mesa, sua pele crocante brilhando sob a luz das velas, exalando um aroma delicioso que se espalhava por toda a casa.
Ao redor dele, travessas de barro e porcelana transbordavam de comida preparada com cuidado ao longo de todo o dia. Havia o arroz branco soltinho, temperado com açafrão trazido de Recife, o feijão verde cozido no ponto exato com pedaços generosos de carne de sol que derretia na boca, a farofa amarela preparada com ovos e miúdos do próprio Peru, a salada de alface e tomate temperada com azeite português e vinagre.
Tinha também o pirão grosso feito com o caldo do peru, a couve refogada com alho e bacon e bandejas de pão caseiro ainda morno que Inzinga havia acabado de tirar do forno de barro. Para sobremesa, esperavam na copa os doces tradicionais: cocada branca e preta, bolo de milho verde ainda fumegante, manjar branco com calda de ameixa e doce de cocô em calda, que era especialidade da casa.
As crianças já estavam sentadas em seus lugares habituais, vestidas com suas melhores roupas e com os rostos limpos reluzentes. Os olhos brilhavam de expectativa e fome, aquela ansiedade própria da infância em noites especiais. Antônio ocupava seu lugar na cabeceira oposta ao lugar tradicional do pai, sentado ereto, tentando parecer mais adulto e responsável como convinha ao filho mais velho.
As três meninas estavam de um lado da mesa, Isabel com seu vestido azul claro, Carolina com vestido rosa, que era sua cor favorita. e Joana com laço grande no cabelo que ela ajeitava toda hora. Do outro lado, os dois meninos mais novos conversavam baixinho entre si. Pedro contando ao pequeno José sobre os presentes que esperava ganhar no dia seguinte. Conversavam animado sobre tudo e nada.
Aquela tagarelice alegre de crianças que ainda não conhecem as crueldades do mundo. Antônio falava sobre o cavalo novo que o pai havia prometido quando completasse 16 anos. Isabel comentava sobre o vestido que queria costurar para a festa de São João. Carolina imitava os cachorros da fazenda, fazendo todos rirem.
Joana perguntava quando poderiam comer os doces. Pedro queria saber se no dia seguinte poderiam soltar rojões. O pequeno José apenas sorria e batia palmas, feliz por estar ali cercado pela família que amava. Não sabiam, não podiam nem imaginar que aquela seria a última conversa de suas vidas, que em poucos minutos tudo aquilo, toda aquela alegria inocente e expectativa feliz, seria destroçada da forma mais brutal possível.
Não sabiam que estavam vivendo os últimos momentos de suas existências curtas demais, que jamais cresceriam, jamais realizariam os sonhos que alimentavam naquele instante. Maria das Dores entrou na sala carregando mais uma travessa, desta vez com batatas assadas douradas e perfumadas com alecrim. Colocou no único espaço que ainda restava na mesa já farta.
Olhou ao redor com satisfação, misturada a preocupação. Tudo estava perfeito visualmente, mas aquela sensação ruim não a abandonava. Onde estava Joaquim? Por que demorava tanto? Olhou para a escada, esperando vê-lo descer, mas nada. Chamou Benedita com um gesto. Amucama aproximou-se com passos rápidos, mantendo os olhos baixos, como era esperado das escravizadas.
Maria das Dores pediu que fosse buscar o Senhor, avisar que a seia estava pronta e a família esperava. Benedita sentiu o estômago revirar com aquela ordem. A última coisa que queria era subir até o quarto de Joaquim, mas não tinha escolha. fez uma reverência e subiu as escadas com pernas que pareciam de chumbo. Bateu suavemente na porta do quarto.
Esperou alguns segundos em silêncio pesado. Bateu novamente, um pouco mais forte. Finalmente ouviu a voz de Joaquim mandando entrar. Abriu a porta apenas o suficiente para falar através da fresta, mantendo-se no corredor. Disse com voz trêmula que a senhora mandara avisar que a seia estava servida e todos esperavam. Joaquim respondeu que já descia, mas havia algo na voz dele que fez Benedita descer as escadas correndo, o coração disparado de um medo que não conseguia nomear, mas que era viseral e profundo. Voltou para a cozinha, onde as outras mucamas
aguardavam, todas tensas e alertas. Nzinga olhou para ela com preocupação, vendo terror estampado no rosto da menina. Segurou suas mãos geladas e sussurrou uma reza baixinha pedindo proteção. Benedita encostou-se na parede, sentindo as pernas fraquejarem. Suar frio escorrendo pelas costas, apesar do calor que ainda fazia mesmo com a noite caindo.
Maria das Dores acendeu as últimas velas do candelabro de prata, aquele que só era usado nas ocasiões mais importantes. As chamas dançavam suavemente, lançando sombras móveis pelas paredes caiadas da sala. A luz dourada e trêmula davam ar quase sagrado aquele momento, como se estivesse num altar em vez de numa mesa de jantar comum.
Ela olhou para seus seis filhos com ternura profunda, com aquele amor de mãe que não precisa de palavras para se expressar e que é talvez o sentimento mais puro que existe no mundo. Se soubesse, se pudesse ter uma visão do horror que estava prestes a se desenrolar, teria agarrado cada um deles naquele instante.
Teria fugido daquela casa correndo, carregando os menores no colo e puxando os maiores pela mão, corrido para bem longe daquelas terras, daquele homem que já não reconhecia mais como rapaz de quem se apaixonara há quase 20 anos atrás. teria abandonado tudo, a casa, as terras, as posses, tudo em troca da segurança de seus filhos, mas não sabia, não podia saber.
Então, apenas sorriu para eles com aquele sorriso cansado de mãe que trabalhou o dia inteiro, mas que encontra alegria em ver a família reunida. Joaquim apareceu no alto da escada, começou a descer com passos medidos, lentos e deliberados, como se cada degrau exigisse esforço consciente. O palitó de linho que vestia escondia perfeitamente a lâmina que carregava sob o tecido.
Seu rosto estava completamente inexpressivo, como uma máscara de cera sem vida, sem emoção alguma que pudesse ser identificada. Os olhos vazios não refletiam a luz das velas. Pareciam dois poços fundos escuros, levando para lugar nenhum. Entrou na sala de jantar e todos ficaram em silêncio instantaneamente, como se uma nuvem fria tivesse passado sobre a mesa.
As crianças interromperam suas conversas animadas no meio das frases. Esperavam que o pai se sentasse para que finalmente pudessem começar a ceia que tanto aguardavam. Joaquim caminhou lentamente até a cabeceira da mesa, puxou a cadeira pesada de madeira escura e sentou-se com movimentos automáticos.
Maria das Dores ocupou seu lugar à direita do marido, como sempre fizera em todos os jantares ao longo dos anos de casamento. Olhou para ele tentando decifrar o que se passava naquela cabeça, tentando encontrar algum sinal do homem que conhecera, mas encontrou apenas um vazio perturbador e assustador.
Os olhos de Joaquim não piscavam, apenas fixavam algum ponto indefinido no espaço, como se estivesse vendo algo que mais ninguém podia ver. Ainda assim, Maria das Dores tentou manter a normalidade. Era véspera de Natal. A família estava reunida. A tradição precisava ser mantida. Fez o sinal da cruz com movimentos reverentes, tocando a testa, o peito e cada ombro. Juntou as mãos e começou a rezar a oração de agradecimento pela ceia convos suave e cheia de fé.
Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome. As crianças acompanhavam a reza com olhos fechados e mãos postas sobre a mesa, repetindo as palavras familiares que haviam aprendido desde pequenos. Vem a nós o vosso reino.
A voz de Maria das Dores ecoava naquela sala, onde em poucos minutos se consumaria uma tragédia sem paralelo na história da região. Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. Joaquim permanecia em silêncio absoluto, os olhos fixos na chama da vela que queimava bem diante dele, fascinado pelo movimento hipnótico do fogo. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. As palavras da oração enchiam o ar carregado de tensão que ninguém além de Maria das Dores parecia sentir completamente.
Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Mas não haveria perdão naquela noite amaldiçoada, apenas sangue, morte e destruição de tudo que aquela família representava. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Maria das Dores terminou a reza e abriu os olhos lentamente. Foi fazer o sinal da cruz novamente quando seu olhar encontrou do marido.
E naquele instante, naquele único segundo de conexão visual, ela soube. Não sabia exatamente o quê, mas soube com absoluta certeza que algo terrível estava prestes a acontecer. Seu corpo inteiro gelou de repente, apesar do calor. O coração disparou no peito, batendo tão forte que ela podia ouvir o sangue pulsando nos ouvidos.
abriu a boca para dizer algo. Qualquer coisa, gritar talvez. Mas não houve tempo para palavras. Joaquim levantou-se da cadeira com movimento súbito e violento que fez a madeira render alto. A faca surgiu de sob o palitó no movimento fluido e praticado, a lâmina longa refletindo a luz dourada das velas de forma quase hipnótica.
Maria das Dores ainda tentou se levantar num reflexo desesperado de fugir ou proteger os filhos que gritavam de susto. Mas já era tarde demais. A lâmina desceu em arco mortal, encontrando a garganta dela com precisão terrível. O corte foi profundo e certeiro, abrindo a carne num talho largo que cortou a traqueia e as artérias carótidas de uma só vez.
O sangue jorrou sobre a toalha branca imaculada em jatos rítmicos, acompanhando as batidas do coração ainda vivo, manchando o linho com vermelho escuro que se espalhava como tinta derramada. Maria das Dores levou as mãos ao pescoço num gesto inútil de tentar conter a vida que escapava entre seus dedos.
Os olhos arregalados de horror e incompreensão absoluta encaravam o marido como se perguntassem porquê, por aquilo. Cambaleou para trás, bateu nas costas da cadeira e caiu meio sentada, meio deslizando, o corpo começando a sacudir em espasmos involuntários, enquanto a vida escapava rapidamente. Suas últimas palavras foram um sussurro inaudível. Talvez os nomes de seus filhos que amava mais que a própria vida.
Talvez uma prece final pedindo que Deus os protegesse. As crianças explodiram em gritos de terror absoluto que ecoaram pela casa inteira. O horror do que presenciavam era grande demais para suas mentes inocentes processarem. Antônio se levantou de um salto, derrubando a cadeira para trás, num reflexo de tentar proteger os irmãos mais novos, colocando-se entre eles e aquela ameaça que não conseguia reconhecer como sendo próprio pai.
Mas Joaquim já estava sobre ele com velocidade surpreendente para um homem que bebera tanto. O rapaz de 15 anos lutou com toda a força que tinha, tentou segurar o braço do pai que empunhava a faca. Gritou pedindo que parasse, que acordasse daquela loucura. Seus dedos conseguiram agarrar o pulso de Joaquim por alguns segundos preciosos, mas a força da demência é maior que a força da razão e do amor.
A faca se libertou do aperto fraco de Antônio e mergulhou fundo no peito do rapaz, atravessando o osso externo com força brutal e perfurando o coração pulsante. Antônio sentiu uma dor aguda e depois uma frieza estranha se espalhando pelo corpo. Seus olhos encontraram os do pai por um último segundo, ainda buscando compreensão que não viria jamais.
Então, suas pernas cederam e ele desabou no chão de madeira, o sangue encharcando a camisa branca que havia vestido com tanto capricho poucas horas antes. Isabel e Carolina tentaram correr em pânico absoluto, gritando por socorro que não viria de lugar algum, mas estavam presas entre a mesa pesada e a parede sem saída possível.
A sala de jantar, que sempre fora lugar de conforto e união familiar, havia se transformado numa armadilha mortal. As duas meninas se abraçaram chorando desesperadas. Isabel tentando proteger a irmã mais nova com o próprio corpo. Joaquinhas alcançou em três passadas largas, agarrou Isabel pelos cabelos longos e puxou com força, arrancando a dos braços de Carolina. A menina de 13 anos tentou se defender, arranhando o rosto do pai e chutando, mas era como tentar deter uma tempestade com as mãos.
A faca subiu e desceu. Subiu e desceu num ritual macabro executado por mãos que já não pareciam humanas, que se moviam com a eficiência mecânica de um açueiro profissional. Carolina tentou aproveitar aquele momento para correr, mas seus pés descalços escorregaram numa poça de sangue que já cobria o chão de madeira.
caiu de joelho, soltando um grito agudo de terror. Joaquim se virou para ela com movimentos lentos agora, sabendo que não havia pressa. A menina de 11 anos olhou para o pai com lágrimas escorrendo pelo rosto, a boca aberta em súplica muda. Estendia as mãozinhas pequenas, como se ainda acreditasse que aquilo podia parar, que o pai voltaria a si e a abraçaria, dizendo que tudo era um pesadelo. Mas a lâmina não conhecia Piedade.
Joana, a menina de 9 anos com seus olhos curiosos que sempre tudo observavam, conseguiu se esconder debaixo da mesa num reflexo de sobrevivência puro. Por alguns segundos eternos, permaneceu ali congelada pelo horror, vendo os pés descalços da mãe imóveis estendidos no chão, vendo sangue escorrer abundante, formando poças vermelhas escuras que se espalhavam pelo açoalho de madeira, alcançando suas próprias mãos.
Podia ouvir os gritos dos irmãos sendo cortados abruptamente, um por um. Podia ouvir a respiração pesada do pai, que não era mais pai. tentou se fazer invisível, prender a respiração, desaparecer completamente, mas Joaquim sabia exatamente onde ela estava. Havia crescido brincando de esconde esconde com todos aqueles filhos. Conhecia cada esconderijo, cada canto da casa.
Abaixou-se lentamente, os joelhos estalando com movimento e olhou para baixo da mesa. Seus olhos encontraram os de Joana cheios de lágrimas e terror absoluto. Estendeu a mão manchada de sangue e puxou a menina pelos cabelos. arrastando-a para fora do esconderijo inútil enquanto ela se debatia e gritava.
Os gritos de Joana foram os mais lancinantes de todos, agudos e desesperados, de uma forma que rasgava a alma de qualquer um que ouvisse. Ela implorava com palavras entrecortadas pelo choro. Chamava por papai com aquela voz fina de criança que ainda acreditava que apelos à paternidade poderiam despertar alguma humanidade restante.
Pedia clemência que não existia mais naquele homem completamente tomado pela loucura. Mas a lâmina não distinguia súplicas nem lágrimas. Caiu sobre ela com a mesma indiferença brutal com que havia caído sobre todos os outros. Pedro e o pequeno José, os dois caçulas, haviam corrido para um canto da sala assim que o massacre começara.
Estavam abraçados um ao outro, tremendo violentamente, os olhos arregalados de terror assistindo à destruição de toda sua família. Pedro, o menino de 7 anos que adorava brincar com os cachorros, tentava proteger o irmãozinho de 4 anos colocando-se na frente dele, abraçando contra o peito, como havia visto a mãe fazer tantas vezes.
Suas mãos pequenas apertavam as costas de José com força, como se pudesse escondê-lo completamente, fazê-lo desaparecer. Joaquim caminhou até eles com passos lentos e arrastados agora, a faca pingando sangue a cada movimento, deixando um rastro vermelho pelo chão. Seus olhos continuavam completamente vazios de qualquer emoção reconhecível, como se estivesse executando uma tarefa desagradável, mas necessária, algo que precisava ser feito e pronto.
Não havia raiva visível naquele rosto, nem satisfação sádica, apenas vazio profundo e perturbador. Pedro ergueu o rosto molhado de lágrimas e tentou uma última vez. Papai, não faz isso. Por favor, papai, a gente te ama. A gente vai ser bom. A gente promete. As palavras saíam atropeladas, desesperadas, carregadas de uma inocência tão pura que partia o coração.
Mas aquele homem não era mais o pai deles. Não era mais Joaquim Antônio da Silva, fazendeiro respeitado, marido e genitor. Era algo monstruoso, vestindo a pele humana, um demônio que havia tomado o controle completo. A lâmina atravessou o corpo magro de Pedro com facilidade terrível.
O menino soltou um grito curto e depois um gemido baixo de dor e incompreensão. Suas mãos relaxaram o aperto em José, os braços caíram para os lados. Desabou sobre o irmão mais novo, que mal entendia o que estava acontecendo, protegendo com o próprio corpo, mesmo na morte. José, o pequeno José de apenas 4 anos, que ainda aprendia a falar direito, ficou preso sob o peso do irmão por alguns segundos.
Seus olhinhos grandes olhavam para cima sem compreender, vendo aquele homem que ele chamava de papai aproximar-se com algo vermelho e brilhante na mão. Não teve tempo de sentir medo. Mal teve tempo de entender que aquilo era o fim. A escuridão o levou rápido, levando junto toda inocência e futuro que jamais aconteceria. O silêncio que se seguiu foi absoluto e pesado como chumbo.
Após os gritos, após a violência frenética, veio um silêncio mais aterrador que qualquer som. Em menos de 10 minutos, a sala de jantar havia se transformado em matadouro. Oito corposam espalhados pelo chão ou caídos sobre as cadeiras. O sangue cobria tudo. A toalha branca estava encharcada de vermelho, os pratos de porcelana salpicados.
O peru assado permanecia no centro daquela carnificina. Testemunha muda do horror. Joaquim permaneceu de pé no centro da sala, respirando pesadamente, a faca ainda na mão. Seu palitó estava encharcado de vermelho, o rosto salpicado de sangue. Os olhos vazios olhavam ao redor como se tentasse entender onde estava.
Era como se ele próprio tivesse morrido junto com a família, como se a parte humana dele tivesse se desligado completamente. O que restava ali era apenas uma casca vazia sem propósito algum. Do lado de fora, as mucamas que haviam escutado os gritos permaneciam paralisadas de terror. Estavam agrupadas perto da cozinha, chorando baixinho e rezando.
Nenhuma ousava entrar na casa. Benedita estava entre elas, tremendo violentamente, sendo amparada por Nzinga. Ela sabia, no fundo da alma que de alguma forma era parte daquela tragédia, que o ciúme doentil do Senhor havia encontrado a forma mais monstruosa de se manifestar.
Sentia culpa esmagadora, mesmo sabendo que não tinha culpa alguma. Os outros escravizados foram se reunindo aos poucos no terreiro, vindos das censalas e dos canaviais. Ficavam em grupos pequenos conversando baixo, tentando entender o que teria acontecido. Os gritos haviam sido ouvidos por toda a propriedade.
Especulavam em sussurros cheios de medo, mas ninguém tinha coragem de entrar na casa grande. Benedito, o escravo mais velho da fazenda com seus 60 e poucos anos, tomou coragem finalmente. Alguém precisava descobrir o que havia acontecido. Pegou uma lamparina e caminhou devagar até a porta principal. Suas mãos tremiam fazendo a luz dançar pelas paredes.
Podia sentir o cheiro de sangue mesmo antes de chegar à sala de jantar. Quando ergueu a lamparina e a luz iluminou a cena completa, Benedito sentiu suas pernas bombas. Teve que se apoiar no batente para não cair. Em todos seus anos, em todas as violências que presenciara, nada preparara para aquilo. Fez o sinal da cruz três vezes e rezou em voz trêmula.
Maria das Dores caída sobre a cadeira, Antônio estirado no chão, as três meninas amontoadas num canto, os dois meninos pequenos abraçados mesmo na morte. E no centro, Joaquim sentado calmamente, como se nada tivesse acontecido. Benedito recuou cambaleando e saiu quase correndo. Quando chegou no terreiro, seu rosto dizia tudo. As mucamas começaram a chorar alto.
Os homens baixaram as cabeças em choque. Mas Benedito sabia que precisava agir. Correu até o cercado dos cavalos e montou no melhor alazão da fazenda sem pensar nas consequências. cravou os calcanhares e o animal disparou pela estrada de terra rumo à vila mais próxima. A cavalgada desesperada levou mais de uma hora pela estrada esburacada. Benedito galopou sem parar, as imagens do que vira se repetindo em sua mente como pesadelo.
Chegou na vila quando sinos batiam 9 horas. As ruas estavam vazias porque as famílias celebravam o Natal. correu até a delegacia, uma construção pequena e modesta, e bateu com força na porta, fazendo-a tremer. Um sargento sonolento apareceu ajeitando a farda com cara de poucos amigos.
Quando ouviu o relato atropelado, primeiro duvidou. Oito assassinatos, uma família inteira. Na noite de Natal parecia delírio, mas havia algo no desespero genuíno de Benedito, no terror em seus olhos, que não podia ser ignorado. Chamou dois soldados e, armados com rifos e lanternas, seguiram de volta à fazenda. Chegaram por volta das 10:30.
Os escravizados ainda estavam no terreiro rezando baixinho. Quando viram os uniformes, abriram caminho em silêncio. Os três policiais entraram com cautela, rifos em punho. O corredor estava em penumbra. Podiam sentir aquele cheiro inconfundível de sangue e morte. O sargento sentiu o estômago apertar antecipando o horror.
Quando chegaram à sala de jantar e suas lanternas iluminaram a cena. Até os homens mais experientes sentiram o estômago revirar. Um dos soldados virou-se e vomitou no corredor. O sargento forçou-se a examinar metodicamente. Contou os corpos um por um. Uma mulher adulta, três meninas, três meninos, incluindo um que não deveria ter mais que 4 anos.
Todos mortos brutalmente, degolados ou esfaqueados. O sangue havia formado poças que começavam a coagular. E sentado calmamente à mesa, Joaquim Antônio da Silva não havia se movido. A faca estava pousada ao seu lado, ainda vermelha. Seu rosto permanecia inexpressivo, os olhos fixos em lugar distante. Não reagiu quando os policiais entraram.
Não demonstrou surpresa ou medo algum. O sargento aproximou-se com rifo apontado. Ordenou que se levantasse e colocasse as mãos visíveis. Joaquim obedeceu mecanicamente como autôm. permitiu que o prendessem com cordas sem resistência. Quando finalmente o sargento perguntou por fizer aquilo, Joaquim virou a cabeça lentamente.
Seus lábios formaram uma única palavra murmurada: “Siúmes! Apenas isso, como se aquela palavra explicasse tudo, como se justificasse destruir oito vidas, incluindo seis crianças, que eram sua própria carne e sangue. A notícia se espalhou pela região com velocidade impressionante. Ao amanhecer do dia de Natal, metade da província já sabia do crime bárbaro.
Pessoas vinham de vilarejos distantes apenas para ver a casa onde tamanha atrocidade fora cometida. ficavam do lado de fora especulando, fazendo sinal da cruz repetidamente. Autoridades maiores chegaram de Recife no dia seguinte. Um delegado provincial, um escrivão e até médico legista fizeram exame minucioso da cena, anotaram tudo, desenharam diagramas.
O médico examinou as vítimas uma por uma e atestou que todas morreram de ferimentos por arma branca. Cortes profundos que causaram morte rápida por perda massiva de sangue. Os corpos foram removidos no terceiro dia. Mulheres da vila vieram preparar os mortos para enterro. Choravam especialmente ao cuidar das crianças tão pequenas.
Maria das Dores e os seis filhos foram colocados em caixões simples de pinho fornecidos pela paróquia. O funeral aconteceu numa tarde chuvosa. Parecia que até o céu chorava. Centenas de pessoas compareceram de toda a província. O padre fez sermão emocionado sobre fragilidade da vida e perigos das paixões descontroladas. Os oito caixões foram enterrados juntos numa sepultura coletiva.
Uma cruz simples de madeira foi colocada com todos os nomes gravados: Maria das Dores, Antônio, Isabel, Carolina, Joana, Pedro e José. Embaixo uma frase: assassinados na ceia de Natal de 1873. Que Deus os tenha. Durante muitos anos depois, pessoas visitavam aquela sepultura na véspera de Natal, levando flores e velas, rezando pelos mortos, especialmente pelas crianças inocentes.
Benedita foi vendida meses depois para a família de comerciantes em Recife. Trabalhou até a abolição 15 anos depois. Casou-se com homem livre. Teve quatro filhos que cresceram livres, mas jamais falou sobre aquela noite. Carregou o peso em silêncio até o fim de seus dias. Nas noites de Natal ficava especialmente quieta, os olhos distantes.
Sabia que não tinha culpa, mas a culpa irracional nunca abandonou completamente. O julgamento aconteceu três meses depois em Recife. Foi transferido porque temiam linchamento. O ódio popular era tamanho que Joaquim precisou ficar em cela especial para proteção, porque até criminosos endurecidos sentiam repulsa. O caso se tornou sensação em todo o Brasil imperial.
Jornais de Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo publicaram reportagens detalhadas. A sociedade ficou profundamente abalada. Eram oito mortes, seis crianças assassinadas pelo próprio pai na noite mais sagrada. O julgamento durou 5 dias. A promotoria apresentou testemunhas descrevendo o comportamento errático de Joaquim nos meses anteriores. Escravizados testemunharam sobre sua obsessão por Benedita, sobre os ciúmes irracionais.
A defesa argumentou em sanidade mental. Trouxe médico alienista do Rio, que concluiu que Joaquim sofria de mania obsessiva e ciúme patológico que levaram à loucura temporária. Mas a promotoria contraargumentou com força: se estava louco, como planejou tão metodicamente? Como escondeu a faca? Como esperou o momento exato? Aquilo era ato calculista, não de louco delirante.
As galerias ficavam lotadas todos os dias. Quando Joaquim era trazido algemado, murmúrios de ódio percorriam a multidão. Durante todo o julgamento, permaneceu praticamente mudo. Respondia com monossílabos quando forçado. Geralmente apenas olhava para o vazio. Não demonstrava remorço, nem tentava se defender.
Quando perguntaram se tinha algo a dizer, apenas balançou a cabeça. No quinto dia, veio o veredicto. O Júri deliberou por menos de 2 horas, culpado de todos os oito assassinatos em primeiro grau, com premeditação e crueldade extrema, decisão unânime. O juiz, visivelmente emocionado, pronunciou sentença de morte por enforcamento. A execução deveria ocorrer em 60 dias.
Joaquim não reagiu, apenas baixou a cabeça, aceitando passivamente seu destino. Joaquim aguardava a execução marcada para início de maio numa cela pequena e úmida. passava di sentado, olhando para a parede, perdido em pensamentos que ninguém saberia. Recusava visitas de padres que ofereciam conforto espiritual.
Comia pouco, estava emagrecendo rapidamente, tornando-se sombra do homem robusto que fora. Mas a execução pública nunca aconteceu. Na madrugada de 28 de abril, três dias antes da data marcada, o guarda encontrou Joaquim pendurado pelas tiras rasgadas da própria camisa amarradas numa trave. havia se enforcado durante a noite em silêncio.
O corpo já estava frio. Encontraram carta curta escrita com carvão na parede. Pedia perdão aos filhos e à esposa. Dizia que o demônio tomara conta de sua alma naquela noite e que agora ia ao encontro da justiça divina. Terminava pedindo que enterrassem seu corpo em terra não consagrada, porque não merecia descansar em solo sagrado.
O pedido foi atendido, foi enterrado sem cerimônia em vala comum fora dos muros do cemitério. Nenhuma cruz marcou o local. Com o tempo, até a localização foi esquecida. A fazenda Santa Cruz foi abandonada. Herdeiros distantes não quiseram a propriedade manchada por sangue. Os escravizados foram vendidos. Com os anos, a casa foi se deteriorando. O teto desabou, as paredes racharam, o mato invadiu.
Pessoas evitavam o lugar dizendo que era assombrado. Contavam de gritos ouvidos nas noites de dezembro, de luzes estranhas, de sombras que se moviam. As ruínas ainda existem escondidas entre canaviais. Poucos se aventuram lá, mas aqueles que vão dizem sentir presença pesada, como se memória daquela noite ainda ecoasse.
A sepultura coletiva ainda existe. A cruz original foi substituída por uma de pedra nos anos 1950. Os nomes ainda estão gravados e todo ano na véspera de Natal alguém anônimo coloca flores frescas. Ninguém sabe quem, mas as flores sempre aparecem, lembrando que aquelas vidas importaram. Esta história nos lembra que crimes do passado não desaparecem com o tempo.
Permanecem como cicatrizes na memória coletiva. Alerta sobre o que acontece quando humanidade é negada, quando pessoas são reduzidas a objetos. O massacre de Natal de 1873 é parte dolorosa, mas importante da nossa história. Capítulo que não pode ser esquecido porque ainda tem muito ensinar sobre natureza humana, sobre perigos da obsessão e sobre consequências de sistemas baseados em dominação.
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