Quem já pisou cedo no centro antigo de São Luís sabe que é um lugar que parece carregar a alma do passado pendurada nas paredes. Era 1877 e nem precisava muito esforço para sentir o peso daqueles dias logo cedinho. O cheiro da marezia vinha misturado com de padaria acendendo forno.
O vai vend das carroças nas pedras fazia um barulhinho abafado. Mas tinha também um silêncio diferente. Silêncio de gente com medo. Medo do que ia acontecer naquele dia de leilão. Largo do Carmo, todo mundo já conhecia o ritual de terça-feira, mas nunca se acostumava. Era como se as pedras daquele chão esperassem por mais lágrimas, mais gritos, mais marcas.
Num desses cantos, onde o sol R nem tinha vencido a neblina, estava Lenir. Não era moça, mas também não era velha demais para se render. Tinha olhar duro dessas pessoas que aprenderam a se calar sem nunca baixar a cabeça demais. Na pele, as cicatrizes mostravam o caminho de uma vida arrastada, de susto em susto, de luto velado e esperança teimosa.
O cabelo, sempre preso na nuca, guardava cheiro de fumaça de cozinha, de folha pisada e, em segredo, uma vontade danada de virar o mundo de cabeça para baixo. O povo passava e ela nem mexia. Cozinheira boa serve para tudo. Coxixava umas senhoras. Mas tem que marcar se não foge respondiam os homens de chapéu. No fundo, todo mundo sabia. Marcar gente era coisa que feria até quem só olhava.
E não era só a dor do ferro quente, era certeza de ficar com o rosto conhecido na cidade, impossível de se esconder até no escuro. Lenir sentia o corpo ferver de raiva, mas era raiva fria, daquelas que gela espinha, que faz planejar não gritar. Nas ruas, as crianças brincavam longe do leilão, fingindo que era só mercado comum.
Os mais velhos fingiam não ouvir os preços gritados, R$ 1000 ré, 2000. Mas todo o grito daqueles era lembrança de vida partida, de família separada, de medo correndo solto. Da janela do sobrado da esquina, dona Olinda olhava tudo calada. Sabia que ali, entre lágrima e ferro em brasa, sempre nascia algum tipo de coragem nova.
Coragem perigosa, coragem que crescer em segredo. No meio do zom zom, Lenir segurava firme um pedaço de tecido escondido na mão. Lembrança da mãe, promessa de não se dobrar para destino nenhum, por pior que fosse. Ela nunca gostou de fazer reza alta, mas naquele dia sussurrou baixinho: “Só para si.
Que os de cima sintam um pedaço do que a gente sente cá embaixo, nem que seja só uma vez.” Tinha noite que esse pedido parecia impossível, mas naquele dia o impossível estava rondando São Luís com gosto de tragédia. O vento veio empurrando o cheiro da rua até o salão dos coronéis. Os homens discutiam negócios, falavam alto, davam risada. Nenhum deles notava que o mundo estava para virar.
E logo, porque no peito de Lenir, entre dor, ódio e um tanto de sabedoria antiga, o plano já estava traçado, nada de deixar só a pele marcada. Ela queria deixar lembrança daquelas que não saem nem debaixo da terra. O dia inteiro o largo do Carmo ficava agitado, mas nada se comparava ao clima de leilão. É como se todo mundo soubesse que ali não era só dinheiro trocando de mão.
Era destino, vida, risco, sorte e tristeza dançando ali sem vergonha de ninguém. O feitor subia no caixote, batia na madeira e o povo calava. Um a um iam desfilando as peças, braços amarrados, cabeça baixa, cada qual tentando esconder o que dava. Quem podia evitava olhar nos olhos da mercadoria exposta. Quando o nome de Lenir apareceu, nem precisou muito esforço pros senhores trocarem olhares. Essa aí é sabida, pode anotar.
Faz comida boa e não reclama de noite, nem de trabalho dobrado. Coxixava um. Outro com sorriso torto de quem já viu de tudo, completava. Mas é preciso marcar, viu? Dizem que já escapou de dois patrões na juventude. Com essas é o ferro que resolve. Amarraram a ponta do lenço nela, prenderam os braços para trás. O ferro em brasa já esperava. Tinha gente que tremia só de olhar.
Outros faziam piada baixinho. Quem já tinha sentido aquilo na pele fechava os olhos. Cada marca é dor que se repete em quem vê. O feitor chegou perto, cheirou o ferro, balançou a cabeça e, sem mais demora, encostou o metal no rosto de Lenir. O cheiro de carne queimando se espalhou. Muita gente desatou a chorar.
Outros engoliram seco e seguiram olhando pro chão. Lenir não gritou, mas quem reparou bem viu uma lágrima escondida correndo perto do queixo. Não era de medo, era de raiva mesmo. Daquelas lágrimas que juram vingança. O feitor puxou o ferro de volta. O soldado olhou pros patrões esperando aprovação. Os coronéis sorriram satisfeitos, símbolo de mando estampado para quem quisesse ver. “Agora sim, pode confiar”, disse um.
O leilueiro ergueu o braço, dada por 1500.000 réis ao consórcio dos coronéis. Já não era segredo para ninguém que aquele grupo de patrões, Pereira, Macedo, Batista, Silva, Costa, Santos, Ribeiro, Braga, gostava de dividir posses valiosas. Eles sabiam que Lenir era diferente. Não era só pelo jeito experiente na cozinha que todo mundo elogiava.
Era o olho, olho de quem não perdoava tortura nem mentira. Quando puxaram Lenir para fora do palco, seguiram para o solar velho da rua do Egito. Os coronéis entraram rindo alto, já combinando quem ficava com ela em qual semana. Diziam que patrão bom era o que sabia domar, mas ninguém ali imaginava que domar llenir seria mais difícil do que pensavam.
Na subida da viela, as rodas da charrete faziam barulho de coisa velha. Lenir deixava ser levada, mas na cabeça só aumentava os nido da raiva. Era o destino puxando, mas ela já tinha decidido. Dessa vez quem ia sofrer marca para sempre não era só ela. No solar, a rotina começou pesada. Lenir Mal tinha chegado e já foi posta no fogão.
Os patrões cheios de exigência pediam camarão, vatapá, arroz de cuxá caprichado. Ela cozinhava como quem constrói segredo, anotando conversa de senhor, reparando nos sutaques, reconhecendo as vozes pelo render da madeira, pelo arrastar dos pares de botas no açoalho antigo. O mais novo, coronel Braga tentava gracejar.
Lenir, só você para dar jeito nesse caldo grosso. Ela respondia com silêncio, um meio sorriso escondendo o troco. Na rua, a notícia da marca logo correu. Gente de dentro de fora sussurrava a história. Dizem que ela ficou de pé, não chorou nem xingou, endureceu por dentro. Donas de casa mandavam recado. Fique esperta, vizinha, mulher com marca Nova Noite dessas costuma sonhar vingança.
Lenir, no terceiro dia, já conhecia cantos do Sobrado, onde se guardava veneno de rato, onde criadas escondiam resto de farinha, até o buraco entre as telhas onde morcegos dormiam de dia. Na segunda semana, descobriu no mercado da rua Grande uma velha conhecida, Maria das Dores, que vendia tempero e remédio clandestino.
Ali entre cheiro de ervas, Lenir fez combinação que patrão nenhum entenderia. Comprou sementes de jequiriti, fingindo que era para aliviar dor de barriga de criança, e arrancou da banca umas folhas de mamona, de uso proibido para quem não fosse de confiança. Cada troco guardava num canto do lenço, junto com as lembranças de dor e promessa de dar resposta. Os dias foram voando.
Lenir viu os preparativos dos senhores para o grande jantar. Reunião dos oito. Igual aos tempos de paz. Lenir que era a mesa farta. dizia Coronel Pereira. Guardava no olhar tudo que precisava. Quem gostava do chá mais quente, quem evitava açúcar, sabia onde seria servido, quem entrava primeiro, quem ficava por último bebendo até soltar segredo.
Ouvia o render das âncoras no porto, que marcava cada fim de tarde, igual relógio de aviso. Tava chegando à noite que ia marcar aquela cidade para sempre. Enquanto cozinhava com calma, passando faca em cima dos temperos, aumentava dentro dela uma urgência quase bonita.
Mudar a história, nem que fosse uma vez só, não pelo nome, nem pelo rosto, mas para mostrar que até gente invisível pode fazer o mundo tremer. Marcada na pele, mas inteira por dentro, Lenir seguia. A cidade não fazia ideia do que estava para acontecer e no fundo era isso mesmo que ela queria. No sobrado dos coronéis, a rotina de Lenir era pesada, mas ali ela não era qualquer uma.
Tinha faro para saber quem usava a bota só para parecer mais forte e quem era má pessoa de verdade. Os patrões, sempre cheios de querer mostrar poder, gostavam de exibir Lenir falando para visitas. Aqui só como comida feita pela melhor cozinheira do Maranhão, gabava-se coronel Batista, batendo no próprio peito como quem bate bumbo em festa. Lenir sorria de canto de boca e voltava pra cozinha.
balançando a cabeça, já acostumada com esse tipo de vaidade de homem grande. A cozinha era território dela. Entre as panelas de ferro, os tachos de cobre e as colheres de pau, Lenir fazia de tudo, desde preparo de doce de caju, muqueca, carne seca refogada, até os bolos que faziam sucesso nos aniversários das filhas dos senhores.
Só ela sabia o ponto exato do arroz de cuá para não empapar e aquele segredo no feijão que parecia só dela. As outras mulheres que trabalhavam junto respeitavam o espaço. Sabiam que cozinheira mais velha sempre teve moral ali e dona de saber guardado, comprado a custa de muita noite sem dormir. Mas o que ninguém via era que enquanto mexia a panela, Lenir escutava tudo.
Os coronéis, achando que ela era surda ou burra, falavam alto, contavam vantagem dos tempos em que caçavam escravos fugidos e discutiam os boatos de liberdade chegando do sul. Os papéis do império já corriam notícias de novas leis, conversa de abolição, mas em São Luís o medo dos senhores era mais rumor que certeza.
Lenir ouvia, anotava tudo na cabeça, juntava perigo e oportunidade, igual quem mistura dois temperos fortes esperando dar o ponto. De vez em quando escapava pro quintal, dizendo que ia buscar erva no Jardim do Solar, mas o que fazia mesmo era estudar esconderijo, espiar passagem da criadagem, calcular cada passo.
Reparava no vai e vendas negras lavando roupa na bica, dos meninos que traziam leite de madrugada, das quitandeiras vendendo pamonha na esquina. Cada pessoa ali era peça de um jogo velho e ela estudava tudo esperando a hora virar a seu favor. Quando ganhava a folga, aos domingos, Lenir descia a pé até o mercado das tulhas.
O lugar era barulhento, povo espremido vendendo peixe, farinha, fruta, tudo para agradar patrão apressado ou senhora cheia de frescura. Mas nas bancas escondidas entre os corredores, ela encontrava quem entendia de planta e de segredo. As benzedeiras sabiam reconhecer outras mulheres sofridas e meio desconfiadas. Vendiam folha de mamona, raiz de jaborandi, caroço de jequiriti. Só para quem precisa resolver caso difícil, viu? Lenir sempre agradecia.
Pagava certo, deixava recado escondido junto com as moedas. Se perguntar, diz que não me conhece. No caminho de volta, evitava passar de cabeça baixa, não por orgulho, mas porque precisava ver o mundo, como dizia sua mãe. Não abaixa os olhos, Lenir. Quem abaixa só vê o chão e tropeça nos mesmos buracos sempre. Ela carregava esse conselho no peito desde menina. Chegando de volta ao solar, era hora de cuidar das tarefas do dia.
Tinha que lavar roupa grossa, coar café, receber as encomendas de carne do açougar tudo pra noite. Os meninos da Senzala, que faziam serviço pesado nos fundos, paravam para dar notícia da rua. Disseram que semana que vem vai chegar navio novo no porto, carregado de pano ou escapou o moleque lá pra banda do interior. Patrão tá em fúria atrás.
Lenir escutava, mas não opinava. Sabia que falar demais chamava perigo para cima dela e para quem lhe rodeava. De tarde, o cheiro do fogão invadia os cômodos. Corria vento quente que fazia o suor grudar na nuca. A roupa pesava no corpo como pano molhado. Quando anoitecia, o solar virava outro ambiente.
Luz de lamparina, vozes grossas dos patrões, som de louça batendo, riso de mulher branca ecoando na sala grande. Era ali, nesse entreai de gente bêbada de vinho doce que Lenir ficava invisível. Todo mundo sabia que cozinheira era móvel da casa, só notada quando comida saía ruim ou demorava a chegar.
E ela aproveitava cada minuto disso para ouvir, juntar nomes, histórias, descobrir onde patrão gostava de deixar dinheiro, joia, documento escondido. Um dia, ouviu sem querer o coronel Batista sussurrando: “Devia prender logo esses abolicionistas que vem falar grosélia nas igrejas, atrapalhando o negócio da gente.
” Numa outra noite, escutou as risadas sujas de dois dos coronéis, comentando de como o banco do largo era bom para coitar escravo fugido, desafiando a polícia. Cada pedaço dessa conversa era mais lenha na fogueira da raiva de Lenir. Passavam-se dias e noites naquele vai e vem cansativo. Quando descansava, era no quartinho apertado nos fundos junto da criada mais velha, dona Cecília, que sempre rezava antes de dormir.
Dona Cecília gostava de repetir: “O tempo do branco pode ser de ferro, menina, mas o de Deus é de borracha. Estica até não caber mais. Depois volta que é uma beleza. Essas palavras ecoavam na cabeça de Lenir enquanto ela vigiava a janela pensando no plano. Não tinha pressa. Quem espera aguenta quase tudo, desde que saiba para que tá esperando.
A cidade lá fora mudava devagarzinho. O barulho dos bondes de tração animal, o tilintar dos sinos das igrejas, os anúncios de novidade vindos de Belém, tudo parecia grande, mas para Leníos seus tudo continuava difícil igual. marca no rosto, rapel de ferro no coração. Mesmo assim, a esperança teimava entre as panelas. E enquanto a cidade dormia, Lenir seguia alimentando a certeza. Uma noite, só uma.
E ela ia mostrar pros coronéis que cozinheira também sabia deixar marca. Só que desse vez na alma, não era mais na carne. A marca no rosto de Lenir não era só um pedaço de ferro queimando pele. Era recado de patrão querendo mostrar que mandava na cidade.
Só que ao invés de abaixar ainda mais a cabeça, Lenir foi ficando mais atenta. Cada comentário, cada olhada torta, ela ia guardando na memória feito receita difícil. Enquanto muitos deixavam a raiva virar doença, nela virava plano. Não ia se entregar nunca.
Depois daqueles primeiros dias nas casas dos coronéis, Lenir retomou aos poucos os hábitos, sem que ninguém percebesse seu verdadeiro olhar. Trabalhava dobrado, fazia comida que arrancava elogio até de quem não costumava abrir a boca para agradecer. Alguns diziam até que ela tinha mão de santa, mas a verdade é que era cabeça fria. Cozinhava pensando, repassando conversa, notando todos os detalhes. Percebia qual patrão chegava mais cedo, quem deixava os papéis do banco largados pelo salão, qual senhor gostava de beber chá de erva doce bem forte. No fundo da dispensa havia também um baú de segredos de lenços, azeites guardados, um sachê
velho com pedaços de erva seca que só gente muito antiga saberia para que servia. Todas as noites, antes de dormir, Lenir pegava uma dessas folhas entre os dedos, apertava, sentia o cheiro, lembrava das conversas das mulheres mais velhas. Mamona boa serve para tirar malestar rápido. Jequiriti não tem cheiro, não tem gosto, mas é perigoso.
Cuida muito com a dose, menina. repetia dona Zumira na memória dela como um refrão. Foram semanas assim, costurando pontos da vida, calibrando o momento certo. As conversas das cozinheiras nos fundos do mercado também ajudavam. Dizem que o veneno pega mais rápido se for em bebida morna. Basta pouco. Três sementes já bastam para acabar com gigante.
Coxixava uma enquanto outra respondia. Mas não vacila. Que patrão desconfia de tudo. Lenir, diferente das outras, sabia esperar. Ficava de olho quando algum coronel anunciava a visita do grupo inteiro. Vamos reunir o povo todo, discutir negócio. Era o código. Era nesses encontros que a sala grande se transformava em palco de poder.
As criadas se revesavam trocando vasilhas, os meninos serviam cachaça e Lenir ficava plantada na cozinha esperando o momento do chá, porque todo o banquete de gente forte de São Luís acabava com mesa cheia de xícaras. No meio desse correcorre, quem andava longe tentava ajudar como podia.
A velha Maria das Dores, benzedeira do mercado, sempre perguntava de Lenir para as outras vendedoras, querendo saber se já estava pronta. Menina dessa não esquece dor fácil, não. Cuidado quando resolver devolver o que engoliu até hoje, dizia para quem quisesse ouvir. E Lenir ouvia o recado chegando como aviso de mãe. Durante a preparação dos grandes jantares, Lenir circulava pelo salão e pela cozinha como sombra.
passava perto das conversas dos homens, fingia procurar sacola de farinha enquanto ouvia quem andava comprando voto. Quem tramava trapaça. Aprendeu a distinguir riso verdadeiro de sarcasmo, ameaça de piada, força de covardia.
Na noite em que percebeu um dos coronéis ameaçando o outro só com a força do olhar, soube até ali quem mandava tinha medo de perder reinado. Depois que a marca no rosto secou, ficou só cicatriz escura descendo da maçã do rosto até perto do queixo. Era impossível não reparar. Crianças se assustavam de vez em quando, mas ela nunca escondeu. Essa marca não é minha, é deles. Pensava, mas não dizia.
Preferia engolir as palavras até o momento de gritar, mesmo que baixinho. Com o tempo, aprendeu onde o cheirinho do veneno se misturava melhor. Na água morna de noite quente, em meio ao açúcar do chá, escondido atrás dos temperos, sem cor nenhuma para denunciar. Decidiu fazer direito, nada de errar.
Coordenou mentalmente cada passo, anotando quem entrava e saía do solar, qual copeira mais confiava nela e até quem gostava de provocar brincadeira arriscada com as criadas. Era vida pendurada no fio da concentração. Erro ali não era opção. O domingo que antecedeu a noite do baile dos coronéis foi de sol forte e fila na feira.
O mercado parecia festa, mas era rolo. Todo mundo sabendo que aquela reunião dos senhores era importante. Quem podia vendia frango mais caro, farinha mais refinada. Até trouxa de erva caiu de preço. Lenir comprou tudo que precisava: farinha, carne seca, coentro de cheiro, mas caprichou nas sementes de jequiriti e um tanto de mamona, tirada quase de graça de uma vendedora cansada. No regresso, passou pelo trapiche para buscar peixe pra dona Cecília.
Parou na beira do cais, respirou fundo o cheiro salgado misturado com podridão do porto. Ali pensou na mãe, pensou nas mulheres todas que sonharam mudar aquele destino e morreram tentando. Não rezou, só reafirmou que já sabia. Chegou minha vez de dar recado. Aquela semana, São Luís não dormiria igual. Na segunda-feira, espalharam pelas ruas que o grande jantar seria na casa do coronel chefe, na rua do Egito.
Patrões correram, organizaram tudo. Criadas mais novas foram buscar água. Meninos varreram o chão de taco grosso, lavaram cada prato duas vezes. Naquela preparação, Lenir flutuava com o mesmo silêncio de sempre, mas nenhuma movimentação dela passava despercebida.
Sabia que o momento de agir estava perto e que um vacilo podia pôr tudo a perder. Quando a noite foi chegando, os cantos da casa ficaram cheios de sombras alongadas, cheiro de tempero aquecendo no fogão e vozes masculinas dando ordem, apressando o passo da criadagem. Os coronéis chegaram um a um, em suas melhores roupas, medalhas brilhando no peito.
Lenir ajeitava as coisas, já sentindo o coração bater mais rápido, mas ninguém ali reparou na diferença do seu olhar. Eles achavam que conhecia medo, mal sabiam o que é coragem daquela mulher. E assim, enquanto São Luís dormia esperando mais uma noite igual, Lenir ajeitava o lenço na cabeça, separava xícaras certas, olhava pro feijão e pro arroz, mas pensava só na vingança que começaria a ganhar cheiro, corigosto, quando o primeiro gole daquela noite fosse dado.
A casa do coronel Pereira, na rua do Egito, sempre foi das mais imponentes do centro. Naquela noite de março, ela estava ainda mais arrumada que o normal. As criadas tinham encerado o chão de taco até brilhar igual espelho. Os castiçais estavam cheios de vela nova e a mesa da sala de jantar parecia altar de igreja rica.
Oito cadeiras de espaldar alto esperavam os donos do poder maranhense. Do lado de fora, quem passava podia ouvir o barulho de preparação. Panela batendo, gente conversando alto, aquela agitação de casa que vai receber visita importante. Lenir acordou naquela manhã com sensação estranha, como se o corpo soubesse que era dia diferente.
Levantou antes do sol nascer, fez as orações de sempre, mas dessa vez demorou mais tempo ajoelhada no canto do quarto. não pediu proteção, pediu força para não fraquejar na hora. H sabia que quando chegasse à noite não teria mais volta. Era tudo ou nada e ela já tinha escolhido tudo. Durante o dia, ajudou a preparar o banquete. Os coronéis tinham pedido festa completa.
Peixe assado, carne de sol, arroz de cuchá, farofa de dendê, doce de caju e para fechar, chá de erva doce bem caprichado. Tem que estar tudo perfeito. Lenir, hoje é noite de comemorar os negócios. avisou Coronel Pereira ajeitando a gravata. Lenir apenas acenou com a cabeça, fingindo que não entendia muito bem do que se tratava. Mas ela sabia sim. Tinha escutado as conversas dos últimos dias. Os coronéis estavam comemorando uma grande compra de escravos que chegaria na próxima semana.
100 pessoas vindas do interior, incluindo crianças. Vai dar muito lucro, dizia um. O suficiente para comprar mais terra, completava outro. Cada palavra dessas era mais lenha na fogueira que ardia no peito de Lenir. Enquanto descascava mandioca, ela observava o movimento da casa.
As outras criadas corriam de um lado pro outro, nervosas, querendo agradar. Os meninos da cenzala carregavam água, lenha, tudo que fosse pesado. Todo mundo queria evitar bronca naquele dia especial. Só Lenir mantinha calma, como se fosse dia comum de trabalho. Por dentro, ia repassando cada detalhe do plano que havia amadurecido nas últimas semanas. O segredo estava escondido no fundo da sua trouxa.
Três sementes de jequiriti, pequenas e vermelhas, que pareciam grãos de milho. Tinha também umas folhas secas de mamona, moídas até virar pó fino. Era veneno suficiente para derrubar uma boiada inteira, mas ela ia usar com cuidado na medida certa. Não queria que morressem rápido demais.
Queria que sentissem, que soubessem que estava acontecendo algo, que tivessem tempo de pensar em todas as maldades que fizeram. Por volta das 3 da tarde, começaram a chegar os primeiros convidados. Coronel Macedo foi o primeiro, sempre pontual, com aquele jeito sério de quem carrega autoridade nas costas. Depois veio o coronel Batista rindo alto, fazendo piada com os meninos que cuidavam dos cavalos.
Um a um foram chegando Silva, Costa, Santos, Ribeiro, Braga, oito homens que controlavam metade das terras do Maranhão e quase todos os escravos de São Luís. Lenir circulava pela casa como fantasma, servindo aperitivos, enchendo o copo de cachaça, sempre atentas conversas. Eles falavam alto, confiantes, como se o mundo todo fosse propriedade deles. Semana que vem vamos ter mão de obra nova para todo mundo gabava-se Pereira.
e barata, porque compramos direto do fazendeiro. Completava Macedo, esfregando as mãos. Quando anoiteceu de vez, a sala de jantar virou o palco. A mesa estava farta, como prometido. Os coronéis se acomodaram nas cadeiras, cada um no seu lugar de sempre. Lenir e as outras criadas começaram a servir num balé silencioso de pratos indo e vindo. Os homens comiam com gosto, bebiam, contavam casos, faziam planos.
Era a festa da crueldade disfarçada de jantar fino. “Lenir faz o melhor arroz de cuchá de todo Maranhão.” Elogiou Coronel Silva de boca cheia. “É verdade, mulher tem mão abençoada”, concordou Santos. Lenir agradecia baixinho, sempre educada, sempre invisível. Por dentro, cada elogio era como tapa na cara.
Eles gostavam da comida dela, mas a tinham marcado como animal. O jantar se arrastou por quase 2 horas. Os coronéis beberam, riram, discutiram política, fizeram negócios, falaram de tudo, do preço do algodão, das novas leis que vinham da capital, dos escravos fugitivos que andavam dando trabalho. Sempre falavam como se fossem donos do mundo, como se gente como Lenir fosse só peça de engrenagem que podia ser trocada quando quisessem. Quando terminaram de comer, Coronel Pereira bateu na mesa.
Agora é hora do chá para ajudar a digestão. Era o momento que Lenir esperava. Voltou pra cozinha com coração batendo mais forte, mas as mãos firmes. Colocou água para ferver, separou as xícaras de porcelana boa, pegou o pote de erva doce e então com cuidado de cirurgiãou o veneno, três sementes de jequiritimoídas divididas em oito partes iguais, uma pitada de mamona em pó em cada xícara, misturou tudo com uma colheirinha de prata até sumir completamente. O cheiro continuava normal, de erva doce, doce e gostosa.
Ninguém desconfiaria de nada. Preparou a bandeja com as oito xícaras, o açucareiro, o leitinho. Parou por alguns segundos, respirou fundo, pensou na mãe, nas amigas que morreram apanhando, nas crianças que ela nunca pôde ter porque nasceu escrava. Pensou na marca no rosto, na dor que sentia até hoje. Pensou em tudo e em nada.
Depois levantou a bandeja e voltou pra sala de jantar. O chá chegou”, anunciou com a mesma voz mansa de sempre. Os coronéis nem olharam direito para ela. Estavam entretidos demais com os próprios assuntos. Lenir serviu uma xícara para cada um com todo cuidado, como sempre fazia. “Obrigado, Lenir”, disse um. “Chá dela é o melhor”, completou outro.
Ela saiu da sala e foi pra cozinha, mas ficou por perto escutando. Ouvi o barulho das xícaras batendo nos pires, as vozes continuando a conversa. Estava feito. Agora era só esperar. Em algumas horas, São Luís acordaria diferente e a marca no rosto de Lenir finalmente teria encontrado sua vingança. Meia hora depois do chá servido, a conversa na sala de jantar continuava animada.
Os coronéis falavam de política, das eleições que se aproximavam, dos negócios que rendiam bem. Lenir continuava na cozinha, lavando pratos, organizando panelas, fingindo que era noite comum, mas prestava atenção em cada ruído vindo da sala, cada mudança no tom das vozes. Foi Coronel Silva o primeiro a reclamar. “Eita, que azia da nada”, murmurou, pondo a mão na barriga. Coronel Macedo Rio. É a idade chegando.
Silva não aguenta mais comer igual moço. Todos riram junto. Inclusive Silva, que pensou que fosse mesmo coisa passageira. Lenir da cozinha apertou o punho. Começou. 15 minutos depois. Costa começou a suar frio. Que calor é esse? Perguntou afrouxando a gravata. Calor nada. Você tá é pálido. Observou Batista. Mas Santos também estava se sentindo esquisito. Uma náusea que subia e descia como enjou de viagem.
Deve ter sido apeixada, pensou alto. Peixe às vezes dá problema quando tá velho. Lenir sabia que ainda era o começo. O Jequiriti não matava na primeira hora. Ia devagar, como quem desenha sofrimento com cuidado. Primeiro vinha malestar, depois dor na barriga, vômito e por último, bem. Por último, não sobrava ninguém para contar história. Uma hora depois do chá, a coisa ficou séria.
Ribeiro foi o primeiro a vomitar ali mesmo na sala de jantar, sem nem conseguir levantar da cadeira. O vômito veio com sangue e aquilo assustou todo mundo. Que diabos foi isso? Gritou Pereira, levantando da mesa. Braga tentou ajudar Ribeiro, mas ele mesmo estava passando mal, com cólicas que doíam tanto que fazia cara feia. Chama o médico”, ordenou Macedo, mas a voz dele saiu rouca, diferente.
Santos tentou ir até a porta, mas as pernas não obedeciam direito. Silva havia desmaiado na própria cadeira, babando, respirando com dificuldade. Em poucos minutos, o salão elegante virou o hospital de campanha. Lenir apareceu na porta da sala com cara de quem não entendia nada.
“Que foi que aconteceu, meu senhor?”, perguntou para Pereira, que ainda estava de pé, mas balançando igual folha no vento. Não sei, todo mundo passou mal. De repente, ele conseguiu falar entre uma respiração e outra. Deve ter sido a comida, Lenir sugeriu com voz preocupada. Às vezes peixe estraga rápido nesse calor. Mas por dentro, ela estava contando minutos.
Sabia que em breve nenhum deles conseguiria mais falar, muito menos dar ordem ou chamar médico. Costa caiu da cadeira se contorcendo no chão. Batista vomitava sangue sem parar, sujando a roupa boa, a mesa, o chão de taco encerado. O cheiro azedo tomou conta da sala, misturado com perfume caro que eles usavam e o aroma de comida que ainda estava sobre a mesa. “Lenir, chama, ajuda”, murmurou Pereira, mas as palavras saíam embaralhadas.
Ele tentou se apoiar na mesa, mas as mãos tremiam tanto que derrubou um castiçal. A vela rolou pelo chão, ainda acesa, fazendo sombras dançarem nas paredes. Santos tentou gritar, mas só saiu um gemido rouco. As convulsões começaram primeiro em Silva, que já estava desacordado, depois em Ribeiro, que mordia a própria língua.
Os corpos se contorciam como se fossem marionetes nas mãos de um deus cruel. Lenir ficou parada na porta observando. Não sentia pena, sentia justiça. Cada gemido de dor deles era resposta para cada grito abafado que ela teve que engolir durante anos. Cada convulsão era pagamento pela marca no rosto, pelas noites sem dormir, pela humilhação no leilão.
Coronel Macedo, sempre o mais forte, conseguiu se arrastar até perto dela. Com os olhos vidrados, ele sussurrou. Foi você, né? Lenir olhou bem nos olhos dele. Pela primeira vez na vida, não baixou a cabeça para patrão. Foi, ela respondeu simples assim. Ele tentou agarrar a barra da saia dela, mas as mãos não obedeciam mais.
Caiu ali mesmo ao lado da porta, olhos abertos encarando o teto, ainda respirando, mas já sem forças para nada. Um por um, os coronéis foram silenciando. O som que dominava agora era sol da chuva que começou a cair lá fora, batendo no telhado colonial. Lenir ficou mais alguns minutos observando para ter certeza. Quando viu que nenhum deles se mexia mais, suspirou fundo, voltou pra cozinha, terminou de lavar os pratos, organizou tudo como sempre fazia.
pegou sua trouxa, guardou os poucos pertences que tinha, apagou o fogo do fogão, verificou se não tinha ficado nada esquecido. Antes de sair, voltou paraa sala mais uma vez. Os oito homens estavam espalhados pelo chão e nas cadeiras, alguns de olhos abertos, outros fechados, todos com cara de quem morreu sofrendo.
A mesa ainda estava posta com os restos do jantar, as xícaras de chá vazias. Agora vocês sabem como é sentir dor. Ela falou baixinho. Para ninguém além dos mortos. Agora vocês sabem como é não poder escapar. Saiu pela porta dos fundos. No silêncio da madrugada. A chuva molhava seu rosto, lavando junto a marca e as lágrimas que finalmente apareceram. Não eram lágrimas de tristeza, eram de alívio.
Depois de tantos anos, a conta tinha sido cobrada. São Luís dormia sem saber que acabava de acordar diferente. No salão da rua do Egito, oito homens jazziam mortos e uma mulher caminhava livre pela primeira vez na vida. A vingança de Lenir estava completa. O sol nasceu em São Luís naquela manhã de 15 de março, como sempre, mas a cidade logo descobriria que nada mais seria igual.
Foi a mucama da casa vizinha, dona Rosa, quem primeiro estranhou o silêncio vindo do sobrado dos Pereira. Cadê o barulho do café sendo feito? Ela pensou. Olhando da janela, todo dia às 6 da manhã se ouvia o movimento da cozinha. Panela batendo, lenha instalando, vozes das criadas preparando desjejum dos patrões.
Por volta das 7 horas, Joaquim, o menino que entregava leite, bateu na porta dos fundos, como sempre fazia. Ninguém atendeu. Bateu mais forte, chamou por Lenir, gritou o nome das outras criadas. Nada. deu a volta na casa, olhou pelas janelas, mas as cortinas estavam fechadas. O silêncio era pesado, do tipo que faz arrepiar a espinha de quem tem juízo.
Foi aí que ele resolveu entrar pela portinhola que ficava sempre aberta paraa passagem da criadagem. O que viu na sala de jantar fez ele soltar o balde de leite no chão e correr gritando pela rua. Morreram. Morreram todos. Os coronéis estão todos mortos. A notícia se espalhou pelo centro de São Luís, como fogo em capim seco.
Em meia hora tinha gente juntando na porta da casa, sussurrando, especulando. O delegado de polícia, seu Antônio Marques, chegou junto com dois soldados e o médico da cidade, Dr. Bernardino. Quando entraram na sala de jantar, até homem acostumado com morte ficou impressionado. “Jesus Cristo”, murmurou o delegado. Os oito coronéis estavam esparramados pela sala como bonecas de pano.
Alguns caídos das cadeiras, outros estirados no chão, todos com cara de quem sofreu muito antes de morrer. O cheiro era terrível, mistura de vômito, urina e o doce enjoativo da morte começando. Dr. Bernardino examinou os corpos um por um, fazendo anotações num caderninho. Envenenamento ele concluiu. Todos apresentam os mesmos sintomas. Vômito com sangue, convulsões, espuma na boca.
Foi veneno forte desses que não perdoam. Delegado Marques olhou em volta, procurando pistas. A mesa ainda estava posta com restos da janta da noite anterior. No centro, uma bandeja com oito xícaras de chá, todas vazias. Foi no chá, ele disse, mais para si mesmo que pros outros. Alguém pôs veneno no chá. A investigação começou na mesma hora.
Interrogaram os vizinhos, os fornecedores, todo mundo que tinha passado pela casa nos últimos dias. Mas a principal suspeita logo ficou óbvia. Lenir havia sumido. Sua cama estava vazia. Suas poucas roupas tinham desaparecido e ninguém a vira desde a noite anterior. “Tem que achar essa negra”, ordenou o delegado pros soldados.
Ela é a única que sabia preparar chá como eles gostavam. Ela é a única que tinha acesso à cozinha sem levantar suspeita. Mas Lenir não estava mais em São Luís. Tinha saído na calada da madrugada, caminhando pelas ruas vazias até chegar ao porto. Conhecia um barqueiro, velho Benedito, que às vezes levava gente pro outro lado da Bahia sem fazer muita pergunta.
Por três moedas de prata que ela juntara durante anos, ele aceitou levá-la até a vila de pescadores do outro lado. Durante a travessia, Lenir olhou para trás uma última vez. São Luís estava acordando, fumacinha subindo da chaminés. movimento começando nas ruas. Ela pensou em todas as mulheres que ficaram ainda marcadas, ainda sofrendo. Pensou nas que viriam depois, nas filhas que nasceriam escravas.
Sua vingança não salvaria nenhuma delas, mas pelo menos mostrará que até quem parecia invisível podia dar o troco. Na cidade, a notícia da morte dos oito coronéis causou pânico entre os outros senhores de escravos. Se uma cozinheira conseguiu envenenar os homens mais poderosos do Maranhão, quem garantia que outras não fariam a mesma coisa? De uma hora para outra, ninguém mais confiava na comida preparada pelos escravos domésticos.
Algumas famílias mandaram embora todas as criadas e contrataram mulheres livres para cozinhar. Outras aumentaram a vigilância, colocaram soldados dentro de casa, obrigaram as escravas a experimentar toda a comida antes de servir. O medo havia se instalado nos casarões de São Luís. Os jornais da época tentaram abafar o caso. A versão oficial foi que os coronéis morreram de doença súbita, possivelmente intoxicação alimentar.
Mas todo mundo sabia a verdade. Nas censalas, nas cozinhas, nos becos da cidade, o nome de Lenir virou lenda. Diziam que ela havia fugido para um quilombo no interior, outros que tinha conseguido chegar até o Ceará e de lá embarcar paraa África. A verdade é que ninguém nunca mais a viu.
Lenir havia simplesmente sumido como fumaça no vento. Mas a marca que ela deixou em São Luís foi mais duradoura que qualquer ferro em brasa. por anos, sempre que um senhor de escravos adoecia de repente, sempre que alguém passava mal depois de uma refeição, o nome dela era sussurrado. As autoridades continuaram procurando por meses, ofereceram recompensa, interrogaram suspeitos, vasculharam cada canto da cidade e do interior.
Mas Lenir havia desaparecido como se nunca tivesse existido. Só deixou para trás oito caixões, uma sala de jantar manchada de sangue e uma cidade inteira, aprendendo que cozinheira também sabia deixar marca. Só que essa marca era na alma dos patrões. Dizem que anos depois, quando a abolição finalmente chegou, algumas das mulheres mais velhas ainda brindavam em segredo com chá de erva doce.
Lembrando da noite em que uma das suas mostrou que até quem nasce para servir pode escolher como a história termina. A cidade seguiu seu caminho, mas nunca mais foi a mesma. E toda vez que alguém preparava chá numa casa grande, por um segundo, uma sombra atravessava a cozinha. E quem reparava bem podia jurar que era Lenir ainda por ali, cuidando para que nenhum patrão esquecesse do gosto amargo da vingança servida na medida certa. São Luís acordou diferente naquele 15 de março de 1877.
Ilenir, onde quer que estivesse, sabia que sua marca havia ficado gravada para sempre, não na pele de ninguém, mas na memória de uma cidade inteira. M.