O Biker Solitário que Todos Temiam e o Órfão Fugitivo que Lhe Ensinou o Significado de “Família”

Diziam que Razer não tinha coração. Diziam que ele vivia pela estrada, pelo rugido dos motores, pela queimadura do uísque e pela adrenalina de uma luta. O seu nome era uma advertência sussurrada em bares e becos escuros. Na sua cidade, as pessoas atravessavam a rua quando viam o seu colete de cabedal, marcado com a caveira dos “Reapers”, o seu antigo clube. Mas a vida, por vezes, esconde as almas mais suaves dentro das carapaças mais duras.

A “Iron Haven Garage” era o domínio de Razer. Era metade oficina, metade cemitério de motas partidas. O cheiro a óleo e gasolina pairava no ar, misturado com o fumo do cigarro que raramente lhe saía dos lábios. Razer era um homem que não falava muito. Não precisava. A sua reputação falava por ele.

Naquela noite, porém, o silêncio na garagem era diferente. Não era o silêncio confortável da solidão escolhida; era um vazio estranho, desconfortável, que se instala quando se está sozinho há demasiado tempo. Razer estava debruçado sobre um carburador, as mãos manchadas de fuligem e, talvez, de arrependimento, quando o ouviu.

Um leve ruído atrás da garagem.

A princípio, pensou que era um guaxinim. O beco sempre atraiu vadios. Mas algo no som era diferente. Não era um animal. Era hesitante. Assustado.

Razer agarrou numa chave inglesa pesada e saiu. O ar frio da noite mordeu-lhe a pele. Ao contornar a esquina, viu-o. Encolhido atrás de uma pilha de pneus velhos, estava um rapaz. Não teria mais de sete ou oito anos. Estava a agarrar-se a uma sanduíche meio comida como se fosse um tesouro.

O miúdo congelou quando os seus olhares se encontraram.

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“Calma, miúdo,” disse Razer, a sua voz profunda e rouca, uma mistura de surpresa e exaustão. “Estás perdido?”

O rapaz não respondeu. Os seus olhos, grandes e assustados, dardejavam de um lado para o outro como um coelho encurralado. As suas bochechas estavam encovadas e as roupas eram demasiado finas para o frio. Razer baixou a chave inglesa. O gesto pareceu quebrar a tensão.

“Estás com fome?”

O rapaz hesitou, depois acenou lentamente com a cabeça.

Razer suspirou, um som pesado. “Anda lá.”

Dentro da garagem, o rapaz sentou-se na bancada de trabalho, a olhar para a tigela fumegante de noodles instantâneos que Razer tinha aquecido no micro-ondas. A forma como ele devorou a comida fez o peito de Razer doer. Não era pena; era algo mais profundo, algo que ele não sentia há anos.

“Como te chamas, miúdo?” O rapaz parou, com os noodles a meio caminho da boca. “Eli.” “E tens pais?” A expressão de Eli caiu. Ele olhou para baixo. “Já não.”

Razer não insistiu. Ele conhecia aquela dor. Ele apenas acenou com a cabeça, esfregando a nuca. “Está bem, então. Podes ficar aqui esta noite. Mas só esta noite, ouviste?”

Mais tarde, quando Razer apagou as luzes, deu por si a observar o rapaz. Eli dormia num sofá velho no canto, enrolado num cobertor manchado de óleo. Ele estava agarrado a uma mota de brincar partida que Razer nem sabia que tinha. Algo na forma como Eli segurava aquele brinquedo atingiu Razer com mais força do que qualquer soco. Ele serviu-se de outro copo de uísque, mas não o bebeu.

“Tens um jeito de me baralhar a cabeça, miúdo,” murmurou ele para a escuridão.

Os dias transformaram-se em semanas. O que começou como “apenas uma noite” tornou-se duas, depois três. A “Iron Haven Garage” mudou.

Eli, percebendo que não estava em perigo, começou a emergir da sua concha. Começou a varrer o chão da oficina, a buscar ferramentas, a fazer perguntas intermináveis.

“O que é que isto faz?” “Porque é que se chama carburador?” “Posso andar numa um dia?”

No início, Razer respondia com grunhidos, irritado com a interrupção. Mas, secretamente, estava divertido. Em breve, deu por si a ensinar, a explicar, a mostrar. Um dia, deu por si a rir. Um riso genuíno e profundo que o apanhou de surpresa. Ele não se ria assim há anos. A garagem, antes um mausoléu de metal frio, tinha agora o som de uma voz aguda a fazer perguntas e o cheiro a noodles a misturar-se com o da graxa.

Uma tarde, Razer encontrou Eli sentado no passeio do lado de fora, a olhar para a rua. “Algo errado?” perguntou Razer. Eli encolheu os ombros. “Só a pensar. Eu gosto disto aqui.” Razer congelou, com uma chave inglesa na mão. “Não te habitues, miúdo. Isto não é propriamente um lar.” “Mas parece,” sussurrou Eli.

Razer virou-se rapidamente, fingindo apertar um parafuso que não precisava de ser apertado. Ele não queria admitir, mas também lhe parecia um lar.

A tranquilidade foi quebrada numa noite de chuva. Dois homens do passado de Razer, dois “Reapers”, apareceram na garagem. Tatuagens, correntes e problemas estampados nos rostos.

“Razer!” gritou um deles, entrando de rompante. “Ouvimos dizer que ficaste mole. A tomar conta de um miúdo agora?”

Razer endureceu. Eli espreitou por detrás de uma prateleira, a tremer.

O homem troçou. “Achas que podes simplesmente abandonar o clube, depois do que fizeste?” “Eu acabei com essa vida,” rosnou Razer. “Não acabaste nada,” sorriu o outro homem. “O chefe quer-te de volta. Ou então…” O punho de Razer cerrou-se. “Diz ao teu chefe que eu enterrei essa parte de mim.” “Que pena,” disse o biker, aproximando-se. “Acho que vamos ter de a desenterrar.”

Foi então que Razer explodiu. Mas não foi o tipo de violência antiga, movida pelo ego ou pela raiva territorial. Isto era diferente. Isto era proteção.

Ele empurrou o primeiro homem contra a parede, torcendo-lhe o braço até a corrente que ele trazia cair no chão. O outro avançou, e Razer encontrou-o com um único soco que ecoou pela garagem. Quando acabou, os dois homens cambalearam para fora, amaldiçoando e coxendo para a chuva.

Eli correu para ele, os olhos arregalados. “Estás bem?” Razer limpou o sangue dos nós dos dedos. “Sim. Só a tratar de negócios antigos.” O lábio de Eli tremeu. “Eles vão voltar, não vão?” Razer olhou para a rua molhada pela chuva. “Não se eu puder evitar.”

Razer não dormiu naquela noite. Ele sentou-se junto à janela, o cigarro a brilhar no escuro, a pensar nas escolhas que definem um homem e nas que o assombram. Ele podia fugir. Ele sempre tinha fugido. Mas agora, pela primeira vez na sua vida, ele tinha algo a perder. E isso assustava-o mais do que qualquer gangue de motards.

Na manhã seguinte, Razer fez uma chamada que tinha evitado durante anos. Era para Darla, uma velha amiga que geria um restaurante nos arredores da cidade. “Preciso de um favor,” disse ele quando ela atendeu. “Que tipo de favor, Razer?” “Há um miúdo. Chama-se Eli. Ele não tem ninguém. Preciso que o ajudes… se algo me acontecer.” Houve silêncio na linha. “Razer,” disse ela suavemente, “estás metido em sarilhos outra vez?” Ele riu-se secamente. “Eu estou sempre.”

Mas os sarilhos não vieram no dia seguinte. Em vez disso, veio algo muito pior.

Uma tarde, Razer e Eli estavam a trabalhar numa Harley velha quando um carro parou lá fora. Um sedan preto e elegante, demasiado polido para a sua rua poeirenta. Uma mulher saiu, segurando uma fotografia, o seu rosto pálido e os olhos a procurar.

“Com licença,” disse ela. “Virgula este rapaz?”

Razer congelou. Era o rosto de Eli.

A mulher apresentou-se como Clare, uma assistente social. Ela andava à procura de Eli há meses, desde a morte da mãe. O rapaz tinha fugido de um lar de acolhimento.

Razer olhou para Eli. O rosto do rapaz ficou pálido. “Eu não quero ir,” sussurrou ele. O coração de Razer torceu-se. “Miúdo…” Eli agarrou-lhe a manga da camisa. “Por favor! Não me obrigues. Tu és a minha família.”

Por um longo momento, Razer não disse nada. Ele podia ouvir a chuva a bater no telhado de zinco, tal como na noite em que o encontrou. Ele agachou-se, colocando uma mão pesada no ombro de Eli.

“Tu tens uma oportunidade de ter uma vida a sério, miúdo. Não a desperdices.” Os olhos de Eli encheram-se de lágrimas. “Mas tu és a minha família.” Razer engoliu em seco, a garganta a arder. “Família nem sempre é quem te viu nascer, Eli. Às vezes, é quem te ajuda a chegar onde tens de estar.”

Uma semana passou. A garagem estava silenciosa novamente. Demasiado silenciosa. Razer tentou trabalhar, tentou afogar o eco das gargalhadas que costumavam encher o ar. Mas nada ajudava. O mundo parecia mais pesado sem a voz aguda do miúdo a perguntar para que servia uma chave inglesa.

Então, numa manhã, bateram à porta.

Ele abriu-a e congelou.

Eli estava lá, a sorrir de orelha a orelha, segurando um saco de papel. “Eu trouxe o pequeno-almoço.”

Atrás dele, Clare, a assistente social, sorriu. “Ele está a ficar com uma família de acolhimento aqui perto. Ele queria fazer uma visita.”

Razer riu. Um riso verdadeiro, profundo, que o surpreendeu até a ele próprio. O peso saiu-lhe dos ombros.

“Bem, não fiques aí parado, miúdo,” disse Razer, abrindo a porta. “Pega numa chave inglesa. Temos trabalho a fazer.”

Enquanto o sol nascia sobre a “Iron Haven Garage”, o som de gargalhadas e de ferramentas a tilintar encheu o ar novamente. Razer tinha vivido uma vida de velocidade, perigo e solidão. Mas naquele momento, rodeado pelo zumbido dos motores e pelo sorriso de um pequeno rapaz, ele percebeu algo simples.

Família não é sobre sangue. É sobre quem fica quando a estrada se torna difícil. E, pela primeira vez em anos, Razer não se sentia perdido. Ele sentia-se em casa.

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