Ele recebeu de um estranho quarenta acres de terra fértil como presente inesperado — mas, ao cavar atrás da cabana, descobriu uma família chinesa inteira vivendo escondida em túneis subterrâneos.

Boon Carter achou que tinha encontrado o paraíso quando um estranho lhe estendeu a escritura de quarenta acres de terra fértil. Três dias depois, parado diante da cabana de madeira, documento apertado nas mãos calejadas, ele entendia melhor o ditado: dádivas grandes costumam vir com preço. O poço funcionava bem, a cerca estava inteira, a terra era escura e macia entre os dedos. Ainda assim, havia algo errado. Atrás da casa, manchas de solo remexido, ervas ralas onde haviam cavado às pressas. Boon ajoelhou, varreu a poeira, e os dedos bateram em madeira. Sob a camada de terra, um alçapão com dobradiças recentes. Preparou-se para erguer a tampa quando ouviu vozes — abafadas, humanas — subindo de baixo. O aroma de arroz cozinhando misturou-se ao cheiro de terra úmida.

Ele baixou o alçapão devagar. O silêncio do subterrâneo ficou espesso. Respirou fundo, desceu pela escada estreita. Quinze pés abaixo, encontrou um espaço cavado com cuidado: paredes de terra reforçadas por pranchas, lamparinas, camas improvisadas. No canto, uma família chinesa se encolhia: um homem de cabelo grisalho à frente da esposa e de uma menina de uns oito anos. As roupas eram simples e limpas, os olhos tinham a fadiga de quem foge há tempo demais.

— Por favor — disse o homem, o inglês duro no acento —, não queremos problema. Vamos embora.

Não eram invasores ao acaso. Aquele abrigo custara tempo, dinheiro, planejamento. Boon abaixou o tom:

— Há quanto tempo vivem aqui?

A mulher falou rápido na própria língua; o homem fez que não com a cabeça e ergueu as mãos num gesto de rendição.

— Dono antigo disse que aqui é seguro. Se novo dono quer que a gente vá…

A menina espiou por trás da mãe com curiosidade viva. Lembrou a Boon a irmãzinha que a febre tomara anos antes. O peito apertou.

— O dono antigo foi Ezekiel Marsh? — perguntou.

O homem assentiu, aliviado.

— Mr. Marsh, bom homem. Ajudou quando outros… — cortou o ar com a mão no gesto universal da degola.

Um galope rompeu a conversa. Cascos se aproximando, rápidos, na direção da cabana. A família empalideceu. O homem apagou as lamparinas às pressas.

— Esconda-se — sussurrou. — Eles vêm por nós. Você não quer estar aqui quando nos acharem.

Boon subiu e espiou por uma fresta. Três cavaleiros. O da frente trazia brilho de insígnia no peito e o semblante duro de quem está acostumado a mandar. Desmontou com economia de movimentos.

— Tarde, Marshall — disse Boon, forçando casualidade.

— Wade Langston — apresentou-se o homem, gelando-o de alto a baixo com o olhar. — Procuro fugitivos. Fontes dizem que se esconderam por aqui. Família chinesa. Homem, mulher e criança. Tenho mandados.

Os dois que o acompanhavam não pareciam delegados; eram pistoleiros de aluguel, mãos sempre perto do coldre. Um, magro e de dentes amarelados, sorriu torto:

— Caçando eles faz semanas. Alguém anda ajudando, mudando de esconderijo, escondendo como rato.

— Não vi ninguém — respondeu Boon, a boca seca. — Recebi a terra faz três dias.

Langston aproximou-se, esporas tilintando.

— Curioso. O dono anterior era Ezekiel Marsh. Ideias… caridosas. Desagradou gente importante.

A ameaça estava ali, limpa. Sob os pés de Boon, uma família prendia o fôlego. O magricela chutou a terra remexida atrás da cabana:

— Alguém cavou aqui há pouco. Parece tampa.

O sangue de Boon gelou. Tinha deixado marcas. Langston agachou, correu os dedos no barro, os olhos presos em Boon.

— Terra fresca. Alguém andou ocupado.

O pistoleiro raspou o calcanhar até bater em madeira. Contato seco.

— Porta — anunciou, excitado.

— Tirem a terra — ordenou Langston.

Boon cutucou a própria coragem. Se achassem a família, não haveria conversa. Um homem mede quem é nas decisões que toma sem tempo. Deu um passo à frente, pondo o corpo entre os homens e o alçapão.

— É o meu porão de raízes — disse, firme além do que sentia. — E não gosto de ver estranhos arrancando meu chão sem mandado.

— Seu porão? — Langston semicerrrou os olhos. — Engraçado você não mencionar antes.

— Não achei que precisava explicar cada buraco da minha terra. Mas, se tanto quer ver, eu mesmo abro.

O magricela olhou para o chefe. Langston fez um gesto curto. Boon limpou a madeira devagar, comprando segundos. Pegou o anel de ferro. “Pelo amor de Deus, entendam”, pensou, falando alto:

— Construi para guardar comida no calor. Batata, cebola… algumas precisam de proteção.

— Fundo para um porão — resmungou o pistoleiro mais pesado.

— Abra — cortou Langston, sacando o revólver e apontando, casual, para as costas de Boon.

A tampa gemeu. Boon desceu primeiro. A surpresa o reteve: vazio. Sem camas, sem lamparinas, sem cheiro de arroz. Cantos limpos de qualquer presença. Ele subiu a voz:

— Como falei. Porão.

Ao girar para subir, viu: pegadas novas na terra fofa, indo até a parede de sombra. Estavam ali, num túnel que não vira às escuras. Langston meteu-se pela abertura, revólver em punho, dedos roçando os esteios.

— Madeira nova. Porão caprichado. E não cheira a legumes, senhor Carter — comentou, estreitando o olhar. — Cheira a gente morando.

— Marshall! — gritou o magricela do lado de cima. — Encontrei isso.

Lá foram. Do lado de fora, o homem segurava um retalho de seda azul presa num prego junto à porta dos fundos. Bordados finos. Rasgo fresco.

— Ainda quer jurar que não viu chinês por aqui? — Langston devolveu, já saboreando a captura. — Vasculhe tudo — ordenou ao magro. — Se tem passagem, quero saber.

Boon sentiu o controle sumir. O magricela reapareceu lá embaixo, botas arranhando o fundo, e sua voz ecoou: túneis para todo lado. Cobertores. Comida. Ficam quentes mais ao fundo. O cerco fechava.

Langston virou-se para Boon, perto o bastante para que ele sentisse o hálito de tabaco.

— Você está protegendo eles. Por quê? Pagaram? Ou você é desses que sangram o coração por qualquer um?

— Não sei do que fala — mentiu Boon, e a mentira soou oca até para si.

— Quando meu homem achar, você enforca com eles — prometeu Langston, frio.

Antes que o destino se selasse, o som salvador: mais cascos, vindos do leste. Três cavaleiros a galope. O mais velho, barba grisalha, estrela de DEPUTY no peito.

Langston praguejou:

— Morrison… O que o maldito faz aqui?

Deputy Morrison desmontou com a segurança de quem não veio pedir favor.

— Wade Langston, você está preso por conspiração, extorsão e assassinato — disse, mostrando o mandado. — O Juiz Territorial expediu há três dias. Ezekiel Marsh deixou prova de tudo antes de você matá-lo.

Os pistoleiros levaram as mãos às armas, mas os rifles dos acompanhantes de Morrison já estavam apontados. Lá embaixo, o magricela gritou, confuso. Morrison inclinou-se sobre o alçapão:

— Suba devagar, mãos à vista. Estão todos presos.

O homem emergiu derrotado. Morrison voltou-se a Boon:

— Você é Boon Carter. Ezekiel o mencionou na carta ao tribunal. Disse que era homem bom, que merecia chance de provar.

Boon assentiu, a cabeça tentando alcançar o ritmo dos acontecimentos.

— A família… são inocentes.

— Sabemos — disse Morrison. — Por dois anos Ezekiel ajudou perseguidos a chegar à Califórnia. Estes três aguardavam passagem.

Em minutos, Langston e seus homens estavam amarrados. O marshall corrupto tinha nos olhos o choque de quem percebeu que a proteção acabou. Boon se inclinou sobre a abertura e chamou:

— Está seguro. A lei de verdade chegou.

A cabeça do pai surgiu, depois a da mãe e a da menina. Cansados, sujos, vivos. Morrison falou com respeito, pausado para ser entendido:

— Há uma caravana para a Califórnia partindo semana que vem. Gente boa. Papéis em ordem. Proteção legal. Vocês vão com eles.

O homem curvou-se, lágrimas cortando o pó do rosto.

— Obrigado.

Antes de partir, Morrison entregou a Boon um papel selado:

— A Corte Territorial confirma a posse. O testamento de Ezekiel é claro: queria que esta terra ficasse com você.

Boon olhou ao redor: a cabana, o celeiro, o solo rico, os túneis. Não era só propriedade. Era encargo. Era propósito. Entendeu por que um velho de olhos gentis lhe aparecera com uma escritura: não para livrá-lo da fome, mas para passá-lo adiante a tarefa de proteger.

Três meses depois, Boon Carter permaneceu no mesmo ponto do quintal, onde um dia encontrara o alçapão. A família chinesa chegara em segurança à Califórnia. Duas outras passaram pelo abrigo desde então, em rotas discretas e noites sem lua. Aprendera a esconder melhor as entradas, a distribuir mantimentos, a ler as trilhas pelo som e pelo cheiro. O milho crescia alto, o poço seguia claro, e, quando o vento trazia, de longe, o rumor de cascos, Boon não pensava mais em se esconder: pensava no que fazer para ganhar tempo suficiente até os aliados chegarem.

Nem todo presente é armadilha. Algumas dádivas exigem que o homem pague com coragem, dia após dia. Boon pagava. E, entre a horta e as pranchas novas dos túneis, descobriu que esse era o tipo de dívida que vale a pena.

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