
O sol do sertão da Bahia queimava alto quando o sino da fazenda tocou, anunciando mais um dia de luta contra a terra. O chão era duro, o vento seco, e o cheiro de suor misturado à poeira fazia parte da rotina dos Vieira. No portão principal, Jonas Vieira, o fazendeiro, observava o horizonte. Tinha apenas vinte e nove anos, mas o tempo e as perdas o haviam envelhecido por dentro. Ele era o homem que todos chamavam de o fazendeiro das 19 noivas.
Ele limpava o rosto com o lenço surrado quando ouviu o barulho de rodas na estrada. Uma carroça se aproximava, levantando poeira vermelha. As sete crianças corriam ao redor, curiosas, com roupas simples e pés descalços. O condutor parou diante do portão e apontou para trás. Trouxe a moça, seu Jonas. É ela que veio pro trabalho.
Jonas ergueu o olhar e viu Elisa Moura descer, segurando uma mala de couro gasta. Vestia um vestido claro e o cabelo trançado, preso com fita. O vento levantou a poeira e, por um instante, o silêncio dominou tudo.
Jonas cruzou os braços e falou com a voz firme, sem rodeios. — A senhora sabe onde está se metendo?
Ela assentiu devagar. — Sei sim. O senhor precisa de ajuda e eu preciso recomeçar.
Ele arqueou as sobrancelhas, desconfiado. — Já vieram outras antes da senhora, dezenove, para ser exato. Nenhuma ficou.
Elisa manteve o olhar firme, sem abaixar a cabeça. — Talvez elas tenham vindo pelo motivo errado.
— E a senhora veio por quê? — Jonas se aproximou um passo, impaciente e curioso.
Ela respondeu simples, sem hesitar. — Vim por paz.
O fazendeiro sentiu um aperto no peito, mas disfarçou. — Paz não é o que se acha aqui, moça. Aqui se acha trabalho, e muito trabalho.
Elisa olhou em volta, viu as crianças tentando esconder o riso e respondeu com serenidade. — Trabalho nunca me assustou, a falta de propósito, sim.
Jonas respirou fundo e abriu o portão. Ele pensou com um misto de ironia e esperança: Vamos ver quanto tempo ela aguenta. Mal sabia ele que daquela vez seria diferente, que aquelas palavras simples mudariam o destino de toda a fazenda.
Jonas Vieira era conhecido por todo o sertão de Santa Aurora como o homem que perdeu a mulher, Mariana, e nunca mais sorriu. Ele calou-se, trabalhou dobrado e jurou a si mesmo que nunca mais deixaria ninguém entrar em sua vida. As dezenove mulheres que vieram antes fugiram; bastava ver as sete crianças e o rosto endurecido do fazendeiro.
Naquele fim de tarde, Jonas observava Elisa no varal. Ela não reclamava, não suspirava cansada. Ele perguntou, seco: — A senhora não acha esse trabalho pesado?
Elisa sorriu sem parar o que fazia. — O que é pesado para quem já carregou o coração partido, seu Jonas?
Ele ficou em silêncio. No jantar, um dos meninos perguntou: — Pai, essa moça vai embora também?
Jonas olhou para o filho, depois para Elisa, e respondeu baixo: — Vamos ver, filho. Vamos ver.
Ela apenas sorriu e continuou servindo o feijão.
Na cozinha, à noite, Elisa pensava. O que será que esse homem carrega no peito para ser tão triste assim?
Nos dias seguintes, Elisa começou a mudar o ritmo da fazenda. A cozinha antes silenciosa, agora tinha cheiro de bolo de milho e som de risadas. Ela tratava cada tarefa como parte de uma prece. Certa tarde, Jonas aproximou-se com um balde de leite fresco.
— A senhora não se cansa? Não?
— Cansaço é coisa da alma, seu Jonas. Quando a gente tem paz por dentro, o corpo aguenta o mundo.
Ele ficou sem resposta.
Numa noite, enquanto ela costurava, Jonas decidiu quebrar o silêncio. — Deixei para trás uma vida inteira. Eu ia me casar, mas no dia do casamento ele não apareceu. Fiquei sozinha diante de todo mundo. Fui motivo de riso, de pena e de vergonha.
Jonas a olhou com dor. — O mundo é pequeno para quem acha que o nome vale mais que a palavra.
— E o senhor, o que perdeu para ficar desse jeito?
— Tudo, mulher. Sossego, até a fé.
— E ainda assim o senhor levanta todo dia e trabalha. Isso é fé, mesmo que não admita.
Ele sorriu de leve, o primeiro riso em muito tempo. O acordo entre eles havia começado como um limite, mas se tornava, aos poucos, uma ponte.
O tempo passou e o calor aumentou. A seca mostrava os dentes. Jonas passava os dias tentando salvar o pouco que restava da lavoura, pensando em vender parte da fazenda.
Certa tarde, sentado na varanda, ele falou, olhando para o nada: — Não tem mais jeito, Elisa. Essa terra já deu o que tinha para dar. Vou vender tudo.
Elisa, que costurava ao lado, levantou o olhar. — Terra nenhuma desiste do homem que trabalha com o coração. O senhor precisa acreditar que vai chover.
— Acreditar não faz nuvem aparecer, moça.
— Mas faz o homem não desistir — respondeu ela, com firmeza.
Os dias seguintes foram de castigo. Mas Elisa não desistia. Todos os dias, bem cedo, saía com as crianças, plantava mudas pequenas e cantava: Grão, mesmo sem ver nuvem. A chuva chega para quem insiste.
O mês foi chegando ao fim. O último dia amanheceu quente, sufocante. À noite, ela apareceu na varanda.
— O senhor está fugindo de mim, seu Jonas.
— Não é fuga, é vergonha.
— O senhor acha mesmo que a chuva não vem?
— Acho que Deus esqueceu desse pedaço de chão.
— Então, talvez ele esteja esperando o senhor lembrar-se dele primeiro.
Jonas olhou para ela e, por um instante, algo se quebrou dentro dele. Ele baixou a cabeça. — Eu não sei mais rezar, Elisa.
— Então, deixa que eu rezo pelos dois.
Os dois ficaram ali de olhos fechados. O silêncio do sertão foi interrompido por um trovão distante. Jonas abriu os olhos. O vento soprou frio e uma gota caiu no ombro dele. Depois outra e outra. De repente, o céu se abriu. A chuva caiu pesada, lavando a terra, as lágrimas, o desespero.
Elisa virou-se para ele e sorriu. — Eu disse que a chuva vinha, seu Jonas.
Ele caminhou até ela lentamente. — Pois é! E veio junto com a senhora.
A chuva caía como bênção, lavando o passado dos dois. E naquele momento, sob o som do trovão, Jonas entendeu que talvez a promessa não fosse pela chuva, mas pela esperança que ela trazia. O sertão, pela primeira vez em muito tempo, respirava vida. E no meio daquela água que caía, o amor começava, enfim, a florescer.
Nos dias seguintes, a fazenda prosperou. A promessa estava cumprida. Elisa ficaria. Numa tarde, no pomar, Jonas se aproximou.
— Eu tenho tentado encontrar as palavras certas, mas não sou homem de flor, nem de verso. Desde que a senhora chegou, a casa mudou. Eu mudei. Não sei se é amor, mas sei que é falta.
Elisa abaixou os olhos. — O senhor é um homem bom. Mas o meu coração ainda tem medo.
— Não vou lhe pedir pressa. Só vou pedir uma coisa. Deixe que eu fique do seu lado, mesmo sem beijo. Eu sei esperar.
— Esperar também é amor, seu Jonas. Às vezes é o mais difícil.
A promessa foi selada com a gravação de suas iniciais no tronco de uma laranjeira.
As semanas que seguiram foram de calmaria aparente, até que Henrique Alvarenga, o filho do intendente, apareceu.
— Procuro por Elisa Moura. Ela era para ter sido minha esposa. Eu errei, seu Vieira. Fui covarde, mas voltei para consertar. Quero levar Elisa comigo.
— Não, Henrique, não tem mais volta — disse Elisa, firme. — Eu quis amor, Henrique, e o Senhor me deu vergonha.
Henrique se voltou para Jonas. — E o senhor acha que ela vai ser feliz aqui, nesse fim de mundo?
Jonas respondeu com calma, mas os olhos queimavam. — Felicidade não é coisa que se compra com promessa, doutor. É coisa que se planta com verdade.
— Eu já me arrependi uma vez, não duas — disse Elisa. — Eu quero ficar, seu Jonas, mas dessa vez por mim.
O passado se retirou, mas o corpo de Jonas, castigado pelo trabalho, começou a falhar. Ele adoeceu gravemente, tossindo e definhando.
— Eu não vim até aqui para ver você partir — disse Elisa, segurando a mão dele. — Eu prometi para mim que ia ficar e vou, nem que seja para brigar com Deus.
A recuperação foi lenta. Meses depois, Jonas a encontrou na varanda, a segurar uma argolinha de prata gasta, da mãe dele.
— Eu não sou homem de discurso, Elisa. Sou homem de promessa. Quer se casar comigo sem festa, sem fogos, só com verdade?
— Quero — disse ela, com um sorriso que parecia a primeira colheita. — Mas com uma condição: casar para ser abrigo um do outro, não muralha.
Casaram-se no domingo seguinte, ao pôr do sol. O Dr. Lacerda abençoou a união. No fim da fila dos cumprimentos, o tabelião Juca Nogueira entregou um registro.
— Declaro que os sete meninos desta casa não nasceram de meu sangue. São filhos de trabalhadores que perderam pai e mãe na grande seca. Minha falecida Mariana e eu prometemos diante de Deus e desta terra criá-los como nossos. Onde viram peso, eu vi graça.
Um silêncio fundo pousou no terreiro. Os olhos de Elisa se encheram de lágrimas. Ali estava a verdade que explicava a dor de Jonas e o seu medo de que as noivas fugissem. Ele não era frio; era um homem que carregava um milagre silencioso.
— Eu ia contar — disse ele, a voz rouca. — Mas toda vez que tentei, achei que iam pensar que eu buscava piedade. Não busquei. Busquei família e encontrei.
— Você me deu o que ninguém tinha para dar — disse Elisa, tocando o rosto dele. — Verdade inteira.
— Registra outra coisa, seu Juca. Hoje, além de marido e mulher, a gente registra uma palavra que pouca gente entende: parentesco por promessa. Esses meninos são meus por voto. E a mulher que casa comigo, casa com esse voto também.
Elisa assentiu, sem medo. Casou com todos, com a casa, com a roça, com os ventos e com quem o destino trouxe para debaixo daquele teto. Onde o mundo tinha lido o escândalo, havia, na verdade, uma história de adoção, coragem e amor escolhido. E na varanda, sob o céu que um dia negara a chuva, o amor que começou em meio à seca terminou como uma promessa cumprida, porque há amores que não acabam, apenas mudam de lugar e viram raiz.