O Escândalo Mais Sujo da Europa: A Verdade Sobre Catarina, a Grande, e um Cavalo

O Palácio de Inverno, conforme reporta este jornalista, erguia-se naquela madrugada como uma criatura silenciosa e imensa, quase indiferente ao destino da mulher mais poderosa da Europa. Lá fora, São Petersburgo estava aprisionada num frio tão denso que parecia capaz de quebrar o mármore. Lá dentro, em um quarto iluminado apenas por candelabros trêmulos, o tempo havia começado a parar. Era novembro de 1796 e Catarina II, depois de 34 anos governando um império descomunal, jazia inconsciente após um derrame cerebral.

Os cortesãos, os médicos, os serviçais, todos caminhavam como sombras, como se temessem que qualquer ruído pudesse despertar a própria história. Ninguém dizia em voz alta, mas todos sabiam: a imperatriz estava morrendo. A mulher que havia redesenhado fronteiras, derrotado exércitos inteiros e reinventado a identidade cultural da Rússia se apagava sem pronunciar uma palavra final. Os médicos haviam reconhecido sua impotência com olhares que evitavam se cruzar. Não havia mais remédios, não havia mais preces capazes de reverter o curso do destino. Só restava a espera, uma espera longa, gelada, esticada como uma fita que ameaçava romper a qualquer momento.

Mas o verdadeiramente arrepiante não estava no quarto e sim para além daqueles muros dourados. Apenas um dia após sua morte, a Europa inteira começaria a sussurrar. Não sobre seus triunfos militares, nem sobre a anexação da Crimeia, nem sobre as epopeias diplomáticas que a haviam transformado em um titã político. Não. O que correria pelas ruas, pelos salões aristocráticos, pelos cafés onde a elite se alimentava de fofocas como se fossem verdade revelada, seria algo distinto, algo sombrio, algo projetado não para explicar sua morte, mas para destruir sua memória: uma mentira. Uma mentira tão perfeita que sobreviveria mais do que a verdade. A história dizia que a imperatriz não havia falecido por causas naturais, mas em meio a um encontro proibido com um cavalo, vítima de um mecanismo que falhara de forma catastrófica. Uma imagem brutal, impossível, mas tão escandalosa que só precisava de um sussurro para se transformar em um incêndio.

Durante meses, depois durante décadas, a história viajaria como uma sombra sem dono em panfletos clandestinos, em caricaturas, em piadas veladas e, depois, com o tempo, se transformaria em uma dessas verdades populares que ninguém se preocupa em verificar, porque o morbo é mais tentador do que os fatos. O inquietante é que a lenda nasceu com precisão cirúrgica, quase como se quem a inventou tivesse entendido profundamente como funciona a mente humana. As pessoas não lembram de dados, lembram de emoções; não repetem datas, repetem escândalos. E em um continente que ainda se debatia entre a Ilustração e os preconceitos medievais, uma mulher que havia governado melhor que a maioria dos homens era um alvo perfeito demais. Por que essa história sobreviveu dois séculos, enquanto outros escândalos reais evaporaram no ar? Essa é uma pergunta que pesa como uma pedra no fundo de um poço, porque revela algo incômodo: às vezes as sociedades não querem justiça nem verdade; querem um relato que confirme seus medos, seus preconceitos, seus desejos mais ocultos. E Catarina, poderosa, carismática, independente e temida, representava exatamente o que muitos queriam derrubar.

O que está prestes a se desenvolver neste relato não é apenas a vida de uma imperatriz, mas a anatomia de uma mentira que se transformou em mito. Uma mentira que a Europa alimentou com zelo quase religioso. Uma mentira que, ainda hoje, na era da informação imediata, milhões continuam acreditando. E talvez, para além do escândalo, o verdadeiramente perturbador seja compreender que a história nem sempre é escrita pelos vencedores e sim por aqueles que narram com mais veneno. Este é o começo dessa sombra. Para entender como uma mulher terminou convertida no fantasma favorito da propaganda europeia, devemos regressar à origem.

Muito antes de o mundo a conhecer como Catarina, a Grande, ela foi simplesmente Sofia Frederica Augusta, uma menina nascida em 1729 em Estetino, uma cidade fria e periférica da Prússia. Sua família pertencia a uma nobreza menor, mais rica em títulos do que em poder real. Naquele ambiente, Sofia cresceu rodeada de disciplina militar prussiana, rituais sociais estritos e um futuro que parecia já escrito: um casamento vantajoso, se a sorte permitisse, ou uma vida cinzenta, se não. Mas a história raramente obedece aos planos que os adultos elaboram. Aos 14 anos, o destino bateu à sua porta com a precisão implacável da política europeia. Havia sido selecionada como possível esposa para o herdeiro do trono russo. Não era um reconhecimento à sua linhagem, nem um sinal do favor divino; era simplesmente a engrenagem de uma maquinaria diplomática que usava princesas como peças intercambiáveis. E, no entanto, nessa aparente casualidade escondia-se a oportunidade que transformaria Sofia em mito.

A viagem para a Rússia foi mais do que um trajeto físico; foi uma espécie de purificação forçada. A jovem cruzou florestas intermináveis, cidades alheias e fronteiras invisíveis enquanto deixava para trás tudo o que um dia havia sido. Quando chegou a São Petersburgo, o choque cultural foi imediato e contundente. A corte russa era um mundo estranho, exuberante, imprevisível, um lugar onde o luxo deslumbrante convivia com intrigas que podiam destruir uma vida em um único dia. Ali conheceu Pedro, o homem que a tradição lhe havia atribuído como esposo. Ou melhor, ali descobriu que seu casamento seria o início de uma longa cadeia de decepções.

Pedro, herdeiro do império mais vasto da Europa, não se comportava como um príncipe, nem como um futuro czar, nem sequer como um adulto. Sua obsessão infantil por brinquedos militares prussianos, sua volatilidade emocional e sua incapacidade de assumir responsabilidades marcaram o início de uma convivência que logo se transformaria em tormento. O que na aparência era uma história de ascensão—a princesa estrangeira que chega para se tornar imperatriz—revelou-se muito rapidamente como uma prisão decorada com ouro. Pedro não a respeitava, não a escutava e não mostrava o menor interesse em seu bem-estar. Pior ainda, a ridicularizava na frente da corte, exibia amantes sem pudor e deixava claro que a considerava um estorvo. Para uma jovem em um país cuja língua mal compreendia, rodeada de inimigos silenciosos e isolada de sua família, a sensação de abandono foi tão profunda que poderia tê-la destruído.

Mas Sofia não era uma vítima passiva. E aí começa a parte mais fascinante de sua transformação. Naquele ambiente impiedoso, a jovem decidiu não afundar; decidiu observar, estudar, adaptar-se. Entendeu que na corte russa a informação era poder, as alianças eram armas e a paciência era a única moeda capaz de comprar o futuro. Mudou seu nome para Catarina ao se converter à ortodoxia, um ato simbólico que marcava seu renascimento político e, a partir desse momento, iniciou uma estratégia de sobrevivência que nenhum cortesão chegou a compreender totalmente. Este período, que tantos historiadores descrevem como os anos de escuridão, foi também o laboratório onde Catarina aprendeu suas maiores lições: como ler silêncios, como identificar ameaças veladas, como seduzir sem se entregar, como ganhar influência em um mundo que não estava projetado para que ela existisse. O irônico é que foi precisamente essa prisão emocional que a temperou como aço, porque antes de governar a Rússia, Catarina aprendeu a governar a si mesma. E essa foi a chave que mudaria a história.

Os 17 anos que Catarina viveu como Grande Duquesa foram um purgatório silencioso, um corredor interminável onde cada passo parecia conduzi-la mais fundo a uma escuridão na qual ninguém apostava nela. Oficialmente, era a esposa do herdeiro do trono. Na prática, era uma sombra, uma presença decorativa em um palácio que respirava intrigas, ciúmes e jogos de poder. Era observada, julgada, manipulada, mas raramente escutada. No entanto, essa invisibilidade foi sua melhor mestra. Enquanto Pedro afundava cada vez mais em suas fantasias militares, Catarina começou um projeto clandestino de sobrevivência. Estudou obsessivamente o idioma russo até falá-lo com uma fluência que seu próprio marido jamais alcançou. Analisou a história da dinastia Romanov, as tensões políticas entre nobreza, clero e exército, e os caprichos temperamentais da Imperatriz Isabel. Compreendeu que na Rússia, mais do que em qualquer outro lugar da Europa, o poder não era uma coroa, mas uma corrente: fluía para quem soubesse entendê-la e se afastava de quem a subestimasse. E Catarina jamais a subestimou.

Logo descobriu que a solidão também podia se converter em arma. Em um ambiente onde a fraqueza era mortal, decidiu cultivar aliados, não com promessas vazias, mas com inteligência emocional. Conversava, escutava, observava. Tinha o talento de se apresentar como alguém útil, confiável, inclusive imprescindível, sem levantar suspeitas. Este dom, que alguns descreveriam mais tarde como manipulação, era na realidade a única ferramenta que lhe permitia sobreviver. Suas relações amorosas durante este período —as que tantos panfletos difamariam séculos depois— não foram caprichos juvenis, mas estratégias calculadas. Catarina descobriu que os homens que se apaixonavam por ela não só ofereciam afeto, mas também proteção em um ambiente onde a corte podia se tornar mortal em questão de horas. Essas relações lhe asseguraram simpatias militares, respaldo econômico e, sobretudo, a possibilidade de ter um herdeiro quando o casamento com Pedro parecia condenado ao fracasso absoluto.

O nascimento de Paulo foi um ponto de inflexão. Embora a paternidade biológica tenha sido objeto de rumores intermináveis, para a corte aquilo não importava. O que importava era que a Rússia tinha um futuro czar. E se a Rússia tinha um futuro czar, Catarina se convertia imediatamente em um pilar imprescindível do Estado. Em um império onde a estabilidade era um tesouro escasso, a mãe do herdeiro sempre era necessária e, portanto, poderosa. Mas a ameaça continuava ali. Catarina sabia que sua posição podia evaporar de um dia para o outro se Pedro decidisse repudiá-la, se um rival a acusasse de conspiração ou se algum aliado chave caísse em desgraça. Assim, ela continuou tecendo sua rede, uma rede feita de lealdades frágeis, favores secretos, silêncios comprados e conversas aparentemente inocentes que guardavam intenções muito precisas. Sua vida era um xadrez contínuo no qual jamais podia deixar seu rei descoberto.

O mais surpreendente é que este longo período de marginalização não a endureceu a ponto de torná-la cínica, como ocorreu com tantos outros nobres presos em estruturas de poder absolutas. Pelo contrário, alimentou nela um fogo que poucos haviam visto: a convicção absoluta de que merecia um destino maior. Essa certeza, mistura de orgulho, inteligência e fome de liberdade, foi o que a sustentou quando tudo parecia desmoronar. Enquanto Pedro zombava dela em público, ela ganhava aliados em privado; enquanto ele ignorava as necessidades do império, ela memorizava relatórios diplomáticos; enquanto ele brincava de ser rei, ela se preparava para governar. E embora ainda não o soubesse, o mundo estava começando a se inclinar lentamente a seu favor. Este período de 17 anos é frequentemente narrado como um tempo de humilhação, mas na realidade foi o laboratório onde Catarina se forjou como estadista. Foi aí onde consolidou sua visão do poder, sua compreensão da psicologia humana e sua habilidade para se mover em terreno perigoso sem deixar rastros visíveis. Porque antes de se converter em imperatriz, Catarina aprendeu a arte mais difícil de todas: sobreviver em silêncio enquanto construía, peça por peça, o caminho para o trono, um caminho que já começava a inquietar aqueles que a cercavam.

Quando a Imperatriz Isabel morreu em 1761, todo o tabuleiro político da Rússia mudou em questão de dias. E com ele mudou também o destino de Catarina. Seu esposo Pedro tornou-se finalmente czar. Mas, longe de consolidar sua autoridade, sua ascensão revelou com crueza que estava completamente incapacitado para governar um império tão vasto e volátil. Durante anos, a corte o havia tolerado porque não tinha poder real. Agora que tinha tudo, ninguém podia ignorar sua incapacidade. Desde o primeiro dia, Pedro parecia decidido a se desentender com aqueles que cimentavam a fortaleza do império. Em política exterior, deu uma guinada tão brusca quanto suicida: retirou a Rússia da Guerra dos Sete Anos, justo quando o país estava perto de obter vitórias decisivas. Para a aristocracia militar, uma casta orgulhosa, disciplinada e profundamente conectada com a identidade nacional, aquilo foi uma traição imperdoável. Soldados que haviam perdido amigos, terras, sangue e anos de sua vida em campanha agora olhavam o novo czar como um traidor à glória russa.

Mas não foi só o exército que se voltou contra ele. A Igreja Ortodoxa, instituição que havia moldado durante séculos a espiritualidade e a identidade russa, ficou horrorizada com as ideias de reforma improvisadas do novo monarca. Pedro propunha secularização abrupta que não só desafiava a tradição, mas colocava em risco a estrutura econômica do clero. Era um choque direto com um dos pilares mais antigos do Estado. A fé na Rússia não era simplesmente religião; era poder, território, influência, identidade coletiva. O czar que não entendia isso estava cavando sua própria tumba política. E como se quisesse garantir que não lhe restasse nenhum aliado, Pedro cometeu um erro pessoal que acenderia o estopim do desastre: humilhou Catarina publicamente, ameaçou divorciar-se dela, despojá-la de seu título e trancá-la em um convento. Disse isso com crueldade, sem medir consequências, sem compreender que a mulher que ele acreditava fraca havia passado 17 anos construindo uma rede invisível que agora começava a se tensionar, pronta para ser ativada.

Este foi o momento exato em que o destino se inclinou para Catarina. Com cada passo errático de Pedro, as elites russas faziam a mesma pergunta em silêncio: “Pode este homem nos governar?”. E quanto mais crescia a dúvida, mais presente aparecia a figura de Catarina como alternativa. Não estava no trono, mas tinha disciplina, inteligência, domínio do idioma, vínculos com o exército e uma capacidade política que até seus inimigos reconheciam com temor. O império encontrava-se diante de um paradoxo perigoso: o czar tinha o título, mas sua esposa tinha a legitimidade. Na Rússia, este desequilíbrio era explosivo.

Catarina sabia que não podia agir precipitadamente. A Rússia era um império onde os movimentos imprudentes eram pagos com o exílio ou a morte. Assim, continuou a se mover com a astúcia de quem caminha sobre gelo fino. Recebia relatórios secretos, escutava murmúrios nos corredores, avaliava lealdades ao seu redor. Figuras chave do exército, da nobreza e da guarda imperial começaram a se aproximar dela, não só com respeito, mas com uma discreta expectativa. O destino não costuma se anunciar, mas aquela vez o fez. O regimento Izmailovski, uma das unidades mais prestigiadas do império, começou a manifestar seu apoio a Catarina em privado. Soldados, oficiais, comandantes, todos sabiam que a Rússia precisava de uma liderança firme. E como uma corrente subterrânea que cresce silenciosamente até se transformar em rio, a ideia do golpe começou a tomar forma. Enquanto isso, Pedro seguia vivendo em seu próprio mundo. Não percebia a tempestade que se formava bem diante dele. Desprezava Catarina a ponto de não a ver como ameaça. E esse foi seu erro mais fatal: a ignorância política é perigosa; combiná-la com arrogância a torna mortal.

Catarina, no entanto, via tudo com clareza cirúrgica. Sabia que sua vida dependia de agir antes que Pedro cumprisse suas ameaças. Sabia que não teria uma segunda oportunidade. E sabia, sobretudo, que a história favorece aqueles que são capazes de tomar decisões no momento exato. E esse momento estava chegando. Muito em breve, os murmúrios se transformariam em ordens, a lealdade silenciosa se converteria em ação, e o império mais vasto do mundo ia presenciar uma das operações políticas mais precisas e mais enigmáticas de sua história. A sombra estava se preparando para reclamar o trono.

O amanhecer de 28 de junho de 1762 não parecia diferente dos demais. Mas nos corredores do Palácio de Inverno, algo vibrava como uma corda tensa, prestes a se romper. Catarina estava há semanas recebendo sinais, promessas veladas, gestos discretos de apoio. Tudo convergia para aquele único instante: o golpe deveria ser executado antes que Pedro agisse contra ela. Em um império onde uma única decisão podia significar a glória ou a aniquilação, a precisão era vital. E Catarina havia aprendido a esperar o segundo exato em que a história exalava e permitia o movimento.

O plano foi ativado com uma simples frase: “É o momento.” Soldados do regimento Izmailovski, oficiais leais e membros influentes da guarda se coordenaram quase como uma coreografia silenciosa. Catarina foi escoltada até a Catedral de Kazan, onde em um ato que beirava o teatral e o sagrado, foi proclamada a Imperatriz de Todas as Rússias. Em questão de minutos, o símbolo havia precedido à realidade. A imagem de Catarina com uniforme militar, montando a cavalo em frente às tropas, gravou-se na memória coletiva como o nascimento de uma lenda.

Enquanto isso, Pedro estava em um palácio próximo, completamente alheio à magnitude do que estava acontecendo. Quando recebeu a notícia, não reagiu como um czar, mas como um homem que não compreendia a gravidade do mundo que o cercava. Tentou negociar, implorou apoio, buscou aliados, mas já era tarde demais. Nenhuma instituição forte o respaldava: nem o exército que ele havia humilhado, nem a igreja que ele havia ofendido, nem a nobreza que ele havia ignorado. O que se seguiu não foi um confronto épico, mas um colapso silencioso. Pedro foi detido e obrigado a assinar a abdicação. O documento levava sua assinatura trêmula, como se a tinta estivesse encharcada de medo. Havia passado de czar a prisioneiro em menos de 24 horas. Catarina, em contrapartida, havia passado de sombra a soberana em um movimento tão audacioso que até seus críticos posteriores não puderam evitar reconhecer sua maestria política.

A morte de Pedro, dias depois, foi um episódio envolto em penumbra. As fontes oficiais falaram de complicações relacionadas com uma hemorroida, uma explicação tão absurda que nem mesmo quem a escreveu acreditou. Os historiadores concordam que ele foi assassinado por membros da guarda, provavelmente durante uma discussão que saiu do controle, e que Catarina não estava presente. No entanto, a pergunta que se repetiria durante séculos seria: “Ela sabia?”. A resposta depende de qual versão da história o ouvinte está disposto a aceitar. O certo é que ela não precisou dar a ordem explícita. Em um sistema político onde o poder mudava de mãos como uma tempestade repentina, os subordinados frequentemente agiam antes de receber instruções, antecipando o que acreditavam que agradaria ao novo soberano. A morte de Pedro não fortalecia totalmente a posição de Catarina, porque ela sabia que um mártir pode ser mais perigoso do que um inimigo vivo, mas eliminava qualquer possibilidade de uma contrarrevolução imediata.

O fascinante é observar como em questão de dias Catarina consolidou seu poder com uma serenidade quase inquietante. Não celebrou publicamente, não demonstrou exultação. Governou desde o primeiro instante com a frieza pragmática de quem sabe que os olhos do mundo a estavam avaliando. Era estrangeira, mulher e havia tomado o trono por meio de um golpe. Qualquer sinal de fraqueza teria sido fatal. Assim, ela se tornou a imagem perfeita da autoridade: clara, decisiva, inquestionável. E foi justamente esta mistura de audácia e controle absoluto que semeou o terreno para a propaganda posterior.

Os panfletos inimigos não demoraram a retratá-la como uma conspiradora calculista, uma mulher capaz de manipular exércitos e assassinar maridos para satisfazer sua ambição. A história do cavalo, que apareceria décadas depois, nasceu dessa percepção inicial. Uma narrativa que não buscava explicar a verdade, mas castigar a transgressão de uma mulher que ousara romper a ordem natural. Porque no século XVIII, a ordem natural era simples: as mulheres podiam ser musas, mães ou mártires, nunca imperatrizes por mérito próprio. Catarina havia quebrado esse princípio, e a Europa jamais a perdoou. Mas naquele verão de 1762, enquanto o império aceitava lentamente sua nova soberana, uma coisa era evidente: a Rússia acabava de entrar em uma nova era. E o mundo não demoraria a ver do que aquela mulher que passou 17 anos esperando este momento era capaz. A ascensão havia terminado, agora começava o reinado.

O reinado de Catarina I não começou com estrondos nem celebrações exuberantes, mas com uma calma tensa, como se todo o império estivesse prendendo a respiração. A Rússia era um colosso imenso, difícil de governar até para os monarcas mais experientes. No entanto, desde os primeiros meses, Catarina demonstrou que não havia chegado ao trono para se limitar a preservar a ordem existente. Seu olhar estava focado em algo muito mais ambicioso: transformar a Rússia em uma potência moderna, respeitada e temida em igual medida.

Em política exterior, sua visão era tão clara quanto implacável. Ela compreendeu que a Rússia, para conservar seu lugar no mapa do poder europeu, deveria se expandir. Assim, empreendeu campanhas que redefiniram de maneira permanente a geografia política do continente. Duas guerras contra o Império Otomano não foram simples conflitos territoriais, foram manobras estratégicas destinadas a assegurar acesso ao Mar Negro, uma porta crucial para o comércio global. A anexação da Crimeia em 1783, um de seus maiores triunfos, consolidou esse sonho imperial e marcou o início de uma nova era de influência russa. Mas a expansão não terminou ali. Catarina interveio nas partições da Polônia, absorvendo vastas regiões ocidentais que ampliaram o tamanho do império em mais de 500.000 km². Do ponto de vista diplomático, foi uma jogada fria e controversa, mas da perspectiva russa, foi recebida como um ato de grandeza nacional. Seu nome começou a ser mencionado junto ao de Pedro, o Grande, não como comparação, mas como rivalidade histórica: quem havia levado mais longe as fronteiras da Rússia?

Ainda assim, o poderio militar não era suficiente para a visão que Catarina tinha do império. Ela aspirava a uma Rússia ilustrada, educada, conectada com as correntes intelectuais que percorriam a Europa. Sua correspondência com Voltaire e Diderot, mais do que um gesto simbólico, revelava seu desejo de transformar São Petersburgo em um farol cultural. Sob sua proteção, surgiram museus, academias, teatros e projetos literários que elevaram a vida intelectual do país a níveis que jamais havia conhecido. São Petersburgo, que décadas antes parecia uma capital artificial erguida sobre pântanos, começou a competir com Paris como centro de arte e filosofia. Dizia-se que durante a segunda metade do século XVIII, a corte russa era um espelho no qual a Europa se observava com curiosidade e admiração.

No entanto, este brilho tinha sombras profundas. A Rebelião de Pugachev, um dos episódios mais dramáticos de seu reinado, sacudiu o império inteiro como um terremoto moral. Emelian Pugachev, um cossaco carismático que afirmava ser o czar legítimo, mobilizou dezenas de milhares de camponeses, servos e comunidades marginais fartas das injustiças do sistema feudal. A crise evidenciou uma verdade dolorosa: enquanto a corte se banhava em luzes ilustradas, o povo vivia em um estado de desespero que podia explodir a qualquer momento. Catarina percebeu a rebelião como um lembrete brutal da fragilidade da ordem. Sua resposta, embora eficaz, marcou um ponto de inflexão em sua trajetória política. Após a derrota do movimento, a imperatriz abandonou seus planos iniciais de reformar a servidão. A ideia de libertar os servos, uma de suas aspirações mais citadas por seus correspondentes europeus, evaporou diante do peso do medo. Em vez de avançar para reformas progressistas, Catarina fortaleceu o poder dos nobres sobre os camponeses, consolidando um sistema que na prática beirava a escravidão.

Este giro, tão contraditório em relação aos seus ideais ilustrados, reflete um dos aspectos mais humanos e dolorosos do poder: quando a estabilidade do Estado está em jogo, até os governantes mais brilhantes podem renunciar aos seus princípios. Em Catarina conviviam duas almas: a reformadora fascinada pela filosofia francesa e a autocrata pragmática que sabia que um erro podia destruir tudo. O contraste entre esses dois mundos, a luz intelectual e a escuridão política, definiu a essência de seu reinado. Catarina era capaz de escrever cartas apaixonadas sobre justiça, razão e liberdade enquanto assinava decretos que reforçavam o sistema feudal. Era capaz de debater sobre arte com os pensadores mais brilhantes da Europa ao mesmo tempo em que ordenava endurecer o controle sobre as províncias rebeldes. Seus críticos a acusaram de hipocrisia; seus defensores a descreveram como realista. A verdade, como sempre, estava em um ponto intermediário. Catarina era uma mulher que tentava equilibrar sua visão do futuro com as ameaças do presente. Uma governante que compreendia que um império não podia sobreviver apenas com ideias nem apenas com força, mas com uma mistura precisa e frequentemente contraditória de ambas.

Assim, enquanto a Europa a observava com fascinação, a Rússia vivia uma transformação silenciosa. Catarina havia demonstrado que não só podia tomar o trono, podia sustentá-lo, podia expandi-lo, podia moldá-lo. E com cada decisão estava construindo uma figura que seria lembrada durante séculos, para o bem ou para o mal, porque o preço da grandeza em seu caso nunca foi pequeno.

Se o poder territorial de Catarina impressionou a Europa, sua vida pessoal a escandalizou ainda mais, não porque fizesse algo extraordinário, mas porque era uma mulher quem o fazia. Durante 34 anos de reinado, Catarina contou com uma sucessão de “favoritos”, homens que não só compartilhavam sua intimidade emocional, mas também parte de seu destino político. Nas cortes europeias, isso não era incomum: os reis tinham amantes, filhos ilegítimos, relações públicas e inclusive oficiais. Mas quando a figura central era uma mulher, a moralidade pública se tornava uma arma afiada.

Grigory Orlov foi o primeiro a marcar profundamente sua vida. Herói militar, figura chave do golpe que levou Catarina ao poder, tornou-se seu confidente, seu suporte emocional e um dos homens mais influentes do imenso império. Era forte, carismático, brutalmente honesto. No entanto, com o tempo, a relação se deteriorou: o poder precisa de disciplina, e Orlov, acostumado à glória militar imediata, não era o tipo de homem capaz de navegar nas nuances sutis da política rígida da corte.

Depois apareceu Grigory Potemkin, possivelmente a figura mais complexa de sua vida. Estrategista brilhante, visionário político, talvez seu esposo secreto segundo rumores persistentes. Potemkin não foi apenas um amante, foi seu companheiro de poder. Juntos, imaginaram a expansão para o sul, a colonização de novas terras, a reorganização militar do império. Eram duas mentes conectadas, duas ambições que se reconheciam e se potencializavam. Seu vínculo tinha a ferocidade dos grandes duelos emocionais: às vezes íntimo, às vezes distante, sempre inquebrantável. Mesmo quando deixaram de ser amantes, continuaram sendo o outro polo magnético do poder russo.

E, claro, os favoritos mais jovens. Após a morte de Potemkin, Catarina elegeu uma série de homens que despertaram o escárnio da Europa, especialmente da França revolucionária, que desejava ridicularizar qualquer vestígio de monarquia. Entre eles estava Platon Zubov, 40 anos mais jovem, cuja presença na corte se tornou material perfeito para caricaturas. Panfletos clandestinos o retratavam como um brinquedo da imperatriz envelhecida. A Europa não podia suportar que uma mulher poderosa escolhesse seus próprios afetos, mudasse de companheiro quando desejasse e desfrutasse da autonomia emocional que os homens sempre haviam reivindicado como privilégio natural.

É aqui onde a história toma um rumo revelador. Muitas das lendas obscuras sobre Catarina nasceram durante esses anos, alimentadas por essa incomodidade coletiva. Os propagandistas da época não a atacavam por sua política exterior ou sua visão de Estado, mas por sua vida pessoal. E o faziam não porque fosse escandalosa, mas porque era uma forma eficaz de minar sua figura pública. Uma arma política, uma guerra psicológica disfarçada de sátira. Na França, sobretudo, os panfletos se multiplicavam como fogo em um campo seco. Retratos grotescos, insinuações, exageros destinados a apresentar Catarina como uma mulher fora de controle, dominada por suas emoções e desejos.

Para seus inimigos, esta narrativa era perfeita: reduzia uma das mentes políticas mais brilhantes da Europa a um simples estereótipo misógino. E o mais inquietante é que funcionou. Essas imagens viajaram mais rápido que os discursos oficiais, mais longe que as crônicas diplomáticas, mais profundamente que os relatórios históricos. Em um continente onde o analfabetismo ainda era alto, a imagem tinha mais poder que o texto. E assim, passo a passo, caricatura após caricatura, exagero após exagero, foi-se construindo a base emocional da qual nasceria décadas depois a lenda mais cruel: a do cavalo. Porque nenhuma mentira é completamente gratuita. Todas nascem de um terreno fértil. Esse terreno era a misoginia. Era a incomodidade diante de uma mulher que não se submetia às regras. Era o rechaço visceral a uma figura feminina que tomava amantes, dava ordens a generais, reescrevia fronteiras e manejava o poder com uma maestria que muitos homens jamais alcançaram. A ideia de que uma mulher assim devia ser castigada, humilhada, explicada através do escândalo, estava profundamente enraizada na mentalidade europeia do século XVIII. E os rumores, os exageros e as piadas se converteram em ferramentas perfeitas para esse castigo simbólico. Foi nesse caldo venenoso onde começou a tomar forma o mito que ensombraria os séculos seguintes, uma mentira que ainda não havia mostrado sua forma final, mas que já respirava.

Na manhã de 17 de novembro de 1796, quando a notícia da morte de Catarina começou a se espalhar do Palácio de Inverno para as ruas geladas de São Petersburgo, o império inteiro sentiu que uma época havia terminado. Médicos, cortesãos, membros da família e dezenas de testemunhas presenciais haviam assistido ao lento apagamento da imperatriz durante 20 horas de coma. Não houve mistério, não houve sobressalto, não houve cenas ocultas atrás de cortinas pesadas. Seu falecimento foi um processo documentado com uma meticulosidade quase burocrática, como correspondia a uma soberana de sua estatura.

Mas a verdade, em ocasiões, tem menos poder que a imaginação coletiva. Apenas dias depois, enquanto os rituais ortodoxos eram celebrados na Catedral de Pedro e Paulo, um sussurro começou a circular. Não estava baseado em documentos, nem em observações médicas, nem em testemunhos. Era simplesmente uma invenção, uma história projetada para despertar assombro, zombaria e repulsa, um relato que percorreu a Europa como um raio até alcançar a categoria de lenda negra: Catarina, a Grande, não havia morrido por um derrame cerebral, mas esmagada durante um encontro proibido com um cavalo. A versão variava segundo o narrador. Em alguns panfletos, ela havia tentado consumar um ato impossível mediante uma estrutura mecânica que havia falhado. Em outros, o animal havia sido introduzido à força em seus aposentos. Em outros mais, a morte chegava como castigo divino por seus supostos excessos. Nenhuma dessas histórias tinha fundamento, mas cada uma era mais grotesca que a anterior, e todas compartilhavam um objetivo: destruir a dignidade póstuma de uma mulher que havia governado com uma força que a Europa nunca esqueceria.

O mais perturbador é que a mentira se adaptou perfeitamente ao clima cultural da época. No final do século XVIII, a Europa estava apaixonada por rumores sensacionalistas. Os panfletos clandestinos, baratos, fáceis de reproduzir e carregados de escândalo, eram a imprensa sensacionalista de seu tempo. Eram distribuídos em tabernas, praças, cafés, portos e mercados. E quanto mais exagerado era o conteúdo, mais rápido era vendido, mais longe viajava, mais profundamente se gravava na mente coletiva.

Mas a pergunta mais inquietante é: por que esta história sobreviveu mais de dois séculos quando tantos outros escândalos reais se desvaneceram? A resposta é incômoda, porque esta mentira cumpria várias funções ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, castigava Catarina por desafiar a ordem patriarcal. Uma mulher que conquista territórios pode ser tolerada. Uma mulher que escolhe seus amantes, toma decisões estratégicas, molda um império e governa sem pedir permissão é outra coisa. Essa mulher deve ser reduzida, ridicularizada, transformada em caricatura. E a história do cavalo era a humilhação perfeita.

Em segundo lugar, oferecia um relato que se alinhava com os preconceitos da época: a ideia arcaica de que as mulheres poderosas estavam fora de controle, que encarnavam um desejo insaciável, que sua ambição política era sintoma de um desvio moral. O rumor funcionava como uma parábola misógina, projetada para reafirmar aquilo que a sociedade não queria questionar.

Em terceiro lugar, sobreviveu porque era simples. A verdade é complexa; a mentira era fácil de lembrar, fácil de repetir, fácil de acreditar. E assim, enquanto os historiadores do século XIX e XX acumulavam provas irrefutáveis de sua falsidade, a história seguia viva no imaginário popular. De boca em boca, de geração em geração. Do panfleto ao jornal, do jornal ao cinema, do cinema à piada, da piada ao meme, do meme ao algoritmo. A internet, longe de corrigir a mentira, a amplificou. Milhões de pessoas começaram a aprender sobre Catarina não através de fontes acadêmicas, mas de vídeos virais, imagens manipuladas e piadas de mau gosto.

O rumor, convertido já em um símbolo cultural, deixou de ser uma falsidade histórica e se transformou em algo mais profundo: um reflexo de como a sociedade castiga as mulheres que desafiam seu destino atribuído. E, no entanto, a verdade continua ali, intacta, esperando ser ouvida. A verdade é que Catarina morreu de um derrame cerebral, rodeada de médicos. A verdade é que existem documentos detalhados sobre suas últimas horas. A verdade é que nunca houve cavalo, nem máquina, nem acidente. A verdade é que a lenda foi criada por inimigos políticos, provavelmente na França revolucionária, para desacreditar uma mulher poderosa demais, inteligente demais e livre demais para seu tempo.

Mas talvez a verdade mais importante seja esta: a história do cavalo não fala de Catarina, fala de nós. Fala da facilidade com que aceitamos mentiras que confirmam preconceitos. Fala do morbo que preferimos à documentação. Fala de como a misoginia pode sobreviver séculos disfarçada de piada. Catarina, a Grande, merece ser lembrada pelo império que construiu, não pela fábula cruel que outros inventaram para destruí-la. Sua vida é um testemunho do poder e suas contradições, da inteligência e seus riscos, da ambição e seu preço. Mas, sobretudo, é um lembrete de que a reputação de uma pessoa, até mesmo de uma imperatriz, pode ser assassinada não com armas, mas com palavras. E essa é talvez a lição mais obscura de seu legado.

Com a morte de Catarina e o nascimento da lenda negra que a perseguiria durante séculos, a Europa não só perdeu uma de suas governantes mais formidáveis, perdeu também a oportunidade de compreender a complexidade de uma figura que desafiou todas as regras escritas e não escritas de seu tempo. Sua vida, marcada por ambição, inteligência, contradições, ternuras ocultas e decisões implacáveis, ficou reduzida a uma caricatura cruel que sobreviveu a imperadores, revoluções, guerras mundiais e fronteiras que mudaram mais vezes do que a memória humana pode suportar. Mas aqui, ao final deste percurso, convém parar e olhar com mais profundidade aquilo que sua história realmente revela. Porque Catarina não foi simplesmente uma soberana brilhante, nem uma estrategista excepcional. Foi um espelho que expôs os temores mais profundos da sociedade europeia do século XVIII. O temor de que uma mulher pensasse por si mesma. O temor de que governasse sem pedir permissão. O temor de que tomasse decisões com a lógica firme de um estadista, mas também com a liberdade emocional que só os homens de sua época podiam exercer sem serem julgados. E por isso a mentira perdurou, porque não falava dela, falava dos outros. De uma Europa que ainda se agarrava a preconceitos medievais. De uma opinião pública que precisava justificar sua incomodidade diante de uma mulher indomável. De uma cultura que preferia destruir antes que aceitar que o poder não era patrimônio exclusivo dos homens.

Esse é o verdadeiro coração desta história: não a lenda do cavalo, mas a facilidade com que uma sociedade inteira pode aceitar uma mentira quando esta satisfaz sua sede de castigo simbólico. Catarina desafiou essas regras e por isso pagou um preço que ainda hoje se sente na forma como a recordamos. No entanto, seu verdadeiro legado não desapareceu. Vive na Rússia que remodelou, na diplomacia que reescreveu, na cultura que elevou, na visão política que colocou seu império no centro do cenário europeu. Para além da sombra, permanece a luz. Para além da mentira, permanece a obra. Para além do mito, permanece a mulher. Catarina, a Grande, não foi a protagonista de uma fábula grotesca; foi a arquiteta silenciosa de um império que ainda leva suas pegadas. E se algo nos ensina a sua história é que a verdade pode ser ofuscada durante séculos, mas nunca destruída, porque mesmo a sombra mais longa termina revelando de onde vem a luz.

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