O Caseiro do Engenho Macabro Jurava Ouvir Seu Nome Sendo Chamando Pelas Paredes

Bem-vindos a esta história, a um mergulho nas profundezas da escuridão do interior de Pernambuco, onde o calor tropical não conseguia derreter o frio da alma. O caso que vamos examinar hoje ocorreu em um dos muitos engenhos de açúcar abandonados e silenciosos na região da Zona da Mata, um lugar onde a história não apenas permaneceu, mas se tornou uma presença física. A cerca de 30 km da cidade de Vitória de Santo Antão, o Engenho Bom Retiro, como era originalmente chamado, foi por muitos anos um dos maiores produtores de açúcar da região, moendo não apenas a cana, mas a vida de gerações de homens.

Construído no final do século XVII, o engenho prosperou durante o ciclo da cana-de-açúcar no Nordeste brasileiro, mas como tantos outros, entrou em decadência com a industrialização e o declínio da produção tradicional. As terras onde o engenho foi construído guardavam uma história mais antiga e mais sombria, que remonta antes da chegada dos colonizadores portugueses e da implantação da monocultura. Registros históricos indicam que a área era habitada por índios da nação Tabajara, um povo guerreiro e místico, que consideravam certas partes da floresta como locais sagrados, pontos de ancoragem entre o mundo dos vivos e o dos espíritos. O conflito com os indígenas foi inevitável e brutal, e muitos dos locais sagrados foram profanados e construídos sobre, durante o processo de colonização, um ato de violência que a terra jamais perdoou.

Uma pesquisa antropológica realizada na região em 1957, um documento incompleto e nunca publicado na íntegra, sugere que o local onde o Engenho Bom Retiro foi construído, possivelmente abrigava um cemitério indígena ou um local de rituais importantes para os Tabajara, um ponto de convergência de energias antigas. A história do engenho, portanto, é marcada por períodos alternados de prosperidade febril e tragédias inexplicáveis. Nos arquivos municipais de Vitória de Santo Antão, há registros de diversos acidentes, desaparecimentos inexplicados e mortes súbitas associadas ao local, especialmente durante o século XIX, como se a terra exigisse um tributo constante.

Em 1843, por exemplo, o proprietário da época, Rodrigo Cavalcante, foi encontrado morto em circunstâncias misteriosas no porão da Casa Grande. A investigação oficial concluiu que ele havia sofrido um ataque cardíaco, mas rumores persistentes na comunidade sugeriam outras causas, sussurros vindos das paredes que o haviam enlouquecido. Em 1889, um incêndio destruiu parte da Casa Grande, incluindo a ala leste, onde ficavam os aposentos da família. Após a reconstrução apressada, os novos proprietários relataram ouvir sons inexplicáveis, especialmente à noite, mas esses relatos, contudo, foram atribuídos à superstição dos trabalhadores e à acústica peculiar da construção antiga, uma explicação conveniente.

Em 1932, o engenho foi vendido para a família Albuquerque, que tentou modernizar as instalações sem muito sucesso. Durante as décadas seguintes, a propriedade foi mudando de mãos, até que em 1958 foi adquirida por Teodoro Mendonça, um empresário do Recife, que tinha planos ambiciosos, mas vazios, de transformá-la em um complexo turístico que celebrasse a história da cana-de-açúcar no Nordeste. O projeto, contudo, nunca saiu do papel, e a terra permaneceu em seu silêncio expectante.

E é aqui que nossa história realmente começa. Segundo os registros municipais de Vitória de Santo Antão, Teodoro contratou em abril de 1960 Jerônimo Santos, um homem de 47 anos, natural da região, para ser o caseiro do engenho e cuidar da propriedade, enquanto os planos de reforma não avançavam. Jerônimo era conhecido na comunidade como um homem reservado, trabalhador, e que havia perdido a esposa, Maria, alguns anos antes para uma doença não especificada nos registros locais. Seu Antônio, dono do mercadinho local, o descreveu em uma entrevista concedida em 1968 como um homem de poucas palavras, mas educado. “Sempre pagava suas contas em dia e nunca criava problemas. Depois que a Maria morreu, ele ficou ainda mais calado. Vivia para o trabalho, não bebia muito, não se metia com mulheres. Era um homem direito, do jeito antigo.”

A perda da esposa, Maria, três anos antes, claramente afetou Jerônimo profundamente, e sua decisão de aceitar um trabalho isolado e solitário parece ter sido, em parte, motivada por um desejo de afastamento social, de fugir do mundo que havia lhe roubado o amor. De acordo com o depoimento de Teodoro Mendonça, a decisão de contratar Jerônimo veio de uma recomendação do antigo administrador da propriedade. “Eu precisava de alguém confiável, que pudesse viver lá sem muitas exigências e que conhecesse o funcionamento de um engenho. Jerônimo tinha experiência, e não tinha família que o prendesse na cidade. Parecia a pessoa ideal”, declarou Teodoro, ignorando o vazio que o caseiro carregava.

Nosso relato se baseia a partir deste momento em três fontes que se tocam e se contradizem como pesadelos: os depoimentos coletados pela polícia após os eventos de 1964; o diário pessoal de Jerônimo Santos, encontrado em 1965; e entrevistas realizadas com moradores locais em 1968. O diário de Jerônimo é particularmente valioso, um caderno de capa dura de fabricação nacional, cujas primeiras entradas, datadas de maio de 1960, poucos dias após sua mudança para o engenho, revelam uma paz forçada.

As primeiras semanas de Jerônimo no engenho foram tranquilas. Ele ocupou a antiga casa do administrador, uma construção modesta de dois cômodos, adjacente ao casarão principal. O resto da propriedade consistia na Casa Grande, já bastante deteriorada, a antiga senzala, que havia sido parcialmente demolida décadas antes, e o galpão do engenho propriamente dito. “Este lugar é maior do que parece”, escreveu Jerônimo em sua primeira anotação datada de 2 de maio de 1960. “O Senhor Teodoro disse que é para eu manter tudo em ordem, mas como um homem só pode dar conta de tudo isso? As paredes da Casa Grande parecem que vão desabar a qualquer momento. E o mato já tomou conta de quase tudo. Pelo menos a casa onde estou é firme e o telhado não tem goteiras.”

As entradas seguintes descrevem, em detalhes meticulosos, o trabalho diário de Jerônimo para manter a propriedade em ordem, uma rotina rigorosa de trabalho duro que o impedia de pensar na perda. “Não tenho eletricidade aqui”, escreveu em 10 de maio. “Apenas lamparinas a querosene. À noite leio um pouco, ouço o rádio a pilha. As notícias do mundo parecem tão distantes daqui. Às vezes tenho a impressão de que o tempo parou neste lugar, que estamos ainda no século passado. É estranho, mas não desagradável. Há uma paz aqui que nunca encontrei na cidade.”

Nos meses seguintes, Jerônimo estabeleceu uma rotina monótona e solitária. “O povo da cidade vive me perguntando como é viver sozinho naquele lugar”, escreveu em julho. “Digo a eles que não me importo com a solidão. Depois que Maria se foi, todo o lugar é solitário para mim. Pelo menos aqui tenho o canto dos pássaros, o vento nas folhas, o coaxar dos sapos à noite. Sons da natureza que não mentem, não julgam, não cobram nada de você.” Esta entrada revela a dor de Jerônimo. Sua decisão de aceitar um trabalho isolado parece ter sido, em parte, motivada por um desejo de silêncio para a sua própria mente.

Durante os primeiros meses no engenho, Jerônimo não relata nenhuma ocorrência incomum. Suas anotações são predominantemente sobre o trabalho, as condições climáticas e, ocasionalmente, sobre memórias de sua vida com Maria, memórias que, ele insistia, eram reconfortantes. “É estranho, mas às vezes tenho a sensação de que ela está aqui comigo, especialmente à noite, quando estou entre o sono e a vigília, uma presença reconfortante, como um perfume leve no ar, ou o calor de outro corpo próximo ao meu. Sei que é apenas minha mente me pregando peças, mas não é uma sensação desagradável.” Esta menção a uma presença sentida durante estados de semiconsciência é o primeiro sinal da fissura em sua mente, a primeira rachadura na parede entre a realidade e o horror.

A primeira menção a algo incomum em seu diário aparece apenas em setembro daquele ano, 5 meses após sua chegada ao engenho.

Hoje, enquanto limpava o velho galpão das moendas, tive a impressão de ouvir alguém me chamar. Foi tão claro que cheguei a responder, mas não havia ninguém. Deve ter sido o vento nas telhas soltas ou algum animal. Este lugar faz barulhos estranhos quando o vento bate forte. Ainda assim, fiquei com uma sensação estranha o resto do dia, como se estivesse sendo observado. Bobagem minha, claro, não há ninguém aqui além de mim e dos bichos da mata.

Essa anotação, aparentemente trivial, marca o início de uma série de ocorrências que, com o tempo, se tornariam cada vez mais frequentes e perturbadoras. Nos meses seguintes, Jerônimo menciona em seu diário, pelo menos três vezes, ter ouvido seu nome sendo chamado quando estava sozinho na propriedade. Em todas as ocasiões, ele atribuiu os sons a causas naturais, o vento, pássaros, ou talvez sua própria imaginação, lutando para manter a sanidade. Uma entrada de outubro é particularmente detalhada.

Hoje ouvi a voz, enquanto estava na cozinha preparando meu almoço. “Jerônimo.” Bem claro, como se alguém estivesse ao meu lado. Larguei a panela no fogão e fui verificar ao redor da casa, pensando que talvez fosse algum caçador perdido ou alguém da cidade procurando por mim. Não encontrei ninguém. O mais estranho é que não havia vento hoje. O dia estava completamente parado, abafado. Até as folhas não se moviam. Não podem ter sido as telhas ou as janelas rangendo. Talvez seja apenas o cansaço. Tenho trabalhado demais ultimamente.

É importante notar que nessa época Jerônimo não demonstrava medo ou preocupação em seus escritos. Pelo contrário, ele parecia satisfeito com seu trabalho no engenho e com a relativa paz que encontrava ali. Seu empregador, Teodoro Mendonça, visitava a propriedade apenas ocasionalmente, geralmente acompanhado por potenciais investidores ou engenheiros que faziam medições e discutiam planos de reforma que nunca se concretizavam.

“O Senhor Teodoro veio hoje com dois homens de terno” , registra uma entrada de novembro. “ficaram andando pela Casa Grande, medindo coisas, falando sobre restauração e patrimônio histórico. Um deles ficou um tempo olhando para a parede do salão principal, onde tem aquelas manchas escuras que parecem formar rostos se a gente olhar por muito tempo. O homem me perguntou se eu já tinha tentado limpar aquilo. Disse a ele que sim, mas que as manchas sempre voltam como se estivessem por baixo da cal. Ele ficou pensativo, tirou algumas fotos, fez anotações num caderninho. Quando eles foram embora, voltei ao salão para olhar novamente as manchas. Realmente, de certo ângulo, parecem rostos humanos com expressões de… não sei bem descrever, não são rostos felizes, isso posso dizer.” Esta é a primeira menção às manchas na Casa Grande, um elemento que ganharia importância nos acontecimentos posteriores.

O ano de 1960 terminou sem outros incidentes dignos de nota. Jerônimo passou o Natal e o Ano Novo sozinho no engenho, recusando convites de conhecidos para celebrar as festas na cidade. “Prefiro a companhia dos grilos e dos sapos”, escreveu. “Pelo menos eles não fazem perguntas que não sei responder. Acendi uma vela para Maria, como sempre faço nesta época do ano. Sinto sua falta mais do que nunca. É estranho, mas às vezes tenho a sensação de que ela está aqui comigo, especialmente à noite, quando estou entre o sono e a vigília, uma presença reconfortante, como um perfume leve no ar, ou o calor de outro corpo próximo ao meu. Sei que é apenas minha mente me pregando peças, mas não é uma sensação desagradável.” Esta menção a uma presença sentida durante estados de semiconsciência é o prelúdio para o horror que viria.

Os primeiros meses de 1961 seguiram o mesmo padrão estabelecido no ano anterior, com Jerônimo mantendo sua rotina solitária de trabalho e cuidados com a propriedade. As menções a sons inexplicáveis diminuíram em seu diário, sugerindo que ele talvez tivesse se acostumado a eles, ou que o fenômeno, qualquer que fosse sua causa, havia cessado temporariamente. Em fevereiro, há uma entrada que menciona uma tempestade particularmente forte que danificou parte do telhado da Casa Grande.

A chuva não parava e o vento parecia que ia arrancar o mundo pela raiz. Fiquei acordado a noite toda com medo de que o telhado da minha casa não aguentasse. De madrugada, ouvi um estrondo terrível vindo da Casa Grande. Quando amanheceu e a chuva diminuiu um pouco, fui verificar. Uma parte do telhado da ala norte desabou, justamente sobre o porão que eu nunca tinha conseguido explorar direito, porque a porta estava emperrada. Agora há um buraco enorme e posso ver que o porão é maior do que eu pensava. Vou esperar o tempo melhorar para fazer uma inspeção mais detalhada.

Esta é a primeira menção ao porão da Casa Grande, o local onde os segredos mais profundos do engenho estavam selados. Foi em abril de 1961, quase exatamente um ano após sua chegada ao engenho, que algo mudou drasticamente. A entrada do diário de 17 de abril é notavelmente mais longa e detalhada que as anteriores, um relato de pavor crescente.

Hoje aconteceu algo que não consigo explicar. Estava no porão da Casa Grande, verificando algumas tábuas do assoalho que pareciam podres, quando ouvi meu nome com toda a clareza. “Jerônimo.” A voz parecia vir de dentro da parede. Não era o vento, nem um animal. Era uma voz humana, baixa, quase um sussurro, mas perfeitamente audível. Chamou meu nome três vezes. Na terceira, encostei o ouvido na parede e juro que pude sentir um sopro de ar frio saindo de alguma fresta invisível. O mais estranho é que não senti medo, apenas uma curiosidade muito forte. Passei o resto do dia procurando alguma abertura ou passagem naquela parede, mas não encontrei nada. À noite, quando voltei para minha casa, tive a sensação de estar sendo observado. Tranquei bem a porta e deixei a lamparina acesa até adormecer.

Sonhei com Maria. Ela estava em pé ao lado da mesma parede do porão, mas no meu sonho a parede tinha uma porta que nunca vi na realidade. Maria apontava para a porta como se quisesse que eu a abrisse. Seus lábios se moviam, mas eu não conseguia ouvir o que ela dizia. Quando acordei, estava suando. Apesar da noite fresca, a lamparina tinha se apagado. Fiquei deitado na escuridão por um longo tempo, ouvindo os sons noturnos do engenho. Entre o coaxar dos sapos e o canto dos grilos, podia jurar que ouvia um murmúrio distante, como várias vozes falando ao mesmo tempo, muito baixinho. Talvez seja apenas a acústica estranha deste lugar, mas estou determinado a investigar melhor aquela parede no porão.

Esta é a primeira vez que Jerônimo descreve a voz com detalhes e admite a possibilidade de que não se tratava de um fenômeno natural. É também a primeira menção à sensação de estar sendo observado, um tema que se tornaria recorrente em suas anotações posteriores. O sonho com Maria, a esposa falecida, apontando para uma porta inexistente na parede do porão, adiciona um elemento de manipulação psicológica à narrativa, uma atração para a escuridão.

Nas semanas seguintes, Jerônimo intensificou sua busca por explicações para os sons que ouvia. Seus métodos de investigação tornaram-se mais sistemáticos, beirando a obsessão. Uma entrada de maio descreve como ele mapeou o porão.

Hoje fiz um desenho detalhado do porão, marcando as áreas onde já ouvi as vozes e onde as manchas na parede são mais pronunciadas. Há um padrão, tenho certeza. As vozes sempre parecem vir da parede norte, a que fica voltada para a antiga senzala, e as manchas formam uma espécie de círculo, ou melhor, uma espiral que se concentra em um ponto específico da parede. Experimentei bater com uma ferramenta em diferentes pontos da parede. Em alguns lugares, o som é sólido, como se a parede fosse muito espessa. Em outros, principalmente perto do centro da espiral, o som é oco, como se houvesse algum tipo de câmara ou passagem do outro lado.

Em uma entrada datada de maio, ele registra uma conversa reveladora.

Conversei hoje com o velho Sebastião, que trabalhou no engenho como rapaz, ainda no tempo dos escravos libertos. Ele me contou que a Casa Grande foi construída sobre as fundações de uma construção mais antiga que já existia quando o primeiro senhor de engenho chegou à região. Segundo ele, os trabalhadores que cavaram o porão encontraram ossadas e objetos estranhos que o patrão mandou remover e enterrar em algum lugar da propriedade. Sebastião acha que eram ossos de índios, talvez de um cemitério antigo. Quando perguntei sobre vozes ou sons estranhos, ele desconversou, fez o sinal da cruz e mudou de assunto. Antes de eu ir embora, ele me disse com um olhar sério: “Cuidado com as paredes, seu Jerônimo. Nem tudo que a gente ouve é para ser respondido.” Fiquei pensando nas palavras dele o caminho todo de volta ao engenho. Então, não sou o único que já ouviu coisas estranhas por aqui. E o que ele quis dizer com ‘nem tudo o que a gente ouve é para ser respondido’? Será que responder às vozes pode de alguma forma encorajá-las, provocá-las? Agora me lembro que nas primeiras vezes que ouvi meu nome, eu respondi automaticamente, pensando que era alguém me chamando. Foi a partir daí que as vozes começaram a ficar mais frequentes.

Este relato do velho Sebastião introduz o elemento histórico do horror, sugerindo que o local onde o engenho foi construído poderia ter algum significado especial para os povos indígenas. A advertência do velho Sebastião, para não responder às vozes, sugere a existência de um folclore local relacionado ao fenômeno, um tabu que Jerônimo havia quebrado em sua solidão.

O interesse de Jerônimo pela história do engenho cresceu ao longo de 1961. Em seu diário, ele documenta visitas à biblioteca municipal e conversas com historiadores locais. Em uma dessas conversas com o professor Cloves Rodrigues, um historiador amador, Jerônimo obteve informações que pareciam corroborar o relato de Sebastião.

O professor Cloves confirmou que há registros de um aldeamento Tabajara na região onde hoje fica o engenho. Segundo ele, os indígenas consideravam certas áreas como sagradas, locais onde realizavam rituais importantes e enterravam seus mortos. Quando os portugueses chegaram, houve conflitos violentos. O professor me mostrou um documento de 1637, uma carta de um jesuíta para seus superiores em Salvador, mencionando que os colonos haviam construído uma casa sobre um lugar de grande significância para os gentios, apesar dos protestos dos missionários. O jesuíta relatava que os trabalhadores se recusavam a dormir na casa, alegando ouvir lamentos e sussurros nas paredes, e que vários haviam adoecido ou fugido.

Paralelamente à sua investigação histórica, as ocorrências de vozes chamando seu nome se tornaram mais frequentes, ocorrendo agora não apenas no porão, mas em vários cômodos da Casa Grande, e ocasionalmente até mesmo nos arredores do engenho. A natureza das vozes também mudou sutilmente.

Antes eram apenas sussurros chamando meu nome , registrou em junho. Mas agora parece que há mais de uma voz. E elas não dizem apenas ‘Jerônimo’. Às vezes ouço frases curtas em uma língua que não reconheço. Não é português, nem qualquer outro idioma que eu conheça. Tem um ritmo estranho, musical até. Gravei algumas das frases que consegui distinguir usando a grafia que me parece mais próxima dos sons: ‘Caianará mo barra semanacoba’. Não faço ideia do que significam, se é que significam algo. Talvez seja apenas minha mente cansada, interpretando sons aleatórios como palavras.

Uma entrada particularmente intrigante, datada de agosto de 1961, relata: “As vozes agora me chamam quase todas as noites. Comecei a responder a elas, perguntando o que querem de mim. Às vezes, quando faço isso, ouço um sussurro ininteligível, como se alguém estivesse tentando me contar um segredo através de uma porta grossa. Ontem à noite, enquanto estava deitado na minha cama, ouvi claramente: ‘Jerônimo, a parede’. Apenas isso, ‘Jerônimo, a parede’. Levantei-me e fui até a Casa Grande, mesmo sendo tarde da noite. Levei minha lamparina e examinei todas as paredes do porão novamente. Em um canto, notei que a cal estava diferente, como se tivesse sido aplicada mais recentemente que o resto. Raspei um pouco com minha faca e vi que por baixo havia outra cor, um tom vermelho escuro. Não continuei, pois estava cansado e a luz fraca da lamparina não ajudava. Voltarei lá amanhã com a luz do dia.”

A entrada do dia seguinte é breve e frustrada. “Teodoro chegou de surpresa hoje com mais investidores. Tive que mostrar a propriedade para eles e não pude voltar ao porão. Ele ficará aqui por alguns dias hospedado na Casa Grande. As vozes silenciaram desde a chegada dele. É como se soubessem que não estou sozinho, como se esperassem que os estranhos partissem para voltar a falar comigo.” Este padrão, o silenciamento das vozes durante as visitas de outras pessoas, se repetiria consistentemente ao longo do tempo. O que poderia sugerir que fossem, de fato, fruto da imaginação do caseiro, talvez desencadeadas pela solidão, mas essa interpretação puramente psicológica não explica os eventos que se seguiriam, o crescente isolamento e o pavor de Jerônimo.

Após a partida de Teodoro, Jerônimo continuou sua investigação sobre a parede com manchas vermelhas no porão. Em setembro, ele relata ter removido uma área considerável da cal, revelando o que parecia ser uma pintura antiga na parede.

Não é exatamente uma pintura como eu pensava. São símbolos, desenhos geométricos e o que parecem ser letras, mas de um alfabeto que não reconheço. Lembram um pouco as inscrições que vi uma vez em um livro sobre os índios do Nordeste, mas são diferentes. No centro da parede há o desenho de um rosto estilizado, com olhos grandes e vazios. Abaixo dele, algo que se parece com uma espiral. Quando toco nos símbolos, a parede parece vibrar levemente, como se houvesse algo vivo por trás. Copiei alguns dos símbolos no meu caderno. O melhor que pude. Amanhã vou à cidade mostrar ao professor Cloves. Talvez ele possa me ajudar a identificá-los. Há também o que parecem ser mapas ou diagramas, mostrando linhas que se cruzam em padrões complexos. Uma delas se assemelha ao layout do engenho, com a Casa Grande no centro. Mas há outras estruturas que não existem mais, ou talvez nunca tenham existido.

A partir deste ponto, as entradas no diário de Jerônimo começam a mostrar sinais de uma obsessão crescente com a parede do porão. Ele passa dias inteiros estudando os símbolos, copiando-os e tentando decifrar seu significado. Em algumas entradas, ele menciona ter sonhado com os símbolos e com vozes que lhe explicavam seu significado, mas ao acordar não conseguia lembrar-se da explicação. Uma entrada de outubro demonstra uma mudança significativa em sua abordagem.

Comecei a experimentar recitar os sons que ouço, repetindo-os em voz alta enquanto olho para os símbolos. Algo estranho acontece quando faço isso. A temperatura ao redor parece cair subitamente e as sombras nos cantos do porão parecem se mover como se estivessem vivas. Ontem, enquanto fazia isso, tive a impressão de que a parede ficava momentaneamente translúcida e pude vislumbrar algo do outro lado, um espaço amplo, iluminado por uma luz difusa que não parecia vir de nenhuma fonte específica. Foi apenas por um instante e pode ter sido apenas um truque da luz da lamparina nas manchas da parede, mas a sensação foi tão vívida, tão real.

O ano de 1961 terminou com Jerônimo cada vez mais isolado e absorto em sua pesquisa sobre a parede. Ele reduziu suas idas à cidade para o mínimo necessário e, quando ia, evitava conversas prolongadas. Segundo depoimentos de moradores locais, ele passou a ter uma aparência descuidada, com barba por fazer e olheiras profundas, como se não dormisse bem. O povo começou a falar que “seu Jerônimo não estava bem da cabeça”.

O ano de 1962 marca uma intensificação dos fenômenos relatados por Jerônimo e uma deterioração perceptível de seu estado mental. As entradas tornam-se mais fragmentadas, algumas consistindo apenas em frases soltas ou desenhos dos símbolos da parede. A caligrafia, antes firme e clara, apresenta-se agora trêmula e, por vezes, quase ilegível. Em fevereiro, ele escreve:

As vozes agora me chamam mesmo durante o dia, não apenas das paredes, mas do chão, do teto, das árvores. Algumas vezes penso ver vultos pelo canto dos olhos, mas quando me viro não há ninguém. Ontem, enquanto examinava a parede, tive certeza de que ela pulsava como um coração batendo. Coloquei meu ouvido contra ela e ouvi um som rítmico, como um tambor muito distante. Tenho dormido pouco. Os sonhos são intensos, vívidos. Maria aparece neles com frequência, sempre perto da parede, sempre apontando, querendo me mostrar algo. Em um dos sonhos, ela conseguiu falar e eu pude ouvir sua voz depois de tanto tempo: “Não está na parede, Jerônimo, está através da parede.” O que isso significa? Estará Maria tentando me alertar sobre algum perigo ou me guiando para alguma descoberta importante?

Neste período, Jerônimo começou a cobrir as paredes de sua própria casa, com cópias dos símbolos encontrados no porão da Casa Grande.

Colei o círculo de símbolos ao redor da minha cama. Agora posso dormir um pouco melhor. Eles parecem manter as vozes à distância, pelo menos durante a noite. Durante o dia, continuo o meu trabalho na parede do porão. Descobri que certos símbolos, quando traçados na sequência correta, produzem um efeito quase imediato. A temperatura cai, as sombras se movem e, por vezes, tenho vislumbres do que há além. Estou cada vez mais convencido de que não se trata de alucinações ou truques de luz. Há algo real do outro lado da parede, um lugar que não pertence a este mundo, ou pelo menos não à parte dele que conhecemos.

Em março de 1962, Teodoro Mendonça faz uma visita surpresa ao engenho e encontra Jerônimo em um estado alarmante. O depoimento de Teodoro, registrado posteriormente, detalha o horror: “Encontrei-o na Casa Grande, no porão, ajoelhado diante de uma parede, onde havia descoberto uns desenhos antigos. Ele mal notou minha presença. Estava falando sozinho, ou melhor, parecia estar conversando com a parede. Quando finalmente percebeu que eu estava lá, agiu de forma estranha, quase hostil. Disse que eu não devia interrompê-lo, que estava quase entendendo. A casa dele estava em desordem completa, com papéis cheios de desenhos espalhados por todo lado e as paredes cobertas com os mesmos símbolos que ele encontrou no porão. Sugeri que ele tirasse alguns dias de folga, fosse visitar parentes, descansar um pouco. Ele recusou veementemente. Disse que não podia deixar o engenho, que eles precisavam dele ali.”

Quando o diário de Jerônimo é retomado em abril, há uma mudança notável no tom das entradas. Ele agora parece convencido de que as vozes que ouve são reais e que os símbolos na parede são uma forma de comunicação com algo.

Eles me explicaram hoje. As paredes não são apenas paredes, são membranas, fronteiras entre mundos. Os símbolos são como janelas, ou melhor, como fechaduras. Com a chave certa, eles se abrem. Tenho passado horas estudando os padrões, repetindo-os em voz alta. Às vezes, quando faço isso, sinto como se as paredes ficassem mais finas, quase transparentes. Uma vez tive a impressão de ver algo se movendo do outro lado, como sombras em um quarto iluminado por uma única vela. Eles pareceram notar que eu os observava. Vários se aproximaram da janela que criei, e ouvi suas vozes mais claramente do que nunca. Um coro de sussurros em sua língua estranha. Entendia algumas palavras de alguma forma: ‘Atravesse, venha, junte-se’.

Perguntei sobre Maria, se ela estava lá. A resposta foi ambígua: “Todos os que são lembrados estão aqui.” Não sei exatamente o que isso significa. Estão dizendo que Maria está lá porque eu me lembro dela, ou que todos os que são lembrados por alguém existem lá de alguma forma? Preciso entender melhor antes de tomar qualquer decisão.

As entradas finais do diário tornam-se cada vez mais abstratas e místicas.

As paredes não são sólidas, nada é sólido. O que percebemos como matéria é apenas energia vibrando em determinada frequência. Mudar a frequência, mudar a percepção. E as paredes deixam de ser obstáculos. Os símbolos são chaves de frequência, sintonizadores. Os antigos sabiam disso, os Tabajara sabiam. Esconderam o conhecimento nas paredes para que apenas os que pudessem ouvir as vozes o encontrassem.

Tempo e espaço são ilusões, construções mentais que nos ajudam a dar sentido a um universo fundamentalmente incompreensível. Do outro lado, essas construções não se aplicam da mesma forma. Lá todos os tempos existem simultaneamente. Todos os que já foram ainda são. Todos os que amamos nunca realmente nos deixam.

No final de julho, Teodoro Mendonça faz outra visita ao engenho e encontra a propriedade em estado de abandono. A casa de Jerônimo está trancada e o caseiro não responde aos chamados. Preocupado, Teodoro força a entrada e encontra o interior da casa completamente transformado. As paredes, o teto e até mesmo o chão estão cobertos com os símbolos, formando padrões complexos que parecem convergir para um ponto central na parede que separa os dois cômodos da casa. Não há sinal de Jerônimo, mas seu diário está sobre a mesa, aberto na última entrada datada do dia anterior.

Finalmente compreendi. A parede no porão era apenas o começo, um ensaio. A verdadeira porta está aqui, na minha própria casa. Trabalhei dia e noite para reproduzir os símbolos na sequência correta e agora estou pronto. As vozes estão mais altas, mais urgentes. Chamam meu nome sem parar. Dizem que Maria está esperando por mim do outro lado. Não sei se acredito nisso, mas estou cansado de estar sozinho. Esta noite, quando a lua estiver no ponto mais alto, vou recitar a sequência completa pela última vez. Sinto que a parede já está mais fina, quase como um véu. Em alguns pontos, quando pressiono com os dedos, parece ceder como carne macia. Se esta for minha última entrada, quero que saibam que não fui forçado a nada. Vou por vontade própria.

Alarmado, Teodoro imediatamente notifica as autoridades. A Polícia de Vitória de Santo Antão inicia uma busca pela propriedade que dura dois dias completos, sem encontrar nenhum sinal de Jerônimo. Não há evidências de violência, nem indicações de que ele tenha fugido, levando seus pertences. Suas poucas roupas continuam no armário e seus documentos pessoais são encontrados em uma gaveta da mesa. O caso é registrado oficialmente como desaparecimento.

Um detalhe intrigante mencionado no relatório policial, mas não amplamente divulgado na época, é que os cães farejadores se recusavam a entrar em certos cômodos da casa de Jerônimo e no porão da Casa Grande. Segundo o policial responsável pela operação, os animais apresentavam um comportamento extremamente agitado, latindo furiosamente para as paredes e recuando, como se percebessem alguma ameaça que os humanos não podiam ver ou sentir, algo que estava através do concreto.

O engenho é lacrado. Em outubro de 1962, 3 meses após o desaparecimento, ocorre outro incidente inquietante. Um dos seguranças contratados para vigiar o engenho, Antônio Gomes, de 36 anos, desaparece durante seu turno noturno. Seu colega relatou que Antônio havia mencionado nas noites anteriores que ouvia alguém chamando seu nome. “Não é uma voz de fora. Vem das paredes da Casa Grande, como se alguém estivesse preso lá dentro. O que o mais estranho é que às vezes parece a voz da minha mãe, que morreu faz 10 anos.” A polícia realiza novas buscas, ainda mais minuciosas, mas sem encontrar nada que explique os desaparecimentos.

O caso permanece sem solução até março de 1963, quando um grupo de adolescentes faz uma descoberta perturbadora. Em uma área remota da propriedade, eles encontram duas cruzes improvisadas feitas com galhos. Junto às cruzes, há um pedaço de papel protegido dentro de uma garrafa de vidro. Nele, escrito com carvão, há apenas uma frase: “Nós escolhemos atravessar.”

Um epílogo sombrio para esta história: Em 1965, um pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco encontra o diário de Jerônimo, que havia desaparecido dos arquivos policiais. O diário está em um estado de conservação surpreendentemente bom e contém várias entradas adicionais datadas após o desaparecimento oficial de Jerônimo. A última dessas entradas, datada de 15 de outubro de 1962 (após o desaparecimento de Antônio Gomes), diz apenas: “Antônio se juntou a nós. Somos três agora. Se contarmos Maria, as paredes falam constantemente. Em breve, seremos suficientes para abrir a porta permanentemente.”

O mais inquietante, talvez, é a carta anônima que um jornalista recebeu em 1969, postada em Vitória de Santo Antão. A mensagem dizia: “As paredes são finas entre os mundos. Alguns escolhem atravessá-las, outros são chamados. Quando você ouvir seu nome vindo das paredes, não responda, a menos que esteja pronto para ver o que existe do outro lado. Estamos bem aqui, todos nós, Maria, Antônio, eu e os outros que vieram antes e depois. Não estamos mortos. Apenas mudamos de lugar. De vez em quando conseguimos enviar mensagens como esta, nem sempre chegam ao destino correto ou no tempo certo. Este lado não funciona como o seu. Aqui tudo existe simultaneamente, e é difícil orientar-se, mas aprendemos e esperamos. Há outros lugares a serem explorados, outras paredes a serem atravessadas. O universo é maior e mais estranho do que qualquer um de nós poderia imaginar. Está cheio de vozes chamando.”

E assim termina. Ou talvez apenas faz uma pausa, a história do caseiro do engenho que jurava ouvir seu nome sendo chamado pelas paredes. Um caso sem resolução definitiva, aberto a interpretações que vão do psicológico ao sobrenatural. A ciência moderna nos oferece explicações racionais, mas elas não conseguem responder a todas as perguntas. E se algum dia, enquanto estiver sozinho em uma casa antiga, você ouvir alguém chamar seu nome e a voz parecer vir de dentro da parede, bem, agora você sabe o que não fazer. Pois, como dizia o caseiro Jerônimo, há mais mistérios nas paredes do sertão do que supõe nossa vã filosofia.

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