O Coronel Que Deixou sua Herança para 5 Escravizadas: A Herança Que Arrasou o Rio de Janeiro, 1881

Eu estava na cozinha do cartório do primeiro ofício do Rio de Janeiro lavando xícaras de café quando ouvi o grito. Era 15 de março de 1881, 10 da manhã. E aquele grito mudaria minha vida para sempre. Não sabia ainda. Mas naquele exato momento, 23 pessoas acabavam de descobrir que eu, Benedita dos Santos, ex-escrava de 51 anos, tinha acabado de me tornar uma das mulheres mais ricas do império.
Meu nome é Benedita dos Santos. Tenho hoje 58 anos e esta é a história de como eu e outras quatro mulheres herdamos a maior fortuna do Rio de Janeiro. Enfrentamos a fúria da elite imperial e ajudamos a expor as hipocrisias de um país que insistia em nos tratar como propriedade. Mas deixe-me voltar ao início, porque essa história não começou naquele testamento.


Começou em 1858, quando eu tinha apenas 8 anos e nem sabia que o destino já estava traçando caminhos impossíveis para mim. Nasci na fazenda Santa Cecília em Vassouras, Vale do Paraíba. Minha mãe, Cecília, era escrava doméstica da Casagre. Meu pai nunca soube. Minha mãe nunca quis falar sobre isso e aprendi cedo que algumas perguntas causam mais dor do que esclarecimento.
Cresci servindo a família do coronel Francisco de Paula Albuquerque. Ele era dono de duas das maiores fazendas de café do Vale do Paraíba. Tinha mais de 300 escravizados. Conhecia o imperador Dom Pedro I pessoalmente. Seu nome abria qualquer porta no império. Aprendia a ler e escrever em segredo. Ensinada por Siná Mariana, a filha caçula do coronel do primeiro casamento.
Ela tinha pena de mim e me dava lições escondida. Aprendi a bordar, a cozinhar, a servir à mesa, a ser invisível quando necessário. Essas eram as habilidades que mantinham uma escrava doméstica viva. Foi em 1865, quando completei 15 anos que tudo mudou. O coronel tinha acabado de se casar novamente com dona Amélia, uma mulher de família nobre, mas sem fortuna, 25 anos mais nova que ele.
Era um casamento frio, de conveniência, e o coronel, aos 62 anos, era um homem solitário dentro de sua própria casa. Foi quando ele começou a me notar de forma diferente. Não vou romantizar o que aconteceu. Não havia amor ali. Eu era sua escrava. Ele era meu dono. Quando ele me chamou aos seus aposentos naquela primeira noite de agosto de 1865, eu sabia exatamente o que significava.
Minha mãe tinha me avisado com lágrimas nos olhos que aquele dia eventualmente chegaria. Você é bonita demais, minha filha”, ela tinha me dito. “E isso é uma maldição para mulheres como nós.” Mas o coronel Francisco era diferente do que eu esperava. Não era brutal, não era cruel, era de uma forma estranha e perturbadora, gentil.
Conversava comigo, perguntava minha opinião sobre coisas, me tratava dentro daqueles aposentos quase como uma pessoa. “Você é diferente, Benedita.” Ele me disse certa noite, seis meses depois, tenho uma inteligência que raramente vejo. É uma pena que o mundo não reconheça isso. Três meses depois, descobri que estava grávida.
Foi quando ele tomou uma decisão que começaria a mudar tudo. Não me mandou para longe, como faziam outros senhores. Não me puniu. Não fingiu que nada estava acontecendo. Me mudou para uma casa separada nos fundos da fazenda, longe dos olhos de dona Amélia, e começou a fazer o mesmo com outras mulheres. Joana Maria da Conceição chegou em 1867.
tinha 19 anos, pele escura como ébano, olhos penetrantes. Tinha sido comprada de uma fazenda vizinha falida. O coronel a instalou numa casa ao lado da minha. No início, senti ciúmes. É natural. Mas quando Joana de verdade, quando conversei com ela, percebi que estávamos na mesma prisão e que brigar uma com a outra só fortaleceria as grades.
Francisca das Chagas veio em 1869. mulata clara, cabelos cacheados longos, voz que acalmava qualquer tempestade. Tinha sido escrava urbana no rio e o coronel a comprou num leilão. Foi ela quem me ensinou a administrar dinheiro. Um dia, ela dizia, vamos precisar saber disso. Rosa de Lima chegou em 1871. Tinha apenas 16 anos.
Era tímida, delicada. chorava todas as noites. No primeiro mês, eu a consolava, abraçava, dizia que ia ficar tudo bem, mesmo sabendo que estava mentindo. Mariana da Glória foi a última em 1873. Tinha 23 anos. Era forte, decidida, falava o que pensava, mesmo sabendo que poderia ser castigada. Foi ela quem primeiro sugeriu que nos uníssemos.
Separadas somos fracas”, disse, “juntas somos uma família. E foi isso que nos tornamos, uma família estranha, nascida da tragédia, mas família mesmo assim. O coronel nos visitava em rotação. Segunda e terça, minha casa, quarta e quinta, Joana, sexta, Francisca, sábado, Rosa, domingo, Mariana. Era mecânico, previsível e com o tempo paramos de sentir ciúmes umas das outras.
Não havia razão. Nenhuma de nós tinha escolhido aquilo. Entre 1865 e 1880, nós cinco demos ao coronel 14 filhos. Eu tive quatro, dois meninos e duas meninas. Joana teve três, todos meninos. Francisca teve dois. Rosa teve três meninas. Mariana teve dois. 14 crianças que nasceram escravas, filhas de um dos homens mais ricos do império, mas que aos olhos da lei não eram nada.
O coronel nunca os reconheceu oficialmente, não podia, destruiria sua reputação, mas algo mudou nele nos últimos anos de vida. Foi em 1878 que percebi. Ele ficou mais silencioso, mais pensativo. Passava horas sentado na varanda de minha casa olhando para o vale. Tudo isso foi construído com sangue.
Ele me disse uma noite de junho de 1879: “Sangue de pessoas como você, Benedita, como Joana, como todas vocês. E eu fui cúmplice. Pior, fui o arquiteto. Foi a primeira vez que o ouvi admitir algo assim. “Não posso mudar o passado”, continuou, “mas posso tentar fazer o que é certo com o tempo que me resta. Não entendi o que ele quis dizer até setembro de 1880, quando nos chamou às 5 para uma reunião privada em sua biblioteca.
“Vou mudar meu testamento”, anunciou sem rodeios. Vou deixar tudo para vocês. Cinco. A fazenda, as casas no Rio, o dinheiro, os investimentos, tudo. Ficamos em silêncio, não por felicidade, por medo puro. Senhor, Joana foi a primeira a falar voz tremendo. O Senhor sabe o que isso vai causar. Sua família vai nos matar.
Minha família já está morta para mim, disse com amargura. Meus filhos só querem meu dinheiro. Minha esposa só quer meu nome. Vocês cinco e seus filhos são a única família real que tenho. Mas, Senhor, insisti, nós somos suas escravas. A lei não vai permitir. Por isso vou alforrear vocês cinco antes. Amanhã mesmo vão receber suas cartas de alforria e quando eu morrer, o testamento será irrevogável.
E foi exatamente isso que ele fez. No dia seguinte, 17 de setembro de 1880, nós cinco fomos alforreadas. Pela primeira vez em nossas vidas, éramos livres, legalmente livres. Segurei aquele papel na mão e chorei. Chorei por minha mãe, que morreu escrava. Chorei por todas as mulheres que nunca teriam essa chance.
Chorei porque aquele pedaço de papel dizia que eu era humana, oficialmente humana. O coronel morreu se meses depois, em 10 de março de 1881, aos 78 anos. Insuficiência cardíaca, disse o médico. Mas eu estava lá naquela noite. Segurei sua mão, ouvi suas últimas palavras. Perdoa-me, Benedita. Perdoa-me por tudo. Não respondi porque não sabia se podia perdoá-lo.
Ele tinha sido meu dono, tinha me usado, mas também tinha sido a única pessoa que me tratou como ser humano. Era complicado. Continua sendo. Cinco dias depois veio a leitura do testamento e então o inferno. Eu estava na cozinha do cartório quando ouvi o grito. Depois o tumulto, vozes furiosas, algo quebrando.
E então um funcionário veio correndo até a cozinha, olhos arregalados. Benedita dos Santos, perguntou o ofegante. Sim, senhor. Respondi automaticamente, como tinha respondido a vida inteira. Você precisa vir agora. Você Você herdou o coronel Albuquerque. Não entendi no primeiro momento. Como assim, senhor? Você e outras quatro mulheres, vocês herdaram tudo, a fortuna inteira.
Minhas pernas fraquejaram. Tive que me segurar na pia. Quando entrei naquela sala, 23 pares de olhos se viraram para mim. Alguns com choque, alguns com ódio, alguns com desprezo. Dona Amélia, a viúva, estava desmaiada numa cadeira. Alberto, o filho mais velho, estava vermelho, berrando obscenidades. O tabelião Dr.


Augusto Ferreira repetiu para mim o que tinha lido, palavra por palavra, e cada palavra soava irreal. Deixo a totalidade dos meus bens para Joana Maria da Conceição, Francisca das Chagas, Rosa de Lima, Benedita dos Santos e Mariana da Glória. Era real, estava acontecendo. Alberto explodiu. Isso é uma farsa. Meu pai estava senil, foi manipulado por essas essas.
Termine a frase, disse Joana, que tinha acabado de entrar na sala. Sua voz era calma, mas havia aço nela. Termine a frase, Alberto. Ele não terminou, mas não precisava. E assim começou uma batalha legal que duraria 7 anos. A família Albuquerque não aceitou, obviamente. Contrataram os melhores advogados do império.
Argumentaram que o coronel estava senil, que tínhamos manipulado um velho doente, que era imoral deixar uma fortuna para ex-escravas. Mas o testamento era perfeito, escrito de próprio punho, datado, assinado, com testemunhas respeitáveis. Não havia brecha legal. Então, tentaram nos intimidar. Uma noite, a casa de rosa foi incendiada.
Conseguimos salvá-la e as filhas dela por pouco. Outra vez capangas de Alberto tentaram me sequestrar na rua. Joana me salvou, gritando até atrair atenção. Nos chamavam de aproveitadoras, de prostitutas, de manipuladoras. Os jornais publicavam charges cruéis. A sociedade carioca se dividiu, mas contratamos nosso próprio advogado, Dr.
Joaquim Nabuco, abolicionista fervoroso. “Vocês são o símbolo perfeito,” ele nos disse, “de como essa sociedade entra em pânico quando aqueles que tratava como propriedade ganham poder.” O processo arrastou-se por anos, tribunais inferiores, superiores, recursos, contrcursos. tentaram provar que éramos analfabetas.
Joana leu Camões em voz alta no tribunal. Tentaram provar que éramos de caráter duvidoso. Francisca apresentou cartas de recomendação de padres e comerciantes. Enquanto isso, administrávamos a herança. A fazenda Santa Cecília continuava produzindo café. Os sobrados eram alugados. Os investimentos rendiam.
Nós cinco que havíamos sido escravas, nos tornamos administradoras, negociantes, proprietárias. Foi em 1885 que a maré virou. O movimento abolicionista estava forte. A lei dos sexagenários tinha sido aprovada. Nosso caso se tornou símbolo nacional. O Supremo Tribunal deu seu veredito final em 13 de maio de 1886, exatamente 2 anos antes da lei Áurea.
O testamento é válido. As cinco beneficiárias têm direito pleno e irrevogável à herança. Quando a notícia chegou, estávamos reunidas na fazenda Santa Cecília, na mesma sala onde o coronel costumava nos receber. Não gritamos, simplesmente nos abraçamos e choramos. Choramos por tudo que tínhamos passado, por tudo que ainda carregávamos, pela justiça que contra todas as probabilidades tinha prevalecido.
A família Albuquerque foi destruída. Alberto morreu arruinado em 1887. Dona Amélia voltou para Portugal, onde morreu sozinha. Usamos a herança para comprar a liberdade de dezenas de escravizados antes da lei Áurea. Financiamos escolas para crianças negras. Criamos um fundo para ajudar mulheres libertas.
A fazenda Santa Cecília virou uma comunidade agrícola onde ex-escravos trabalhavam e recebiam salário justo. Hoje é 1888, tenho 58 anos. A escravidão foi abolida há três meses. Joana se casou com um alfaiate livre e abriu uma loja no Rio. Francisca comprou uma casa na Tijuca e cuida de órfã. Rosa voltou a estudar e se tornou professora.
Mariana administra a fazenda Santa Cecília com pulso firme e eu escrevo. Escrevo nossas histórias. Escrevo sobre mulheres que vieram antes e não tiveram nossa sorte. Escrevo sobre as que virão depois. O coronel Francisco de Paula Albuquerque foi um homem complicado. Foi meu dono, foi o pai dos meus filhos.
me manteve presa, mas me deu ferramentas para a liberdade. Não posso amá-lo, não posso odiá-lo completamente. Mas sua decisão final mudou não apenas nossas vidas, mudou a história, forçou o Brasil a olhar para si mesmo e ver a hipocrisia, ver que aquelas pessoas que tratava como propriedade eram capazes de ler, administrar, prosperar. Éramos humanas.
Sempre fomos. A herança do coronel não foi apenas dinheiro, foi uma declaração de que nós importávamos, de que nossos filhos importavam, de que nossa humanidade existia, independente do que a lei dizia. Arrasou o Rio de Janeiro. Sim, mas não destruindo. Expondo. Forçamos a elite a confrontar suas contradições.
Mostramos que o edifício inteiro da escravidão estava construído sobre areia. E quando ele finalmente desmoronou em 13 de maio de 1888, nós cinco estávamos lá de pé, livres, proprietárias, vitoriosas, não por vingança, por justiça. Isso vale mais que qualquer herança.

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