
💔 A VINGANÇA FRIA DA SINHÁ E O VENENO DO AMOR PERDIDO
Naquela tarde abafada de janeiro de 1852, quando o sol castigava sem piedade os canaviais da fazenda Santa Bárbara, no Vale do Paraíba, Sinhá Mariana descobriu que o homem com quem dormia há 15 anos guardava um segredo que rasgaria sua alma ao meio.
O Coronel Augusto Ferreira da Costa, senhor de terras e de centenas de almas cativas, tinha nos olhos um brilho que ela conhecia bem demais. Mas aquele brilho não era mais para ela; era para Joana, a mucama de pele reluzente, “como jabuticaba madura,” de apenas 19 anos, que servia o café todas as manhãs na varanda da Casa Grande.
Quando Mariana viu o marido tocar a mão da escrava ao receber a xícara de porcelana, quando viu aquele olhar que não mentia, quando sentiu no peito o peso de uma verdade que “todas as Sinhás do Império conheciam, mas fingiam não ver,” algo dentro dela morreu e renasceu ao mesmo tempo.
Nasceu uma fúria santa, uma dor que não tinha nome, uma humilhação que ardia mais que as brasas do fogão à lenha onde Joana passava os dias preparando as refeições da família que a escravizava.
I. A Traição e a Humilhação
Sinhá Mariana não era uma mulher qualquer. Filha de Barão português com herdeira de engenho pernambucano, tinha sido educada no Convento das Irmãs do Carmo, no Rio de Janeiro. Sabia ler francês, tocar piano, bordava como nenhuma outra dama da região e rezava o terço todos os dias. Mas naquele momento de descoberta, “nada daquilo importava mais.” Ela era apenas uma esposa traída, humilhada dentro da própria casa.
O pior era que não podia gritar, não podia chorar em público, “não podia rasgar as vestes e berrar sua dor pelos corredores,” como fazia a preta velha Benedita quando perdeu o filho mais novo, vendido para as minas de ouro. Não. Sinhá Mariana precisava “engolir o veneno com elegância.” Precisava sorrir para as visitas, manter a pose de senhora respeitável enquanto seu mundo desmoronava “como casa de cupim.”
Mariana sabia, no fundo da alma, que Joana não tinha culpa. Joana era “propriedade do Coronel,” assim como os cavalos, o gado e as galinhas. Ela não podia dizer não, não podia recusar, não podia fugir.
Joana tinha apenas 13 anos quando chegou à fazenda, trazida de um leilão na corte. Cresceu entre a cozinha e a senzala, aprendendo a cozinhar com Tia Generosa e a “baixar os olhos quando os brancos passavam,” a ser invisível. Mas sua beleza não passava despercebida. Tinha “olhos grandes e tristes, como os de uma corça acuada,” e um corpo que começava a ganhar as curvas de mulher.
O Coronel Augusto, homem de 52 anos, “barriga proeminente, bigode farto e mãos pesadas,” começou a notar a menina que virou moça. Começou a chamá-la para servir o café da manhã a sós na biblioteca. Começou a inventar desculpas para ficar sozinho com a escrava, que não podia recusar as vontades do Senhor.
E numa noite de tempestade, quando a Sinhá Mariana estava visitando a mãe doente na fazenda vizinha, o Coronel mandou chamar Joana. Ela subiu as escadas sabendo o que a esperava, o coração batendo forte, as mãos tremendo. Quando viu o homem “velho e suado” esperando, quando sentiu as mãos dele arrancando seu vestido, ela fechou os olhos. Pediu à mãe que nunca conheceu que a protegesse, pediu a Deus misericórdia e “se entregou ao destino que a sociedade do Império havia escolhido para ela.”
Nos meses seguintes, Joana se tornou a “amante obrigatória” do Coronel. Ele a visitava na senzala ou a chamava à Casa Grande quando Mariana saía, trazendo presentes baratos “como se aquilo compensasse o que ele roubava dela todas as noites.”
Joana guardava a vergonha dentro do peito. Mas Tia Generosa, a cozinheira, sabia. Numa tarde, segurou a mão de Joana e disse baixinho: “Menina, isso não é culpa tua. Tu é vítima, assim como todas nós já fomos.” Joana desabou em lágrimas, chorando pela “infância roubada, pela dignidade perdida, pelo futuro que nunca teria.”
II. O Castigo de Sinhá Mariana
Sinhá Mariana passou semanas planejando sua vingança. Não era vingança impulsiva, mas sim “calculada, fria como a geada.”
Ela começou a tratar Joana com uma crueldade meticulosa. Inventava tarefas impossíveis: mandava lavar toda a roupa da casa sozinha num dia, obrigava-a a esfregar o chão de ladrilhos de joelhos até as mãos sangrarem e cortava a comida da escrava.
Mas o pior castigo era outro. Mariana sabia que Joana tinha se apaixonado por Domingos, um escravo alto e forte que trabalhava na serraria da fazenda, um “homem bom que tocava viola” e fazia as crianças rirem. Domingos também amava Joana desde a infância. Ele sonhava em juntar dinheiro para comprar a alforria dos dois, sonhava com um pedaço de terra e “filhos livres correndo pelo quintal.”
Quando Mariana descobriu esse amor, ao ver os olhares que Joana e Domingos trocavam escondidos durante a missa, ela sentiu que havia encontrado a arma perfeita.
Numa tarde, chamou o feitor cruel, Capitão Morais, e ordenou que Domingos fosse vendido para um comprador de escravos que estava de passagem. Um homem que levava cativos para as fazendas de café de São Paulo, “lugares onde diziam que os negros morriam como moscas.”
Domingos foi arrancado da serraria no meio do dia, acorrentado junto com outros escravos. Quando Joana ouviu o barulho das correntes e viu o homem que amava sendo levado embora, ela caiu de joelhos no terreiro e gritou um grito que “não parecia humano.” Era o som de uma alma sendo partida ao meio.
Sinhá Mariana assistiu a tudo da janela do quarto, com um sorriso amargo nos lábios. Mas a vingança não trouxe alívio. Pelo contrário, ela se sentia “mais vazia, mais sozinha, mais presa naquele casamento que era uma mentira.”
O Coronel Augusto nem notou. Continuou com suas noites com Joana, que agora era apenas “um corpo sem vida, uma boneca de pano.”
III. O Café Amargo e a Liberdade Final
Até que numa noite de setembro, quando a lua estava cheia e “vermelha como sangue,” aconteceu o inesperado.
Joana entrou na despensa da Casa Grande, pegou um vidro de veneno de rato, misturou o pó branco no café que preparava todas as manhãs e serviu a bebida fumegante para o Coronel. Ele tomou de um gole só, reclamou que estava amargo, e ela ficou parada ali, olhando-o beber. Os olhos secos, o coração vazio, exceto pela decisão final.
O Coronel Augusto começou a passar mal uma hora depois. Veio a febre, as convulsões, os gritos de dor que acordaram toda a casa. O médico chegou tarde demais. O Coronel “morreu agonizando na própria cama,” cercado pela esposa que não derramou uma lágrima e pelos escravos que fingiram tristeza, mas sentiam “um alívio secreto.”
Joana foi presa na mesma noite. Confessou o crime sem hesitar. Disse que tinha feito por Domingos, “pelo amor roubado, pela vida que nunca teria, pela dignidade que foi tirada dela.”
O delegado quis um julgamento, mas Sinhá Mariana interferiu, alegando que não queria escândalo. Ela mesma decidiu o destino da escrava: mandou que Joana fosse vendida para uma fazenda de Charque no Rio Grande do Sul, “um lugar de onde ninguém voltava.”
Na manhã em que Joana partiu, algemada na carroça, Sinhá Mariana foi até a senzala pela primeira e última vez. Ficou frente a frente com a mulher que tinha sido amante do marido e que o havia matado. E num sussurro que só as duas ouviram, Mariana disse:
“Eu também sou prisioneira desta vida. Eu também sou escrava das correntes que não se veem. E talvez num outro mundo, numa outra vida, pudéssemos ter sido irmãs em vez de inimigas.”
Joana olhou para ela com os olhos fundos e respondeu: “Nesse mundo aqui, Sinhá, não existe liberdade para nenhuma de nós. Só que a senhora tem cama macia para chorar. E eu tenho chão de terra batida.”
A carroça partiu. Sinhá Mariana voltou para a Casa Grande, trancou-se no quarto e, finalmente, chorou. Chorou por ela, por Joana, por todas as mulheres aprisionadas naquele sistema cruel que destruía a alma de “escravos e senhores, negros e brancos, homens e mulheres.”
Anos depois, quando a Lei Áurea foi assinada e a fazenda Santa Bárbara virou ruína, diziam que nas noites de lua cheia ainda se ouvia o grito de Joana ecoando pelo vale. Um grito de dor, amor e revolta que o tempo não conseguiu apagar.