
O Berço de Palha e a Maldição
Luanda tinha 23 anos quando tudo desmoronou de vez. Ela nasceu ali mesmo, na senzala número sete, filha de Massu e Felismina. Dois corpos cansados que trabalhavam de sol a sol e que tentaram proteger a filha do destino que já estava escrito. Mas não dá para proteger ninguém quando você mesmo não tem proteção.
Luanda cresceu vendo a mãe rezar baixinho, cresceu ouvindo o pai pedir silêncio, cresceu sabendo que ser bonita ali era perigoso.
E ela era. Pele escura que brilhava mesmo coberta de terra. Olhos grandes e fundos como poços, capazes de reter a luz e o medo. O corpo se movia com uma elegância que ninguém lhe ensinou; era só dela, vinha de dentro, um ritmo ancestral que os chicotes não conseguiam quebrar. E isso chamou atenção. A atenção errada de dois homens errados.
O Coronel Álvaro Montenegro era o dono daquelas terras todas. Homem de bigode branco e voz que ecoava grossa pelas varandas, como um trovão distante e constante. Tinha mais de 60 anos, tinha poder, tinha dinheiro e tinha o costume de pegar o que queria, seja terra ou carne. Ele olhava para Luanda desde que ela tinha 15 anos. Olhava de um jeito que fazia a menina baixar a cabeça e rezar por invisibilidade.
Mas invisibilidade não existe para quem é vigiado o tempo todo.
E tinha o outro, o Barão Joaquim do Rosário, homem mais novo, quarenta e poucos anos, sócio do Coronel nos negócios de açúcar e gado. Ele visitava a fazenda uma vez por mês para tratar das contas e das colheitas. Ele viu Luanda pela primeira vez quando ela tinha 21 anos. Ela estava carregando água da fonte para a Casa Grande, o pote de barro equilibrado com perfeição sobre a cabeça. Ele parou, ficou olhando, e desde então toda a visita dele era uma tortura silenciosa para ela.
Os dois homens conversavam, riam, fumavam charutos caros na varanda e de vez em quando trocavam olhares. Olhares que significavam acordo. Um acordo sobre o corpo de uma mulher que não podia dizer “não”.
Luanda sabia. Todo mundo na senzala sabia, mas ninguém falava. Falar era morrer. Falar era ver a família inteira ser vendida e dispersa para os quatro cantos do Brasil. Falar era pior do que aguentar. Então, todo mundo fingia que não via, fingia que não sabia, fingia que aquilo não estava acontecendo.
Noite de Lua Cheia
Até a noite em que chamaram Luanda para a Casa Grande.
Era noite de lua cheia, céu limpo, estrelas todas acesas como testemunhas mudas. A Sinhá Leopoldina tinha ido visitar a irmã em outra fazenda. A casa estava vazia de mulheres da família. Só tinha homens, e vinho, e risadas que gelavam a espinha.
Foi o capataz quem veio buscar: Benedito. Um homem que carregava o chicote na mão e um olhar morto nos olhos, um homem que já havia perdido a alma há muito tempo. Ele bateu na porta da senzala.
“Luanda!” ele chamou, sua voz fria e inabalável. “O Coronel tá chamando. É pra agora.”
Luanda estava deitada na esteira de palha, tremendo. Ela já sabia. Não havia engano, nem esperança.
Massu, o pai, levantou-se abruptamente, a exaustão de anos de trabalho esquecida pela fúria protetora.
“Eu vou junto”, ele disse, a voz embargada.
Benedito apenas virou o corpo e desferiu um tapa seco que jogou o velho no chão.
“Quieto, escravo. E não se meta onde não é chamado. Ninguém vai, só ela.”
Felismina, a mãe, agarrou a boca para abafar um grito de dor, puxando o corpo inerte de Massu para perto. Luanda saiu descalça, com um vestido remendado que era a única coisa que a cobria. O coração dela batia tão forte que parecia que ia sair pela boca.
O caminho até a Casa Grande nunca pareceu tão longo. Cada passo era uma eternidade. Cada passo era uma despedida do pouco que lhe restava.
Ela entrou pela porta dos fundos, a porta reservada aos escravos. A cozinha estava escura. Tinha apenas uma vela acesa na mesa, e além da porta dupla do salão, havia vozes, vozes de homens rindo alto. Luanda parou, respirou fundo, pediu a Deus que a levasse antes de entrar, mas Deus não levou.
Ela entrou.
O Coronel Montenegro estava sentado na poltrona de couro, camisa de linho entreaberta, copo de vinho tinto na mão. O Barão Joaquim estava em pé, perto da janela, o ar de desinteresse fingido em sua postura. Os dois olharam para ela e sorriram. Sorrisos que não tinham alma, sorrisos de quem sabe que pode tudo, de quem está acostumado com a obediência e a quebra.
Luanda ficou parada, de cabeça baixa, como lhe ensinaram, como a obrigaram a estar.
O Coronel falou, sua voz arrastada pelo vinho e pela idade.
“Você é bonita, Luanda“, ele disse, inclinando a cabeça. “Dizem que a beleza é a única riqueza que uma escrava pode ter. E você é sortuda. Vai aprender hoje o que é servir de verdade. Vai aprender o que é o seu propósito.”
Luanda não respondeu. Não podia. A voz tinha sumido, presa na garganta por uma muralha de terror.
O Barão se aproximou, andando em círculos, como um predador. Ele estendeu a mão e tocou o rosto dela, um carinho falso e ultrajante. Luanda fechou os olhos, sentiu a mão áspera, sentiu o cheiro forte de fumo e bebida. Sentiu a injustiça queimando por dentro, uma chama gélida.
E então aconteceu o que ela sempre soube que ia acontecer, o que todas as mulheres da senzala sabiam que ia acontecer com elas ou com as filhas. Os dois homens, naquela noite, naquele salão de riquezas roubadas, fizeram o que quiseram.
E Luanda não pôde gritar, não pôde correr, não pôde lutar. Porque lutar era morrer. E ela tinha uma família, tinha uma mãe que dependia dela, tinha um pai que já estava velho demais.
Então ela aguentou. Fechou os olhos com tanta força que viu estrelas e foi para um lugar longe, bem longe. Um lugar onde o corpo não importava mais, onde a dor não alcançava, onde ela ainda era livre. Um refúgio mental que era a única coisa que um escravo podia realmente possuir.
A Sombra e o Silêncio
Quando acabou, ela voltou para a senzala. Cambaleando, rasgada por dentro e por fora.
Felismina a recebeu. Ela lavou o corpo da filha, chorou sem fazer barulho, engolindo os soluços para que Benedito não ouvisse. Massu sentou no canto e não disse nada, porque não tinha o que dizer, não tinha como consertar. Não tinha justiça, não tinha lei. Só tinha dor e silêncio e uma vergonha que não era dela, mas que grudava nela do mesmo jeito.
Os dias seguintes foram como andar em carne viva. Cada movimento doía, cada olhar, mesmo o de piedade, era uma lembrança. Luanda tentou voltar ao trabalho nos campos, tentou fingir que estava bem, mas o corpo não mentia e a alma estava despedaçada em mil pedaços.
E piorou, porque não foi uma vez só. O Coronel mandou chamar de novo. E de novo. E de novo. Toda vez que a sinhá saía, toda vez que tinha visita do Barão, Luanda era chamada, usada como objeto, como coisa, como se não fosse gente.
E algo dentro dela começou a morrer devagar, pedaço por pedaço. Ela parou de falar, parou de sorrir, parou de olhar nos olhos de qualquer pessoa. Virou sombra. Os passos de Luanda não faziam mais barulho.
As outras mulheres da senzala tentavam ajudar. Dandara, a parteira, trazia chás de ervas calmantes. Joana e Catarina ficavam perto enquanto ela trabalhava, tentando absorver um pouco do fardo, rezavam junto, sussurravam palavras de força, mas todo mundo sabia que não tinha cura. Não tinha remédio. Só tinha espera: espera pela morte ou pela liberdade. E as duas pareciam igualmente impossíveis.
A Semente da Injustiça
Até que uma noite, três meses depois da primeira violência, Luanda descobriu que estava grávida.
Sentiu a mudança no corpo, sentiu a náusea persistente que não vinha da comida estragada, sentiu o atraso, e sentiu o desespero mais frio e profundo de sua vida. Ela sabia de quem era a criança. Sabia que aquele feto ia nascer com a marca do pecado que não era dela. Ia nascer sem pai reconhecido, ia nascer escravo, ia nascer para sofrer o mesmo que ela.
E ela não queria isso. Não queria trazer mais dor para o mundo. Recusava-se a gerar um novo elo na corrente da escravidão e da violência.
Felismina percebeu a mudança no corpo da filha antes mesmo de Luanda confirmar. A mãe segurou a mão da filha, seus olhos marejados de água antiga e impotente.
“Nós vamos dar um jeito, minha filha”, Felismina sussurrou, a voz trêmula. “Nós vamos cuidar, essa criança vai ser amada, muito amada.”
Mas Luanda balançou a cabeça. Não queria amor, queria justiça. E justiça não existia ali.
Então ela começou a planejar baixinho, sozinha, nas noites em que todo mundo dormia e só restava ela e o silêncio pesado da senzala.
Ela sabia de uma planta, uma raiz que as mulheres mais velhas conheciam. Uma raiz que fazia o corpo expulsar o que não devia estar ali. As mulheres a chamavam de “a raiz da lua”, mas todos sabiam que era perigoso. Podia matar, podia fazer sangrar até não sobrar nada. Luanda não ligou. Preferiu morrer a viver assim, a dar continuidade àquele ciclo de violência.
Conseguiu a raiz com Adelino, um homem velho, curandeiro da mata, que conhecia os segredos das plantas e das curas. Ele a entregou com lágrimas nos olhos, os dedos secos de anos de trabalho tremendo ao tocar a raiz escura.
“Pense bem, minha menina“, ele implorou, a voz quase um gemido. “A vida é uma coisa preciosa, Luanda.”
“A vida aqui não é preciosa, Adelino“, ela respondeu, e pela primeira vez sua voz saiu firme, mas vazia. “É só mais uma corrente.”
Ela agradeceu em um murmúrio e tomou a infusão da raiz.
A Liberdade Final
Naquela mesma noite, ela deitou na esteira. Abraçou a barriga, pediu perdão e esperou.
A dor veio como uma tempestade. Cortante, violenta, sem piedade. Luanda mordeu o pano da esteira para não gritar, para não acordar ninguém e causar mais problemas, mas não adiantou. O grito saiu. Não um grito de dor, mas um grito de revolta e desespero.
Felismina acordou assustada. Viu o sangue, viu a filha se esvaindo, gritou por ajuda.
“Dandara! Joana! Pelo amor de Deus, ajudem!”
As mulheres vieram. Tentaram estancar o sangramento, tentaram salvar, usaram as poucas ervas que tinham, mas era tarde. Luanda estava indo, e ela sabia.
Ela olhou nos olhos da mãe e, com um esforço que lhe custou a última força, sorriu. Sorriu pela primeira vez em meses, porque finalmente estava indo para um lugar onde ninguém podia tocá-la, onde ninguém podia machucá-la, onde ela era livre. A morte era o único lugar onde ela era dona do próprio corpo.
Luanda morreu naquela noite com 23 anos, sem nunca ter sido dona do próprio corpo, sem nunca ter tido escolha, sem nunca ter tido justiça.
Enterraram ela debaixo de uma árvore velha, perto do riacho. As mulheres cantaram canções em uma língua que o Coronel não conhecia, os homens choraram silenciosamente, e o Coronel nem soube que ela se fora até o dia seguinte. Para ele, era só mais uma escrava, substituível, esquecível.
Mas para a senzala, Luanda virou memória, virou história, virou sussurro que passava de mãe para filha. E toda vez que uma menina nascia bonita, as mães rezavam. Rezavam para que a beleza não virasse maldição. Rezavam para que a história não se repetisse.
“O poder sem limite é o inferno na terra”, sussurravam as mães. “E enquanto houver poder sobre corpos que não podem dizer não, haverá Luandas, haverá dor, haverá sangue derramado em silêncio.”
Essa história não tem final feliz, não tem redenção, não tem justiça tardia. Tem só a verdade, a verdade nua e crua de um Brasil que existiu, que machucou, que matou e que precisa ser lembrado não para cultivar ódio, mas para nunca mais repetir, para nunca mais esquecer, para nunca mais fingir que não aconteceu.
Luanda existiu. E outras mil Luandas existiram. Elas merecem ser lembradas. Elas merecem ser choradas, merecem ter seus nomes ditos em voz alta. Massu, Felismina, Dandara, Joana, Catarina, Adelino. Todos eles, todas elas, não foram só números, foram gente, foram alma, foram Brasil