A ESPIRAL MAIS PROFUNDA QUE O SANGUE

Ánh, trinta e dois anos, não era uma caçadora de fantasmas ou uma caçadora de tesouros. Ela era uma investigadora de locais abandonados, uma busca-dora de histórias que o governo e a história tentaram apagar. Por três anos, ela foi consumida pelos arquivos vazados da Linhagem Crowthorne — uma linha de endogamia intergeracional no Sul dos Estados Unidos, onde a pureza era definida pela deformidade, e o controle era construído no isolamento absoluto. Este era o solo da “Raiz Oca” (The Hollow Root), uma área que os militares tentaram descontaminar através da Operação Blackwood, sem sucesso.
A propriedade Crowthorne, agora cercada por arame farpado novo e mantida por uma entidade legal misteriosa chamada “Spiral Holdings LLC,” era o seu alvo final.
Ánh encontrou uma abertura cuidadosamente cortada na cerca, atravessou, e sentiu imediatamente um silêncio horripilante, uma quietude não natural. Não havia canto de pássaros, nem insetos, apenas uma pressão pesada no ar, como se o próprio espaço estivesse sendo comprimido. Ela caminhou pela floresta abandonada, onde os carvalhos se retorciam em formas bizarras, parecendo tentar se desvencilhar do solo.
Ela sabia que este era o lugar onde Thomas Crowthorne iniciou o “Espiral” em 1831, usando justificativas religiosas insanas para forçar gerações ao incesto mais grotesco. E este era o lugar onde Elijah Crowthorne, que levou a doutrina da “pureza” ao seu ponto mais extremo, o completou no início do século XX.
A casa principal havia desabado, apodrecida em cinzas, mas Ánh encontrou a fundação do celeiro, construída com uma solidez de pedra incomum. Este era o local que Elijah transformou em um “templo” para nutrir Ezekiel, o último filho, nascido sem mandíbula, com falta de pele, e que era considerado o Recipiente Perfeito em termos espirituais.
Ánh iluminou as lajes de pedra dentro do celeiro com sua lanterna. Ela viu entalhes: espirais concêntricas, contínuas, simbolizando a repetição da linhagem Crowthorne. Ela reconheceu essas formas como a “Bobina” (The Coil) — o emblema de uma entidade antiga, um tipo de Herança Sanguínea que Elijah acreditava que despertaria através do controle e da filtragem genética.

A câmara dentro do celeiro, que deveria ser um estábulo, era agora um poço circular pavimentado com ardósia, com um altar de mármore rachado no centro. Este era o Poço Ritual, onde se acreditava que Ezekiel foi concebido e mantido na escuridão. Ánh sentiu seu estômago se contorcer com um horror indescritível.
Perto de um carvalho antigo, cujas raízes saíam do chão como dedos esqueléticos, Ánh cavou o solo macio. Este era o local onde os bebês deformados eram assassinados e enterrados sem nome, meros experimentos fracassados na jornada de Elijah pela “pureza”.
Após alguns minutos de escavação, sua pá bateu em metal. Ánh puxou para fora uma caixa de ferro pesada, enferrujada, mas hermeticamente fechada. Dentro, havia um pequeno caderno, encadernado em pele de porco, úmido, uma cópia manuscrita do Livro da Ligação da Carne.
Ánh folheou as páginas, tremendo. O cheiro de mofo e metal subiu. A maioria das páginas registrava nomes repetidos em relações proibidas: Ruth era irmã, mãe, tia, esposa. Sarah era filha, sobrinha, esposa. Ánh leu as justificativas insanas de Thomas: “Para combater o caos do mundo, devemos nos contrair, retornar à Origem (The Origin). A pureza não está na forma, mas na sintonia sanguínea.”
Na época de Elijah, as anotações se tornaram maníacas. Ele descrevia as deformidades congênitas — falta de mandíbula, olhos muito grandes, membros retorcidos — não como falhas, mas como “os presentes da sintonia”. Ele acreditava que cada geração era uma espiral mais profunda na Herança.
Ánh virou para a última página. Suor frio escorreu por sua espinha. Sob o símbolo da Bobina, desenhado em sangue seco, havia uma linha escrita à mão com tinta vermelha fresca, que não havia desbotado, logo abaixo do último nome registrado: Ezekiel.
“Ánh Nguyễn – 2024. A Ouvinte. A Sexta Criança Pura.”
Seu nome. O ano atual. E um título inacreditável: A Sexta Criança Pura. Ánh sabia que os arquivos vazados registravam apenas cinco crianças abortadas/assassinadas. Isso significava que Ezekiel tinha um sucessor.
Nesse instante, um som ecoou. Não era choro, nem grito, mas uma risada úmida, gutural, vinda de uma criança que acabara de aprender a rir, mas que ressoava com vozes demais ao mesmo tempo — a de Thomas, Elijah, Ruth, Sarah, e um sibilo inumano. A risada não vinha da floresta, mas de debaixo do Poço Ritual.
Ánh sentiu seu corpo inteiro vibrar, não pelo som, mas por um movimento interno. Em um breve momento, sua visão foi substituída por uma sequência de imagens surreais: ela viu Ruth com os olhos vazios sussurrando, ela viu Elijah com o martelo ensanguentado, e ela viu Ezekiel, uma forma informe, enrolado como uma Espiral Viva que consumia tudo.
Ánh soube que era A Bobina tentando se manifestar, transferindo a consciência da linhagem.
Ánh largou o caderno em pânico e correu sem olhar para trás. Ela disparou pela vegetação rasteira, atravessou a cerca sem sentir a dor. Entrou no carro e acelerou o máximo que pôde.
Somente após mais de 80 quilômetros, Ánh ousou olhar para o retrovisor. A propriedade Crowthorne havia sumido. Ela ofegava, tentando recuperar o ritmo cardíaco. Mas o que a congelou foi o seu próprio rosto no espelho.
Ela tentou piscar, mas não conseguiu. Seus olhos estavam arregalados, fixos, refletindo a luz fraca do painel sem piscar. Ánh se lembrou do último trecho do dossiê militar: O Alvo E-1 não pisca, não projeta sombra e demonstra crescimento anormal dos nervos ópticos.
E então, um sorriso, não o sorriso de Ánh, mas uma curva fina e fria, surgiu em seus lábios. Ela sussurrou, a voz rouca, não a dela, mas uma síntese de centenas de anos de isolamento:
“O espiral encontrou um novo recipiente. Não a Sexta Criança. Eu sou a Guard-iã… e estou faminta.” Ela tentou girar o volante, mas suas mãos se tornaram estranhas, agarrando-o com uma força que rachou o plástico. A linhagem Crowthorne não havia morrido. Encontrou um novo caminho, e estava dirigindo.