🇧🇷 A Última Canção de Ninar (1943)

O Coro do Amanhecer
O frio da madrugada de 1943 perfurava as barracas de madeira e os ossos. No complexo de Auschwitz-Birkenau, o ar estava mais denso do que o habitual, não apenas com o cheiro acre do carvão queimado, mas com o peso imóvel e terrível do destino.
Ao amanhecer, a rotina de terror foi rompida por um silêncio diferente. Os guardas da SS, com seus casacos cinzentos e rostos sem expressão, vieram buscar o “carregamento” da manhã: mulheres e crianças. Não havia mais a farsa do “reassentamento”. A fumaça que subia das chaminés, a névoa ácida que pairava sobre os trilhos… a verdade havia se tornado um veneno respirado diariamente.
As mães que se amontoavam na esplanada fria sabiam. Seus olhos, antes cheios de esperança teimosa, agora carregavam uma clareza desoladora. Ninguém gritava. Ninguém implorava. O desespero havia se transformado em uma resignação quase divina.
Foi nesse momento, enquanto os cães de guarda latiam e os guardas alemães gritavam ordens secas, que o milagre do som aconteceu.
Começou com Chana, uma jovem mãe de Varsóvia que segurava seu filho, David, de quatro anos, envolto em um xale remendado. A voz dela estava fraca, um sussurro que mal superava o barulho da bota no cascalho, mas era melodia:
“Sleip, mein klayn kind… a yingele, sheyn un fayn…” (Dorme, meu filhinho… um menino, lindo e bom…)
Era um antigo canto de berço em iídiche, talvez uma canção que sua própria mãe havia cantado em uma cozinha quente, cheia de cheiros de challah e alegria.
A princípio, apenas David ouviu, aninhando-se mais fundo no pescoço dela. Mas então, a voz de Rifka, uma mulher mais velha de Budapeste, juntou-se. A canção dela era mais forte, um pouco desafinada, mas cheia de uma urgência apaixonada. Ela segurava duas meninas pequenas, seus pequenos rostos pálidos e confusos.
Uma a uma, as mães seguiram. Aquelas que eram capazes de cantar, cantavam. Aquelas que não podiam, murmuravam. Aquelas que já haviam perdido a voz, embalavam seus filhos e moviam os lábios no ritmo da canção. O que começou como um sussurro solitário rapidamente se tornou um coro frágil, mas inabalável.
Não era a canção perfeita da sinagoga; era áspera, entrecortada por soluços e respirações superficiais. Mas era resistência. Era uma recusa silenciosa em permitir que o regime levasse a última coisa que lhes pertencia: o amor.
À medida que o grupo avançava pela estrada lamacenta em direção aos crematórios, a melodia pairava sobre o acampamento. O mundo ao redor — o arame farpado, as torres de vigia, o cinza infinito — tornava-se um cenário borrado e sem sentido. O que permanecia nítido era o refúgio sonoro que elas haviam criado, um pequeno círculo de calor em um universo de gelo.
Os guardas ficaram perturbados. Eles estavam acostumados aos gritos, ao terror e à submissão. Estavam preparados para a violência, mas não para a dignidade tranquila. Eles não tinham um protocolo para isso: mães que, mesmo prestes a serem apagadas, escolhiam ativamente construir beleza.
A sobrevivente, Lena, que na época era uma adolescente na área de trabalho e testemunhou o grupo passar, nunca se esqueceu. Muitos anos depois, com os cabelos brancos, ela ainda podia fechar os olhos e ouvir.
“Não consigo me lembrar do rosto dos guardas, nem da cor da fumaça,” disse ela. “Mas a canção… era como se o mundo inteiro estivesse sendo abraçado. A última coisa que aquelas crianças ouviram não foi o ódio, mas sim o amor.”
Naquele instante, à sombra da morte, aquelas mães não eram vítimas. Eram guardiãs. Elas construíram um templo de ternura no lugar mais profano da Terra. A canção de ninar era o seu testamento final, a prova irrefutável de que, mesmo quando a vida é tirada, o amor é a última e mais forte canção a terminar.
E embora o coro tenha se silenciado naquela manhã, o eco daquela canção permaneceu. É a voz da humanidade, que se recusa a ser extinta.