O jornalista apresenta: No inverno de 1742, os sinos do convento de San Lee soavam lúgubres. Beatrice da Vran, filha do Conde, caminhava em silêncio pelo claustro gelado, vestida em véu branco. Não escolhera aquele destino; fora entregue à igreja para manter alianças políticas. Seu coração jovem, escondido sob o hábito, ardia em perguntas que a fé imposta não respondia. As paredes douradas, tão belas aos olhos alheios, eram sua prisão invisível. O olhar de Beatrice vagava pelas imagens de santos entalhados em ouro. Não havia consolo; sabia-se refém de votos que não nascera para pronunciar. A cada noite rezava, mas sua voz soava vazia até para si mesma.

O Conde, seu pai, acreditava que a clausura era honra; para ela, era sentença. Entre as orações, escondia escritos proibidos: relatos de viajantes sobre terras distantes e homens que fugiam da escravidão. Sonhava em libertar-se, ainda que apenas no pensamento.
Naquela noite, a neve caía, abafando os sons da vila do outro lado do muro do convento. Passos apressados ecoaram: um homem cambaleava, ferido, coberto de sangue. Era Amadi, fugitivo das galés portuguesas. Caçadores o perseguiam, mas perdera as forças. Ao tropeçar junto à porta lateral da capela, caiu sem sentidos. O destino cruel e misterioso entrelaçava dois mundos que jamais deveriam se tocar. Beatrice, de vela em mãos, seria a primeira a encontrá-lo.
Beatrice abriu a porta para recolher mantos deixados ao relento. Ao deparar-se com o corpo caído, sufocou um grito. Não era aldeão nem mendigo: era um homem de pele escura, traços fortes, respiração frágil. O sangue manchava a neve como pecado exposto. Por um instante, recuou. Seria heresia tocar-lhe, mas o coração venceu o medo. Ajoelhou-se e aproximou a chama da vela do rosto dele. Na penumbra, viu que ainda vivia. “Deus, o que queres de mim?” Sem pensar, Beatrice puxou-o para dentro, arrastando-o até a sala do claustro deserto. O corpo pesado feria-lhe os braços frágeis, mas a urgência era maior. Ajoelhou-se, rasgou parte do próprio hábito e estancou-lhe a ferida. O calor da pele dele incendiou-lhe o rosto. Nunca estivera tão próxima de homem algum.
O contraste entre o silêncio do convento e a respiração dele fazia o coração de Beatrice pulsar em descompasso, como se todo o seu corpo confessasse um segredo. Ao perceber que ele despertava, cobriu o rosto com o véu. “Silencie,” murmurou, “ou todos ouvirão.”
Amadi abriu os olhos com esforço. O azul da vela refletiu nos seus, cheios de dor e desconfiança. “Onde estou?” perguntou em sotaque pesado. “Em lugar sagrado e ainda assim em perigo,” respondeu ela, mantendo-se oculta. Naquele instante, Beatrice sabia: sua vida acabara de se dividir entre fé imposta e paixão proibida.
Amadi recobrou os sentidos, mas a dor latejava. Tentou erguer-se e Beatrice o conteve com gesto firme. “Quieto, não vos movais, ou sereis descoberto.” A voz dela, abafada pelo véu, soava entre firmeza e compaixão. O fugitivo, acostumado a chicotes e correntes, não compreendia tamanha ousadia. “Por que me socorreis?” murmurou. Beatrice baixou os olhos. “Sois homem, e ninguém merece morrer abandonado na neve.”
E assim nasceu o segredo que os uniria. Beatrice levou Amadi para uma antiga cela desativada, onde o pó cobria as paredes. Estendeu-lhe palha fresca e trouxe água escondida da cisterna. Cada passo era risco: se descoberta, seria acusada de profanação e banida com desonra. Enquanto tratava-lhe o ferimento, sentiu os dedos dele tocarem de leve sua mão. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Puxou o véu para esconder o rubor. “Não olheis para mim.” Ele sorriu com esforço; nem precisaria ver para reconhecer bondade.
Os dias seguintes foram de tensão. Durante as rezas, Beatrice fingia a normalidade, mas à noite voltava ao claustro secreto. Levava-lhe pão escondido, vinho fraco e unguentos. Amadi falava pouco, observando-a em silêncio. A cada noite, porém, ousava perguntar-lhe algo: “Quem sois vós que desafiais regras tão duras?” Ela hesitava em revelar sua origem. “Sou apenas serva de Deus, condenada ao silêncio.” Ele respondeu: “Não é silêncio o que vos habita, mas fogo contido.”
Certa madrugada, enquanto a neve derretia no telhado, Beatrice aproximou-se para trocar-lhe as ataduras. O calor de seus dedos contra a pele firme dele fez-lhe o coração vacilar. Amadi respirou fundo. “Temeis a mim?” Ela recuou, apertando o véu contra o rosto. “Temo o que sinto, não a vós.” Por um instante, o silêncio entre eles tornou-se mais eloquente que qualquer oração. A chama que crescia não poderia ser contida por votos ou muros.
Mas o perigo rondava. Noviços sussurravam sobre vultos nas madrugadas. A abadesa Marguerite tornara-se vigilante, desconfiada de movimentos incomuns. Beatrice, aflita, escondia bilhas de água e restos de pão sob seu manto, fingindo tarefas noturnas. O risco inflamava ainda mais seus sentimentos. Entre medo e desejo, via em Amadi não apenas o fugitivo, mas o reflexo de sua própria sede de liberdade. No claustro, duas prisões se encontravam: a dele, feita de correntes; a dela, de votos.
Na última noite antes da primavera, Amadi ergueu os olhos cansados para ela. “Não vos conheço o rosto, e ainda assim sinto que vos conheço mais do que a vida que tive.” Beatrice estremeceu, segurando o véu para não deixá-lo cair. A chama da lamparina tremulava, iluminando apenas os contornos de seus lábios. “Guardai vossos olhos de mim, ou ambos pereceremos.” No entanto, seu coração já sabia: a paixão que tentava sufocar era inevitável.
A primavera chegou, trazendo aromas de flores silvestres. Beatrice, ao entrar no claustro secreto, encontrou Amadi recostado na palha, mais forte. Os olhos dele brilhavam à luz da lamparina. “Estais viva em meio a pedras frias,” disse: “Não mereceis esta prisão.” Ela desviou o olhar, apertando o véu sobre o rosto. “Não fales assim, Deus me observa.” Amadi aproximou-se: “E se for ele quem vos envia até mim?”
As palavras ecoaram como tentação irresistível. Beatrice sentiu o coração vacilar. Quando trocou-lhe os curativos, os dedos dele tocaram sua pele de propósito. O calor queimou-lhe como brasa escondida sob o véu e o hábito. Ela afastou a mão, mas não conseguiu esconder o rubor. “Se alguém nos vir,” murmurou. Amadi inclinou-se, apesar da dor. “Já enfrentei correntes e açoites. O que pode ser pior que não sentir nada?” Os olhos dele fixaram-se nela, e Beatrice recuou, presa entre dever e desejo.
Numa madrugada chuvosa, ela trouxe-lhe vinho para acalmar a febre. Amadi pegou o cálice, mas não o levou à boca; encostou-o nos lábios dela. Beatrice recuou, trêmula, mas o gesto ficou gravado. “Não posso,” disse em sussurro, quase súplica. “Vossos olhos dizem o contrário,” respondeu ele, firme. Ela deixou o cálice cair, o vinho manchando o chão como sangue derramado. O claustro tornara-se altar secreto de uma paixão que não podia mais ser negada.
No coro das manhãs, Beatrice cantava salmos, mas a voz se quebrava. Via Amadi em cada palavra, como se Deus a provasse. A abadesa Marguerite observava-a com olhos de águia. “Sois distraída, filha. O pecado ronda-vos.” Beatrice curvou-se, tentando conter as lágrimas. “Apenas fraqueza do corpo, Madre.” Mas em seu íntimo sabia: o corpo já não lhe pertencia. Pertencia àquele fugitivo que, mesmo oculto, incendiava-lhe a alma.
Numa tarde, ao levar pão, Beatrice hesitou antes de abrir a porta. O coração batia descompassado. Ao entrar, encontrou Amadi sentado, olhando fixo para ela. “Não revelais o rosto, mas já vos sinto em cada gesto,” disse ele. Aproximou-se, e ela recuou contra a parede de pedra. O hálito quente dele roçou seu véu. “Não me olheis assim,” implorou. Mas o silêncio que os envolvia já não era de oração, e sim de desejo contido.
Naquela noite, Beatrice não dormiu. Deitou-se em sua cela, os olhos fixos no crucifixo de madeira. “Perdoai-me, Senhor.” Mas em sua mente não estavam santos, e sim o fugitivo de pele marcada e olhar ardente. No claustro, Amadi também velava, recordando o perfume dela misturado ao cheiro de incenso. Duas almas aprisionadas em mundos diferentes, atraídas por uma chama proibida. O sopro da tentação crescera, prestes a transformar-se em incêndio.
As noites de primavera aqueciam o convento. Beatrice descia ao claustro com passos leves, carregando mantos e pão. Ao abrir a porta da cela oculta, encontrou Amadi em pé, já recuperado. O corpo erguido mostrava a força que antes jazia abatida. Os olhos dele ardiam como brasas. “Vossa compaixão deu-me vida,” disse baixo. Ela baixou o olhar, apertando o véu. “Não fales assim.” Mas em sua voz já não havia apenas temor, havia tremor.
Amadi aproximou-se, firme, mas contido. “Cuidais de mim com mãos de santa, mas vossos olhos traem outro fogo!” Beatrice recuou, encostando-se à parede fria de pedra. “Não posso,” murmurou, “não posso deixar-me cair.” Ele ergueu a mão sem tocá-la, mas tão perto que ela sentiu o calor. O véu tremia junto à respiração dela. “Por que escondes o rosto?” perguntou ele. “Porque se o virdes, não restará defesa.” O silêncio entre eles era cortado apenas pelo estalar da lamparina. Amadi inclinou-se, mas parou a um sopro de distância. “Mostrai-me quem sois.”
Beatrice fechou os olhos, o coração a latejar. Levou a mão ao véu, mas hesitou. Lágrimas escorriam-lhe pelo queixo oculto. “Não,” sussurrou, “se revelo, ambos cairemos.” Ele recuou um passo, contendo a ânsia. “Então que o véu seja muro, mas até mesmo muros cedem diante do tempo.”
Na manhã seguinte, Beatrice tremia durante os cânticos. A abadesa Marguerite fitava-a, desconfiada. “Vosso semblante se perde em devaneios,” disse em voz severa, “orai mais, filha, ou o demônio vos seduzirá.” Beatrice curvou-se, dominada pela culpa. Mas no fundo de seu peito, uma certeza crescia: não era o demônio que lhe falava, mas a vida pulsando através de Amadi. O claustro, antes prisão, tornara-se esconderijo de uma chama proibida.
Nessa noite, Beatrice levou-lhe uma túnica limpa. Amadi vestiu-a diante dela, sem pudor. Os músculos definidos, marcados por cicatrizes, refletiam a luz do azeite. Ela desviou o olhar, mas não resistiu em voltar a encará-lo. “Fostes açoitado como Cristo,” murmurou. “Não me compare a Deus, santo,” respondeu ele. O ar carregado os envolveu. Ela quase deixou cair o véu. O coração dela e o dele batiam como tambores, anunciando um encontro inevitável. Quando saiu da cela, Beatrice tocou o próprio rosto, sentindo ainda o calor da respiração dele. Amadi permaneceu parado, olhando a sombra dela se afastar. “Mostrai-me vosso rosto, e saberei quem sou,” sussurrou para si.
Do lado de fora, Beatrice caminhava trêmula. Sabia que não poderia resistir muito mais. A fé lhe dizia: “Renúncia.” O coração lhe clamava: “Entrega.” E o véu frágil era a última muralha entre dois mundos destinados a colidir.
O vento morno da primavera invadia os claustros. Beatrice desceu com passos hesitantes, levando pão e água. Encontrou Amadi já recuperado, ereto, o olhar firme. “Não deviais arriscar-vos tanto por mim,” disse ele. Ela baixou os olhos. “Meu coração ordena mais do que minha vontade.” Amadi se aproximou e, pela primeira vez, ousou tocar o véu que lhe ocultava o rosto. “Não posso viver na sombra. Deixai-me ver quem sois.”
A respiração dela vacilou. Beatrice levou a mão ao tecido, trêmula. O silêncio era tão denso que parecia oração. Com lágrimas, deixou cair o véu. Amadi fitou o rosto, iluminado pela lamparina: traços suaves, olhos marejados, expressão de temor e entrega. “Sois mais formosa que a luz que me guiou na fuga,” murmurou. Ela ergueu os olhos, dividida entre fé e desejo. “Se este é meu erro, que seja também minha verdade.”
Nesse instante, a muralha que os separava cedeu. Os lábios se tocaram de forma breve, como quem teme o próprio gesto, mas logo o beijo tornou-se ardente, cheio da vida que lhes era negada. Beatrice sentiu o coração acelerar, não em blasfêmia, mas em humanidade. “Sempre roguei a Deus que me mostrasse um caminho,” murmurou, “talvez ele me tenha enviado a vós para que eu aprenda o que é amor.” Amadi segurou-lhe o rosto com firmeza e ternura. “E eu juro que não vos farei sofrer.”
Quando se afastaram, Beatrice levou as mãos ao crucifixo que trazia no peito. “Senhor, não me abandoneis, ainda que eu me renda ao amor de um homem,” disse em voz embargada. Amadi observava-a, respeitoso. “A fé que guardais vos faz mais forte, e é essa a força que me prende a vós.” Ela enxugou as lágrimas e sorriu leve. “Minha alma é de Deus, mas meu coração já não consigo negar que é vosso.”
No dia seguinte, Beatrice não conseguia esconder a emoção. Durante os salmos, sua voz tremia, não de falta de fé, mas de um sentimento novo que lhe incendiava a vida. A abadesa Marguerite a observou com olhos desconfiados. “Tendes o espírito perturbado, filha?” perguntou. Beatrice abaixou a cabeça. “Apenas o corpo fatigado, Madre.” Mas no íntimo, sabia que não era apenas fadiga: era o peso de um segredo sagrado que jamais poderia ser revelado.
Naquela noite, Beatrice voltou ao claustro. Amadi a aguardava e, ao ver-lhe o rosto descoberto outra vez, sorriu como homem renascido. “Vossa presença me devolveu mais que a vida, deu-me esperança.” Ela respirou fundo. “Então guardemos este amor no silêncio das pedras, até que o mundo nos destrua.” Abraçaram-se demoradamente, como dois exilados que, mesmo temendo o futuro, encontraram refúgio nos braços um do outro.
As mudanças em Beatrice não passaram despercebidas. Sua voz vacilava nos cânticos, o rosto trazia um rubor inexplicável pela clausura. A abadesa Marguerite passou a segui-la nos corredores, certa de que algo se ocultava. Em uma madrugada, ao perceber a ausência da noviça, a madre seguiu os passos até a porta do claustro desativado. Encostou o ouvido e ouviu vozes baixas, uma masculina, outra feminina. O escândalo que tanto temia estava prestes a ser revelado.
Beatrice, sem saber do perigo, ajoelhava-se diante de Amadi, trocando-lhe as ataduras pela última vez. “Logo partireis,” disse em tom de dor. “O mundo não vos perdoará se ficardes.” Amadi segurou-lhe as mãos. “E vós?” Ela desviou o olhar. “Minha sorte é morrer aqui. Mas levai comigo a certeza de que fostes amado.” Ao pronunciar tais palavras, lágrimas rolaram. Do outro lado da porta, Marguerite cerrou os punhos, ofendida em sua fé e dever.
Na manhã seguinte, a abadesa convocou um mensageiro secreto para o bispado. “Temos serpente no jardim do Senhor,” escreveu em carta lacrada. O conteúdo descrevia a noviça Beatrice entregue ao pecado com um escravo fugitivo. O escândalo prometia não apenas envergonhar o convento, mas destruir o nome do Conde, pai da jovem.
O rumor espalhou-se em sussurros. Noviços cochichavam sobre vultos noturnos, e o peso da vigilância começou a apertar como laço em torno dos amantes. Beatrice sentiu o cerco; as irmãs desviavam o olhar, e duas a repreenderam com palavras ásperas. Amadi também percebeu. Cães rondavam os muros à noite, e homens armados surgiam em vigílias. “O perigo já vos cerca,” advertiu ele, “talvez seja a hora de partir.” Ela tremia. “Se partirdes, não vos verei mais. Se ficardes, seremos ambos condenados.” O dilema crescia como nó que sufocava os dois, prestes a arrastá-los ao abismo.
Uma tarde, ao voltar do coro, Beatrice foi chamada aos aposentos da abadesa Marguerite. Severa, mostrou-lhe o crucifixo de ferro. “Sabeis que é pecado mortal profanar este solo. Confessai e talvez encontreis misericórdia.” Beatrice manteve os olhos baixos. “Tenho apenas amor, Madre. Amor não é blasfêmia.” O rosto da abadesa enrijeceu. “Dizei isso diante do tribunal e verei se pensam o mesmo.” O coração da jovem estremeceu. Agora não havia mais volta.
Na noite seguinte, o convento foi invadido por homens do bispado, armados de tochas e correntes. Entraram sem clemência. Amadi tentou fugir pelos claustros, mas foi cercado. Beatrice correu até ele, agarrando-lhe a mão. “Não vos deixarei!” gritou, mas soldados a separaram com violência. O rosto dele desapareceu entre correntes, enquanto ela era arrastada pelo hábito, acusada de profanação e heresia. O segredo que os unira agora era crime que ecoava por toda a cristandade.
Arrastada pelos corredores, Beatrice mal conseguia firmar os passos. O hábito rasgado e o véu caído expunham seu rosto ao escárnio das freiras. Ao chegar ao salão da cúria, foi posta diante de juízes eclesiásticos, sob o brasão da Inquisição. Do outro lado, Amadi, acorrentado, olhava-a com firmeza. O silêncio da sala era pesado, cortado apenas pela voz grave do Inquisidor. “Soror Beatrice, acusada de profanação, heresia e adultério espiritual. Como respondeis?”
Beatrice ergueu os olhos marejados. “Minha alma permanece de Deus, mas meu coração encontrou amor em um homem. Se isso é crime, aceito vossa sentença.” Murmúrios correram pelo salão. O Inquisidor apertou os lábios. “Amor? Chamais amor à vossa entrega ao pecado?” Amadi gritou, abafado pelas correntes. “Não a julgueis sem ouvir-me! Ela me salvou da morte!” Guardas o silenciaram com golpes. O olhar dele, porém, falava mais alto que qualquer palavra.
A acusação foi lida em tom solene: por ter ocultado um escravo fugitivo, por ter quebrado votos sagrados, por ter maculado a honra da Igreja e da nobreza. O Conde, pai de Beatrice, foi chamado a depor. O rosto dele, outrora altivo, trazia vergonha e ira. “Esta filha não é mais minha. Renuncio ao sangue que corre em suas veias.” As palavras soaram como lâmina. Beatrice quase desfaleceu, mas Amadi inclinou-se, tentando alcançar-lhe a mão algemada.
O Inquisidor anunciou que ambos seriam levados à praça pública. “O povo precisa de exemplo, e o exemplo virá em pedra e fogo.” O coração de Beatrice gelou. “Pedras,” sussurrou. As freiras ao redor murmuravam, umas com desprezo, outras com lágrimas contidas. A abadesa Marguerite, rígida, permaneceu imóvel, embora no fundo a dúvida lhe queimasse: seria justo esmagar uma vida por um amor que não negara a fé, mas apenas seguira o coração?
No cárcere, Beatrice ajoelhou-se diante da pequena cruz de madeira. “Senhor, não vos abandono. Sei que pequei aos olhos dos homens, mas se o amor é obra vossa, não pode ser maldição.” As lágrimas desciam-lhe pelo rosto, caindo sobre as correntes. Amadi ao lado observava em silêncio, admirado pela fé que resistia até ali. “Vós sois mais forte que todos eles, Beatrice. Mesmo em correntes, estais livre.” Ela sorriu entre lágrimas. “Livre no amor.”
Na manhã seguinte, sinos repicaram, chamando o povo à praça. Beatrice e Amadi foram conduzidos sob vaias e olhares curiosos. Tochas iluminavam o cadafalso de pedra, onde já se amontoavam cestos de pedras escolhidas. Ao subir, ela segurou firme o crucifixo que trazia escondido. Amadi, mesmo ferido, ergueu o olhar ao céu. “Se morremos, que seja juntos,” disse ele. Beatrice assentiu, com coragem que espantava até seus algozes.
O julgamento tornara-se espetáculo de sangue. A praça central estava tomada; homens, mulheres e crianças se acotovelavam para assistir ao castigo anunciado. Guardas abriram caminho com lanças, conduzindo Beatrice e Amadi até o cadafalso de pedra. O céu cinzento pesava sobre todos. Os dois foram postos de joelhos, acorrentados. O Inquisidor ergueu a mão e bradou: “Aqui se cumpre a justiça de Deus contra a heresia!”
O povo respondeu com murmúrios, mas nos olhos de muitos havia compaixão e dúvida. Beatrice apertava o crucifixo escondido na palma da mão, murmurava em silêncio: “Não me desampareis, Senhor. Se meu corpo perecer, que minha alma vos pertença.” Ao lado, Amadi ergueu a voz. “Este tribunal julga o que não compreende. A fé dela é pura.” Guardas o silenciaram com uma pedra atirada em seu ombro. Beatrice voltou-se para ele, lágrimas nos olhos. “Vossa dor é minha.” E por um instante, mesmo algemados, sentiram-se invencíveis.
O primeiro punhado de pedras foi lançado. Uma acertou o chão perto de Beatrice, estilhaçando-se em pó. Outra atingiu o braço de Amadi, que gemeu, mas permaneceu ereto. O povo observava em silêncio pesado. Algumas mulheres viravam o rosto, incapazes de assistir. Um menino pequeno, nos braços da mãe, perguntou em voz alta: “Por que machucam a moça de hábito branco?” O silêncio que se seguiu foi mais forte que as pedras, revelando a dúvida coletiva.
Uma pedra atingiu o ombro de Beatrice, que caiu de lado. O hábito se manchou de sangue. Ainda assim, ela ergueu os olhos ao céu. O Inquisidor ordenou que continuassem, mas o povo começava a hesitar. Um velho ajoelhou-se entre a multidão, murmurando: “Isto não é justiça, é crueldade.” Outros seguiram seu gesto. O cadafalso, antes palco de condenação, começava a se tornar testemunho de fé e coragem. Amadi, mesmo ferido, arrastou-se até Beatrice, tocando-lhe a mão ensanguentada. “Se morrermos, que seja unidos.” Ela sorriu, débil, mas serena. “Nosso amor não é pecado, é chama que nem a morte apagará.”
Guardas tentaram separá-los, mas o povo começou a murmurar mais alto, inquieto. Vozes se ergueram contra a execução, denunciando a brutalidade. A cada pedra lançada, crescia também a revolta silenciosa que incendiava os corações dos presentes. Quando uma nova pedra foi erguida contra Beatrice, um homem da multidão agarrou o braço do carrasco. “Basta!” gritou. O clamor espalhou-se, vozes misturando-se em resistência. O Inquisidor esbravejou, mas sua voz se perdeu na onda crescente de protestos. Beatrice, exausta, sorriu ao ver que o povo enfim despertava. “Senhor, se meu sangue serve para abrir olhos, então não sofro em vão.” A praça já não era de morte apenas, mas de revelação.
A voz do homem que gritou “basta” incendiou a multidão. De todos os lados ergueram-se clamores. Mulheres choravam, homens avançavam, jovens batiam contra os portões. “Não é justiça, é assassinato!” bradavam. O Inquisidor tentava impor silêncio, mas já não era ouvido. Guardas ergueram lanças, tentando conter o povo. A praça, antes palco de morte, tornava-se arena de resistência. Beatrice, sangrando, fitava tudo com olhos marejados. O povo despertava contra a opressão.
Uma pedra lançada pelo povo atingiu um dos guardas. Logo outras se seguiram, não contra os acusados, mas contra os carrascos. Amadi ergueu-se com esforço, as correntes tilintando, e bradou: “Lutem pela verdade! Não temam quem esconde crueldade em nome da fé!” A multidão rugiu em resposta. O Inquisidor, tomado de fúria, ordenou que dobrassem as punições, mas os próprios soldados hesitavam, vendo que a maioria já se voltava contra o cadafalso.
Beatrice, trêmula, ergueu o crucifixo ensanguentado para o alto. “Não temo a morte, temo apenas a mentira.” Sua voz ecoou clara, cortando o tumulto. O povo silenciou por um instante, absorvendo suas palavras. Então gritos se multiplicaram: “Libertem-nos!” As correntes que prendiam Amadi foram puxadas por homens da multidão, que enfrentavam lanças com as próprias mãos. O choque entre guardas e povo encheu a praça de pó, suor e fervor.
O Conde, presente entre os nobres, levantou-se pálido ao ver a multidão em fúria. Tentou intervir, mas foi vaiado e expulso pelos gritos. “Traidor! Renegaste tua filha!” Sua honra desmoronava diante de todos. A abadesa Marguerite, de longe, assistia atônita. Por um instante, lágrimas lhe correram discretas. Sabia que a fé que pregava estava sendo usada como espada contra inocentes, mas não ousou mover-se, paralisada entre dever e consciência.
Os sinos da catedral repicaram, mas já não chamavam à ordem, anunciavam o levante. Guardas foram derrubados, tochas atiradas contra o cadafalso, correntes rompidas. Amadi, ainda ferido, tomou Beatrice nos braços. “Não vos deixarei cair,” disse com voz firme. Ela apoiou a cabeça em seu ombro. “Se vivermos, que seja para testemunhar que o amor não se curva.”
O povo inflamado abriu caminho para que fugissem pela lateral da praça. Entre gritos e chamas, Beatrice e Amadi foram conduzidos pela multidão revoltada. O Inquisidor bradava maldições, mas suas palavras já não tinham poder. Ao deixar a praça, Beatrice olhou para trás uma última vez. “Senhor, se este foi o preço de nossa verdade, aceito com humildade.” O povo erguia os braços como quem protege, como quem ora. O martírio que começara em dor, agora florescia em rebelião. A liberdade ainda não estava segura, mas já nascera no coração de todos.
Beatrice e Amadi foram levados pela multidão até as colinas próximas. O sangue ainda marcava suas vestes, mas seus olhos ardiam de esperança. Atrás, a praça permanecia em tumulto, guardas e inquisidores derrotados pelo clamor do povo. Pela primeira vez, respiraram o ar da noite como homens e mulheres livres. “Sobrevivemos,” murmurou Beatrice, apertando o crucifixo. Amadi a abraçou. “E viveremos, não apenas por nós, mas por todos que ainda sofrem correntes.”
Refugiaram-se em uma pequena aldeia, onde camponeses os acolheram em silêncio respeitoso. Beatrice, mesmo ferida, cuidava dos pobres, usando os conhecimentos do convento. Amadi, com mãos calejadas, ajudava nos campos. O amor entre eles já não era segredo, mas testemunho. “Vossa fé não vos deixou,” disse ele, admirado. Ela sorriu. “Minha fé apenas se alargou. Deus não me quis morta, quis-me inteira para amar e servir.” E juntos encontraram novo sentido de vida.
O rumor do levante espalhou-se. O nome de Beatrice da Vranche passou a ser sussurrado não como heresia, mas como coragem. Muitos viam nela a freira que não negou a Deus, mas que ousou viver a verdade do coração. O Inquisidor caiu em desgraça. O Conde perdeu prestígio. Mas o povo guardava a lembrança da noite em que pedras foram erguidas e, ao invés de matar, despertaram. O amor vencera, transformando o martírio em chama de esperança.
Anos depois, Beatrice e Amadi viviam discretos, mas a história deles corria como fábula proibida. Crianças ouviam sobre a freira que amou e não negou sua fé, e o homem marcado que não se curvou. Na pequena capela de madeira da aldeia, Beatrice rezava diante da cruz. “Senhor, se errei, que seja amado, pois amor algum vindo de vós pode ser pecado.” Ao seu lado, Amadi segurava sua mão, e a paz os envolvia como resposta silenciosa.
O povo os via não como fugitivos, mas como símbolos. Beatrice tornara-se guia de mulheres que sofriam em silêncio. Amadi, exemplo de resistência para os que viviam o peso das correntes. Juntos, sem riquezas ou títulos, deixaram um legado maior que qualquer conde ou inquisidor poderia imaginar: o legado de que fé e amor não se opõem, mas se completam quando vividos com verdade.
Assim, a chama que quase foi apagada tornou-se luz para gerações. Esta é a história de Beatrice e Amadi, prova de que nem correntes, nem tribunais, nem pedras podem silenciar o amor quando ele nasce do coração. Uma lição poderosa ecoa através dos séculos: fé sem amor é vazio, e amor sem fé é chama breve, mas juntos tornam-se eternos.