Rio de Janeiro. 8 de janeiro de 1996. Merced Guimarães e seu marido, Petrútio, tinham acabado de comprar uma casa antiga na Gamboa, bairro da zona portuária. A casa precisava de reformas urgentes, pisos quebrados, paredes descascadas, estrutura comprometida. Era um casarão do início do século XVII que tinha visto dias melhores.

Nada indicava que aquela reforma revelaria um dos segredos mais sombrios da história do Brasil. Nada indicava que sob aquele piso, a poucos centímetros de profundidade estava um cemitério. Um cemitério onde 30.000 pessoas foram jogadas como lixo. Os operários começaram a quebrar o piso da sala e então viram ossos. Muitos ossos.
espalhados pela terra. O primeiro pensamento foi que eram ossos de animais, talvez cachorros ou gatos enterrados ali décadas atrás, mas havia muitos. Eram crânios, costelas, mandíbulas, dentes e estavam a apenas 20 cm da superfície, tão perto que durante décadas gerações de pessoas tinham caminhado sobre aqueles restos mortais sem saber. Mercedes chamou a prefeitura.
As autoridades chamaram arqueólogos do Instituto de Arqueologia Brasileira. E quando os especialistas começaram a examinar aqueles ossos, a verdade emergiu como um fantasma do passado. Aquela casa tinha sido construída sobre o cemitério dos pretos novos, o maior cemitério de escravos das Américas. Um lugar que tinha sido intencionalmente esquecido, apagado dos mapas, enterrado sob camadas de concreto e amnésia histórica.
Para entender o horror do que Mercedou em sua casa, precisamos voltar no tempo. Precisamos ir até 1769, quando o Rio de Janeiro era o principal porto de entrada de escravos africanos no Brasil. E naquele ano, o vice-rei do Brasil, o marquês do lavradio, tomou uma decisão que mudaria a geografia do sofrimento na cidade. O mercado de escravos funcionava no centro do rio, na praça 15.
Ali, africanos recém-chegados eram vendidos como mercadoria, mas o mercado trazia problemas. O cheiro, os corpos em decomposição, os doentes morrendo nas ruas. A elite branca que vivia no centro reclamava constantemente. Não queriam ver aquele comércio de carne humana em suas portas. Não queriam o mau cheiro. Não queriam ser lembrados constantemente da brutalidade sobre a qual suas fortunas eram construídas.
Então o marquês do lavradio ordenou: “Movam tudo para o Valongo. Uma região afastada do centro, fora dos limites urbanos da época. Um lugar onde a elite não precisaria ver, cheirar ou pensar muito sobre o que estava acontecendo. Foi para lá que o mercado foi transferido e junto com o mercado, o cemitério. O cemitério dos pretos novos foi oficialmente criado naquele ano de 1769.
Recebeu esse nome porque era destinado aos pretos novos, expressão usada para designar os africanos recém-chegados que morriam antes de serem vendidos. E eles morriam aos milhares. A travessia do Atlântico era uma jornada de pesadelo. Africanos capturados eram empilhados nos porões dos navios negreiros, acorrentados, sem espaço para se mover, respirando ar fétido, comendo comida estragada, bebendo água podre.
Muitos morriam durante a viagem. Seus corpos eram jogados ao mar, mas muitos outros chegavam vivos ao rio, tecnicamente vivos, mas profundamente doentes. Desembarcavam no cais do valongo, fracos demais para andar, com desenteria, escorbuto, desidratação severa, infecções de pele, doenças pulmonares, traumatizados fisica e psicologicamente, e eram imediatamente levados para os armazéns do mercado, onde esperavam ser vendidos.
Mas muitos não sobreviviam à espera. Morriam nos barracões, nas ruas ao redor, nos primeiros dias após o desembarque. E seus corpos precisavam ir para algum lugar. Esse lugar era o cemitério dos pretos novos. O cemitério ocupava uma área equivalente a um campo de futebol. 50 braças de cada lado, um terreno arenoso próximo à praia da Gamboa.
E ali, dia após dia, ano após ano, corpos eram despejados. Não enterrados, despejados. Viajantes europeus que visitaram o rio no século XIX deixaram relatos aterradores. Descreveram o cemitério como uma montanha de terra e corpos, corpos nus, empilhados em decomposição a céu aberto. O cheiro era insuportável, podia ser sentido de longe e de tempos em tempos, quando a pilha ficava grande demais, tocavam fogo, queimavam os corpos parcialmente decompostos.
A fumaça negra subia sobre o rio. O cheiro de carne queimada se espalhava pela região. Não havia cerimônias, não havia orações, não havia lápides ou cruzes, não havia nada que indicasse que aqueles eram seres humanos que mereciam respeito ou dignidade. eram tratados exatamente como o que o sistema escravista dizia que eram: mercadoria defeituosa, produtos que não tinham sobrevivido ao transporte, prejuízo a ser descartado da forma mais barata possível.
E havia outro detalhe macabro. O cemitério também servia como depósito de lixo. Os moradores da região jogavam ali seus restos domésticos, sobras de comida, objetos quebrados, entúho, tudo misturado com os corpos. como se aquelas pessoas mortas fossem apenas mais uma categoria de lixo a ser descartado. Escravos que eram forçados a trabalhar no cemitério tinham que carregar os corpos, jogá-los nas valas, cobri-los precariamente com alguma terra quando alguém reclamava do cheiro e às vezes atear fogo quando a decomposição se
tornava insuportável. Imagine ser escravo e ser forçado a descartar corpos de pessoas que poderiam ser da sua aldeia, da sua família, pessoas que falavam sua língua. Imagine o trauma psicológico daquilo. E do mercado de escravos próximo, os africanos, que ainda estavam vivos, esperando para serem vendidos, podiam ver o cemitério.
Viam os corpos sendo jogados, viam a fumaça das queimas, sabiam que aquele poderia ser seu destino. Era uma mensagem clara, uma demonstração de poder, um aviso. Vocês não são humanos, vocês são mercadoria. E mercadoria estragada vai para o lixo. Durante 61 anos, de 1769 a 1830, o cemitério dos pretos novos funcionou. 61 anos de corpos sendo despejados.
Os registros oficiais são incompletos. A igreja de Santa Rita, que tinha jurisdição sobre a área, mantinha alguma documentação. O historiador Júlio César Pereira pesquisou esses arquivos e descobriu algo chocante. Apenas nos últimos 6 anos de funcionamento do cemitério, entre 1824 e 1830, foram registrados mais de 1000 enterros por ano, 612 oficialmente, mas esses eram apenas os registrados.
Arqueólogos e historiadores estimam que o número real de corpos depositados no cemitério dos pretos novos está entre 20.000 e 30.000. 30.000 pessoas, 30.000 vidas que começaram na África. Foram arrancadas de suas terras, sobreviveram ao horror da travessia do Atlântico, chegaram ao Brasil e morreram antes mesmo de serem vendidas. 30.
000 pessoas cujos nomes nunca foram registrados, cujas histórias nunca foram contadas, que simplesmente desapareceram na máquina de moer carne humana, que era o tráfico de escravos. Em 1830, o cemitério foi oficialmente fechado, não por compaixão, não por humanidade, mas porque o cheiro incomodava, porque moradores da região reclamavam e porque o Brasil tinha assinado um tratado com a Inglaterra em 1827, prometendo acabar com o tráfico de escravos.

Claro que o tratado foi ignorado por décadas. O tráfico continuou ilegalmente, mas o cemitério foi fechado. O mercado do Valongo também foi oficialmente desativado e então começou o apagamento. A área foi aterrada, casas foram construídas, ruas foram pavimentadas. O cemitério dos pretos novos simplesmente desapareceu, deixou de existir nos mapas.
A rua, que antes se chamava rua do cemitério, mudou de nome. Primeiro para a rua da Harmonia, depois para a rua Pedro Ernesto, como se mudar o nome pudesse apagar a história, como se concreto pudesse enterrar a memória. Durante 166 anos, aquele lugar foi esquecido. Gerações viveram ali sem saber o que estava sob seus pés.
Historiadores sabiam que o cemitério tinha existido. Estava mencionado em documentos antigos. Mas ninguém sabia exatamente onde. A localização precisa tinha-se perdido no crescimento caótico da cidade até aquele dia de janeiro de 1996, até Mercedes e Petrútio começarem a reforma da casa, até os ossos emergirem do chão.
Os arqueólogos ficaram meses trabalhando na casa, escavando cuidadosamente, documentando cada achado. E o que encontraram confirmou todos os horrores descritos nos relatos históricos. Ossadas espalhadas de forma caótica, sem organização, sem respeito, misturadas com carvão das queimas, misturadas com lixo doméstico, fragmentos de louça europeia, restos de comida, tudo junto, humanos e lixo indistinguíveis.
Identificaram pelo menos 28 indivíduos a partir dos ossos não queimados. A maioria eram homens jovens entre 18 e 25 anos. A idade preferencial para o tráfico, corpos fortes para trabalho pesado. Mas havia também mulheres e crianças, muitas crianças, ossos pequenos, dentes de leite, vidas que mal começaram e já foram exterminadas.
A bioarqueóloga Lilia Chewiish Machado foi uma das primeiras a estudar os ossos. Ela encontrou evidências das queimas, encontrou marcas de violência, encontrou sinais de desnutrição severa, encontrou doenças e encontrou algo mais. Nos dentes de alguns indivíduos havia polimento intencional, uma prática cultural africana.
Aquelas pessoas tinham chegado tão recentemente da África que ainda carregavam as marcas físicas de suas culturas de origem. E morreram antes de serem vendidas, antes de terem seus nomes trocados, antes de serem batizados à força. Morreram ainda sendo quem eram. Merced e Petrútio ficaram chocados, mas tomaram uma decisão notável.
Em vez de simplesmente reenterrar tudo e continuar a reforma, decidiram preservar aquele lugar. Em 2005, fundaram o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, transformaram sua casa em um memorial, um museu, um lugar de memória e reverência. O trabalho arqueológico continuou. Em 2012, instalaram pirâmides de vidro sobre as escavações.
Os visitantes podem agora olhar através do vidro e ver os ossos, ver a evidência física daquele horror. Não é apenas história em livros. São corpos reais, pessoas reais, sofrimento real. E em 2017, 21 anos após a descoberta inicial, os arqueólogos encontraram algo extraordinário. O primeiro esqueleto completo.
Após 7 meses de escavações cuidadosas em apenas 2 m², conseguiram recuperar um corpo inteiro. Era uma mulher. Morreu com aproximadamente 20 anos no início do século XIX. deram a ela um nome, Josefina Baquita, em homenagem à primeira santa africana da Igreja Católica, Josefina Baquita. Finalmente, alguém daquele cemitério tinha um nome.
Depois de quase dois séculos anônima, enterrada sem cerimônia, misturada com lixo, ela recebeu um nome, um ato de dignidade póstuma, pequeno, tardio, mais significativo. Hoje o Instituto Pretos Novos é reconhecido como patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Recebe visitantes, oferece cursos sobre história afro-brasileira, mantém uma biblioteca especializada, realiza exposições de arte africana e afro-brasileira e serve como um lembrete constante de uma parte da história que o Brasil tentou enterrar junto com aqueles
corpos. Porque o cemitério dos pretos novos não é apenas sobre o passado, é sobre como lidamos com nossa história. É sobre o que escolhemos lembrar e o que preferimos esquecer. É sobre o fato de que durante 166 anos aquele lugar foi deliberadamente apagado, não por acidente, mas por escolha. Não havia placas, não havia monumentos, não havia nada indicando que ali, sobre aquelas casas comuns, sobadas, estavam os restos de 30.
000 pessoas, 30.000 africanos que morreram na porta de entrada do Brasil, que nunca tiveram chance de viver, que foram descartados como lixo. E quantos outros cemitérios como esse existem sob? Quantos outros lugares de horror foram cobertos, pavimentados, esquecidos? O cemitério dos pretos novos só foi redescoberto por acaso, porque uma família decidiu reformar uma casa.
Se não fosse por isso, ainda estaria enterrado, ainda estaria esquecido. Os moradores atuais da Gamboa, muitos descendentes de africanos escravizados, agora sabem que caminham sobre terra sagrada, terra manchada de sangue, mas também terra de resistência. Porque cada pessoa que passou por aquele cemitério, cada vida que terminou ali, é uma testemunha.
Uma testemunha de um dos maiores crimes contra a humanidade. Uma testemunha que não pode mais falar, mas cujos ossos gritam verdades que gostaríamos de esquecer. O Brasil importou aproximadamente 5 milhões de africanos escravizados. 5 milhões, mais do que qualquer outro país nas Américas. E o Rio de Janeiro, através do Cais do Valongo e do mercado adjacente, foi o maior porto de entrada.
Mais de um milhão de pessoas passaram por ali e dessas dezenas de milhares morreram logo após chegar. Seus corpos foram para lugares como o cemitério dos pretos novos. Mas durante muito tempo essa história foi minimizada. Livros escolares falavam da escravidão de forma vaga e distante, como se fosse um detalhe incômodo de um passado que todos preferiam não examinar muito de perto.
O cemitério dos pretos novos nos força a examinar, nos força a confrontar, porque não dá para olhar para aqueles ossos e continuar pensando na escravidão como algo abstrato. Cada osso é uma pessoa. Cada crânio tinha um rosto. Cada mandíbula falou um idioma, cantou músicas. contou histórias. Cada costela protegeu um coração que bateu com esperança, com medo, com amor.
E todos foram jogados em valas, queimados, misturados com lixo, esquecidos. Merced Guimarães, agora presidente do Instituto Pretos Novos, dedica sua vida a garantir que essas pessoas não sejam esquecidas novamente. Ela guia visitantes através do memorial, conta a história, mostra os ossos através do vidro e sempre termina com um lembrete.
Isso não é passado distante. Isso moldou o Brasil que temos hoje, porque a escravidão não acabou em 1888 com a lei Áurea e pronto. Seus efeitos continuam. A desigualdade racial no Brasil tem raízes diretas naqueles séculos de horror. E lugares como o cemitério dos pretos novos nos mostram o quão profundamente brutal foi aquele sistema. 30.000 corpos, 30.
000 vidas, 30.000 Histórias que nunca saberemos, nomes que nunca conheceremos, famílias que nunca os encontraram, aldeias na África que nunca souberam o que aconteceu com seus filhos e filhas. E por quase dois séculos, nós caminhamos sobre eles sem saber. Construímos casas sobre eles. Vivemos nossas vidas diárias sobre uma montanha de ossos e não sabíamos ou não queríamos saber.
A redescoberta do cemitério dos pretos novos em 1996. Foi um acidente, mas foi também uma oportunidade. Uma oportunidade de finalmente reconhecer aquelas vidas, de finalmente dar dignidade àqueles mortos, de finalmente contar uma parte da história brasileira que foi deliberadamente enterrada.
Hoje, estudantes visitam o memorial, pesquisadores estudam os ossos, artistas criam obras inspiradas naquelas histórias e lentamente, muito lentamente, o Brasil começa a confrontar seu passado. Mas ainda há muito trabalho a fazer, porque o cemitério dos Pretos Novos é apenas um lugar, um dos muitos. Quantos outros estão ainda enterrados? Quantas outras histórias ainda precisam ser contadas? Quantos outros ossos ainda esperam para serem reconhecidos como humanos? 28 anos depois daquela reforma, em janeiro de 1996, o Instituto Pretos Novos continua seu
trabalho, continua educando, continua lembrando, continua garantindo que aquelas 30.000 pessoas não sejam esquecidas novamente, porque esquecer o horror não impede que ele se repita. Apenas garante que quando se repetir, não reconheceremos os sinais. Lembrar é doloroso. Confrontar é difícil, mas necessário.
Absolutamente necessário. Sob a rua Pedro Ernesto, 36, na Gamboa, no Rio de Janeiro, ainda estão os ossos, milhares deles. A maioria nunca será escavada. Ficará ali sob o concreto, para sempre. Mas agora sabemos que estão lá. Agora reconhecemos que estão lá. Agora honramos que estão lá.
Isso, embora pequeno, embora tardio, embora insuficiente, é alguma coisa, é reconhecimento, é dignidade, é memória, é justiça mesmo que póstuma, em quase dois séculos. O cemitério dos pretos novos. 30.000 corpos, 30.000 vidas, 30.000 razões para nunca esquecer. [Música]