
O corpo de Felisberto Moreira foi encontrado na manhã de 23 de agosto de 1873, rígido como madeira seca, frio como pedra de rio, os olhos ainda abertos, fixos no teto embolorado do pequeno quarto, nos fundos da venda das irmãs Antônia e Prudência. Aquele sertão de Minas Gerais, conhecido como Pedra Seca, fazia jus ao nome. Era um lugar onde o sol castigava a terra sem piedade, onde a vida se agarrava à pedra com a teimosia dos mandacarus. O silêncio da aridez era cortado apenas pelo cricrilar incessante dos insetos e, naquela manhã, pelo grito agudo de um menino.
Quem o encontrou foi Zacarias, o garoto magro que levava água fresca todas as manhãs. O grito que ele deu ecoou por todo o povoado de Pedra Seca, cortando o silêncio do amanhecer como navalha afiada, um som cru que despertou os poucos moradores que ainda dormiam e fez as galinhas debandarem no terreiro. Felisberto, um comerciante de gado, havia chegado na véspera, montado em seu cavalo baio com alforjes pesados e um sorriso que era tão largo quanto confiante. Como tantos outros viajantes que cruzavam aquela região árida do sertão mineiro, Felisberto buscava abrigo, comida e talvez algo mais que as duas mulheres ofereciam discretamente aos homens de posses. Mas, desta vez, algo deu terrivelmente errado.
Delegado Ambrósio Tavares, um homem de quarenta e poucos anos, com o rosto vincado pelas intempéries de trinta anos a percorrer aqueles caminhos empoeirados, chegou quando o sol já esquentava as pedras da rua principal. A luz dura da manhã revelava uma multidão curiosa se aglomerando em frente à venda, sussurrando teorias e cruzando-se nervosamente, como se temessem que a própria morte tivesse saído daquele quarto para rondar a comunidade.
No interior do estabelecimento, as duas irmãs pareciam genuinamente abaladas. Antônia, a mais velha, com traços firmes e olhos perspicazes, enxugava os olhos com um lenço já encharcado, repetindo como ladainha que havia sido o coração do pobre homem. Seus lamentos eram altos e ritmados, projetados para a plateia de curiosos que espiavam pela porta. Prudência, a mais nova, de aparência mais frágil, apenas balançava a cabeça em silêncio, os lábios tremendo como folhas ao vento, a imagem da dor contida e da inocência assolada pela tragédia. Ambrósio, no entanto, observava a cena com crescente inquietação. Trinta anos lhe haviam ensinado a desconfiar de coincidências e a morte de um homem aparentemente saudável na flor da idade, sem sinais visíveis de violência, era definitivamente uma coincidência grande demais para o seu gosto.
O quarto onde Felisberto passou suas últimas horas era exíguo e opressor. Cheirava a suor, a cachaça derramada e a algo mais, algo doce demais, artificial, que grudava na garganta como melado estragado, um aroma que Ambrósio não conseguia identificar, mas que o incomodava profundamente. As roupas do morto estavam espalhadas pelo chão de terra batida, como se tivessem sido tiradas às pressas, num frenesi ou numa urgência. Na mesinha de cabeceira, havia uma garrafa de cachaça pela metade e dois copos: um ainda com restos do líquido transparente, exalando um cheiro forte de cana; o outro, completamente limpo, como se nunca tivesse sido usado.
— Foi o coração — insistia Antônia, seguindo o delegado como sombra inquieta. — O pobre homem não aguentou a emoção da noite. Essas coisas acontecem, delegado. O senhor sabe como são os homens da idade dele.
Mas Ambrósio conhecia bem aquele sertão. Sabia que naquelas terras secas e esquecidas, onde a lei chegava sempre atrasada e a justiça era tão escassa quanto a chuva, a morte raramente vinha sozinha, especialmente quando envolvia as misteriosas irmãs que haviam se estabelecido ali há apenas dois anos. Duas mulheres solteiras, vindas de lugar nenhum, com dinheiro demais e passado nebuloso demais, para não despertar suspeitas.
O delegado se abaixou ao lado do corpo, observando o rosto sereno de Felisberto. Não havia sinais de luta, nenhuma marca de violência, apenas um homem que parecia ter adormecido para sempre com uma expressão quase pacífica. Mas os olhos, ah, os olhos contavam uma história diferente: arregalados, vidrados, como se tivessem visto algo terrível nos últimos momentos de vida, como se a morte tivesse chegado não como alívio, mas como surpresa amarga e indesejada. Ambrósio tocou a pele do morto. Ainda havia um pouco de calor, indicando que a morte havia ocorrido há poucas horas, provavelmente durante a madrugada, quando todo o povo dormia e apenas as corujas testemunhavam os segredos da noite. Aquele cheiro doce continuava incomodando-o. Parecia familiar, mas ao mesmo tempo estranho, como se fosse uma mistura de coisas que não deveriam estar juntas. Flores e podridão, medicina e veneno.
As irmãs permaneciam na porta do quarto, abraçadas uma na outra, chorando baixinho. Mas Ambrósio notou que, apesar das lágrimas, elas observavam cada movimento dele com uma atenção felina, como se estivessem calculando, medindo, avaliando quanto ele sabia ou suspeitava. E foi nesse momento que o delegado percebeu algo que fez seu sangue gelar nas veias. Na parede, próximo à cabeceira da cama, havia uma mancha escura na madeira, pequena, quase imperceptível, mas definitivamente ali, como se algo tivesse sido derramado e depois limpo às pressas, algo que deixara um rastro, uma pista, uma evidência de que a morte de Felisberto Moreira talvez não fosse tão natural quanto as irmãs queriam fazer crer.
Dois anos antes, numa tarde sufocante de janeiro de 1871, Antônia e Prudência Sampaio chegaram ao povoado de Pedra Seca, montadas numa carroça que rangia sob o peso de baús misteriosos e segredos ainda mais pesados. A poeira levantada pelas rodas grudou nas roupas dos curiosos que se aglomeraram para observar as recém-chegadas. Eram duas mulheres de meia-idade, ainda atraentes, apesar das marcas que a vida havia deixado em seus rostos, vestindo roupas finas demais para aquele lugar esquecido entre as serras mineiras. Ninguém sabia de onde vinham, ninguém ousava perguntar. Falavam pouco, sorriam menos ainda e carregavam consigo uma aura de mistério que fazia as crianças se esconderem atrás das saias das mães e os homens baixarem o olhar quando elas passavam.
Seu Brás, dono da antiga venda que ficava na entrada do povoado, quase engasgou com a própria saliva quando Antônia depositou sobre seu balcão uma bolsa de couro repleta de moedas de ouro. Ouro verdadeiro, pesado, que tilintava com o som da riqueza genuína.
— Queremos comprar sua propriedade — disse ela com voz firme, sem rodeios ou negociações. — Quanto o senhor quer por ela?
O velho comerciante, que havia passado a vida inteira contando tostões e sonhando com fortuna, de repente se viu diante de mais dinheiro do que jamais imaginara possuir. Vendeu tudo no mesmo dia, pegou suas poucas coisas e partiu para a capital, deixando para trás apenas especulações e um vazio que as irmãs rapidamente preencheram.
Em poucos meses, transformaram completamente o lugar. O que antes era apenas um ponto de parada obrigatório para tropeiros sedentos virou algo diferente, algo que ninguém conseguia definir exatamente, mas que todos sentiam na pele quando o sol começava a se pôr. Durante o dia, vendiam cachaça da melhor qualidade, rapadura doce como mel e mantimentos frescos trazidos sabe-se lá de onde. Atendiam com educação, cobravam preço justo e mantinham o estabelecimento sempre limpo e organizado. Mas quando as primeiras estrelas apareciam no céu, algo mudava. Acendiam lamparinas vermelhas nas janelas da frente. Um sinal discreto que todos os homens da região logo aprenderam a reconhecer e interpretar. A luz vermelha significava que as irmãs ofereciam algo além de bebida e comida. Ofereciam companhia.
Dona Benedita, a parteira do povoado e maior fonte de fofocas num raio de dez léguas, não conseguia conter a língua quando o assunto eram as misteriosas irmãs.
— Elas cobram caro por essa companhia — sussurrava para quem quisesse ouvir, sempre olhando por cima do ombro como se as próprias paredes tivessem ouvidos. — E só atendem homens com dinheiro no bolso. Nada de peão ou trabalhador braçal.
Mas havia algo mais perturbador que ninguém conseguia explicar adequadamente. Os homens que visitavam as irmãs saíam diferentes, mudados. Alguns pareciam assombrados, como se tivessem visto fantasmas ou presenciado coisas que não deveriam existir. Outros simplesmente desapareciam por dias inteiros, voltando com os bolsos vazios, olhares perdidos e uma relutância estranha em falar sobre onde estiveram. O ferreiro Libório, homem de poucas palavras e muita observação, costumava comentar em voz baixa que as irmãs sabiam coisas que uma mulher honesta não deveria saber, coisas sobre o corpo masculino, sobre desejos ocultos, sobre fraquezas que os homens preferiam manter enterradas.
— Elas olham para um homem e sabem exatamente o que ele quer — dizia ele, martelando o ferro com força desnecessária. — E sabem como dar isso a ele, mas sempre cobrando um preço que vai muito além do dinheiro.
As próprias irmãs mantinham uma distância calculada do resto da comunidade. Não frequentavam a igreja, não participavam das festividades locais, não se misturavam com as outras mulheres do povoado. Viviam numa bolha de isolamento voluntário que só se rompia quando algum viajante de posses cruzava seus caminhos.
E agora, pela primeira vez em dois anos de operação silenciosa e lucrativa, um homem havia morrido dentro daquela casa. Delegado Ambrósio sabia que precisava agir rapidamente antes que os rumores se espalhassem como fogo em capim seco, antes que a verdade fosse enterrada junto com Felisberto Moreira, mais uma vítima do sertão implacável, onde a justiça era tão escassa quanto a chuva. Porque naquelas terras áridas de 1873, os segredos tinham raízes mais profundas que os mandacarus, e as mentiras resistiam melhor à seca que qualquer plantação. E as irmãs Sampaio, com seus sorrisos calculados e lágrimas ensaiadas, guardavam segredos que poderiam manchar de sangue a terra já vermelha do sertão mineiro.
A investigação começou onde todas as histórias do sertão começam: na boca do povo, entre sussurros carregados de medo e curiosidade. Delegado Ambrósio percorreu o povoado de Pedra Seca como um garimpeiro em busca de ouro, coletando fragmentos de verdade entre montanhas de especulação. Cada conversa revelava uma nova camada do mistério que envolvia as irmãs Sampaio, como cebola sendo descascada devagar, lágrima por lágrima.
Seu Nicolau, dono da única hospedaria decente do lugar, foi o primeiro a fornecer informações concretas sobre os últimos momentos de Felisberto Moreira.
— O homem chegou ontem de tarde — contou, coçando a barba grisalha enquanto observava nervosamente a movimentação na rua. — Disse que vinha lá de Diamantina, trazendo uma tropa de gado para vender em Ouro Preto. Parecia homem de posses, delegado. Vi quando pagou a conta da hospedagem. Tinha uma bolsa de couro cheia de moedas de prata que tilintavam como sinos de igreja.
Mas foi Dona Benedita quem trouxe a revelação que fez o sangue de Ambrósio gelar nas veias. A parteira apareceu na delegacia no final da tarde, quando as sombras já se alongavam pelas ruas empoeiradas. Chegou olhando para todos os lados como animal acuado, e só concordou em falar depois que Ambrósio garantiu que a conversa ficaria entre eles.
— Esse não foi o primeiro, delegado — ela sussurrou, a voz tremendo como folha seca ao vento. — Lembra do Crisóstomo, aquele comerciante de Sabará que passou por aqui em junho?
Ambrósio franziu a testa, vasculhando a memória.
— Lembro sim. Disse que estava indo para Montes Claros fazer negócios.
— Mentira deslavada — replicou dona Benedita, balançando a cabeça com tristeza. — Ele nunca saiu daqui, delegado. Passou três dias inteiros na casa das irmãs, gastando dinheiro como se não houvesse amanhã. No quarto dia, apareceu morto na estrada velha, a duas léguas do povoado. Disseram que foi o coração que não aguentou.
O delegado sentiu um arrepio subir pela espinha.
— Por que diabos não me contou isso antes, dona Benedita?
A mulher baixou ainda mais a voz, até que suas palavras se tornaram quase inaudíveis.
— Quem ia acreditar numa velha parteira contra duas mulheres respeitáveis? Além do mais… — ela hesitou, como se as próximas palavras queimassem sua garganta. — As irmãs me pagaram muito bem para cuidar do corpo do Crisóstomo. Disseram que era para evitar escândalo, para proteger a reputação dele e da família.
Ambrósio voltou à casa das irmãs com o coração pesado e perguntas afiadas como punhais. Encontrou Antônia organizando garrafas de cachaça atrás do balcão, cantarolando baixinho, como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse um cadáver sendo preparado para o enterro a poucos metros dali.
— Onde está sua irmã? — perguntou ele, tentando manter a voz neutra.
— Prudência foi ao cemitério — respondeu Antônia, sem levantar os olhos das garrafas. — Rezar pela alma do pobre Felisberto. Somos mulheres cristãs, delegado. A morte nos entristece profundamente.
— Preciso revistar a casa novamente, com mais cuidado desta vez.
Antônia não protestou, apenas deu de ombros com indiferença estudada.
— Fique à vontade, delegado. Não temos nada a esconder.
Mas ela estava mentindo. No quarto onde Felisberto havia passado suas últimas horas, Ambrósio conduziu uma busca meticulosa que revelou detalhes perturbadores. Sob a cama, meio escondido entre as tábuas irregulares do assoalho, seus dedos encontraram algo que fez seu coração disparar. Um pequeno frasco de vidro do tamanho de um dedal, ainda com resíduos oleosos grudados no fundo. O recipiente estava vazio, mas exalava aquele mesmo cheiro doce e enjoativo que havia notado na manhã anterior. Um aroma que grudava na garganta como melado estragado, mistura estranha de flores e algo podre, de medicina e veneno.
Ambrósio ergueu o frasco contra a luz que entrava pela janela empoeirada. O líquido que restava era viscoso, amarelado, com consistência oleosa que deixava marcas nas paredes do vidro. Definitivamente não era cachaça, nem qualquer bebida que conhecesse. Era algo diferente, algo que não deveria estar ali.
Quando saiu do quarto, encontrou Antônia exatamente onde a havia deixado, ainda organizando as mesmas garrafas, ainda cantarolando a mesma melodia, mas agora havia algo diferente em seus olhos, uma tensão quase imperceptível, como corda de viola esticada demais.
— Encontrou algo interessante, delegado? — ela perguntou. E, pela primeira vez, sua voz traiu uma pitada de nervosismo.
Ambrósio guardou o frasco no bolso sem responder. Sabia que havia descoberto algo importante, uma pista que poderia mudar completamente o rumo da investigação, mas também sabia que estava lidando com mulheres muito mais perigosas do que imaginara inicialmente. Mulheres que planejavam cada movimento, que calculavam cada palavra, que transformavam morte em lucro com a frieza de comerciantes experientes. E agora elas sabiam que ele sabia. O jogo havia mudado completamente.
O delegado Ambrósio levou o frasco misterioso até o único homem letrado do povoado, professor Epaminondas, que, além de ensinar as primeiras letras às crianças locais, possuía conhecimentos profundos de medicina popular e botânica sertaneja. O professor morava numa casa simples nos fundos da escola, cercado por livros empoeirados e frascos cheios de plantas secas que coletava pelas redondezas.
Quando Ambrósio bateu à sua porta, encontrou-o preparando uma infusão de ervas para tratar a tosse crônica que o atormentava há meses.
— Interessante — murmurou Epaminondas, ajustando os óculos de aros finos enquanto examinava o recipiente contra a luz amarelada da lamparina. — Este resíduo tem propriedades muito peculiares, delegado.
— Que tipo de propriedades, professor?
O homem molhou a ponta do dedo mindinho no líquido viscoso e o levou cautelosamente ao nariz. Imediatamente recuou, pálido como cera de vela, os olhos arregalados de horror.
— Santo Deus do céu! — sussurrou, limpando o dedo com desespero num pano que tinha sobre a mesa. — Isso é óleo de mamona concentrado, delegado, misturado com algo mais. Algo que não consigo identificar completamente, mas que definitivamente não deveria estar numa bebida.
Ambrósio sentiu o coração acelerar.
— É veneno, professor?
— Não, exatamente veneno no sentido tradicional — explicou Epaminondas, ainda visivelmente abalado pela descoberta. — O óleo de mamona em pequenas doses é medicinal, usado para problemas intestinais e outras enfermidades, mas em grandes quantidades, especialmente misturado com certas substâncias, pode causar efeitos devastadores no organismo humano.
— Que tipo de efeitos?
O professor se sentou pesadamente numa cadeira, como se o peso da revelação fosse físico.
— Convulsões violentas, paralisia progressiva dos músculos, dificuldade respiratória severa e, finalmente, parada cardíaca. A vítima simplesmente para de respirar, delegado. E o mais terrível é que não deixa marcas visíveis no corpo.
As peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar na mente de Ambrósio com clareza aterrorizante. Por isso Felisberto parecia ter morrido dormindo. Por isso não havia sinais de luta ou violência.
— Exatamente — confirmou o professor, lendo os pensamentos do delegado. — Para qualquer observador desavisado, pareceria morte natural, um ataque cardíaco comum, especialmente em homem de meia-idade que se excedeu em atividades físicas.
Aquela mesma tarde, armado com essa revelação devastadora, Ambrósio voltou à casa das irmãs. Desta vez, carregava um mandado de busca e apreensão assinado pelo juiz da comarca, um documento que lhe dava autoridade para revirar cada canto daquele estabelecimento maldito.
Encontrou Antônia e Prudência sentadas na varanda, balançando devagar em cadeiras de palha, como se estivessem apenas aproveitando o final de tarde. Mas havia algo diferente no ar, uma tensão elétrica, como antes de tempestade no sertão.
— Vieram-nos prender, delegado? — perguntou Antônia com aquele mesmo sorriso que não chegava aos olhos. Sua voz carregava uma calma artificial que fez os pelos do braço de Ambrósio se arrepiarem.
— Isso depende do que eu encontrar aqui dentro — respondeu ele, mostrando o mandado.
A busca sistemática revelou horrores que superaram as piores expectativas do delegado. No quarto de Antônia, escondido sob as soltas do assoalho que rangiam como ossos velhos, havia dezenas de frascos idênticos ao que encontrara no quarto de Felisberto. Alguns vazios, outros ainda contendo o líquido oleoso e mortal.
Mas a descoberta mais perturbadora estava numa caixa de madeira enterrada sob o assoalho do depósito. Uma coleção macabra de objetos pessoais masculinos: relógios de bolso, anéis de ouro, correntes de prata, carteiras de couro, moedas de várias procedências. Eram troféus sombrios de homens que haviam passado por ali e nunca mais foram vistos. Cada objeto contava uma história interrompida. Cada peça representava uma vida ceifada pela ganância e frieza calculada.
— Quantos? — perguntou Ambrósio, sua voz tremendo de raiva contida, enquanto segurava um relógio que ainda fazia tic-tac morto.
As irmãs se entreolharam com a cumplicidade de quem compartilha segredos terríveis há muito tempo. Prudência, que até então permanecera em silêncio sepulcral, finalmente abriu a boca para pronunciar palavras que ecoariam na mente do delegado pelo resto de sua vida.
— Perdemos a conta depois do décimo, delegado. Mas se quiser saber o número exato, temos tudo anotado num caderno. Somos mulheres organizadas.
O sertão de 1873 acabara de revelar um de seus segredos mais sombrios. E Ambrósio percebeu que estava apenas arranhando a superfície de uma conspiração muito mais profunda e aterrorizante do que jamais imaginara.
A cela da delegacia de Pedra Seca não foi construída para abrigar duas mulheres, mas naquela noite sufocante de agosto de 1873, Antônia e Prudência Sampaio dividiram o pequeno espaço de pedra e ferro como se fosse o lugar mais natural do mundo. O delegado Ambrósio as observava através das grades oxidadas, tentando compreender como duas mulheres aparentemente comuns haviam se tornado algo tão monstruoso. Elas conversavam baixinho entre si, às vezes rindo discretamente, como se estivessem comentando sobre o tempo ou o preço da farinha no mercado. Não demonstravam remorso, não choravam, não suplicavam por perdão, apenas esperavam com a paciência de quem sabe que cada segredo tem seu momento certo para ser revelado.
— Por quê? — Foi a única pergunta que Ambrósio conseguiu fazer quando finalmente reuniu coragem para confrontá-las.
Antônia se aproximou das grades, seus dedos se entrelaçando no ferro frio.
— Delegado, o senhor é homem. Não pode entender o que significa ser mulher sozinha neste mundo cruel, especialmente aqui no sertão, onde a vida vale menos que uma cabra magra.
— Isso não justifica assassinato — replicou ele, lutando para manter a voz firme.
— Assassinato? — repetiu Prudência, e pela primeira vez desde a prisão, ela riu. Um som amargo que ecoou pelas paredes úmidas da cela como lamento de alma penada. — Nós apenas aceleramos processos que já estavam em andamento, delegado.
Antônia continuou a narrativa com a naturalidade de quem conta uma receita de bolo para a vizinha.
— Começou por acaso, sabe? Um comerciante de ferro passou mal depois de nossos serviços. Descobrimos que ele tinha o coração fraco, problemas antigos que a família escondia. Morreu durante a madrugada, bem quietinho.
— E vocês decidiram roubar os pertences dele?
— Decidimos sobreviver — corrigiu Antônia, seus olhos brilhando com uma luz estranha na penumbra da cela. — Aquele homem carregava mais dinheiro do que víamos em um ano inteiro de trabalho honesto. Então pensamos: “Por que não procurar outros homens com problemas similares?”
Ambrósio sentiu náusea subir pela garganta.
— Vocês atraíam homens doentes propositalmente?
— Não, delegado. Nós os tornávamos doentes.
A confissão saiu tão naturalmente que por um momento o delegado pensou ter ouvido errado. Não havia drama. Não havia peso emocional. Era como se estivessem discutindo o melhor método para plantar milho na época da seca.
— O óleo de mamona foi ideia da Prudência — continuou Antônia, apontando para a irmã com orgulho genuíno. — Ela sempre teve jeito especial com plantas medicinais, ervas curativas. Descobrimos que, misturado com certas substâncias que coletávamos no mato, podia simular perfeitamente um ataque cardíaco.
— Quantos homens morreram por causa de vocês? — perguntou Ambrósio, embora parte dele não quisesse conhecer a resposta.
As irmãs se entreolharam, comunicando-se através daquele idioma silencioso que apenas irmãs desenvolvem ao longo de décadas de convivência. Prudência começou a contar nos dedos, franzindo a testa como se estivesse fazendo cálculos complexos.
— Dezessete… talvez dezoito, se contarmos aquele velho de Paracatu que morreu na estrada antes de chegar aqui. Alguns eram viajantes solitários, outros comerciantes ricos. Todos homens que ninguém sentiria falta imediatamente.
Ambrósio precisou se apoiar na parede para não cair. Dezessete assassinatos em dois anos, no meio do sertão mineiro, sob o nariz das autoridades, sem que ninguém desconfiasse.
— E ninguém suspeitou de nada durante todo esse tempo?
Antônia sorriu, e naquele sorriso havia uma frieza que fez o sangue do delegado gelar.
— Delegado, homens de meia-idade morrem de ataque cardíaco todos os dias no Brasil, especialmente homens que se excedem em atividades físicas intensas. Quem ia suspeitar de duas mulheres respeitáveis que apenas ofereciam companhia e conforto a viajantes solitários?
Mas havia algo mais na voz de Antônia, uma confiança excessiva, como se soubesse de algum segredo que ainda não havia revelado, como se a prisão fosse apenas um contratempo temporário em seus planos.
— Além do mais — acrescentou ela, baixando a voz até um sussurro conspiratório. — Não éramos as únicas pessoas que sabiam o que estava acontecendo aqui. Tínhamos parceiros, delegado, pessoas importantes que se beneficiavam de nossos serviços.
Ambrósio sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
— Que tipo de parceiros?
— O tipo que pode fazer com que duas mulheres presas desapareçam durante a noite — respondeu Prudência, falando pela primeira vez em horas. — E que pode fazer com que delegados curiosos demais tenham acidentes fatais nas estradas desertas do sertão.
A ameaça pairou no ar como fumaça tóxica, e Ambrósio percebeu que estava lidando com algo muito maior do que imaginara. Não eram apenas duas assassinas, era uma rede de cumplicidade que se estendia muito além dos limites de Pedra Seca. E agora ele estava bem no centro dessa teia mortal. Mas a história estava longe de terminar.
Na manhã seguinte, quando o sol ainda lutava para atravessar as nuvens carregadas que se acumulavam sobre Pedra Seca, delegado Ambrósio recebeu uma visita que mudaria completamente o rumo da investigação. Dona Benedita chegou à delegacia com o rosto transtornado e as mãos tremendo como folhas secas ao vento. Os olhos vermelhos denunciavam uma noite inteira sem sono, atormentada por demônios que finalmente haviam se tornado pesados demais para carregar sozinha.
— Delegado, eu preciso contar a verdade — disse ela, a voz quebrando como galho seco. — Não consigo mais viver com esse peso na consciência.
— Que verdade, dona Benedita?
A parteira olhou nervosamente para os lados, como se as próprias paredes pudessem ter ouvidos e língua.
— Sobre os corpos, delegado. Sobre como eles desapareciam sem deixar rastro, como se a própria terra os engolisse.
Ambrósio sentou-se lentamente, pressentindo que estava prestes a ouvir algo que mudaria para sempre sua compreensão dos eventos.
— Continue falando.
— As irmãs me procuraram logo depois que chegaram ao povoado — começou dona Benedita, enxugando as lágrimas com a barra do vestido. — Ofereceram dinheiro, muito dinheiro, mais do que eu ganhava em seis meses cuidando de partos e tratando feridas. Disseram que precisavam de alguém de confiança para cuidar de certas situações delicadas.
— Que tipo de situações?
— Homens que morriam na casa delas, delegado. Eu deveria examinar os corpos, atestar morte natural por problemas cardíacos e depois fazer com que desaparecessem para sempre, como se nunca tivessem existido.
O sangue de Ambrósio gelou nas veias.
— Como vocês faziam os corpos desaparecerem?
Dona Benedita começou a chorar mais intensamente, soluçando palavras entrecortadas que saíam como confissão arrancada à força.
— Há uma antiga mina abandonada a três léguas daqui, no caminho para Diamantina. Um poço profundo, sem fundo conhecido. Eu e meu filho Cloves levávamos os corpos durante a madrugada, quando todo mundo dormia.
Ambrósio sentiu o mundo girar ao seu redor. A dimensão real da conspiração começava a se revelar e era muito pior do que suas piores suspeitas.
— Quantos corpos, dona Benedita?
— Todos, delegado. Todos menos o Felisberto. Porque desta vez alguém descobriu antes que pudéssemos agir. Dezesseis homens jogados naquele buraco maldito como se fossem lixo.
A rede de cumplicidade era muito mais extensa do que imaginara. Não eram apenas duas mulheres assassinas operando sozinhas. Era um esquema criminoso envolvendo várias pessoas respeitáveis do povoado. Uma máquina de morte que funcionava com precisão assustadora.
— Quem mais sabia dessa situação? — perguntou Ambrósio, embora temesse a resposta.
— Seu Nicolau, da hospedaria. Ele indicava os viajantes mais ricos para as irmãs, sempre escolhendo homens solitários, sem família próxima, que ninguém sentiria falta rapidamente. Recebia uma porcentagem generosa de cada morte. Mas mais alguém estava envolvido, o coveiro Saturnino. Ele falsificava certidões de óbito quando necessário, criava registros falsos de sepultamento. Para qualquer investigação oficial, aqueles homens haviam sido enterrados no cemitério local com todas as formalidades.
Ambrósio percebeu que estava diante de uma organização criminosa sofisticada que operava há dois anos no coração do sertão mineiro, transformando assassinato em negócio lucrativo com a eficiência de uma empresa bem administrada.
— Por que está me contando isso agora, dona Benedita?
A mulher enxugou as lágrimas e olhou diretamente nos olhos do delegado.
— Porque não consigo mais dormir, delegado. Porque vejo os rostos daqueles homens toda a noite me perseguindo como almas penadas. E porque as irmãs disseram que, se fossem presas, contariam sobre todos os envolvidos, incluindo pessoas muito importantes da região.
— Que pessoas importantes?
Dona Benedita hesitou, como se pronunciar o próximo nome fosse invocar o próprio demônio.
— Coronel Firmino Barbosa, delegado. Ele sabia de tudo desde o início e recebia uma parte considerável dos lucros.
O nome caiu como raio em dia de sol. Coronel Firmino era o homem mais poderoso da região, dono de terras que se estendiam até onde a vista alcançava, com influência política que chegava até a capital do império. E agora Ambrósio descobria que ele estava diretamente envolvido numa rede de assassinatos que havia ceifado a vida de dezesseis homens inocentes. A investigação havia tomado uma dimensão perigosa que colocava a própria vida do delegado em risco. Porque no sertão de 1873, confrontar um coronel poderoso era como desafiar a própria morte. Mas Ambrósio sabia que não podia recuar. Não depois de descobrir a verdade sobre aquela máquina de horror que operava sob a fachada de respeitabilidade, mesmo que isso custasse sua própria vida.
Coronel Firmino Barbosa era o tipo de homem que o sertão produzia como sua obra-prima mais refinada e perigosa. Dono de terras que se estendiam além do horizonte, gado que se contava aos milhares e influência política que alcançava os gabinetes mais importantes do império. Quando o delegado Ambrósio chegou à imponente Fazenda São Bento para interrogá-lo, encontrou um homem aparentemente tranquilo, saboreando café na varanda de sua casa-grande, como se não houvesse uma única preocupação no mundo.
— Delegado Tavares, que prazer inesperado recebê-lo em minha humilde morada — disse Firmino, gesticulando para uma cadeira de balanço ao seu lado. — Soube do lamentável problema com aquelas mulheres na cidade. Situação muito desagradável, sem dúvida.
— Coronel, preciso fazer algumas perguntas sobre seu envolvimento com as irmãs Sampaio.
Firmino riu, mas seus olhos permaneceram frios como pedra de rio no inverno.
— Delegado, sou um homem de negócios respeitáveis. Não me envolvo com estabelecimentos de reputação duvidosa. Minha esposa jamais permitiria tal coisa.
— Mesmo quando esses estabelecimentos geram lucros consideráveis para pessoas influentes da região?
O sorriso do coronel desapareceu como fumaça no vento.
— Cuidado com suas acusações, delegado. Palavras mal escolhidas podem ter consequências desagradáveis para quem as pronuncia.
— Não são acusações, coronel, são fatos documentados. Encontramos registros detalhados na casa das irmãs, pagamentos mensais para “FB”. Suas iniciais, não é mesmo?
Firmino se levantou lentamente, seus movimentos calculados como os de um predador avaliando sua presa.
— Delegado, o senhor está em minha propriedade, cercado por meus homens, longe de qualquer ajuda. Sugiro que escolha muito bem suas próximas palavras.
Mas Ambrósio não se intimidou, mesmo sentindo o perigo real que pairava no ar como tempestade prestes a desabar.
— Dezesseis homens morreram, coronel, assassinados a sangue frio por uma organização criminosa. E o senhor lucrou com cada morte, com cada vida ceifada.
— Prove suas acusações, delegado.
— Posso provar facilmente. Tenho as confissões detalhadas das irmãs, os registros financeiros completos e agora tenho o depoimento da dona Benedita, que revelou toda a operação.
O coronel caminhou até a borda da varanda, contemplando suas terras que se estendiam até onde a vista alcançava. Suas propriedades eram um império construído com suor, sangue e, aparentemente, com muito mais sangue do que Ambrósio imaginara.
— Delegado, o senhor não compreende como as coisas realmente funcionam aqui no sertão. Aqueles homens eram descartáveis, viajantes sem família, comerciantes gananciosos, aventureiros sem destino certo. Ninguém importante, ninguém que fizesse diferença no grande esquema das coisas.
— Eram seres humanos, coronel. Tinham direito à vida.
Firmino se virou e, pela primeira vez, Ambrósio viu o verdadeiro homem por trás da fachada civilizada. Olhos duros como diamante bruto, sorriso cruel que revelava a alma predadora que habitava aquele corpo respeitável.
— Eram recursos, delegado. E recursos devem ser aproveitados da maneira mais eficiente possível. Aqueles homens morreram servindo a um propósito maior: financiar o progresso desta região.
— O senhor está confessando participação nos assassinatos.
Firmino riu, um som que ecoou pelas terras como uivo de animal selvagem.
— Eu não estou confessando coisa alguma, delegado, porque o senhor não vai sair desta fazenda com vida para contar essa história para ninguém.
A ameaça pairou no ar quente da tarde, como abutre esperando a carniça. Ambrósio percebeu que havia subestimado completamente a extensão da conspiração e o poder real das pessoas envolvidas.
— Sabe qual é a beleza de ser coronel no sertão, delegado? — continuou Firmino, sua voz carregada de uma confiança aterrorizante. — Posso fazer qualquer pessoa desaparecer sem deixar rastro. Posso inventar qualquer história que me convém e posso garantir que a versão oficial dos fatos seja exatamente aquela que me beneficia.
Ambrósio tentou manter a calma, mas sabia que estava numa situação desesperadora. Havia vindo sozinho, sem avisar ninguém sobre seu destino, confiando na autoridade de seu cargo para protegê-lo. Mas no sertão de 1873, a autoridade real pertencia aos coronéis, não aos delegados.
— Meus homens já estão se aproximando, delegado. Homens leais que farão qualquer coisa que eu ordenar. Eu vou ordenar que façam com que o senhor tenha um acidente muito lamentável na estrada de volta para a cidade.
O cerco estava se fechando e Ambrósio percebeu que havia descoberto a verdade tarde demais. A rede de corrupção e assassinatos era protegida por poder político real e ele era apenas um obstáculo que precisava ser removido. Mas mesmo diante da morte iminente, uma parte dele se sentia satisfeita por ter desvendado o mistério que aterrorizava o sertão há dois anos, mesmo que essa descoberta custasse sua própria vida.
O que aconteceu na Fazenda São Bento naquela tarde sufocante de agosto de 1873 nunca foi completamente esclarecido pelos registros oficiais. Delegado Ambrósio Tavares simplesmente desapareceu da face da terra, como se tivesse sido engolido pelo próprio sertão. Seu cavalo foi encontrado três dias depois, pastando tranquilamente próximo ao rio que cortava a propriedade do coronel, mas do homem que o montava, nenhum rastro jamais foi descoberto.
O substituto que veio da capital, delegado Bernardino Silva, era um homem muito mais compreensivo quanto às peculiaridades locais. Aceitou sem questionamentos a versão de que seu antecessor havia sofrido um acidente fatal durante uma investigação de rotina, provavelmente atacado por onças ou perdido nas trilhas traiçoeiras da região.
As irmãs Antônia e Prudência Sampaio foram encontradas mortas em sua cela na manhã seguinte ao desaparecimento de Ambrósio. Envenenamento por substância desconhecida, segundo o laudo oficial. Suicídio por remorso, foi a explicação que satisfez todas as autoridades competentes.
Dona Benedita desapareceu na mesma semana, levando a família e uma quantidade suspeita de moedas de ouro. Alguns disseram que mudou-se para Diamantina. Outros juravam tê-la visto embarcando num trem com destino ao Rio de Janeiro. A verdade é que nunca mais foi vista em Pedra Seca. Seu Nicolau vendeu a hospedaria por preço irrisório e partiu sem avisar ninguém. O coveiro Saturnino foi encontrado morto em casa poucos dias depois, vítima de morte súbita que ninguém questionou muito profundamente.
Coronel Firmino Barbosa continuou sendo o homem mais respeitado e influente da região. Suas terras prosperaram ainda mais. Sua reputação permaneceu imaculada e sua versão dos eventos se tornou a única história que importava nos registros oficiais. A casa onde as irmãs Sampaio operaram seu negócio macabro foi demolida uma semana após suas mortes. As pedras foram espalhadas, a madeira queimada e o terreno arado, como se nunca tivesse existido construção alguma ali.
Mas o sertão tem memória longa, e os moradores mais antigos de Pedra Seca guardaram suas próprias versões dos acontecimentos. Sussurravam que em noites sem lua ainda era possível ouvir ecos de risadas femininas vindas da direção onde a casa maldita ficara. Risadas que gelavam o sangue de quem as escutava, carregadas de uma malícia que a morte não conseguira silenciar. Contavam que viajantes solitários continuavam desaparecendo na região, engolidos pelas estradas empoeiradas, sem deixar vestígio. Sempre homens com dinheiro no bolso, sempre em circunstâncias misteriosas que as autoridades preferiam não investigar muito profundamente. E juravam que quando o vento soprava forte vindo das serras distantes, ainda era possível sentir aquele cheiro doce e enjoativo no ar. Aroma de flores podres, misturado com algo indefinível, algo que grudava na garganta como lembrança de pecados que nunca foram devidamente punidos.
A antiga mina abandonada onde os corpos foram jogados nunca foi explorada pelas autoridades. Permaneceu como buraco negro na paisagem, engolindo segredos e guardando evidências que poderiam ter mudado a história oficial dos eventos. Dezesseis homens continuaram oficialmente desaparecidos. Suas famílias jamais souberam o que realmente aconteceu com seus entes queridos. Dezesseis vidas ceifadas por ganância e poder, enterradas não apenas na terra seca do sertão, mas também nos arquivos empoeirados de uma justiça que preferiu olhar para o outro lado.
O poder do coronel se mostrou mais forte que a verdade. A influência política prevaleceu sobre a justiça. E o sertão de 1873 continuou sendo um lugar onde a vida valia menos que o ouro, onde segredos eram mais valiosos que honestidade e onde a morte podia ser comprada e vendida como qualquer mercadoria.
Esta história nos lembra que o mal nem sempre usa máscaras óbvias, às vezes se esconde atrás de sorrisos educados, de fachadas respeitáveis, de pessoas que ocupam posições de poder e confiança na sociedade. Nos ensina que a corrupção pode criar raízes profundas em qualquer lugar, especialmente onde a lei é fraca e a impunidade é forte. E nos mostra que mesmo quando a justiça falha, a verdade tem maneiras próprias de sobreviver, passando de geração em geração através de sussurros e histórias contadas em volta de fogueiras, mantendo viva a memória daqueles que foram silenciados.
Porque no final, a única coisa que realmente morre no sertão são as ilusões. Os segredos, esses permanecem vivos para sempre, esperando o momento certo de voltar à superfície.