(1909, Ouro Preto–MG) A Horripilante História da Família Machado – A Casa Que Nenhum Empregado Quis

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Bem-vindos a esta história por um dos casos mais perturbadores já registrados em Ouro Preto. Antes de começarmos, convido vocês a deixarem um comentário sobre de onde estão assistindo e o horário exato em que ouviram esta história. Estamos interessados em saber a que lugares e em que horários do dia ou da noite esses relatos documentados chegam.

O ano era 1909. As ruas íngremes de pedra de Ouro Preto ainda guardavam os ecos da riqueza do ciclo do ouro, mesmo após a transferência da capital de Minas Gerais para Belo Horizonte, 12 anos antes.

Entre os casarões coloniais, que pontilhavam as ladeiras da cidade, destacava-se a residência da família Machado, uma construção imponente de dois andares na rua São Francisco, com vista para o Vale e a Igreja de São Francisco de Assis.

A propriedade era conhecida por seu porte senhorial, com amplos cômodos, janelas com vidraças importadas, sacadas de ferro trabalhado e um extenso quintal que descia à encosta do morro.

O solar dos Machado era um dos mais antigos da cidade, construído no auge do período aurífero, com grossas paredes de taipa e pedra que mantinham seu interior frio mesmo nos dias mais quentes.

As janelas do primeiro andar eram protegidas por treliças de madeira, tipicamente coloniais, enquanto as do segundo andar ostentavam elaboradas sacadas de ferro fundido, importadas da França durante a reforma feita pelo pai de Augusto Machado no final do século XIX. O telhado de barro vermelho, com várias águas e beirais amplos, completava a imagem de opulência decadente que a casa representava.

O patriarca Augusto Machado era herdeiro de uma das últimas famílias tradicionais que permaneceram na antiga capital após o êxodo das elites para a Nova Belo Horizonte. Alto, magro e de postura impecavelmente ereta, Augusto era reconhecido pelo seu andar peculiar, passos firmes e calculados, como se medisse o chão por onde passava.

Aos 55 anos, seu cabelo completamente grisalho contrastava com o bigode ainda negro, meticulosamente aparado toda a manhã por seu fiel barbeiro, que vinha à casa semanalmente.

Viúvo, há 5 anos, mantinha a casa com a rigidez austera de um homem acostumado a dar ordens e ser obedecido sem questionamentos. Sua esposa, Dona Helena, havia falecido em circunstâncias que poucos na cidade ousavam comentar.

Diziam que ela sofria de melancolia profunda e que nos seus últimos meses mal saía do quarto no segundo andar, de onde se ouvia apenas o arrastar de passos nas tábuas do assoalho.

Helena, filha única de um próspero comerciante português, trouxera para o casamento uma fortuna considerável em propriedades e investimentos bancários, o que elevara ainda mais o status dos Machado na sociedade ouro-pretana. Sua morte repentina havia sido um choque para os poucos que ainda mantinham contato com a família.

Augusto Machado era gerente da agência local do Banco Hipotecário e Agrícola, posição que lhe conferia status e poder na decadente Ouro Preto. Morava com sua irmã mais nova, Cecília, uma mulher de 30 e poucos anos que nunca se casara e que, após a morte de Helena, assumira o papel de dona da casa.

Cecília Machado era a imagem perfeita do que se esperava de uma senhora solteira da alta sociedade mineira, recatada, sempre vestida em tons escuros, com os cabelos presos em um coque severo no topo da cabeça. Seu rosto, outrora considerado belo, havia se tornado uma máscara de severidade, com lábios permanentemente contraídos e olhos vigilantes.

Cecília administrava a casa com mão de ferro, supervisionando pessoalmente cada detalhe, desde o polimento da prataria até a organização das raras visitas que a família ainda recebia.

A relação entre os irmãos Machado era peculiar. Em público, mantinham uma formalidade quase protocolar, tratando-se por “Senhor meu irmão” e “Senhora minha irmã”, como ditavam os costumes mais antigos. Em privado, porém, havia uma intimidade quase inquietante, como se compartilhassem segredos que os ligavam de maneira indissolúvel.

Na antiga capital mineira, as famílias abastadas ainda mantinham empregados domésticos, muitos descendentes de escravos que serviram as mesmas casas antes da abolição, ocorrida apenas 21 anos antes.

Os Machado tinham em sua propriedade uma cozinheira, um jardineiro, e sempre tentavam contratar uma empregada para os serviços internos e para atender à família. No entanto, algo peculiar ocorria. Nenhuma empregada doméstica permanecia por muito tempo naquele solar.

Dona Justina, a cozinheira, era uma exceção notável. Mulher negra de 60 anos, baixa e corpulenta, servia à família desde antes da abolição, quando ainda era escrava. Após a Lei Áurea, continuou na casa, agora recebendo um modesto salário e ocupando um pequeno quarto nos fundos da cozinha.

Justina conhecia cada recanto da casa, cada rangido do assoalho, cada segredo que as paredes grossas guardavam, ou pelo menos era o que todos pensavam. Sua lealdade aos Machado parecia inabalável, mesmo quando o comportamento dos patrões tornava-se cada vez mais estranho com o passar dos anos.

O jardineiro Pedro era um homem quieto de meia-idade, que vinha três vezes por semana para cuidar do vasto terreno. Raramente entrava na casa, preferindo limitar-se aos seus domínios externos. Os poucos que conseguiam arrancar dele mais que monossílabos diziam que Pedro tinha um medo inexplicável do segundo andar da casa e que se recusava a subir lá mesmo quando ordenado diretamente.

Era uma constante na vida dos Machado a rotatividade de funcionárias que entravam e saíam sem explicações claras. A última havia durado apenas três semanas antes de desaparecer, sem buscar seus pertences ou seu pagamento. A anterior a ela permaneceu por dois meses e foi encontrada vagando pela Rua Direita em estado de confusão, incapaz de explicar o que havia acontecido.

Antes dela, uma jovem de 20 anos que trabalhara na casa por quase seis meses partiu no meio da noite, deixando apenas um bilhete que dizia: “Perdoem-me, mas não posso mais suportar os sons”.

E assim formou-se, nos sussurros das ruas estreitas de Ouro Preto, a história da casa que nenhum empregado quis.

As tentativas dos Machado de contratar novas empregadas tornaram-se cada vez mais difíceis. As mulheres da cidade, principalmente as mais jovens, recusavam-se a trabalhar na casa, mesmo quando o salário oferecido era substancialmente maior que o usual. Os irmãos começaram a buscar trabalhadoras em cidades vizinhas como Mariana e Santa Bárbara, onde os rumores sobre a casa ainda não haviam chegado com tanta força.

Em fevereiro daquele ano, uma nova empregada chegou à residência: Maria Antônia da Silva, uma mulher de 40 anos, viúva de um mineiro da região de Passagem, a 5 km de Ouro Preto.

Diferente das outras, Maria Antônia tinha um olhar firme e uma postura digna que impressionou até mesmo o severo Augusto Machado. Tinha a pele escura e marcada pelo trabalho árduo, mãos calejadas de quem lavava roupa nas pedras do rio por anos e uma expressão serena que escondia a determinação de quem já enfrentara muitas dificuldades na vida.

Nascida e criada em Mariana, Maria Antônia havia se casado jovem com José da Silva, um trabalhador das minas de ouro da região. Após 12 anos de um casamento difícil, mas estável, José morreu em um acidente na mina, deixando a esposa sem recursos.

Durante anos, Maria Antônia sobreviveu lavando roupas para famílias ricas de Mariana e Ouro Preto, trabalhando de sol a sol nas margens do Ribeirão do Carmo, carregando trouxas pesadas pela cidade, suportando o frio das águas, mesmo nos dias mais gélidos de inverno. Quando a idade começou a dificultar esse trabalho, buscou emprego como doméstica, função que, apesar de mal remunerada, ao menos não destruía seus ossos com a umidade constante.

Quando chegou à porta da casa dos Machado, Maria Antônia trazia apenas uma pequena trouxa com suas roupas e um medalhão de prata com a foto desbotada do falecido marido, sua única herança. Havia escutado sobre a vaga através da cozinheira dos Machado, Dona Justina, que frequentava a mesma igreja.

Justina, que trabalhava para a família havia décadas, advertira-a sobre os rumores que circulavam. Mas Maria Antônia precisava do trabalho e do salário oferecido, que era um pouco mais alto que o usual, precisamente porque ninguém queria permanecer naquela casa.

“Dizem que as empregadas ouvem coisas estranhas à noite,” confidenciou Justina quando se encontraram após a missa dominical. “Passos, gemidos, como se alguém vagasse pela casa. Mas posso lhe garantir que não são fantasmas, Maria, nada disso. São apenas os rangidos de uma casa antiga, o vento nas janelas mal vedadas.”

Porém, algo no olhar de Justina ao dizer essas palavras fez Maria Antônia desconfiar. Havia medo ali ou talvez culpa, mas o salário de 20.000 réis era tentador demais para ser recusado, especialmente para uma mulher que, apesar de trabalhar desde jovem, nunca conseguira juntar o suficiente para ter um teto próprio.

Foi Cecília quem a recebeu com um sorriso educado que não alcançava os olhos. Mostrou-lhe a casa e as regras: nunca entrar no escritório do Senhor Machado sem ser chamada, manter a prataria sempre polida, nunca subir ao segundo andar após o jantar, sempre usar o uniforme cinza que pertencera às empregadas anteriores, e jamais, sob qualquer circunstância, entrar no antigo quarto de Dona Helena, que permanecia trancado desde sua morte.

A casa vista por dentro era ainda mais impressionante que sua fachada sugeria. O hall de entrada era amplo, com um piso de mármore importado da Itália e uma escadaria de madeira escura que levava ao segundo andar.

À direita do hall ficava a sala de estar principal, com móveis pesados de jacarandá trazidos do Rio de Janeiro, cortinas de veludo verde-escuro que bloqueavam quase toda a luz natural e um grande piano que, segundo Cecília, ninguém tocava desde a morte de Dona Helena.

À esquerda ficava a biblioteca, com estantes que iam do chão ao teto, repletas de livros encadernados em couro que exalavam o cheiro característico de papel antigo e mofo controlado.

Passando pela sala de estar, chegava-se à sala de jantar, dominada por uma mesa comprida de madeira maciça, com capacidade para 16 pessoas, embora, como Cecília explicou com uma ponta de amargura, “raramente recebamos mais que um ou dois convidados atualmente.” A cristaleira exibia peças finas de porcelana inglesa e cristal francês, relíquias de uma época em que os Machado recebiam a nata da sociedade mineira.

A cozinha ficava nos fundos, um cômodo amplo com um grande fogão à lenha e uma bancada de pedra onde Dona Justina reinava absoluta. Aqui o luxo da casa dava lugar a um ambiente mais funcional, embora ainda muito superior ao que Maria Antônia estava acostumada.

Uma porta nos fundos da cozinha levava a um pequeno corredor onde ficavam os quartos de serviço, um para Dona Justina, outro que seria ocupado por Maria Antônia e um terceiro menor usado como despensa. O segundo andar era acessível pela escadaria principal ou por uma escada de serviço mais estreita nos fundos da casa.

Lá ficavam os quartos da família, o de Augusto no final do corredor à direita, o de Cecília no meio do corredor à esquerda, o quarto de hóspedes raramente usado, uma pequena sala de estudos e, no final do corredor à esquerda, o quarto que fora de Dona Helena, sempre trancado.

“Espero que você dure mais que as outras,” disse Cecília com uma frieza que contrastava com seu sorriso ensaiado. “A última simplesmente saiu sem avisar. Imperdoável falta de consideração.”

Maria Antônia a sentiu sem demonstrar a inquietação que sentia. Sabia, pelos comentários na cidade, que as outras haviam saído em circunstâncias no mínimo estranhas. Mas o salário de 20.000 réis era tentador, quase o dobro do que ganharia em outras casas e suficiente para alugar um pequeno cômodo próprio, algo que nunca conseguira em toda sua vida de trabalho.

“Não tenho medo de trabalho duro, senhora,” respondeu Maria, olhando diretamente nos olhos de Cecília, algo que pareceu desconcertar momentaneamente a patroa.

“Ótimo. Justina lhe mostrará seus aposentos e suas tarefas. O jantar é servido às sete em ponto. Meu irmão aprecia a pontualidade acima de tudo.”

Com essas palavras, Cecília retirou-se, deixando Maria aos cuidados da velha cozinheira.

Justina mostrou-lhe o pequeno quarto que ocuparia. Um espaço modesto, mas limpo, com uma cama estreita, um baú para seus pertences e uma pequena mesinha com uma bacia para higiene pessoal. A janela dava para o quintal dos fundos, com vista para a encosta que descia em direção às construções mais baixas da cidade.

Os primeiros dias na casa dos Machado transcorreram sem incidentes notáveis. Maria Antônia aprendeu a rotina: acordar antes do amanhecer, acender os fogões, preparar o café da manhã junto com Dona Justina, arrumar as salas, tirar o pó dos inúmeros móveis pesados de madeira escura e dos objetos decorativos que enchiam cada superfície disponível.

A casa era sufocante em sua opulência decadente. Quadros a óleo de antepassados dos Machado observavam com olhares severos os movimentos dos habitantes. Um relógio de parede no hall de entrada marcava as horas com um som profundo que ecoava por toda a casa.

O Senhor Augusto saía todas as manhãs às 8 horas em ponto para o banco, retornando precisamente às 17h30 da tarde. Cecília passava os dias administrando a casa, bordando, lendo ou visitando as poucas amigas que ainda mantinha na cidade. Era uma rotina previsível, quase mecânica, na qual cada membro da casa parecia desempenhar um papel bem ensaiado.

Maria observou que a relação entre os irmãos era peculiar. Durante as refeições, que eram tomadas em absoluto silêncio, exceto por comentários ocasionais sobre assuntos práticos, Augusto e Cecília raramente se olhavam diretamente. No entanto, havia uma espécie de comunicação silenciosa entre eles, como se pudessem antecipar os pensamentos um do outro. Cecília servia o irmão com uma devoção quase religiosa, garantindo que sua comida estivesse sempre na temperatura ideal, seu vinho favorito disponível, sua cadeira posicionada precisamente no ângulo que preferia.

Foi na terceira noite que Maria Antônia ouviu pela primeira vez. Acordou sobressaltada em seu pequeno quarto no andar térreo, ao fundo da cozinha. Um som de arrastar de passos no andar superior, diretamente acima de seu quarto. Passos lentos, arrastados, como se alguém caminhasse com dificuldade.

Consultou o pequeno relógio que mantinha ao lado de sua cama. 3 horas da manhã.

Os passos continuaram por alguns minutos e depois cessaram abruptamente. Maria permaneceu acordada pelo resto da noite, atenta a qualquer outro ruído, mas a casa voltou ao silêncio absoluto. Apenas o tique-taque distante do grande relógio do hall, ocasionalmente o uivo do vento nas frestas das janelas, quebravam o silêncio sepulcral.

Na manhã seguinte, enquanto servia o café, Maria perguntou casualmente se alguém havia ficado acordado durante a noite.

“Todos dormem cedo nesta casa,” respondeu Cecília secamente, “Menos você, aparentemente, que parece ficar atenta aos ruídos noturnos.”

Maria notou o olhar trocado entre Cecília e seu irmão. Um olhar de entendimento, talvez de preocupação.

“Peço desculpas, Senhora,” disse Maria, baixando os olhos. “Ainda estou me acostumando aos sons da casa. Em minha residência anterior, o silêncio era absoluto durante a noite.”

“Esta é uma construção antiga,” explicou Augusto, sem levantar os olhos do jornal que lia. “A madeira trabalha com as mudanças de temperatura. O que ouviu foi, provavelmente, o assoalho se contraindo com o frio da madrugada, nada com que se preocupar.”

A explicação era plausível, mas algo na maneira como foi dada, com uma prontidão ensaiada, como se já tivesse sido oferecida muitas vezes antes, deixou Maria desconfiada.

Os dias passaram e os sons noturnos continuaram, sempre por volta das 3 da manhã. Passos arrastados, ocasionalmente um suspiro abafado, como se alguém sufocasse um lamento.

Maria começou a notar outros detalhes estranhos na casa. Um cheiro adocicado e nauseante que, por vezes, emanava do quarto trancado de Dona Helena, manchas escuras no assoalho do corredor superior, que reapareciam mesmo após serem esfregadas com vigor, e, principalmente, o comportamento cada vez mais errático de Cecília.

A patroa começou a segui-la pela casa, aparecendo silenciosamente em cômodos onde Maria trabalhava, observando-a por longos minutos sem dizer nada. Suas mãos, sempre ocupadas com bordados, tremiam ligeiramente. Seus olhos, cada dia mais fundos e cercados por olheiras, fixavam-se em Maria com uma intensidade perturbadora.

Uma manhã, enquanto Maria lustrava a prataria na sala de jantar, Cecília apareceu na porta, vestida com um elegante vestido azul-marinho, algo incomum para alguém que geralmente usava tons escuros.

“Você gosta de trabalhar aqui, Maria?” perguntou abruptamente.

Maria levantou-se surpresa pela pergunta inesperada. “Sim, Senhora. A casa é bonita e o trabalho não é mais difícil que em outros lugares.”

“E os sons, ainda os ouve à noite?”

Maria hesitou, incerta sobre como responder. Decidiu pela honestidade. “Às vezes, Senhora, mas como o Senhor Augusto explicou, casas antigas fazem barulhos.”

Cecília aproximou-se, seus olhos fixos nos de Maria. “E se eu lhe dissesse que não são apenas barulhos de uma casa velha? Que há mais acontecendo nesta casa do que você pode imaginar?”

O coração de Maria acelerou. Era algum tipo de teste, uma armadilha para ver se ela estava assustada ou pretendia deixar o emprego?

“Não compreendo, Senhora.”

Cecília sorriu, um sorriso triste que não alcançava seus olhos. “Claro que não. Como poderia? Você está aqui há menos de duas semanas, mas talvez com o tempo você entenda. Talvez você seja diferente das outras.”

Antes que Maria pudesse perguntar o que significava ser diferente das outras, Cecília mudou completamente de assunto, como se a conversa anterior nunca tivesse acontecido. “O Dr. Mateus Albuquerque virá para o jantar no próximo sábado. Ele era o médico de minha cunhada. É um homem importante na cidade e tudo deve estar impecável. Avise Justina para preparar o melhor cardápio.”

Com essas palavras, Cecília retirou-se, deixando Maria confusa e inquieta. A menção ao médico de Dona Helena, aparentemente fora de contexto após aquela estranha conversa, parecia carregada de significados ocultos.

Numa manhã de abril, enquanto limpava o corrimão da escada principal, Maria ouviu um diálogo entre os irmãos vindo do escritório. A porta estava entreaberta e as vozes alteradas chegavam claramente até ela.

“Ela está desconfiada, Augusto. Vi como olha para o quarto, como faz perguntas sobre os ruídos.”

“Acalme-se, Irmã. Ela é apenas uma empregada. O que poderia saber? As outras também eram apenas empregadas. E você se lembra do que aconteceu? Foi você quem insistiu em contratar essa? Disse que parecia diferente, mais forte, que poderia suportar.”

“Suportar não significa descobrir. Se ela souber…” A voz de Cecília foi interrompida pelo som de algo caindo e quebrando.

Maria afastou-se rapidamente, mas não antes de ouvir a última frase de Augusto. “Se for necessário, faremos como das outras vezes.”

O coração de Maria batia acelerado enquanto voltava para a cozinha, fingindo estar ocupada com outras tarefas. As palavras de Augusto ecoavam em sua mente: “como das outras vezes”. O que teria acontecido com as empregadas anteriores? Porque ninguém sabia ao certo para onde haviam ido? E o que havia naquele quarto trancado que tanto precisava ser escondido?

Naquela noite, Maria não conseguiu dormir. Deitada em sua cama estreita, repassava mentalmente tudo o que havia observado na casa dos Machado. Os sons noturnos, o cheiro estranho vindo do quarto trancado, o comportamento errático de Cecília, as manchas no assoalho que pareciam impossíveis de remover completamente e agora a conversa entre os irmãos com sua ameaça velada.

Pensou em deixar a casa imediatamente, desaparecer no meio da noite, como aparentemente outras haviam feito antes dela. Mas algo a impedia, uma mistura de curiosidade, teimosia e senso de justiça. Se algo terrível havia acontecido naquela casa, algo que custou caro às outras funcionárias, não poderia simplesmente ir embora e deixar o mistério sem solução.

Às 3 da manhã, os sons recomeçaram. Desta vez, porém, eram mais intensos. O arrastar de passos foi seguido por um baque surdo, como se alguém tivesse caído. Depois, um gemido prolongado, quase inaudível, mas carregado de angústia.

Maria levantou-se e, com o coração acelerado, saiu de seu quarto. A cozinha estava escura e silenciosa. Dona Justina dormia em um cômodo adjacente e seu ronco suave era o único som além dos ruídos do andar superior.

Com passos cautelosos, Maria atravessou a sala de jantar, iluminada apenas pela luz fraca da lua que entrava pelas janelas. A escada principal rangeu sob seus pés descalços enquanto ela subia lentamente.

No corredor do segundo andar, a escuridão era quase completa, exceto por uma fresta de luz que saía debaixo da porta do quarto de Cecília. Maria passou silenciosamente por essa porta, seguindo em direção ao som que agora havia cessado.

Ao final do corredor, encontrou a porta do antigo quarto de Dona Helena, eternamente trancada, segundo as ordens de Cecília. Maria encostou o ouvido na porta, tentando captar qualquer som vindo do interior. Por um momento, não ouviu nada além do próprio coração batendo acelerado. Então, quando estava prestes a se afastar, ouviu um suspiro leve, quase imperceptível, mas definitivamente humano.

Nesse momento, um ruído atrás dela fez Maria virar-se bruscamente. Cecília estava parada na porta de seu quarto, usando uma camisola branca que a fazia parecer um fantasma no corredor escuro. Seus olhos estavam arregalados, fixos em Maria.

“O que faz aqui a esta hora?” perguntou sua voz trêmula de raiva contida.

“Ouvi um barulho, Senhora. Pensei que alguém precisasse de ajuda.”

“Volte para seu quarto imediatamente. Já lhe disse que não deve subir à noite.” O tom de Cecília não admitia réplica.

Maria obedeceu, sentindo os olhos de Cecília queimando em suas costas enquanto descia a escada. Ao chegar ao seu quarto, trancou a porta, algo que nunca havia feito antes. Sabia que havia cruzado uma linha invisível e que os irmãos Machado não deixariam o incidente passar sem consequências.

Na manhã seguinte, o café da manhã transcorreu num silêncio opressivo. Augusto, normalmente pontual, demorou a descer e quando apareceu tinha profundas olheiras e um olhar distante. Cecília mal tocou em sua comida, observando Maria com uma intensidade perturbadora.

“Maria,” disse Augusto finalmente, dobrando cuidadosamente o guardanapo. “Precisamos que vá ao mercado hoje. Há uma lista de compras na cozinha.”

Sua voz era neutra, mas Maria percebeu o plano imediatamente. Queriam-na fora de casa.

“Sim, Senhor,” respondeu, mantendo o olhar baixo.

Quando saiu para o mercado, Maria sentia-se observada de cada janela da casa. A lista era longa e incluía itens difíceis de encontrar, obviamente uma estratégia para mantê-la ocupada por várias horas.

Enquanto percorria as ruas de Ouro Preto, Maria considerou não voltar mais à casa dos Machado. Poderia simplesmente desaparecer, como as outras antes dela, mas algo a impedia: uma mistura de curiosidade e teimosia e a sensação de que havia algo muito errado naquela casa, algo que talvez só ela pudesse descobrir.

Enquanto estava no mercado central de Ouro Preto, Maria encontrou Dona Matilde, uma antiga cliente dos tempos em que lavava roupas. A senhora, uma mulher de 70 anos que conhecia cada família e cada história da cidade, saudou-a com afeto.

“Maria Antônia, quanto tempo. Ouvi dizer que está trabalhando na casa dos Machado agora.”

“Sim, Senhora. Há quase duas semanas.”

Dona Matilde aproximou-se, baixando a voz. “Tenha cuidado, minha filha. Aquela casa… Há histórias.”

“Que tipo de histórias, Dona Matilde?”

A idosa olhou em volta como se temesse ser ouvida. “Dizem que Dona Helena não morreu de melancolia, como contaram. Dizem que ela começou a fazer perguntas sobre os negócios do marido, ameaçou denunciá-lo por alguma irregularidade e então, de repente, adoeceu e morreu em poucos dias.”

“E o médico não desconfiou de nada?”

“O Dr. Mateus, ele foi chamado quando já era tarde demais. O corpo já estava… bem, não sei detalhes. Só sei que o caixão foi mantido fechado no funeral, algo incomum para alguém da posição dela. E o doutor, que era próximo da família, rompeu relações com os Machado logo depois. Nunca mais pôs os pés naquela casa. Até onde sei, pelo menos.”

Maria sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A história de Dona Matilde confirmava suas suspeitas de que havia algo muito errado na morte de Dona Helena.

“E as empregadas que trabalharam lá depois, sabe algo sobre elas?”

Dona Matilde fez o sinal da cruz, um gesto supersticioso que Maria nunca a vira fazer antes. “Três simplesmente desapareceram sem aviso, sem buscar seus pertences. Os Machado dizem que foram embora, arrumaram emprego em outra cidade, mas quem deixa seus pertences e salário para trás? Uma outra, Teresa, foi encontrada vagando pelas ruas, falando coisas sem sentido. Disseram que enlouqueceu, que tinha tendência à loucura na família. Está internada em Barbacena agora.”

A menção ao hospital psiquiátrico de Barbacena fez Maria estremecer. Teresa, quem quer que fosse, provavelmente estava sofrendo naquele lugar.

“O Dr. Mateus ainda mora em Ouro Preto?”

“Sim, na Rua do Carmo, uma casa amarela com janelas azuis perto da capela. Por quê?”

“Nada importante, apenas curiosidade,” respondeu Maria, não querendo alarmar a idosa com seus planos.

Ao retornar à casa dos Machado no final da tarde, Maria percebeu mudanças sutis. O cheiro adocicado, que por vezes emanava do quarto de Dona Helena, havia sido mascarado por um forte aroma de alfazema queimada. A casa parecia mais limpa, mais arrumada, como se tivesse sido preparada para uma visita importante.

E Cecília, geralmente tensa e vigilante, parecia estranhamente calma, quase serena.

“Deixe as compras na cozinha e vá trocar de roupa,” disse ela com um sorriso que não alcançava seus olhos. “Teremos um jantar especial esta noite. Estou esperando o Dr. Mateus Albuquerque. Você deve se lembrar dele. É o médico que cuidou de minha cunhada nos seus últimos dias.”

Maria assentiu, surpresa pela coincidência. Justamente o médico sobre o qual havia acabado de perguntar a Dona Matilde. O médico que, segundo os rumores, havia se desentendido com a família Machado após a morte de Dona Helena.

“Arrumarei a mesa de jantar imediatamente, Senhora. Use a melhor louça, a porcelana inglesa com bordas douradas e a cristaleira francesa. O doutor é um homem refinado e apreciará estes detalhes.”

Enquanto ajudava Dona Justina nos preparativos para o jantar, Maria notou que a cozinheira estava inquieta, derrubando utensílios e murmurando para si mesma. Quando ficaram sozinhas por um momento, Maria perguntou-lhe o que havia de errado.

“Nada de bom vem quando o Dr. Mateus entra nesta casa,” respondeu a idosa em voz baixa. “Da última vez que esteve aqui, foi para assinar o atestado de óbito da Senhora e saiu jurando nunca mais voltar. Por que voltaria agora?”

“Dizem que ele nunca acreditou que Dona Helena morreu como contaram, que haveria mais na história.”

Antes que pudesse dizer mais, Cecília entrou na cozinha, interrompendo a conversa. “O doutor chegará em uma hora. Certifiquem-se de que tudo esteja perfeito.”

A chegada do Doutor Mateus foi precedida por uma tensão palpável que parecia permear cada canto da casa. Augusto, geralmente calmo e controlado, verificou três vezes seu relógio de bolso durante a última hora, ajustou repetidamente sua gravata e mandou polir novamente os talheres já brilhantes. Cecília trocou de vestido duas vezes, finalmente decidindo-se por um modelo verde-escuro que acentuava a palidez de sua pele.

Até Dona Justina parecia afetada, verificando e reverificando cada prato, ajustando a temperatura dos alimentos com uma precisão quase obsessiva.

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Quando a campainha finalmente soou, pouco depois das 20h, foi como se todos na casa prendessem a respiração simultaneamente. Augusto dirigiu-se pessoalmente à porta, algo que nunca fazia para visitantes comuns. O jantar foi servido às 20h em ponto.

Dr. Mateus Albuquerque era um homem magro, com uma barba branca bem aparada e olhos vivos que pareciam registrar cada detalhe. Maria, que o observava enquanto servia os pratos, notou como seus olhos percorriam a sala, detendo-se momentaneamente em detalhes aparentemente insignificantes: uma mancha quase imperceptível no papel de parede, a posição ligeiramente desalinhada de um quadro, o modo como Cecília evitava encontrar seu olhar.

A conversa durante o jantar foi formal e superficial. Comentários sobre o clima excepcionalmente frio para abril, notícias da capital estadual, os últimos desenvolvimentos no banco onde Augusto trabalhava. Por baixo das palavras educadas, no entanto, havia uma corrente subterrânea de tensão não resolvida, como se cada participante estivesse cuidadosamente evitando o verdadeiro propósito daquele encontro.

Foi durante a sobremesa que a verdadeira razão da visita veio à tona. Maria estava entrando com a bandeja de doces quando ouviu o médico dizer:

“Recebi uma carta anônima, Senhor Machado, uma carta sugerindo que eu deveria reexaminar as circunstâncias da morte de sua esposa.”

Houve um momento de silêncio absoluto. O rosto de Augusto permaneceu impassível, mas seus dedos apertaram o guardanapo com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

“É uma afronta que o senhor dê crédito a tais insinuações,” respondeu finalmente sua voz controlada. “Helena sofria de melancolia. O senhor mesmo diagnosticou seu mal.”

“Diagnostiquei melancolia, sim, mas não uma condição terminal,” retrucou o médico. “Na verdade, na última vez que a examinei, uma semana antes de sua morte, ela parecia estar melhorando. Foi por isso que me surpreendi tanto quando fui chamado para constatar seu falecimento.”

“Minha cunhada teve uma recaída súbita,” interveio Cecília, sua voz tremendo ligeiramente. “O senhor sabe como essas doenças da mente são imprevisíveis.”

“Sei também que sua cunhada havia começado a fazer perguntas sobre a administração de seus bens,” disse o médico, olhando diretamente para Augusto. “Bens que, após sua morte, passaram inteiramente para o Senhor.”

A tensão na sala era palpável. Maria permaneceu imóvel com a bandeja de doces nas mãos, praticamente invisível aos olhos dos três.

“Está me acusando de algo, Doutor?” perguntou Augusto, sua voz perigosamente baixa.

“Estou apenas comentando sobre a carta que recebi, uma carta que mencionava não apenas a morte de Helena, mas também o destino misterioso de várias empregadas que trabalharam nesta casa nos últimos anos.”

Neste momento, Cecília levantou-se abruptamente, derrubando sua taça de vinho. “São mentiras! Calúnias de pessoas invejosas da nossa posição. As empregadas saíram porque quiseram ou porque não serviam ao padrão desta casa.”

O Dr. Mateus permaneceu calmo, observando a reação exagerada de Cecília. “Se não há nada a esconder, então não há motivo para tal exaltação, não é mesmo? Talvez devêsemos encerrar esta conversa. Já é tarde e o ar da noite não faz bem à minha idade.”

Augusto acompanhou o médico até a porta enquanto Cecília retirou-se para seu quarto, visivelmente perturbada. Maria começou a limpar a mesa, sua mente trabalhando rapidamente. A carta anônima; o médico suspeitando das circunstâncias da morte de Dona Helena; as empregadas desaparecidas. Tudo estava se conectando de uma forma aterradora.

Quando Augusto retornou à sala de jantar, seu rosto estava uma máscara de fúria controlada. Ele observou Maria por alguns instantes, como se a visse realmente pela primeira vez.

“Quanto você ouviu?” perguntou abruptamente.

Maria decidiu que não havia sentido em mentir. “Ouvi sobre a carta anônima, Senhor, e sobre as suspeitas do Doutor quanto à morte de sua esposa.”

Augusto aproximou-se dela lentamente, seus olhos nunca deixando os dela. “E o que pensa disso tudo, Maria?”

“Não me cabe pensar nada, Senhor. Sou apenas uma empregada.”

Um sorriso frio curvou os lábios de Augusto. “Sim, apenas uma empregada, como as outras que estiveram aqui antes de você. Como Lucinda, que também ouvia demais. Como Teresa, que fazia perguntas demais. Como Francisca, que viu coisas que não deveria ter visto.”

O coração de Maria acelerou, mas ela manteve a expressão neutra. “Posso terminar de limpar a mesa, Senhor?”

Augusto fez um gesto de dispensa. “Termine seu trabalho e vá dormir. Amanhã será um longo dia.”

Algo na maneira como ele disse isso, soou como uma ameaça velada.

Maria finalizou suas tarefas rapidamente e retirou-se para seu quarto, mas não para dormir. Sentou-se na beirada da cama, totalmente vestida, esperando. Tinha certeza de que algo aconteceria naquela noite e precisava estar preparada.

Mais tarde, quando a casa finalmente silenciou, Maria não conseguiu dormir. Ficou deitada, olhando para o teto de seu quarto, esperando os ruídos noturnos que certamente viriam. E vieram pontualmente às 3 da manhã, mais intensos que nunca.

O arrastar de passos, um gemido abafado e então algo novo, um choro suave, quase imperceptível, vindo do quarto trancado.

Com uma determinação nascida do desespero, Maria levantou-se. Sabia que esta poderia ser sua última chance de descobrir o segredo da casa dos Machado antes que se tornasse mais uma empregada desaparecida.

Pegou uma pequena lâmina que mantinha escondida entre seus poucos pertences, uma precaução que sempre carregara consigo desde jovem, e subiu as escadas cuidadosamente.

O corredor do segundo andar estava iluminado pela luz fraca da lua que entrava pelas janelas do final do corredor. A porta do quarto de Cecília estava fechada. Maria passou por ela silenciosamente, dirigindo-se ao quarto trancado de Dona Helena.

O cheiro adocicado e nauseante era mais forte aqui, misturando-se com o aroma de alfazema que haviam queimado durante o dia. Com a lâmina, Maria começou a trabalhar na fechadura. Anos de trabalho doméstico haviam lhe ensinado vários truques, incluindo como abrir fechaduras antigas. Após alguns minutos de tentativas, ouviu o clique desejado.

Com o coração acelerado, girou a maçaneta lentamente e abriu a porta. O quarto estava mergulhado na escuridão. Maria ficou imóvel por um momento, deixando seus olhos se acostumarem.

A primeira coisa que notou foi o cheiro intenso, uma mistura de medicamentos e algo mais profundo e mais perturbador. Gradualmente, as formas dos móveis começaram a se definir na penumbra. Uma cama com dossel, um armário grande, uma penteadeira com um espelho coberto por um pano escuro e na cama, uma forma imóvel.

Maria aproximou-se cautelosamente. Quando chegou perto o suficiente, quase gritou de choque.

Na cama estava uma mulher imóvel, coberta por lençóis brancos até o peito. Seu rosto era pálido, os cabelos grisalhos espalhados sobre o travesseiro. Estava viva, e Maria reconheceu-a das fotografias que havia visto na casa.

Era Dona Helena Machado, supostamente morta há 5 anos.

A mulher na cama era uma versão irreconhecível da elegante senhora das fotografias. Seus olhos estavam fechados, mas seu peito subia e descia com uma respiração fraca. Sobre a mesa de cabeceira, Maria viu uma coleção de frascos de vidro contendo líquidos de diferentes cores e consistências. Vários tinham rótulos com nomes de medicamentos. Outros eram simplesmente marcados com números. Um copo d’água pela metade e uma colher indicavam que alguém havia administrado uma dose recentemente.

Antes que pudesse se recuperar do choque, uma voz atrás dela congelou seu sangue.

“Agora você sabe.”

Maria virou-se lentamente. Cecília estava parada na porta, vestida com sua camisola branca, os cabelos soltos emoldurando seu rosto pálido. Em suas mãos segurava um frasco pequeno de vidro.

“Ela deveria ter morrido,” continuou Cecília, sua voz estranhamente calma. “O médico disse que ela tinha melhorado, mas era mentira. A melancolia voltou pior. Ela falava coisas terríveis, acusava Augusto de roubar seu dinheiro, ameaçava denunciá-lo. Estava fora de si, entende? Completamente perturbada.”

Maria não respondeu, seus olhos alternando entre Cecília e a forma imóvel na cama.

“Tentamos ajudá-la. Os remédios deveriam apenas acalmá-la, fazê-la dormir, mas ela reagiu mal naquela noite. Quando a encontramos, pensamos que estava perdida.” Cecília deu um passo à frente, seus olhos brilhando na escuridão. “Mas então ela respirou. Fraco, quase nada, mas respirou. E Augusto teve a ideia. Se todos pensassem que ela havia partido, os problemas acabariam. O dinheiro seria dele por direito, como deveria ser, e Helena poderia descansar, longe dos olhos curiosos das fofocas da cidade.”

“Vocês a mantiveram prisioneira por 5 anos!” sussurrou Maria horrorizada.

“Nós a protegemos,” exclamou Cecília, sua voz subindo. “Cuidamos dela, alimentamos, limpamos, demos remédios para mantê-la calma. É mais do que ela merecia depois das acusações que fez.”

“E as outras empregadas, as que descobriram?”

O rosto de Cecília endureceu. “Eram tolas como você, intrometidas, não entendiam o que estávamos fazendo. Augusto teve que proteger nossa família.”

Maria deu um passo para trás, aproximando-se da cama. “Você as afastou. Augusto fez o que era necessário,” respondeu Cecília, avançando lentamente. “Assim como fará com você. Ele está vindo.”

Ouviu, você subindo as escadas, como para confirmar suas palavras, o som de passos pesados subindo a escada chegou aos ouvidos de Maria. Não havia tempo para escapar. Augusto bloquearia o único caminho para fora do quarto.

Pensando rapidamente, Maria olhou em volta, buscando algo para se defender.

“Não precisa ser assim,” disse Cecília, sua voz agora quase gentil. “Você pode se juntar a nós, ajudar a cuidar de Helena. Augusto ofereceu isso às outras, mas elas recusaram. Foram estúpidas.”

Os passos estavam cada vez mais próximos. Em desespero, Maria viu apenas uma saída. As janelas do quarto davam para o telhado de um anexo da casa. Se conseguisse abri-las, talvez pudesse pular e escapar.

“Elas estão trancadas,” disse Cecília, seguindo seu olhar. “E mesmo que não estivessem, você não conseguiria chegar muito longe. Não há saída, Maria.”

Nesse momento, Augusto apareceu na porta do quarto. Estava completamente vestido, como se nunca tivesse ido dormir, e em sua mão direita segurava algo que brilhou na escuridão.

“Então ela descobriu,” disse ele, sua voz fria e controlada. “Como eu temia. Eu expliquei tudo a ela,” respondeu Cecília rapidamente. “Sobre Helena, sobre por que tivemos que fazer o que fizemos. Ela pode entender, Augusto, pode nos ajudar.”

Augusto observou Maria por um longo momento, seus olhos calculistas avaliando. “Você entende, Maria? Entende que tudo o que fizemos foi para proteger nossa família?”

Maria sabia que precisava ganhar tempo. Cada minuto era precioso. “Entendo que vocês pensam estar protegendo, Dona Helena,” disse lentamente. “Mas olhe para ela. Ela precisa de cuidados médicos reais. Não de confinamento.”

“O médico a declarou morta,” respondeu Augusto seco. “Como explicaríamos seu reaparecimento agora? E você acha que ele acreditaria que mantivemos Helena viva todos esses anos por amor, por cuidado? Não, ele veria apenas o que você vê. Um erro.”

“Não precisa terminar assim,” insistiu Maria, mantendo sua voz firme, apesar do medo. “Posso ajudar a encontrar uma solução?”

Augusto deu um passo à frente. “Há apenas uma solução possível agora.”

Foi nesse instante que um som vindo da cama atraiu a atenção de todos. Helena Machado havia aberto os olhos, olhos distantes, mas inegavelmente conscientes. Seus lábios ressecados se moveram, tentando formar palavras.

“Ela está acordada,” sussurrou Cecília, alarmada. “Os remédios deveriam mantê-la dormindo até amanhã.”

Helena continuou tentando falar. Sua voz um sussurro quase inaudível. Maria inclinou-se para ouvir. “Augusto me manteve aqui.”

Os olhos de Augusto se arregalaram de choque. Depois seu rosto se contorceu em fúria. “Mentiras! Sempre mentiras! Viu? Por que precisamos mantê-la escondida? Sua mente está completamente confusa.”

Mas Maria percebeu a verdade nos olhos lúcidos de Helena. “Não foram apenas os remédios para a melancolia. Foram você. A manteve aqui contra a sua vontade por anos para ficar com sua fortuna. E quando o médico percebeu que ela estava melhorando, você aumentou a dose para que ninguém descobrisse.”

“Chega!” gritou Augusto, avançando.

O que aconteceu a seguir foi rápido demais para Maria processar completamente. Helena, reunindo forças que pareciam impossíveis para alguém em seu estado, agarrou o braço de Augusto quando ele passou perto da cama. O movimento inesperado o desequilibrou, fazendo-o tropeçar.

Cecília gritou e correu para ajudar o irmão, deixando o caminho para a porta momentaneamente livre. Maria não hesitou, correu para o corredor e desceu as escadas o mais rápido que pôde, ouvindo os gritos furiosos de Augusto atrás dela.

Atravessou a sala de jantar, a cozinha e saiu pela porta dos fundos, sem parar para pegar qualquer pertence.

A noite estava fria e a lua iluminava fracamente o quintal dos Machado que descia pela encosta. Em vez de seguir pelo caminho óbvio até a rua, Maria escolheu descer pela lateral do terreno, onde a vegetação era mais densa. Podia ouvir Augusto gritando ordens dentro da casa e sabia que em instantes ele estaria em seu encalço.

A descida pela encosta íngreme era perigosa na escuridão. Maria escorregava no terreno molhado, agarrando-se a raízes e arbustos para não cair. Atrás dela viu a luz de um lampião saindo da casa. Augusto havia começado a busca. O ar frio da noite queimava seus pulmões enquanto descia cada vez mais rápido. Na sua mente repetia como um mantra: “Preciso chegar à delegacia. Preciso contar tudo antes que seja tarde demais.”

Descendo agora em direção à Rua do Pilar, onde ficava a delegacia. Se conseguisse chegar até lá, talvez pudesse convencer o delegado a investigar a casa dos Machado, a verificar se Helena ainda estava viva no quarto trancado.

A lua desapareceu atrás de nuvens, mergulhando a encosta em escuridão quase completa. Maria moveu-se mais pelo tato do que pela visão. Seus pés descalços arranhados por pedras e espinhos. O som de passos atrás dela indicava que Augusto estava se aproximando.

“Não há para onde fugir, Maria.” A voz de Augusto soou mais próxima do que ela esperava. “Você conhece Ouro Preto? Eu nasci aqui. Conheço cada pedra, cada atalho. Posso encontrá-la no escuro.”

Maria não respondeu, concentrando-se em continuar movendo-se sem fazer barulho. A vegetação ficava mais densa à medida que descia, oferecendo-lhe alguma proteção contra os olhos de seu perseguidor, mas também tornando o progresso mais difícil.

Quando finalmente avistou as luzes da Rua do Pilar, Maria sentiu uma esperança momentânea. Estava quase lá. Mas então tropeçou em uma pedra solta e caiu, rolando alguns metros encosta abaixo antes de conseguir se agarrar a um arbusto. Sentiu uma dor aguda no tornozelo.

“Não há para onde fugir, Maria,” disse a voz de Augusto, muito mais próxima do que ela esperava. Ele havia descido a encosta com a familiaridade de quem conhece o terreno perfeitamente, mesmo na escuridão. A luz do lampião que carregava revelou seu rosto contorcido pela fúria.

Maria tentou se levantar, mas seu tornozelo não suportava seu peso. Estava encurralada, ferida, sem chance de alcançar a rua antes que Augusto a alcançasse. Ele se aproximou lentamente, ciente de sua vantagem.

“Você poderia ter aceitado nossa oferta,” disse ele, balançando a cabeça como se lamentasse. “Poderia ter se juntado a nós, ter sido parte da família. As outras também recusaram. Todas! Todas vocês?”

“Quantas?” perguntou Maria, ganhando tempo enquanto tentava pensar em uma saída. “Quantas empregadas você afastou para manter seu segredo?”

“Apenas três,” respondeu Augusto com uma calma perturbadora. “As outras simplesmente fugiram quando começaram a suspeitar. Preferiram abandonar o emprego a investigar. Foram mais sensatas que você.”

Ele estava apenas alguns metros dela agora. Maria olhou desesperadamente em volta, procurando algo para se defender. Seus dedos tocaram uma pedra grande e pesada. Não era muito, mas era sua única chance.

“O que fez com elas?” continuou perguntando, segurando firmemente a pedra fora da visão de Augusto.

“O necessário,” respondeu ele vagamente. “Ninguém sofreu. Foi rápido, sempre rápido. Como será com você?”

Quando ele avançou os últimos passos, Maria reuniu todas as suas forças e arremessou a pedra diretamente em seu rosto. Augusto gritou de dor e surpresa, o lampião caindo de sua mão e apagando-se na queda.

A escuridão súbita deu a Maria uma vantagem momentânea. Ignorando a dor no tornozelo, ela se forçou a levantar e começou a descer o restante da encosta, mancando pesadamente, mas movida pelo puro instinto de sobrevivência.

Atrás dela, Augusto tentava se reorientar na escuridão. A Rua do Pilar estava agora a apenas alguns metros de distância. Maria podia ver as luzes da delegacia. Só precisava chegar lá, chamar a ajuda antes que Augusto a alcançasse novamente.

Foi então que uma figura apareceu em seu caminho, bloqueando sua rota de fuga. Por um momento de terror, Maria pensou que fosse Cecília vinda para ajudar o irmão, mas quando a figura se aproximou, reconheceu o rosto enrugado do Dr. Mateus Albuquerque.

“Maria, o que aconteceu? Você está ferida!” exclamou o médico, correndo para ampará-la.

“Doutor Mateus! Augusto Machado, ele está me perseguindo. Dona Helena está viva. Eles a mantiveram todos esses anos medicada.”

Antes que pudesse terminar, o som de passos apressados anunciou a chegada de Augusto. Ele parou abruptamente ao ver o médico.

“Dr. Albuquerque,” disse, tentando recuperar a compostura. “Que coincidência encontrá-lo a esta hora.”

“Não é coincidência alguma, Senhor Machado,” respondeu o médico friamente. “Depois do nosso jantar, decidi ficar de olho em sua casa. Havia algo perturbador em suas reações às minhas perguntas. E parece que minhas suspeitas estavam corretas.”

“Esta mulher está perturbada, Doutor. Invadiu minha casa, atacou minha irmã. Estou apenas tentando capturá-la para entregá-la às autoridades.”

“É mentira!” exclamou Maria. “Dona Helena está viva no quarto trancado. Eles a mantêm medicada. Ela me disse que Augusto a mantém prisioneira.”

Os olhos do médico se arregalaram. “Helena está viva?”

“Ela está delirando,” insistiu Augusto, sua voz agora desesperada. “Helena faleceu há 5 anos. O senhor mesmo constatou.”

“Constatei com base no que me foi mostrado,” retrucou o médico. “Um corpo que mal pude examinar devido à insistência sua e de sua irmã de que eu respeitasse o estado delicado em que se encontrava. Um corpo cujo rosto estava coberto e que agora percebo poderia não ser Helena.”

O rosto de Augusto empalideceu visivelmente, mesmo na luz fraca da rua. “O senhor não tem provas de nada,” disse entre dentes.

“Talvez não,” concordou o médico, “mas a delegacia fica a apenas 50 metros daqui. O que acha que o delegado pensará quando eu, um cidadão respeitado, lhe contar minhas suspeitas? Quando esta mulher contar o que viu, pensa que não haverá uma busca em sua casa?”

Por um longo momento, Augusto permaneceu imóvel, como se calculando suas opções. Então, de repente, virou-se e começou a subir a encosta de volta à sua casa.

O Dr. Mateus imediatamente pegou Maria pelo braço e começou a levá-la em direção à delegacia. “Venha. Precisamos chegar às autoridades antes que ele e a irmã tenham tempo de esconder evidências, ou pior, fazer algo contra Helena se ela realmente estiver viva.”

A delegacia foi rapidamente mobilizada. O delegado, um homem chamado Joaquim Pereira, organizou um grupo de quatro policiais e, junto com Maria e o Dr. Mateus, dirigiu-se à casa dos Machado.

Quando chegaram, a casa estava estranhamente silenciosa. Não havia luzes nas janelas, nem qualquer sinal de movimento. Bateram à porta várias vezes sem resposta, até que o delegado ordenou que a arrombassem.

O interior da casa estava escuro e silencioso. Os policiais acenderam lampiões e começaram a vasculhar os cômodos um a um.

Dona Justina, a cozinheira, foi encontrada trancada em seu quarto, tremendo de medo. “Eles enlouqueceram,” balbuciou ela quando foi libertada. “O Senhor Augusto chegou correndo, gritando que precisavam partir. Começaram a juntar coisas, papéis, dinheiro. Quando disse que ia verificar se Dona Helena precisava de algo, ele me trancou aqui.”

“Então, você sabia?” perguntou Maria perplexa.

A idosa baixou os olhos envergonhada. “Soube desde o início. Eles me ameaçaram. Disseram que me acusariam de roubo se eu contasse a alguém. E quem acreditaria em mim contra os Machado? Sou apenas uma velha cozinheira.”

O delegado ordenou que continuassem a busca. No segundo andar, encontraram a porta do quarto de Helena aberta. A cama estava vazia, os lençóis revirados, havia sinais de pressa: uma mesa derrubada, um vaso quebrado e, no chão, marcas que formavam um rastro em direção à escada.

Seguindo o rastro, os policiais chegaram até a porta dos fundos, que estava escancarada. Lá fora, o caminho continuava pelo quintal, descendo a encosta em direção a uma área de mata mais densa.

“Levaram Helena e fugiram,” concluiu o delegado. “Mas não podem ter ido longe, não com uma mulher debilitada.”

Organizaram uma busca pela encosta e pelas ruas adjacentes.

Foi quase ao amanhecer que um dos policiais encontrou pegadas frescas próximas ao pequeno cemitério de Santa Efigênia. As pegadas levavam a uma cripta antiga pertencente à família Machado.

A cripta era uma construção imponente, feita de pedra escura com detalhes em mármore branco. A porta de ferro forjado ostentava o brasão da família, um “M” estilizado, entrelaçado com ramos de café, símbolo da riqueza que os Machado haviam acumulado durante o ciclo do ouro.

A porta estava destrancada, como se os ocupantes não tivessem tido tempo de fechá-la adequadamente em sua fuga apressada. O delegado e dois policiais entraram primeiro, seguidos por Maria e o Dr. Mateus.

O interior da cripta era frio e úmido, iluminado por um único lampião que alguém havia acendido. O espaço era dominado por várias lápides antigas, algumas datando do início do século XIX, todas ostentando o nome Machado. No centro havia uma grande laje de pedra.

A porta da cripta estava destrancada. Dentro encontraram Augusto e Cecília, e entre eles o corpo de Helena, imóvel sobre uma laje de pedra. Cecília chorava silenciosamente, enquanto Augusto permanecia de pé, rígido, encarando os policiais com um olhar vazio.

O Dr. Mateus apressou-se a examinar Helena. Após alguns momentos angustiantes, levantou-se com expressão sombria. “Ela se foi definitivamente desta vez.”

“Ela não aguentaria muito mais tempo de qualquer forma,” disse Augusto, sua voz estranhamente calma. “Anos de medicamentos a enfraqueceram demais. Esta fuga foi o golpe final.”

“Por quê?” perguntou Maria, incapaz de conter sua indignação. “Por que mantê-la prisioneira por tantos anos?”

“O dinheiro,” respondeu o Doutor Mateus antes que Augusto pudesse falar. “Helena era a verdadeira herdeira da fortuna dos Machado. Seu pai deixou tudo para ela, com a condição de que Augusto administrasse os bens apenas enquanto ela vivesse. Após sua morte, metade iria para instituições de caridade.”

“Não era apenas o dinheiro,” protestou Cecília entre soluços. “Ela ia nos destruir. Descobriu que Augusto havia desviado fundos. Ameaçou denunciá-lo. Disse que nos expulsaria da casa que sempre foi nossa. Nossa família construiu tudo isso e ela ia jogar fora por capricho.”

“Então vocês a mantiveram sedada,” continuou Maria, as peças finalmente se encaixando. “Mas quando não funcionou como esperavam, aumentaram a dose, quase a levando a um estado terminal.”

“E quando o médico notou que ela estava melhorando, tivemos que simular sua morte,” completou Augusto sem emoção. “Foi mais fácil do que imaginávamos. Um corpo não identificado, o caixão fechado no funeral, o atestado assinado por um médico que mal olhou para o corpo.”

“E enquanto todos pensavam que Helena estava enterrada, vocês a mantiveram no próprio quarto, sedada o suficiente para não resistir, mas viva para que o testamento não fosse executado,” concluiu o delegado.

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“E o corpo que eu examinei?” perguntou o Dr. Mateus, ainda horrorizado com a revelação.

Augusto sorriu friamente. “Uma indigente que faleceu no mesmo dia. Ninguém notou sua ausência, ninguém reclamou o corpo. Perfeito para nossos propósitos.”

O delegado fez um sinal para os policiais que se aproximaram para prender Augusto e Cecília. Mas antes que pudessem alcançá-los, Augusto, num movimento rápido, puxou algo de seu bolso, um pequeno objeto que brilhou na luz fraca do lampião.

“Não se aproximem,” gritou, apontando para os policiais, depois para Maria e, finalmente, para o delegado. “Ninguém vai me levar, vocês não entendem. Não podem entender, Augusto. Pare com isso,” disse o delegado calmamente. “Não piore sua situação. Já está acabado.”

“Acabado?” Augusto riu. Um som vazio e desesperado. “Não, ainda não está acabado. Não enquanto eu estiver vivo.”

“Irmão, por favor,” implorou Cecília, agarrando-se ao braço livre de Augusto. “Não há mais o que fazer. Helena se foi. Não temos mais por lutar.”

Por um momento, pareceu que Augusto iria se render. Seus ombros caíram ligeiramente e seu braço tremeu. Mas então seu rosto endureceu novamente. “Não vou para a prisão, Cecília, nem você. É isso que nos espera se nos rendermos: humilhação, uma cela, a degradação do nome Machado. Não permitirei isso.”

O que aconteceu a seguir foi tão rápido que ninguém conseguiu impedir. Houve um movimento súbito, um clarão e depois silêncio. Os irmãos Machado haviam escolhido o mesmo destino juntos no fim, como haviam estado em sua conspiração macabra.

O silêncio que se seguiu foi absoluto. O delegado foi o primeiro a se mover, removendo seu chapéu em um gesto instintivo de respeito pela morte, mesmo que fossem as mortes de criminosos.

“Está acabado,” murmurou o delegado, olhando para os três corpos agora alinhados na cripta: Helena, Cecília e Augusto Machado, uma família unida finalmente na morte, como nunca havia estado em vida.

Nos meses que se seguiram, o caso dos Machado tornou-se o assunto mais comentado em Ouro Preto e até mesmo em outras cidades de Minas Gerais. A investigação revelou detalhes ainda mais sórdidos. As três empregadas desaparecidas haviam sido mantidas em silêncio permanente. Augusto havia desviado quase toda a fortuna da esposa e o plano de mantê-la medicada vinha ocorrendo há anos antes de sua morte.

A investigação das contas bancárias e documentos financeiros de Augusto Machado revelou um homem cujas aparências de respeitabilidade escondiam uma vida de fraudes e desvios. Como gerente do banco local, havia manipulado registros para desviar fundos não apenas da fortuna de Helena, mas também de diversos clientes que confiavam nele. Quando Helena começou a descobrir as irregularidades, tornou-se uma ameaça que precisava ser neutralizada.

O corpo de Helena Machado foi finalmente enterrado com dignidade em uma cerimônia simples, assistida por poucos moradores da cidade que ainda se lembravam dela. O Dr. Mateus Albuquerque foi um dos presentes, ainda profundamente abalado por ter sido involuntariamente cúmplice da farsa de Augusto ao certificar a falsa morte de Helena 5 anos antes.

A casa dos Machado, uma vez símbolo de status e poder na antiga capital, foi fechada e selada por ordem judicial. Os poucos bens que restavam da fortuna dos Machado foram direcionados para as instituições de caridade designadas no testamento original de Helena, como deveria ter sido feito desde o início.

Ninguém queria comprar a propriedade ou sequer entrar nela. Os rumores sobre as almas inquietas das empregadas desaparecidas, de Helena e dos próprios irmãos Machado mantinham os potenciais compradores afastados. Virou mais uma das casas abandonadas na paisagem de Ouro Preto, seus segredos escuros selados atrás de portas e janelas lacradas.

Com o passar do tempo, a vegetação começou a invadir o terreno. Trepadeiras cobriam as paredes externas. O jardim, uma vez imaculado, tornou-se um matagal selvagem e o telhado começou a ceder em alguns pontos, permitindo que a chuva e o tempo fizessem seu trabalho de apagar lentamente os vestígios da tragédia.

Dona Justina, a cozinheira que havia sido cúmplice silenciosa dos crimes dos Machado por tantos anos, foi julgada e condenada a três anos de prisão por cumplicidade. Sua idade avançada e a evidente coerção sob a qual vivera pesaram a seu favor durante o julgamento. Após cumprir sua pena, mudou-se para uma cidade distante, onde ninguém conhecia sua história, e viveu o restante de seus dias em anonimato.

Maria Antônia recuperou-se e com a recompensa oferecida pelo desvendamento do caso, conseguiu abrir uma pequena pensão na cidade. A Pensão Santa Maria, como a chamou, tornou-se conhecida por sua limpeza impecável e pelo caráter irrepreensível de sua proprietária. Maria nunca falava sobre sua experiência na casa dos Machado com os hóspedes, mas os moradores mais antigos de Ouro Preto sabiam de seu papel na resolução do mistério e a respeitavam por isso.

Em 1952, mais de 40 anos após os eventos, um estudante da Escola de Minas encontrou um diário enquanto pesquisava nos arquivos municipais. Era o diário de Helena Machado, aparentemente escondido ali por Dona Justina antes de ser presa. Nas páginas amareladas pelo tempo, Helena descrevia em detalhes os abusos que sofrera nas mãos do marido, as suspeitas sobre os desvios financeiros e seu crescente medo de que algo terrível lhe acontecesse.

A última entrada, datada de apenas dois dias antes de sua suposta morte, dizia simplesmente: “Augusto parece diferente hoje, mais calmo, mas seus olhos, seus olhos têm algo que me aterroriza. Temo não ter muito mais tempo.”

O diário foi enviado para o Arquivo Histórico da Cidade, onde permanece até hoje um testemunho silencioso de um dos casos mais perturbadores da história de Ouro Preto.

E até hoje os moradores de Ouro Preto evitam passar pela antiga residência dos Machado depois do anoitecer. Dizem que às 3 da manhã ainda é possível ouvir o arrastar de passos no andar superior, como se alguém caminhasse com dificuldade, eternamente presa em sua prisão de madeira e pedra.

Alguns juram ter visto nas noites de lua cheia a silhueta de uma mulher pálida na janela do quarto que foi de Helena Machado, olhando para a cidade com olhos vazios e tristes.

A casa que nenhum empregado quis tornou-se a casa que ninguém quer. Um monumento silencioso aos horrores que podem ocorrer quando a ganância, a obsessão e o controle se encontram atrás de fachadas respeitáveis, escondidas nas sombras de uma cidade outrora dourada.

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