Salvou os meus filhos do dilúvio e depois desapareceu sem nome
Não sei de onde veio a água. Estava a lavar os pratos e, no momento seguinte, a água já me chegava aos tornozelos, depois aos joelhos. A luz apagou-se de imediato e a porta principal inchou devido à pressão.
Agarrámos os miúdos e subimos as escadas enquanto a sala desaparecia debaixo da água castanha. O meu telefone estava morto. Continuei a tentar acalmá-los, mas a verdade é que era eu quem não conseguia parar de tremer.
E então, através da chuva e do silêncio despedaçado, ouvi batidas. Na janela. A luz de uma lanterna. Um homem com uma jaqueta amarela brilhante, afundado até à cintura na inundação, gritava: «Eu tenho-vos, dá-mos!».
Nem pensei duas vezes. Reparti-os um a um — primeiro o Liam, depois a Nora —, vendo-o segurá-los contra o peito como se nada fosse. Eles agarraram-se a ele, a chorar, mas ele continuou a caminhar, firme, devagar, como se o tivesse feito centenas de vezes.
Eu segui-os a vadear, mas quando cheguei à calçada, um barco parou. Passaram os miúdos com cuidado, despediram-se do capitão com a mão e voltaram para a subida das águas sem dizer palavra.
— Espera — gritei —. Qual é o teu nome?
Fez uma pausa de meio segundo e disse:
«Diz-lhes que alguém esteve a cuidar deles hoje».
E depois desapareceu para a casa ao lado.
A tripulação do barco ajudou-me a subir. Tinha as pernas dormentes e não sentia mais nada além do peso húmido do medo agarrado à minha pele. Abracei os miúdos enquanto o barco nos levava para uma zona mais alta.
Não conseguia deixar de reviver aquele momento: o seu rosto, a sua voz, a maneira como se embrenhava no perigo como se fosse nada.
Uma vez secos e seguros no centro comunitário habilitado para os evacuados, as perguntas começaram a acumular-se. Quem era ele? Fazia parte da equipa de resgate? Era um vizinho? Um completo desconhecido?
Perguntei por aí e descrevi-o a todos os que quisessem ouvir. Ninguém parecia saber.
Uma mulher mais velha, com óculos grossos e um caderno de anotações, parou quando mencionei a vespa. «Parece o tipo que tirou o cão dos Reynolds do telhado», disse. «Mas eles também não sabem quem ele é».
Fiquei a pensar nisso durante muito tempo.
A tempestade passou na manhã seguinte. As águas demoraram mais a baixar, mas finalmente baixaram. Quando nos permitiram voltar a casa, mal reconheci a rua. Havia lama por todo o lado, móveis incrustados nas cercas, um trampolim enrolado numa placa de stop.
A minha casa ainda estava de pé, mas por pouco. No início, não me atrevi a entrar. Mas os miúdos precisavam de roupa, medicamentos, alguns brinquedos… qualquer coisa que não tivesse sido destruída.
Carregava a Nora enquanto o Liam me agarrava a outra mão. Ao entrar, preparei-me para o cheiro. Bateu-me de imediato: gesso molhado, comida podre, o ardor penetrante do bolor que já começava a enraizar-se.
Ficámos apenas quinze minutos. O suficiente para pegar em álbuns de fotografias e algumas coisas essenciais do armário de cima. Ao sair, reparei em algo que não tinha visto antes: pegadas de lama nas escadas que subiam para a porta principal. Grandes. Uma ou duas numeração maiores do que as minhas.
Pararam exatamente na janela partida por onde ele metera a mão.
Essa noite, enquanto os miúdos dormiam, sentei-me numa das camas emprestadas no ginásio, olhando para as minhas mãos. Pensei o quanto estivemos perto de perder tudo. Não a casa, mas um ao outro.
E o homem que nos salvou não queria agradecimentos.
Dois dias depois, mudámo-nos para a casa da minha irmã, do outro lado da cidade. Era um espaço pequeno, sim, mas quente e seco. Os miúdos adaptaram-se de imediato. A Nora brincou a contar quantas vezes conseguia fazer rir a prima Lily.
O Liam seguia o meu cunhado como um cachorrinho, fazendo-lhe perguntas intermináveis sobre ferramentas, pregos e martelos.
E eu? Não conseguia deixar de pensar no homem da jaqueta.
Comecei a caminhar pelo bairro à noite, depois de os miúdos se deitarem. Voltei a perguntar. Toquei a algumas portas. «Não estou à procura de nada», dizia. «Quero apenas agradecer-lhe».
Um homem, um senhor mais velho e tranquilo chamado Sr. Henley, fez uma pausa quando descrevi o resgate.
«Disse que ele voltou para a casa ao lado?», perguntou.
Assenti.
«Essa casa está quase há um ano vazia», disse. «Depois do incêndio, ninguém mais se mudou para lá».
Pisquei os olhos. «Aquela com a varanda queimada?»
— Sim. Era de um tal Mark, bombeiro. A esposa dele faleceu há algum tempo. Ele vendeu-a depois do incêndio.
Senti um arrepio na pele. «Sabes para onde ele foi?»
O Sr. Henley abanou a cabeça. «Não faço ideia. Mas se for ele, já não deveria viver ali».
Na manhã seguinte, voltei a pé à casa. Estava pior do que lembrava. As tábuas da varanda estavam moles e partidas. As janelas estavam cobertas de plástico manchado de fuligem. Achei que vi algum movimento dentro, mas talvez fosse o vento.
Ainda assim, toquei à campainha.
Nenhuma resposta.
Virei-me para ir embora, e então vi algo colado ao correio. Um desenho feito à mão. Lápis de cera. Mostrava um homem com uma jaqueta amarela a segurar dois miúdos. Em letras trémulas em baixo, dizia: «OBRIGADO. DE LIAM E NORA».
O meu coração apertou. Não os tinha visto fazê-lo. Devem tê-lo feito naquela manhã enquanto eu dormia.
Deixei uma nota. «Nós fomos salvos por ti. Se precisares de alguma coisa, por favor, liga».
Passaram duas semanas. Nenhuma batida à porta.
Numa tarde de sábado, a minha irmã entrou correndo. «Há alguém à porta. Pergunta por ti».
Saí e lá estava ele. A mesma jaqueta, com o fecho até meio. O mesmo olhar tranquilo. Segurava uma pequena caixa de ferramentas numa mão.
«Ouvi dizer que a tua casa sofreu danos», disse. «Pensei que talvez precisasses de ajuda para a arranjar».
Fiquei a olhar.
«Vives aí?» perguntei, apontando para a casa queimada.
— Não — respondeu simplesmente —. Um lugar tranquilo onde ficar enquanto me recupero.
Tentei de novo. «Como te chamas?»
Sorrriu, mas o sorriso não chegou aos olhos. «Não precisas de saber. Estamos quites».
Passou os três dias seguintes a ajudar-me a limpar a casa. Não falou muito. Trabalhou. Retirou as tábuas do chão molhado. Tirou os móveis partidos. Selou as fendas nas paredes para evitar que o bolor se propagasse.
No quarto dia, já não estava.
Sem bilhete. Sem despedida.
Uma varanda da frente varrida e uma porta fixa que finalmente se abriu como deveria naquela noite.
Passaram-se os meses. O seguro já estava pago. Contratei uma equipa para terminar as reparações. Mudámo-nos novamente antes do inverno.
O Liam insistiu para deixarmos uma carta de Natal ao homem da jaqueta amarela «para o caso de ele passar por lá». Fizemo-lo. Coloquei-lhe um vale de supermercado.
Ninguém o recolheu.
Comecei a aceitar que talvez nunca o voltasse a ver.
Até ao início da primavera, quando a Nora adoeceu. Um vírus persistente transformou-se numa pneumonia. Numa noite, ela respirava tão mal que a levei de urgência ao hospital. Esperámos horas. Ligaram-na ao oxigénio, e eu sentei-me ao lado da cama dela, impotente, a rezar para que ela se recuperasse.
Passada a meia-noite, entrou uma enfermeira. «Olá», disse suavemente. «Há um homem no átrio a perguntar por uma menina chamada Nora».
Pisquei os olhos. «Que homem?»
Ela encolheu os ombros. «Não disse o nome. Disse que queria saber se ela estava bem. Não queria voltar. Parecia tímido».
Corri para o átrio. Estava vazio.
Mas a recepcionista entregou-me um envelope.
Dentro, havia uma nota: «Ela ficará bem. É forte como a mãe».
E colado com fita adesiva em baixo?
Uma pequena insígnia de bombeiro em plástico.
Foi então que tudo fez sentido.
Não era um bom samaritano. Era bombeiro. Provavelmente reformado. Talvez atormentado por algo que não conseguiu salvar. Um homem que não queria elogios, mas sim a oportunidade de ajudar discretamente.
Ainda não sei o seu verdadeiro nome.
Mas às vezes vejo vestígios dele. Um ancinho abandonado no nosso jardim depois de uma tempestade de vento. Uma lata de sopa na varanda quando tive gripe. Uma flor solitária ao lado da velha boca de incêndios da rua.
Deixei de tentar encontrá-lo.
Porque talvez esse não seja o ponto.
Talvez o importante seja saber que, às vezes, quando a vida te absorve por completo, pode aparecer alguém que nunca conheceste. Pode meter-se na corrente para levar os teus filhos para um lugar seguro.
E talvez esse tipo de bondade não precise de nome.
Já te cruzaste com alguém que te mudou a vida e desapareceu tão rápido como ele? Partilha isto se acreditares que essas pessoas continuam por aí.