O meu filho abordou um estranho num restaurante e disse-lhe algo que nunca esquecerei.

O meu filho aproximou-se de um estranho no restaurante e disse-lhe algo que nunca esquecerei

Era suposto serem apenas panquecas.

Parámos no restaurante antigo da Rua 7 depois do treino de futebol porque eu não tinha vontade de cozinhar, e o Jackson adora aqueles frasquinhos estranhos de xarope que têm nas mesas. Nada de especial. Um pequeno-almoço rápido ao jantar.

Estávamos a meio do nosso pedido quando o Jackson ficou em silêncio. Um silêncio absoluto. O olhar dele fixou-se num homem sentado sozinho numa mesa no canto. Um casaco com capuz roto, mãos calejadas, a comer como se não tivesse feito uma refeição decente há dias.

Notei os olhares das outras mesas. Sabem, daqueles. Não eram maus, só… desconfortáveis. Como se quisessem fingir que não o viam.

Mas o Jackson viu.

De repente, o meu filho desceu do banco e aproximou-se, com o seu pequeno recipiente de fruta extra para levar. Chegou-se ao homem, ofereceu-lho e disse:

Podes ficar com o meu. A minha mãe diz sempre que devemos partilhar com quem não tem o suficiente.

Fiquei paralisada. Não lhe tinha dito para fazer aquilo. Nem sequer sabia que ele me tinha ouvido dizer essas coisas. Mas o homem não se riu nem o afastou com um gesto. Simplesmente levantou o olhar, com os olhos vidrados, e acenou com a cabeça.

Pegou na fruta com as duas mãos. Disse algo que eu não consegui ouvir.

O Jackson ficou ali por um segundo, depois inclinou-se e sussurrou-lhe algo.

E o homem tapou o rosto e começou a chorar.

Quando o Jackson voltou à nossa mesa, perguntei-lhe o que tinha dito.

Ele encolheu os ombros e murmurou: Disse-lhe que se parece com o senhor das fotografias. Aquele de quem disseste que não falamos.

Senti o ar prender-se-me no peito.

Só podia referir-se a uma pessoa: o meu pai. Um homem que eu não via desde os meus dezassete anos. Um homem cujo nome tinha enterrado sob camadas de silêncio e distância. Porque a última vez que o vi, ele estava a sair das nossas vidas para sempre.

— Estás a falar do velhote com a guitarra? — perguntei com cuidado.

O Jackson acenou. — Sim. Os olhos são iguais.

Virei-me no assento para olhar novamente para o homem. Olhar a sério.

E de repente, já não via um estranho de capuz. Via o fantasma de alguém a quem eu costumava chamar “pai”. As mesmas maçãs do rosto salientes. As mesmas sobrancelhas irregulares. Até a forma como se curvava sobre o prato… era como ver uma memória sair de um álbum de fotografias.

Mas não podia ser. Ou podia?

Fiquei sentada ali, com o coração a bater com força, as mãos a tremer em torno da chávena de café. Mil pensamentos atravessavam-me a mente. Não sabia nada dele há mais de vinte anos. Nem cartas. Nem telefonemas. Simplesmente desapareceu.

Mas e se…?

Disse ao Jackson para ficar quieto, saí da cabine e caminhei lentamente. Cada passo parecia pesar uma década.

Quando cheguei à mesa, ele levantou o olhar. E no momento em que os nossos olhos se cruzaram, soube.

— Olá — disse, num sussurro.

O rosto dele desfez-se.

— Rosie?

Foi tudo o que foi preciso. Uma palavra. A minha alcunha de infância, dita com a mesma voz rouca que não ouvia há meia vida.

Sentei-me à frente dele, sem saber se devia sentir raiva, alívio ou apenas… entorpecimento.

— Não sabia que ainda estavas por aqui — disse.

Também não sabia que estavas aqui, — respondeu ele, com a voz trémula. — Estive… por todo o lado.

Olhei para as mãos dele: os nós dos dedos estavam feridos e as unhas manchadas. Não era apenas uma fase má. Ele tinha passado por muita coisa.

— Pensei que estavas morto — disse sem rodeios.

Ele acenou como quem merecia.

— Bem podia estar.

Ficámos em silêncio. A minha mente oscilava entre as recordações e o homem à minha frente. O pai que tocava “Blackbird” no alpendre. O homem que desapareceu depois da morte da minha mãe, deixando-me com a minha tia e um monte de perguntas que ninguém queria responder.

Queria gritar com ele. Abraçá-lo. Perguntar-lhe onde raio tinha andado.

Em vez disso, perguntei: — Estás bem?

Ele soltou uma risada entrecortada. — Não propriamente. Mas o teu filho… o teu filho lembrou-me de quem eu era.

Conversámos. Lentamente. Com algum embaraço. Contou-me como se desfez depois de perder a mãe. Como recorreu ao álcool, perdeu empregos, cortou laços. Disse que não pediu ajuda porque tinha vergonha do que se tinha tornado.

— Já não achava que merecia ser o pai de alguém — disse enquanto limpava os olhos.

Queria acreditar que mentia. Que não se importava. Que eu estava melhor sem ele.

Mas sentado ali, não vi um monstro. Vi um homem desfeito que nunca soube como se reconstruir.

De volta à nossa mesa, o Jackson observava-nos como se estivesse a tentar resolver um puzzle.

Depois de algum tempo, perguntei se queria juntar-se a nós. Ele hesitou, como se não conseguisse acreditar que eu estava a falar a sério.

Mas juntou-se. E comemos panquecas. Os três.

O Jackson contou-lhe sobre a escola, o futebol e o quanto odiava aipo. O meu pai — ainda me soa estranho chamá-lo assim — ouvia como se cada palavra importasse.

Antes de irmos embora, entreguei-lhe um guardanapo dobrado com o meu número.

Se quiseres mesmo recuperar a tua vida… liga-me. Mas só se for a sério.

Ele acenou, agarrando o guardanapo como se fosse um bilhete da lotaria premiado.

Essa noite, aconcheguei o Jackson e ele perguntou: — Era mesmo o avô?

Fiz uma pausa. — Sim, querido. Acho que sim.

— Ele vai voltar?

— Não sei — admiti —. Mas talvez queira tentar.

Passou uma semana. Depois duas. Nada.

Parte de mim pensou que tinha sido só aquilo. Um momento num restaurante e nada mais.

Mas depois, uma chamada. Número desconhecido.

— Rosie? — Aquela voz outra vez. — Estou no abrigo de Franklin. Estão a ajudar-me a deixar a bebida. Só queria que soubesses… que estou a tentar.

Não disse muito. Apenas: — Está bem. Continua a tentar.

E ele tentou.

Durante os meses seguintes, ligava todas as semanas. Depois, dia sim, dia não. Começou a soar mais claro. Mais saudável. Esperançoso.

Com o tempo, arranjou trabalho a lavar loiça num pequeno café. Encontrou um quarto num centro de reinserção. E então, num sábado, perguntou se podia ir ao jogo de futebol do Jackson.

Hesitei. Mas disse que sim.

Apareceu com uma camisa lavada e sapatos emprestados. Sentou-se tranquilamente nas bancadas, com as mãos juntas e o olhar fixo no campo.

Depois do jogo, o Jackson correu e abraçou-o como se se conhecessem desde sempre.

Não foi perfeito. Não nos tornámos numa família mágica de um dia para o outro. Mas foi um começo.

Numa noite, o pai tirou a sua velha guitarra. Disse que a tinha penhorado há anos, mas que conseguiu uma numa loja em segunda mão.

Tocou “Blackbird” sob a luz do alpendre enquanto o Jackson dançava descalço na relva.

E chorei.

Não pelos anos que perdemos. Mas pelos que ainda temos pela frente.

Perto do Natal, surpreendi o pai a olhar para as fotos de família na parede.

— Construíste algo bonito aqui — disse ele.

Não disse nada. Apenas apertei-lhe a mão.

Porque o perdão nem sempre chega com grandes declarações. Às vezes entra silenciosamente, entre panquecas e canções antigas.

A reviravolta? O homem que pensei ter arruinado a minha infância… acabou por ajudar a criar o meu filho.

E talvez seja isso o mais curioso da vida: dá-te uma segunda oportunidade quando menos esperas.

Se ainda estás a ler isto, espero que te lembres:

Às vezes, as pessoas que descartamos não desapareceram para sempre. Às vezes, só estão à espera de uma pequena mão que lhes ofereça algo… e uma razão para tentar de novo.

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